Eu, Vassily e Georges Simenon

Eu, Vassily e Georges Simenon

Até morar com a Elena, eu desconhecia o tamanho do amor de alguém por seu gato. Sempre tive cães e os adorava, mas minha estima por eles não chegava próxima do que vejo aqui em casa.

Isto só faz crescer em minha memória uma das melhores novelas que já li: O Gato, de George Simenon. O livro narra brilhantemente o inferno doméstico de um casal de idosos que briga silenciosamente em ataques indiretos um ao outro, talvez no estilo passivo-agressivo (li o livro há 40 anos, me perdoem). Eles se detestam meticulosamente. Um dia, o gato do marido aparece morto. Ele não tem dúvidas: certamente fora envenenado pela mulher. Para se vingar, ele depena o rabo da arara — bicho de estimação da mulher — que também acaba morrendo. É o fim de qualquer possibilidade de trégua. A mulher escreve um bilhete para o marido, dizendo que, por ser católica, não pediria o divórcio, mas informa que não falaria nunca mais com ele e ordena que ele também se abstenha de lhe dirigir a palavra. Começa um jogo que iria durar para o resto de seus dias. Ele se comunica com ela arremessando bilhetes, com pontaria infalível, em seu regaço. Ela, por sua vez, responde também com bilhetes deixados sobre os móveis da casa. A coisa fica numa tensão insuportável quando ele escreve “O Gato” e ela responde “A Arara”.

Agora eu sei melhor o tamanho do ódio. Eu não amo Vassily, mas sei que o menor empurrãozinho que der nele fará com que raios dos céus se dirijam à minha cabeça. Eu amo o Vassily.

Georges Simenon (Liège, 1903 — Lausanne,1989)

6 anos e cinco meses com Elena

6 anos e cinco meses com Elena

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Um abuso (ou quase)

Meu pai era um dentista de conversa leve e cômica. Mesmo quando se irritava era leve. Jamais sairia falando sobre ABUSO. E ele era engraçado. Mesmo sério era engraçado. Quando minha irmã, aos 15 anos, disse que estava namorando, ele respondeu “Mas é platônico, não?”. Isso tornou-se uma clássica piada familiar. Mas eu estava dizendo que ele tangenciava e evitava os papos mais difíceis e que por isso não falaria sobre abuso.

Porém, na noite em que eu — tinha uns 8 anos (1965) — estava passeando com o cachorro e depois saí numa fuga a toda velocidade porque um sujeito sentado numa mesa de bar primeiro puxou conversa, depois acariciou minhas pernas e pegou na minha mão, algo me disse que devia falar com ele. Entrei em casa ofegante e contei o acontecido. Ele me olhou com a maior calma e perguntou:

— Foi só isso?
— Foi.
— Mão nas pernas e depois na tua mão?
— Sim.
— Tu reconheceria o sujeito?
— Reconheceria.
— Então, se a gente cruzar com ele, me mostra.
— Mostro.

E ele me olhou fixamente.

— E nunca mais chega perto ou fala com esse cara.

Meses depois, eu mostrei o cidadão para o pai.

— Mas ele é meu cliente! Incrível.

Um tempo depois ele me disse que o tal cliente tinha marcado hora.

— Vou falar com ele.

Com o sujeito de boca aberta, meu pai disse que tinha um filho que levava nosso cãozinho para fazer xixi na rua, às vezes à noite, que eu devia passar perto do bar tal. E que…

— Essa cárie está muito infectada. Acho que vai doer. Muito. Demais.

Meu pai ria dizendo que o sujeito suava e suava. E que sumiu depois desta consulta.

(Só eu, ele e minha mãe soubemos dessa história. Nada de escândalos).

Sim, Elena e eu nos casamos no dia 24

Sim, Elena e eu nos casamos no dia 24

A primeira vez foi quando nós tivemos que preencher um cadastro qualquer e achamos estranha a palavra “Divorciado(a)” aplicada a nós. Como assim? Nós éramos “Namorados”. Ademais, eu fiquei poucos dias divorciado. Um mês depois de assinados meus papéis, já namorava a Elena. Divorciado mesmo foram umas poucas semanas. O caso dela é ainda mais diminuto. Ou nem ocorreu. Ela estava separada quando começamos, mas a oficialização de seu divórcio aconteceu depois de nosso namoro começar. E acho as expressões Minha Namorada e Meu Namorado o máximo. Bah, aquele Divorciado incomodava.

