Em busca de Última Forma

Em busca de Última Forma

Nos anos 70, havia uma rádio muito interessante em Porto Alegre. Era a Continental, que nada tinha a ver com bobamente nostálgica Continental FM de hoje.

Pois bem, a rádio era “jovem”. Ou seja, tocava não somente os grandes grupos de rock ativos na época — até hoje os melhores, não? — como colocava importantes questões em subtexto: a música brasileira era também esplêndida, talvez melhor.

Então, havia uma gravação que eles tocavam bastante. Era a da canção Última Forma, de Baden e Pinheiro. Melodia longa e linda, letra perfeita de quem se despede do antigo amor, uma perfeição de cabo a rabo. Procuro a gravação no YouTube e só encontro a versão pesada do MPB-4, a desinterpretação de Emílio Santiago, a discursiva de Elizeth, a de Alcione estilo alcione e a até boa de Roberta Sá.

Mas nada do charme, da ironia e do discreto ódio da gravação que ouvia na Continental. Certamente era uma cantora do segundo time, tipo Alaíde Costa.

(Informação: Paulo César Pinheiro fez a letra para Elis Regina, como resposta ao fim de seu casamento com Ronaldo Bôscoli. Elis ouviu, como que com um nó na garganta, não disse nada e não gravou a canção).

A pergunta: quem seria esta cantora? E onde poderia reouvi-la?

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Após pesquisa, papos e risadas que envolveram Vagner Eifler, Jorge Lima, Fernando Gomes, Éder Silveira, Zeca Azevedo, Juarez Malta, Anaurelino Corrêa De Barros Neto, Norberto Flach, Renata Lins, Enio San, Guilherme Conte,  Álvaro Magalhães, Raul Ellwanger, Igor Freiberger e Marcos Abreu, chegamos à conclusão de que a gravação só poderia ser a original (a primeira) de Márcia, com Baden Powell ao violão.

Houve nova caçada à gravação e Zeca Azevedo, juntamente com seu amigo Manoel Filho chegaram lá.

Amor

Hoje eu fui a um velório de devastador impacto emocional. Era o velório de minha ex-babá, que faleceu aos 93 anos. Passei muitos anos sem vê-la, décadas, até que seu filho Jacó, em abril de 2015, me reconheceu na feira de sábado da Vasco, veio falar comigo e promoveu um reencontro imediato, pois ela estava ali. Pequenina, frágil, sorridente, ela me reconheceu e falou muito bem de mim e de minha mãe. Nos abraçamos, nos beijamos, a Elena tirou fotos. Se aquele foi um dia muito feliz, repetir hoje seria impossível.

Foto: Elena Romanov

Ver a babá é revisitar a infância. Fui uma criança agitada, muito ativa, devia ser insuportável. Se até hoje não consigo ficar parado, imagino a peste que fui. E imaginei a incomodação, a lavação de fraldas, a correria atrás de mim. Porém da Márcia só lembro de delicadezas. Minha mãe confirmava: dizia que eu tivera a mais amorosa das babás, que tivera sorte. (Minha mãe era uma dentista que, assim como a Márcia, trabalhava muito e na época as crianças só iam para o Jardim da Infância aos 6 anos).

A surpresa veio na conversa com seu filho Jacó. Ouvi muitas vezes coisas sobre o amor que a Márcia me dedicava, mas eu também cresci insuportável: sou o tipo de pessoa que não acredita ou reduz os elogios que raramente recebe. Com lágrimas nos olhos, mas mantendo o bom humor, o Jacó disse que estava feliz com minha presença e que “ficaria com ciúmes” porque a Márcia me adorava. Um exagero, pensei, mas não me passou despercebido um fato: um dos netos sabia quem eu era, eu era o cara do encontro na feira.

E desmanchei de vez quando Jacó pediu a palavra após a fala do padre. Orador nato, de fala inteligente, voz emocionada mas bem colocada, o advogado Jacó percorreu rapidamente o longo arco da vida de sua mãe e passou a referir cada pessoa presente. A pequena sala de velório estava apinhada. Falou de amigos e amigas de sua mãe, parentes — alguns dos quais ela também criara — e vizinhos.

Quando chegou a minha vez, soube que minha mãe era apenas a melhor amiga da sua. Márcia viera de Maquiné e minha mãe logo a empregara, mas eram mais amigas do que qualquer coisa, disse ele. E lembrei de visitas que fazíamos à Márcia quando ela não era mais babá. Lembrei que olhava para o Jacó e que ele era “muito criança” para mim — tinha seis anos a menos do que eu (aliás, tem até hoje…). E o Jacó lembrou do PUDIM que a Márcia fazia sempre para nossa chegada. Meu deus, eu lembro do pudim! Era um milagre! Até hoje amo pudim e sempre que vejo um tenho a esperança de que a massa homogênea e clara da parte de baixo seja laaaaarga, delicada e leve como os da Márcia.

E ele voltou a brincar sobre os ciúmes que tinha de mim, agora publicamente.

É claro que jamais retribuí nada para a Márcia, ao menos verbalmente. Esteja ela agora onde estiver, digo envergonhado que também a amo, que sei da sorte que tive ao conhecê-la — éramos dois jovens, Jacó — e que, mesmo sem esperanças, seguirei atrás de um pudim tão maravilhoso quanto o dela.