Ospa: concertos para pianistas, festa e fogo na noite de terça

Faltavam uns 5 minutos para eu chegar e já meu amigo Ricardo Branco me ligava perguntando se eu estava ou não atrasado. Não estava. Estava quase lá na Reitoria. Quando fiz a curva para entrar na Paulo Gama, cruzei um sinal amarelo e pensei que estava fazendo tudo aquilo para ver Rachmaninov pela terceira vez em 90 dias e que tal postura poderia ser qualificada sem dramas de masoquismo. Encontrei os amigos e anunciei que não jantaria após o concerto. O Branco e a Jussara reagiram:

— Mas o que interessa hoje é o jantar. Isso aqui…

Rachmaninov (Kastchei) vai ao ataque. No fundo, como diria James Joyce, apenas um melacueca.

Pois é. Rachmaninov tinha mãos grandes e vinte e oito dedos. Rach é seu apelido, mas ele não tem nada a ver com o Pai da Música; é um compositor de terceira linha que privilegiava um virtuosismo vazio. Andava de carro por Nova Iorque, de avião e elevador pelos céus dos EUA, mas tentava compor como se fosse Tchaikovsky ou Schumann. Costumava e, infelizmente, ainda costuma entupir nossos ouvidos de ciclamato, mas o concerto de ontem era estranho. No Concerto Nº 4 para pianista e orquestra — digo assim por tratar-se de um concerto para o pianista e não para o piano –, Rach estava meio perturbado pelo jazz e as novidades. Incrível, havia um mundo lá fora! Era simplesmente o ano de 1925 e seu colega de aristocracia Stravinsky já tinha composto o Pássaro de Fogo e a Sagração; Gershwin tinha lançado uma Rapsódia cujas cores batiam de longe a melíflua pecinha de Rach sobre Paganini e Bartók até já tinha escrito dois concertos para piano que nossa senhora. (Aliás, há tantos concertos monumentais para piano no século XX… Tantos Prokofiev, Ravel, Shosta, Bartók e a Ospa nos enfia três RachsKitsches goela a abaixo… É muita besteira).

Kastchei mostra o caminho para a Ospa: CHEGA DE RACHMANINOV

Bem, mas Rach estava meio fora de si e fez um primeiro movimento simplesmente pavoroso, um monstro de três narizes — um a 120º do outro –, seis pernas, treze braços e enormes mãos. Era a comprovação de que mel estraga e azeda. No segundo movimento, há uma tentativa de aproximação com a realidade através do jazz. Ele acerta no ângulo com um ostinato simples e bonito que é logo desfeito pelo monstro das mãos grandes. O terceiro movimento é uma longa peroração ao público. Ele solicita aplausos e um bom pagamento através das contorções do pianista e do uso de habilidades demoníacas. Sim, o público aplaudiu muito, o que fez o excelente pianista georgiano Guigla Katsarava voltar algumas vezes ao palco até conceder um bis. Com ele e Chopin, começou a música. Intervalo.

A Abertura Festiva de Shosta é obra escrita em cima da perna. Não dá para levá-la à sério. Foi escrita em três dias de 1954 para saudar mais um aniversário da Revolução de 1917. OK, Shosta é muito bom e fez uma peça divertida e acessível — “música fuleira”, disse o Branco. Foram cinco minutinhos que serviram de introdução para

a Suíte Pássaro de Fogo de Stravinsky. Em 1910, Strava já era muito mais moderno do que Rach jamais pensou ser. Talvez Igor já gostasse de dinheiro, mas sempre fez música, mesmo quando queria apena$ afago$. A orquestra deu um banho. Leonardo Winter e Artur Elias tinham acordado especialmente canoros e ofereceram penas de fogo para uma plateia embevecida e desconfiada de que aquilo era música de verdade. O único problema é que, quando Ivan vê as treze virgens no castelo do monstro Kastchei, ou seja, quando aparece o monstro… Seu rosto e garras eram os de Rachmaninov. Claro, a gente lembrava da primeira parte do concerto!

(Intermezzo)

O Pássaro de Fogo, pelo artista japa Shirisaya

Kastchei, o monstro de Pássaro de Fogo, é um ogro verde de terríveis garras, uma personificação do mal, a cara do Rach. Sua alma não habita em seu corpo disforme, ela é cuidadosamente preservada do alcance de qualquer dano em um caixa toda decorada — pura bichice do Diaghilev.  Enquanto a caixinha permanece intacta, Kastchei é imortal e mantém o seu poder para o mal, mantendo donzelas virgens em cativeiro e transformando os homens que desejam libertá-las em pedra. A redenção das moças só pode ser alcançada pelo acesso e destruição da caixinha e da alma do ogro. Adivinhem se o Pássaro de Fogo não vai dar uma mão para Ivan? Adivinhem! Adivinhem se o Ivan não vai ficar com uma das virgens?).

(Fim do Intermezzo)

E fim da resenha. O regente Kiyotaka Teraoka mereceu toda a alegria e o bater de pés com que a orquestra o brindou. E, ah, na semana que vem HABEMUS MUSICA. O refrigério virá por Mahler, Sinfonia Nº 4, e pelo mesmo maestro Teraoka. Estaremos operando em modo Rach Free.

P.S.– Saí para jantar com os amigos, claro. Pensei que merecia depois de meu terceiro concerto para piano e orquestra de Rach de 2012.

10 comments / Add your comment below

  1. Milton,
    o Strava e Shosta interessavam sim.
    Eu não entendo, mas parece que a música do Rach possui uma técnica pianística difícil, assim os pianistas adoram toca-las para provar quão bons são.
    E dá-lhe Rachmaninoff mundo afora.
    isto me lembra o jimmy hendrix tocando guitarra com a boca. Era bom, muito bom, mas a música era uma droga

    1. “Com ele e Chopin, começou a música. Intervalo.”

      Com este frase, quis dizer que a partir dali, tivemos música. Com Chops. Shosta e Strava.

      Abraço.

  2. Milton, sentei a dois bancos de ti. Você está mais bigodudo que na fotografia do curriculum vitae.

    Eu também não entendi todo aquele pessoal aplaudindo de pé depois do Rach. O concerto entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Achei divertido quando começou o terceiro movimento, mas logo a música começou a ir para o vazio.

    Eu tinha certeza de que você reclamaria do Chopin também, mas pelo visto ele foi um alívio depois do Rach.

    O ponto alto foi o Pássaro de Fogo. Eu cresci vendo a animação do filme Fantasia 2000, mas escutar ao vivo é outra coisa, dá para perceber muito mais nuances. Foi muito bom mesmo.

  3. Naquela coleção de capa branca da Perspectiva, havia um volume chamado “O Kitsch – A Arte da felicidade”, de A. Moles. Li o livro faz uns 20-30 anos e ele se fixa mais na literatura e nas artes plásticas, mas sei que a música de Rach cabe direitinho nas definições que ele traça. Mistura de gêneros causada por um passadismo obsessivo, exageros, clareza gritante das representações, ornamentações vistas como cerne, uma lanterna de navio para iluminar a sala. Rachmaninov, mau gosto. “Chamei de mau gosto o que ouvi, de mau gosto, mau gosto”.

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