Então, como somos grudados, como temos muito em comum e o incomum é tolerado, resolvemos acabar romanticamente com aquele falso Divorciado(a).

Drummond disse que “Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar”. Ele tem razão. Então eu só posso falar de mim e que eu acho que às vezes dá certo juntar dois estranhos ímpares. (O próprio poeta foi casado por 52 anos com D. Dolores). E, afinal, quem sabe contar histórias em três capítulos pra ela? Eu, né? Quem mais acorda ela dizendo Vô fazê café pá ti? Eu! E quem a ama minuciosa e integralmente? Ah, sei lá se eu mereço ter sorte na vida.

Sim, sorte. A sorte de estar apaixonado nesta idade e de ter ao lado a Elena. Sorte, entendem?

(Primeira foto: Eu e Elena no cartório, é de Nikolay Romanov. As outras são de Augusto Maurer).

E agora dois belos poemas que recebemos nos comentários do Facebook.

Para ler de manhã e à noite

Aquela que eu amo
Disse-me
Que precisa de mim.

Por isso
Cuido de mim
Olho meu caminho
E receio ser morto
Por uma só gota de chuva.

Bertolt Brecht

.oOo.

Fantasmagoria

Tinha deixado o amor de fora
como coisa prosaica, banal
cultivada por gentes de ideais
tão à mão quanto os fantasmas
de ocasião.

Ficou melhor assim, como está:
do lado de dentro

Marcos Nunes

Dia dos Namorados

Dia dos Namorados

Hoje é o Dia dos Namorados e eu tenho a melhor de todas, desculpem.

Um amigo me dizia que a beleza dói. Doeu fundo quando eu vi a Elena pela primeira, segunda, terceira vezes. Dói de vez em quando ainda.

Meu pai dizia que há pessoas cuja inteligência é tanta que parece que lhes vai derramar pelos olhos. É o caso.

Eu digo que há vozes que se acomodam no ouvido da gente e que a gente não se incomoda jamais com elas. É o caso.

E só no dia de hoje soube o real significado da palavra “borogodó”. Tomem de relho na paleta, pois ela significa “atrativo pessoal irresistível”. E ela foi usada para referir-se a Elena. E não por mim.

Vocês sabem que eu sou um pobre diabo — então, o que sobra para mim?

Ora, dizer a ela como ela é (pois a moça insiste em ser modesta e em sempre me olhar como dissesse absurdos), pensar na minha incrível sorte, fazer carinho, café, arrumar a cama, lavar a louça, passar o aspirador na casa, acompanhá-la. Daqui a pouco vou buscá-la porque está ensaiando.

Como deixar minha namorada cheia de borogodó aí sozinha pela rua?

Eu e Elena

Eu e Elena

Primeiro, eu vi Elena com seu violino na Ospa e fiquei boquiaberto. Como ela é linda! Eu não sabia que ela lia o meu blog, que ainda existe — como iria imaginar? Depois, há exatos 9 anos, ela me pediu amizade no Face e começamos uma educada querelinha sobre música. Quando conversamos ao vivo, fiquei duplamente besta. Muito inteligente, bela voz, uma piadista de primeira. Sou um idiota sonhador e sempre acreditei que acabaríamos juntos. Às vezes acerto.

Fico sempre muito feliz ao vê-la, o que ocorre a toda hora. Por exemplo, se eu for na sala agora, ela estará vendo SVU. Se o filme não estiver muito tenso, vai sorrir pra mim.

Minha mãe e o Gre-Nal

Minha mãe era muito supersticiosa. Ela achava que a primeira camiseta que visse na rua, em dia de Gre-Nal, seria a do time vencedor. Estou meio febril há dois dias e não sei a que horas saio hoje. Nem se saio. Mas, mesmo sem acreditar na coisa, fico na expectativa. Quando sair vou ficar olhando para todos os lados até ver a primeira.

