1. Satanás está a bombar. De Porto Alegre ao Rio de Janeiro, de São Paulo a Campo Grande, de Brasília a Jundiaí, o capeta é top. No começo era só o verbo, um templo aqui, outro ali, bradando & brandindo o nome do demo. Mas, com a ajuda do dízimo e da infinita dor humana, hoje é o que se vê: ministros neopentecostais, bancada evangélica no Congresso, “bispos” eleitos prefeitos, aliados desde o tráfico à presidência da república, todos trabalhando para fazer do Brasil o primeiro estado teocrático da América do Sul.
Setembro-Outubro de 2017, por exemplo. Lá faz Primavera, pá, E, depois de passarem Agosto a excomungar Chico Buarque por conta das letras do novo disco, os neo-cons brasileiros identificaram mais uma frente de batalha: o museu pedófilo, zoófilo e sabe-se lá que mais. Aliás, atalhando, arte com nus ou sexo em geral. Portanto, são neo-cons com dois milhões de anos de atraso. O que seria um problema só deles se não tivessem cada vez mais poder.
2. Fui morar no Rio de Janeiro há sete anos. Pouco depois, deu-se o “escândalo” das fotografias de Nan Goldin que deveriam ser expostas na Oi Futuro, braço cultural da empresa de telecomunicações Oi. Primeiro, a Oi “descobriu” que havia fotografias de crianças nuas e pediu à curadora que as retirasse. Nan Goldin aceitou, mas depois a empresa pediu que qualquer fotografia com crianças fosse retirada. Nan Goldin sugeriu que pusessem uma tarjeta a dizer “censurado”. A exposição acabou por ser cancelada.
Recém-chegada como era, fiquei perplexa. Uma das principais fotógrafas contemporâneas vetada no Rio. Onde tinha estado o Rio nos últimos 50 anos, para não ir mais longe? Aquele nível de debate estava mesmo a acontecer na capital do fio dental, do show do corpo, do culto das “novinhas”? Sim. Bunda de fora pode, deve, mamilo não. Sim, o Rio de Janeiro — o Brasil — era esse paradoxo da moralidade em que topless podia dar prisão. Tal como mulher que abortava podia ser presa se não morresse. E entretanto estupro seguia sendo mato. E as crianças que obcecavam a classe média, entregues a babás vestidas de branco, as mesmas crianças que tanto tinham de ser defendidas de artistas imorais, podiam morrer nas ruas, e serem chacinadas por milícias, quando eram pobres e negras, o que no Brasil quase sempre coincide. Donde resulta que Satanás deve representar um risco só para crianças brancas, porque as outras já nasceram em risco, mesmo.
3. Sete anos depois, estes “escândalos” já não acontecem apenas com empresas. Passaram a acontecer também com instituições sem fim lucrativo, museus públicos, governantes eleitos. E deixaram de ser bissextos para se tornarem diários. Entre Setembro e Outubro, todos os dias houve notícia do bando de inquisidores a que podemos chamar Igreja Universal do Roubo do Brasil: IURB.
A IURB tende a prosperar num país como o Brasil porque vive da vulnerabilidade alheia, como todos os oportunistas. A desigualdade de origem favorece-a. O descaso do Estado é um combustível para ela. Onde as pessoas estiverem ao deus-dará, ela é pastora, recolhendo o dízimo. Com o projecto de ter um presidente. Tudo o que não lhe interessa, como governante, é que as pessoas se emancipem. Uma arte desafiadora, perturbadora, fora da caixa, será sempre sua inimiga. Alvo permanente.
A sequência de acontecimentos deste último mês — ou deveríamos dizer retrocedimentos — não é um acaso.
4. Primeiro foi o cancelamento em Porto Alegre, sul do Brasil, da exposição “Queermuseu — Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, que reunia 270 peças de 85 artistas, entre os quais Lygia Clark, Alfredo Volpi ou Cândido Portinari. Inquisidores indignados, liderados por um colectivo intitulado Movimento Brasil Livre (MBL), protestaram contra conteúdos “pedófilos”, “zoófilos”, além do desrespeito a Cristo, e o Santander Cultural encerrou a exposição.
Vale a pena ler o comunicado do Santander para confirmar o nível de auto-ajuda a que se chegou: “Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana.” Representação confundida com apologia. Necessidade confundida com propósito. Motivação confundida com efeito. E que raio será a reflexão positiva? E o elevador da condição humana, será hidráulico? Ou terá ascensorista?
Tanto equívoco sobre arte e criação dá preguiça. Começar por onde? Pintura rupestre, a Bíblia, a Lolita do Nabokov, aquela passagem de “Em Busca do Tempo Perdido” sobre incesto homossexual? Proust, Joyce, Sade, só putaria. Os gregos em geral. Pompeia, claro. O Renascimento, cheio de pénis e mamilos. A própria da Capela Sistina. Se dependesse da IURB, não veriam a luz do dia. Nenhuma criança seria exposta ao David de Michelangelo. Sobretudo rapazes. Perante tamanho esplendor ainda dariam em “gays”, e era preciso curá-los.
