Ele não pertencia ao Departamento de Preocupações e frequentemente licenciava-se do de Sustento. Em nossa casa e em todos os lugares onde ia, suas funções estavam mais ligadas ao Ministério do Lazer, Jogos e Cultura, sem esquecer as Relações Públicas. Não posso imaginar coisa melhor para uma criança do que um pai sempre presente, brincalhão e meio irresponsável. Desde muito pequeno tive contato com os dois lados do Dr. Milton Cardoso Ribeiro — o pai adorável e o apostador do turfe. Meu pai e minha mãe eram dentistas numa época em que os bons profissionais desta área faturavam o que todos nós deveríamos faturar sempre. Só que meu pai direcionava grande parte de seus ganhos para o Jockey Club. Minha mãe ficava maluca com isto, mas para mim, que não conhecia outra família, era algo tão normal que suas reclamações eram como a música incidental sob a qual vivíamos tranquilamente. E esta trilha não poderia ser mesmo muito tonitruante, pois meu pai era alguém tão doce que era difícil brigar com ele.
Ele nasceu há 89 anos, em 17 de fevereiro de 1927 e morreu em 11 de dezembro de 1993, um sábado, aos 66 anos. No dia anterior, dera-me um encontrão por trás no super-mercado — outra tradição nossa — e comentáramos sobre um monte de coisas. Estava muito bem, porém, no dia seguinte, sofreu um ataque cardíaco. Sinto enormemente sua falta. Ele certamente ficaria encantado com esta novidade tecnológica onde que você me lê e que o faria saber de tudo rapidamente. Sua Internet eram os muitos jornais dos quais não se separava e o chatíssimo rádio de pilha que usava sempre para ouvir notícias e a meteorologia. Algumas vezes suas manias tornavam-se incontroláveis, como naquele caso ocorrido em pleno casamento de minha irmã: durante a festa, organizada num dos hotéis mais chiques de Porto Alegre, um amigo da Iracema chegou-se para dizer-lhe que um convidado — certamente desinteressado na festa — estava escondido no recinto da privada, ouvindo os páreos num radinho de pilha. Minha irmã voltou-se rindo para o amigo e disse-lhe: “Deve ser meu pai!”.
Não lembro de grandes brigas ou discussões com ele. Lembro é das disputas. Seu perfil de apostador adequava-se perfeitamente a elas. Eu e ele tínhamos um jogo que durou de minha adolescência até sua morte. Toda a vez que ligávamos na Rádio da Universidade — especializada em música erudita –, tratávamos de identificar o mais rapidamente possível qual era a música que estava sendo executada. Isto podia acontecer várias vezes ao dia. Com isto, sou, até hoje, supertreinado em descobrir tudo o que de clássico toca no rádio. Hoje mesmo liguei o rádio e disse rapidamente, para mim mesmo: “Sarabanda da Suite Nº 2 da Música Aquática de Handel”.
Quando eu tinha menos de 13 anos, nos dedicávamos — sempre antes de dormir — à atividade de imaginar histórias para a música que estivéssemos ouvindo. Lembro dos numerosos tuaregues que acompanhavam o Bolero de Ravel… Dos prelúdios líquidos e cheios de peixes de Chopin… Dos concertos atléticos de Bach… das histórias de terror que acompanhavam o Concerto Nº 1 para piano e orquestra de Brahms… É desnecessário dizer que meu pai amava a música. Qualquer música. Colocava Mozart e Noel no mesmo patamar e misturava na mesma noite eruditos e populares. Como pianista amador, chegou a compor e a dedicar a valsa Férias de Julho a mim e minha irmã.
Acho que meus pais se amavam. Lembro de gestos de carinho num e noutro sentido. Minha mãe refere-se a ele como um homem que só tinha um só defeito (o já citado) e, quando ele morreu, disse-me com um olhar perdido que estava arrependida por ter recebido muito mais amor do que dera.
Boa parte das boas lembranças da infância e da juventude estão associadas a meu pai. Ele era um piadista, um cara engraçado e bem humorado que participava de tudo e era moderno o suficiente para não estabelecer distâncias. Sempre me senti seu par, um igual. Assistimos a centenas de jogos do Inter juntos e, no dia que fomos Campeões Brasileiros pela primeira vez, em 75, quando Figueroa fez o gol da vitória, ele, em vez de vibrar, sentou-se na arquibancada com as mãos na cabeça. Eu não estava presente, ficara estudando para o Vestibular. Ele me contou que se sentiu meio tonto e que não precisava de tanta emoção: “Há pouco tempo, eu não gostava mais de futebol e nem ia mais aos estádios. Tu me fizeste voltar e agora toda essa coisa”.
Ele conheceu meu primeiro filho, Bernardo. As fotos comprovam — ele não saía de perto do menino que tinha quase três anos quando o avô morreu. E como desejava uma neta! E ela veio somente um ano após sua morte. Conhecendo os dois, sei que se adorariam e não desgrudariam. Até hoje conto para ela histórias de seu avô. Céus, como sinto falta dele.
Texto revisado hoje, com fotos “novas”, etc. Quem me influenciou a republicá-lo foi a Elena, que disse que, se comemoramos as datas de nascimento e morte de grandes autores do passado, por que não comemoramos a data de nascimento de alguém próximo e querido que já foi?