Minha cueca de zebrinha

Pois então eu disse para minha Adorável Irmã que me enchia o saco, perguntando insistentemente o que eu queria:

— Me dá uma roupa qualquer de aniversário.

Ela obedeceu. Trouxe uma camisa bem legal e uma cueca de zebrinha. A cueca era uma brincadeira, é claro. Ou não, pois não sei a que gênero de fetiches a Adorável é aficionada. Examinei a cueca. Era uma boa cueca, não era fio dental nem tanga, era até bem grandona, de um modelo que acho que chamam de boxer, mas era de zebrinha…

Tudo bem, guardei a cueca. Só que comecei a usá-la no dia-a-dia. O tecido era muito bom, agradável ao toque e não apertava, uma maravilha.

Minha ex-mulher dizia para eu não sair na rua porque

— imagina se tu sofres um acidente e tiram as tuas calças? O que vão pensar?

Nem presumo que tipo de acidente me obrigaria a tirar as calças, porém fiquei fantasiando a cena: eu caído no meio da rua após um atropelamento, um popular resolve me tirar a roupa para que eu fique mais arejado e…

— nossa…
— que selvagem…,
— hummm…
— será que é comestível?

E eu agonizando no meio da rua enquanto ouvia as piadas.

Bom, vocês então já sabem que eu usava a cueca de zebrinha por aí. Então, certo dia, eu e minha ex-mulher íamos a um concerto. A combinação era de que eu a pegaria no escritório e dali iríamos direto. Muito bem. Quando cheguei de carro ao prédio, telefonei para ela, que respondeu aos gritos e com voz de choro.

— Estourou um cano aqui na sala, estou sozinha. Busca um tampão numa ferragem e corre aqui de volta!!! Te apressa, é uma tragédia!!!

Dez minutos depois, lá estava eu com vedante e tampão. A sala era uma bósnia. Vocês sabem como são os prédios antigos: há registros que não funcionam, outros que não desligam nada, tubulações que não dão em lugar nenhum — parece Escher — e, na cozinha do escritório, havia uma torneira de plástico preto que dava no exato lugar onde, em tempos imemoriais, talvez houvesse uma pia ou um tanque. Minha ex batera sem querer com o braço na torneira e ela simplesmente estava colada e… Saiu voando! Uma beleza a força do jato, todo o escritório estava com um dedo de água e eu concluí que aquele dedo d`água causaria aos móveis outra tragédia, esta financeira. Fui ao banheiro, tirei os sapatos, as meias, a camisa, as calças e voltei com aquele ar temático para a cozinha. Isto é, era uma zebrinha. Descobri, tomando um dos maiores banhos de minha vida, que a parte da torneira que ficara dentro do cano estava toda untada de cola e que não sairia assim no mais. Procurei alicate, não havia; procurei chave-de-fenda, nada; tentei com facas, banho. Chamamos então o Pingo, nosso faz-tudo.

Enquanto isso, pus-me a trabalhar. Abri os ralos que havia por perto, peguei um rodo e comecei a direcionar o rio para aqueles locais. Um tremendo sucesso: mesmo com o jato ativo, a quantidade que eu lograva fazer ir pelos ralos era maior. Suava feito um estivador, mas meu bom humor estava de volta em função de ter provado àquela porra de jato d`água que eu era maior e mais forte. Ah, a alegria das tarefas braçais bem realizadas, feitas sem um nada de cérebro!

Foi quando tocaram a campainha da porta. Berrei para a minha ex atender. Devia ser o Pingo. Ouvi vozes. De mulher. Então, ela entrou na cozinha com a vizinha de baixo, uma chilena chamada Nila, enquanto eu jogava água para todos os lados vestido apenas com a cueca de zebrinha. Claro, ninguém tem nada a ver com as cores de minhas cuecas, mas… Bem, já é estranho a vizinha de baixo de um edifício de escritórios nos ver de cuecas se não temos relação mais íntima, contudo é para lá de estranho que em nosso primeiro contato sejamos tão esclarecedores sobre nossas preferências. E, vocês sabem, sou um sujeito sério, erudito, metido a intelectual, não é legal que logo a pessoa mais fofoqueira do prédio me pegue em trajes tão significativos. Ela foi embora com inédita rapidez, sem mesmo dizer oi nem tchau, como se tivesse visto uma cena pornográfica ou uma barata verde-limão. Eu fiquei irritadíssimo. Como é que foi autorizada a entrada de estranhos durante meu trabalho?

