Escrito no dia seguinte ao do aniversário de Jean-Luc Godard, para o blog de Milton Ribeiro:

Por Fernando Monteiro

Anna Karina o tempo todo em cena, quase sempre em PP, aqui nessa sequência de abruptos luscos-fuscos de “Alphaville” (1965):

Ou clique aqui.

PS: Quando era jovem e impaciente (e burro), eu detestei. Hoje, adoro. E gostaria de voltar a ver filmes assim solenes e comovidos e nervosos, em preto-e-branco, e não essas porras de agora, filmadas em rodas gigantes descarrilhadas que os americanos débeis mentais trouxeram para o cinema como uma praga (e todo mundo da geração de Coppola / Scorcese tem culpa, de algum modo, sem esquecer o cretino do diluidor Spielberg, e aquelas manhas murmuradas por Woody Allen como se Bergman fosse um “exu” que ele incorporasse falando, falando, falando, o desgraçado, o tempo todo).

“Cinema não é gente falando”, dizia — acertadamente — um cineasta que me inspira certa desconfiança, por vezes, mas que estava frequentemente com a razão, quando reclamava dos colegas ianques: o gordo Hitchcock.

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A Decadência do Cinema e de seus Comentaristas

Building upon each other’s knowledge is exactly what Newton meant when he said he can see further because he stands on the shoulders of giants.

BERTRAND RUSSELL

Tenho absoluta certeza da decadência do cinema. Deveria generalizar e falar em decadência das artes em geral? Bom, hoje meu assunto é cinema ou ao menos pretendo partir dele. E começo dizendo que acredito que a crescente intervenção dos produtores tem efeitos desastrosos nos filmes. Neste domingo, por exemplo, fiquei surpreso ao ver num canal pago a comédia romântica Procura-se um Amor que Goste de Cachorros, filme lá de 2005. Deu-me a impressão de que a personagem vivida por Diane Lane repetia os diálogos que a mesma Diane tivera antes no simpático Sob o Sol da Toscana. Pude assegurar-me do fato ao ligar a TV ontem na HBO e dar de cara com Diane Lane na Toscana: ela usava as mesmas palavras e vivia a mesma situação do filme que vira! Só que, em vez de falar ao advogado, falava à irmã. Algum produtor sentiu no bolso que o filme anterior dera bom lucro e resolveu repetir minuciosamente a fórmula. Diane concordou em ficar mais rica e, em compensação, corre o risco de obter o duvidoso título de “A Namoradinha dos Divorciados da América”. Deve estar preocupadíssima. E assim caminha a humanidade, ao menos a cinematográfica.

Os filmes parecem estar cada vez mais indulgentes para com um público supostamente emburrecido. Como contrapartida, poderia lembrar que, em 1974, fui a um programa duplo no extinto cinema Marabá. Às 14h, vi Gritos e Sussurros e, às 16h, Amarcord. Se não era normal, era uma coisa possível de se fazer na época. Afinal, eram lançamentos.

Uma vez, fui convidado por Fernando Monteiro a fazer listas dos 10 melhores filmes e livros de todos os tempos. Ele publicou suas listas e as minhas na Rascunho. Por e-mail, me provocava mais ou menos assim: “Quero ver quantas obras recentes constarão nelas”. Fiz a lista cinematográfica forçando a entrada de um filme de Peter Greenaway de que gosto muito — Afogando em Números… Mas confesso ter forçado a barra. Mais recentemente, escrevi uma relação de filmes maior e mais bem mais pensada e o fenômeno repetiu-se.

Poderia colocar nela os recentes e excelentes Dogville e Anticristo (Lars von Trier), Os Bons Companheiros (Martin Scorcese), Cidade dos Sonhos (David Lynch), A Vida é um Milagre (Emir Kusturica), As Confissões de Henry Fool (Hal Hartley), O Casamento de Rachel (Jonathan Demme), A Vida dos Outros (Von Donnersmark) ou Os Imperdoáveis (Clint Eastwood)? Até poderia, são belos filmes, mas quais tiraria?

(Um diabo chega por trás para fazer uma massagem em meus ombros e lê o que escrevo. Comenta: Não dramatiza, Milton, estamos numa época em que deixaram de fazer filmes de arte para fazer entretenimento. Antes que eu lhe diga que o cinema de entretenimento sempre existiu e que antes havia espaço para todos, ele vai embora. Se eu lhe respondesse, talvez ela fizesse referências à infantilização do cinema e de alguns adultos. Não vês as filas para Matrix? Não te lembras daquele quarentão que tcompra e sua diariamente seu videogame? Bom, diabo, esta é outra história e, na verdade, a decadência pessoal tem sua poesia e esta, dependendo das circunstâncias e de sua qualidade, pode até ser adorável.)

E, com os maus filmes, apareceu uma geração de críticos adequada a eles. Com mínimas noções de história do cinema, parecem não entender as alusões às vezes existentes nos filmes, sejam as de um ser mais complexo como Theo Angelopoulos, sejam as do pop Quentin Tarantino. E alguns que escrevem na Internet — onde, naturalmente, o amadorismo é mais presente — conseguem mais: conseguem transformar os fatos históricos narrados pelos filmes em ficção. É constrangedor lê-los. Isaac Newton e o roqueiro quase-hooligan-de-mentirinha Noel Gallagher sabiam estar Standing on the Shoulders of Giants, e que, só por isto, viam mais longe. Alguém deveria avisar a estes críticos que eles também estão lá e que deveriam delirar menos em seu suposto brilhantismo e olhar em torno. E um crítico cita o outro e todos juntos… Céus! Lembro de críticos que, ao comentarem um filme baseado numa obra de literatura, sabiam avaliar as alterações feitas por roteiristas nessa espinhosa questão de adaptar uma linguagem para outra. Agora, as críticas são rasteiras, ignorantes.

