Reflexão discretamente alcoolizada sobre Beethoven e o Fausto de Mann — Sonata No. 32, Op. 111

Reflexão discretamente alcoolizada sobre Beethoven e o Fausto de Mann — Sonata No. 32, Op. 111

Há um capítulo muito famoso, mais exatamente o oitavo, no Doutor Fausto de Thomas Mann, em que o imaginário professor Kretzschmar dá uma aula sobre o tema “Porque Beethoven não escreveu o terceiro movimento da Sonata Op. 111“.

Talvez não haja verdades absolutas sobre algo tão aberto, criado numa arte que é intangível ar sonoro, mas o resultado é que, relendo o espetacular capítulo, resolvi pensar um pouco sobre uma questão que, se é significativa no romance de Mann, é apenas curiosa fora dele. Houve um corajoso Schindler (jornalista ou músico) que perguntou a Beethoven sobre a razão da inexistência do terceiro movimento. A resposta do compositor foi típica de seu mau humor: “Não tive tempo de escrever um!”. Mann explorou habilmente a história e só quem leu o Dr. Fausto sabe da profunda impressão que a aula de Kretzschmar causou a Adrian Leverkühn, o personagem principal do livro.

Pois o incrível é que li que havia a intenção de um terceiro movimento para esta sonata e que Beethoven parece ter desistido dele. Inclusive no manuscrito onde está o primeiro movimento há uma anotação: segundo movimento – Arietta; terceiro movimento – Presto. Também não encontrei referências de que a Arietta (segundo movimento) fosse algum tipo de adeus, conforme disse o Kretzschmar de Mann. Claro que a invenção dessa despedida foi uma das muitas liberdades poéticas tomadas pelo ultra entusiasmado professor. Está bem, foi a última sonata para piano de Beethoven, porém ao Op. 111 seguiram-se obras até o Op. 137 e dentre estas há todos os últimos quartetos, a Nona Sinfonia (Op. 125), as Variações Diabelli (Op.120) , as Bagatelas (Op. 126), a Missa Solemnis (Op. 123), etc. Ou seja, quando Beethoven escreveu o Op. 111, ele era um compositor em plena atividade e com vários projetos diferentes a desenvolver, não obstante a doença.

Porém, o mais interessante é tentar explicar porque esta obra provoca tanto e a tantas pessoas. A linguagem altamente abstrata que Beethoven alcançou em suas últimas obras nos perturba tanto aqui como nos últimos quartetos. A imaginação de quem criou a Arietta é arrebatadora. O professor Kretzschmar tem toda a razão ao proclamar que tudo aquilo vem de um simples dim-dada, ou seja, de três notas que não despertariam a atenção de nenhum artista comum, e é sobre este quase nada que Beethoven cria uma imensa construção, onde há lugar para a delicadeza, a simplicidade, o sublime e até para a explosão de uma desenfreada dança semelhante ao jazz que os negros inventariam 100 anos depois. Ele sempre foi dado à utilização de temas curtos e afirmativos, mas convenhamos, aquele dim-dada está mais para um balbucio de criança… Não seria isto o que nos surpreende tanto? A música se inicia como um balbucio, depois cresce mui modernamente, quase que por livre associação e depois retorna ao início. Será esta a despedida a que Kretzschmar se refere? Nascimento, vida e morte?

Não reli a aula de Kretzschmar antes de escrever este post. Fazendo rápida e severa autoanálise penso que talvez tenha entrado neste assunto apenas como pretexto para pensar em músicas que não são somente belas, mas demonstrativas de inteligência e engenhosidade. Outras do mesmo gênero seriam os quartetos de Béla Bártok, alguns dos últimos quartetos de Beethoven (principalmente o Op. 132), as Variações Goldberg, a Oferenda Musical de J.S. Bach e outras raríssimas. Não sei se me faço entender, mas acredito que o espírito mozartiano — que adentra muito no campo emocional — não poderia entrar aqui. São obras por demais cerebrais. São as minhas preferidas.

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Beethoven, o surdo imortal que escrevia para o futuro

Beethoven, o surdo imortal que escrevia para o futuro
Sua surdez era trágica do ponto de vista social. No plano artístico, apenas impediu uma carreira como pianista.

Publicado em 16 de dezembro de 2012 no Sul21

Ludwig van Beethoven (16 de dezembro de 1770 – 26 de março de 1827) foi um compositor cuja existência foi tão adequada a romances e filmes que as lendas em torno de sua figura foram se criando de forma indiscriminada, às vezes paradoxalmente. Sua surdez, por exemplo, contribuiu muito para popularizá-lo e para que fosse lamentado. Victor Hugo dizia que sua música era a de “Um deus cego que criava o Sol”, mas quem o conhecesse talvez reduzisse o tom de piedade. Beethoven era uma pessoa absolutamente segura de seu talento – não mentiríamos se o chamássemos de arrogante – e tinha certeza da imortalidade de sua obra. Com toda a razão. Ele tinha a perfeita noção de que criava um conjunto espetacular de obras musicais, que alicerçava uma Obra, noção que inexistia ao tempo de Bach, o qual tratava suas composições como se fossem sapatos a serem entregues ao consumidor. A surdez representava uma tragédia muito mais do ponto de vista social, das relações amorosas e das de amizade, além prejudicar de forma fatal sua carreira de grande pianista, mas nunca foi encarada por ele como um obstáculo no plano da criação.

Aos 31 anos, Beethoven já ouvia muito pouco, mas seguiu compondo até a morte, aos 56 anos | Arte de
Aos 31 anos, Beethoven já ouvia muito pouco, mas seguiu compondo até a morte, aos 56 anos | Arte de Sergio Artigas (http://artigas.deviantart.com/art/Ludwig-van-Beethoven-07-152989423)

Com isso, não estamos dizendo que ele não tenha sofrido muito com o progressivo ensurdecimento. Sofreu a ponto de ter pensado em suicidar-se. Era 1802, Beethoven tinha 31 anos – idade com que Schubert morreu – e pensava em matar-se. Ao que se sabe, nunca fez uma tentativa, mas, se a fizesse e fosse bem-sucedido, talvez ainda assim estivéssemos falando dele.

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