Como vingança pelo ato falho, tirei as cuecas e passei a mandar água para o ralo sem roupa nenhuma. Aí me veio a ideia de pegar um pau qualquer, fazer uma ponta levemente crescente nele, enrolá-lo num pano e depois metê-lo no cano. A raiva nos faz pensar, viram? E não é que o jato estancou? Pude então ir mais longe do que a cozinha e empurrar a água que estava no resto do escritório para os ralos. Mais suor e mais sucesso. Então, minha querida ex-esposa, ela de novo, que fora fazer relações públicas pelo prédio a fim de não brigar comigo, entrou na sala com outra vizinha, esta muito mais respeitável, a D. Rose. As duas puderam avaliar minha genitália, mas creio que viram melhor o traseiro, tal a velocidade com que retornei à cozinha.

Depois, o Pingo chegou e arrumou tudo, rindo de nossas histórias. Levamos o Pingo em casa e acabamos no cinema. Eu com minha roupa inteiramente seca, ela toda molhada. Fiquei preocupadíssimo.

Árias de Bach

Estava caminhando para a Livraria Bamboletras ouvindo umas Cantatas de Bach — mais exatamente a BWV 154 — quando lembrei de um momento de minha adolescência. Estava sentado na cadeira de balanço que tinha no quarto de meus pais, ouvindo uma de minhas primeiras Cantatas, quando me dei conta de que as árias que as formavam eram canções, mais ou menos como as que faziam Chico Buarque, Caetano, Lennon e McCartney, etc. Havia um incrível sol matinal entrando pela janela e eu me balançava ao ritmo da música, provavelmente.

Um ano de Bamboletras

Um ano de Bamboletras

Hoje, 12 de março, faz um ano de uma de minhas maiores loucuras, a de me tornar livreiro aos 60 anos. Se era um sonho antigo, também era um daqueles que todo mundo tem em devaneios irrealizáveis. Às vezes pensava em me tornar um velhinho de óculos vivendo em meio aos livros… E ia fazer outra coisa. Neste último ano, várias pessoas me cumprimentaram pela coragem. Não me acho corajoso. Apenas corri atrás quando soube que a Lu queria repassar a livraria a quem a mantivesse. E larguei a atividade de jornalista sem olhar para trás. A Elena ri, diz que eu garanti uma terapia ocupacional vitalícia, o ideal para quem nunca pensou em se aposentar. Ela está certa. Mas olha, jamais pensei que desse tanto trabalho. É claro que há uma maioria esmagadora de bonitos momentos atrás do balcão, mas há também um intenso trabalho de retaguarda que aprendi do zero.

Auden escreveu que “Quando o processo histórico se interrompe, quando a necessidade se associa ao horror e a liberdade ao tédio, a hora é boa para se abrir um bar”. Talvez por não haver tédio nem horror, apenas necessidade e liberdade, virei livreiro e não dono de bar, sei lá.

A Livraria Bamboletras é um ícone de Porto Alegre. A Livraria Bamboletras é um ícone de Porto Alegre criado com extremo cuidado e carinho pela Lu Vilella. Digo-lhes claramente que virei um livreiro por herança. Tentei preservar o estilo ao máximo, mas inevitavelmente uma nova cara deve ter aparecido.