Eu estou convencido de que houve mesmo uma época (e um lugar) de ouro do cinema, que foi Hollywood na década de 1950, e talvez isso não se volte a repetir, porque se conjugaram várias coisas: o domínio da técnica cinematográfica, uma indústria próspera mas bastante aberta à inovação e a falta de concorrência da TV. Penso que depois disso tornou-se muito mais difícil ver-se filmes simultaneamente muito bons, inovadores e populares, como alguns de Hitchcock ou Nicholas Ray. Os Cahiers du Cinema vieram em auxílio a estes cineastas, porque até então o cinema americano era desprezado pelos intelectuais, e esses jovens (gente como Truffaut ou Rohmer) idolatravam John Ford e outros realizadores de Hollywood. Talvez o último herdeiro espiritual dessa época gloriosa seja Scorsese — o Good Fellas está ao nível dos melhores Nicholas Ray. O que aconteceu nas últimas décadas é que o cinema europeu começou a circular com grande dificuldade, esmagado pelos circuitos de distribuição americanos.

Hoje, não só o cinema se rendeu à linguagem fácil e banal dos filmes de entretenimento. TODA a cultura se transformou em produto de consumo popular. A reflexão cedeu espaço ao evento, tudo é evento. Tudo tem luz, produção, maquiagem até reunião de condomínio acabará tendo roteiro e cenografista. Mas e as idéias? E os ideais, as intenções? Para que fazer pensar se o que importa é faturar? Que discussão vou querer promover se o que quero promover é o sucesso de bilheteria e basta? O cinema sumiu junto com as utopias e quem sabe não está aqui a raiz da decadência? Claro que para toda ação, corresponde uma reação. Por que as Bienais não tratam do tema da arte como espetáculo vazio? Seria uma bela provocação.

Para finalizar este post deixado em aberto, cito Ivan Lessa — que pertence a uma geração anterior à minha — de memória:

Nós íamos ao cinema — definitivamente. Nós víamos filmes — indubitavelmente.

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Tema recorrente

Dia desses, estava eu na sala de espera do dentista de minha filha quando vi uma Veja antiga bem do meu lado. Como sou um ser de algumas manias, comecei a folheá-la da maneira mais inteligente e correta, ou seja, de trás para diante. Logo, dei de cara com um artigo de Isabela Boscov — normalmente discordo dela — e, bem, ela estava coberta de razão. Numa crítica ao filme Katyn, de Andrzej Wajda, ela estende seu elogio a toda a geração de cineastas a qual pertence o polonês de 83 anos. É uma bela crítica, tão boa que perguntei à secretária do consultório se podia roubar a revista de quatro meses de idade. Ela deixou.

Neste ínterim, o Marcos Nunes pediu para que eu assistisse o filme Jean Charles. Não entendi bem o motivo, mas ia vê-lo de qualquer maneira. Gostei do filme de Henrique Goldman. Mais: saí do cinema quase entusiasmado. Por quê? Ora, porque vejo cada coisa ruim por aí que é bom saudar um filme com ritmo, atuações dignas e que retrata honestamente seres humanos muito reais.

O que isso tem a ver com a crítica de Boscov? Ora, tudo. Ela, após elogiar o filme de Wajda, entrou em surto fazendo uma longa digressão sobre o que fora o cinema entre os anos 50-70 e o que é hoje. Fellini, Antonioni, Bertolucci, Visconti, Bergman, Kurosawa, Truffaut, Malle, Godard, Kubrick e outros viam o cinema não somente como espetáculo. Eles tinham consciência de que tinham na mão um meio de expressão de apelo sem precedentes e tratavam de utilizá-lo como difusor de ideias — explícitas ou subliminares –, de imagens que não fossem uma derivação da publicidade, como fórum, etc. E eles foram bem sucedidos em sua tentativa de criar uma cultura relevante, tanto que seus filmes — e deveríamos citar também Clint Eastwood, Emir Kusturica, Francis Ford Coppola, Andrei Tarkovski, Hal Hartley, Alexandr Sokurov, Martin Scorcese e Werner Herzog…, misturo conscientemente seus nomes — formam talvez o mais completo referencial do que foi o século XX.

Mas não foi só o cinema que apequenou-se, foi a cultura de forma geral. Kurosawa sabia como fazer, mesmo com atores japoneses, um Trono Manchado de Sangue perfeitamente shakespeariano por ter recebido uma educação clássica ou, no mínimo, por ter estudado cada detalhe da obra original. Hoje, é tudo mais fácil. Não há necessidade de continuidade, de debate e assim vamos ficando cada vez menores.

Jean Charles é muito bom. Faz um relato seguro, honesto e até delicado de uma vida banal interrompida de forma estúpida pela paranóia e medo de um agente da Scotland Yard. Nada demais, mas talvez o máximo a que possamos aspirar nestes dias de decadência consolidada.

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