5. Sim, porque ainda o Brasil não recuperara do caso Santander houve essa decisão nazi da Justiça do Distrito Federal que permite que os gays sejam tratados como doentes. Um juiz liberou a “cura gay”: isto aconteceu em Setembro de 2017. E aconteceu num país em que gays, LGBT em geral, são constantemente atacados, por vezes mortos. Portanto, um juiz veio dar força de lei à intolerância, à discriminação, à violência. Quem xingava e maltratava está mais autorizado para o fazer.
6. Mas não saia do seu lugar, porque segue-se o “escândalo” da performance “La bête”, com um artista inteiramente nu. É verdade, em 2017, quando os woodstockers já estão bem grisalhos ou foram desta para melhor, isso foi notícia no Brasil. E foi notícia porque os zelosos da imoralidade não tiveram dúvidas morais em tornar viral um vídeo que mostra uma mãe com uma filha observando o artista nu, e a criança a tocar-lhe no tornozelo. Horror, pedofilia! Pior, com dinheiro dos contribuintes porque isto se passava numa mostra no Museu de Arte Moderna de São Paulo. O museu ressalvou que havia três avisos sobre nudez, mas inquisidores foram manifestar-se lá, exigindo o encerramento, agredindo funcionários.
E o delírio avançou em dominó. Um ministro veio dizer que aquela cena da performance era crime. Um deputado, inflamado, criou a sua própria versão da performance: “Um marmanjo completamente nu de mãos dadas com três ou quatro crianças fazia uma apresentação cultural. O acto daquele pilantra, que estava nu no museu de artes modernas, não é só um ataque à moral do povo brasileiro, mas é para mexer com o subconsciente dos tarados do Brasil.” Ouvindo isto, outro deputado lembrou ao plenário que o deputado indignado fora flagrado a ver pornografia no telefone em plena votação da reforma política, e se defendera alegando que os amigos lhe mandavam “muita sacanagem”. O primeiro deputado tentou agredir o segundo. Um terceiro evocou com saudade instrumentos de tortura da ditadura, lamentando não poder usá-los no artista da performance. “Se aquele vagabundo fosse fazer aquela exposição (…) ia levar uma ‘taca’ que ele nunca mais iria querer ser artista e nunca mais iria tomar banho pelado.”
7. Como isto é contagioso, em Campo Grande (capital do Mato Grosso do Sul), deputados denunciaram uma exposição por pedofilia e obscenidade. Em Jundiaí (São Paulo), um juiz proibiu uma peça com uma atriz transgénero no papel de Jesus. Em Brasília, um deputado visitou o Museu Nacional Honestimo Guimarães por ter “recebido denúncias de que o local abrigava ‘conteúdo semelhante ao do Santander Cultural”.
Entretanto, no Rio de Janeiro, o Museu de Arte do Rio (MAR) anunciou que receberia a exposição “Queermuseu”, censurada no Santander de Porto Alegre. Mas o prefeito da cidade, Marcelo Crivella — “bispo” da Igreja Universal do Reino de Deus e sobrinho do chefão Edir Macedo — produziu um vídeo para anunciar que não, que o Rio não quer uma exposição pedófila e zoófila. E não resistiu a uma pilhéria: “Saiu no jornal que ia ser no MAR. Só se for no fundo do mar. Por que no Museu de Arte do Rio, não.”
Resultado, o conselho que define a programação do MAR deliberara pela vinda da exposição, mas o prefeito deu ordem contrária e o museu é municipal. O MAR já declarou que não receberá a exposição.
8. Perante tudo isto, curadores, pensadores, artistas não ficaram parados, houve abaixo-assinados e outros movimentos. Entre muitos contributos para o debate, pareceram-me essenciais os que contrariam a ideia de uma guerra simétrica, como se duas partes estivessem a tentar impôr-se. Falso. Há uma parte em guerra, impondo cancelamentos e censura, como sistema. Quem não quer ver, não vê, protesta, critica. O que se está a passar no Brasil é outra coisa. É impedir a arte de existir, os outros de acederem a ela. Tudo em nome do bem, e vade retro satanás.
9. Esta semana, em Brasília, uma mãe de 47 anos foi ao cinema com a filha de 20, saíram do filme abraçadas. Um homem insultou-as como casal “gay”, depois bateu na cara da rapariga, a ponto de ela guardar um olho negro. Certamente ambas o provocaram com gestos suspeitos. E no Brasil de 2017, perante suspeita do maligno, um homem não é de ferro.