Sim, nosso acervo é escolhido criteriosamente e não apenas recebido; sim, ficamos felizes quando um cliente retorna e diz que nossa última sugestão foi fantástica e que o livro era ótimo (conhecemos o que vendemos); sim, há muita tensão em razão do mercado instável; sim, as distribuidoras querem nos enfiar best sellers; sim, vocês pedem e a gente vai atrás e muitas vezes dá certo (a gente se orgulha), outras vezes não (contrariedade); sim, estamos com todas as contas em dia mas não pensem que sobra muita coisa (a gente realmente quer ver vocês nos visitando mais, sabe?); sim, coloquei a herança da minha mãe na compra da livraria; sim, ainda estamos pagando a citada ex-dona que deixou a Bamboletras assim tão linda (fazemos isso direitinho); sim, fizemos e fazemos parcerias com escritores, instituições, artistas e bares; sim, vamos atrás dos melhores lançamentos às vezes enchendo o saco de meio mundo (às vezes, receber uma reposição ou livros para um evento mais parece um thriller); sim, visitamos as distribuidoras para escolher as obras uma a uma e… Não, não pretendemos ser menos exigentes.

A Bamboletras não sou eu, é uma equipe. Tem a Bárbara, a Cacá, a Eliane, o Gustavo, a Zair. E durante o ano ainda tivemos a Ana, a Josi e a Vitória. É uma baita equipe e falo da qualidade. Agradeço a todos.

Só não pensem que é fácil. Aliás, qual é o trabalho sério que é fácil? Porém é também divertido, estou muito feliz.

Ah, dia 24 de abril faremos 24 anos sempre independentes e agora, devido à circunstâncias que não vamos citar para não emporcalhar este texto pobre mas limpinho, também resistentes.

Particularmente, agradeço à Elena, à Bárbara, ao Bernardo e à Iracema pelo apoio neste ano e nos que virão.

E também a todos os que nos visitam e que apreciam nosso trabalho.

2018

2018

Acho que 2018 foi um mau ano para quase todos nós. Porém, para mim, foi principalmente o ano de uma grande virada que vai dando certo até agora. Nos primeiros dois meses do ano, eu estava trabalhando como jornalista e gostava do que fazia, mas… Lembro bem que no final em dezembro de 2017 fui até a Bamboletras, claro, a fim de comprar presentes para uma amiga que faz aniversário em 1º de janeiro. Nada me faria crer que, dois meses depois, estaria comprando a livraria.

Foto: Bárbara Jardim Ribeiro

Pois é, quase que por brincadeira, disse para a dona e fundadora da Bambô que queria comprar aquela maravilha.  A bravata foi ouvida com inesperada seriedade, pois a Lu Vilella não somente queria vendê-la, mas desejava que a livraria seguisse nas mãos de um amante de livros. O fato é que em março já estava administrando a Bamboletras, sempre com receio de não atrapalhar o que andava bem.

Todos dizem que mantivemos a alta qualidade do acervo e o bom atendimento, mas digo a vocês que era inevitável que ganhássemos aos poucos uma nova cara. Não sei se melhor ou pior, mas é um jeito diferente. Foi um início bem nervoso. Passamos por uma baita crise no setor livreiro. A agonia das grandes prejudicou a todos. Não é fácil ver chegar todos os dias e-mails com ofertas de descontos de quem, se sabia, não pagava suas contas. E a gente pagando tudo direitinho, em dia. E dando um jeito de sobreviver só na base da qualidade. Parecia que lutávamos armados de lápis que quebravam contra a pele de dinossauros doentes, mas muito perigosos.

Foto: Luiza Prado / Jornal do Comércio

No final do ano a coisa melhorou, o que nos dá esperanças de um 2019 mais tranquilo. Mais tranquilo? Bem, aí vem Bolsonaro e realmente não consigo prever nada.

A vida pessoal? Meus dois filhos se formaram. A Bárbara aqui, o Bernardo na Alemanha. Estão na luta por emprego, ele lá como estrangeiro, ela aqui enfrentando nossos caminhos tortuosos, muitas vezes fechados.

Eu e Elena seguimos bem. Todas as questões dos primeiros parágrafos tiveram o acompanhamento carinhoso dela, com muitas discussões frutíferas e excelentes sugestões. Ela é minha boa companheira. Tenho muita sorte. Às vezes fico pensando bobagens como a que segue: nasci e vivo em Porto Alegre, ela nasceu anos depois e a 12.172 Km de distância em linha reta, contornando, é claro, a superfície curva da Terra. (Diferentemente dos terraplanistas, assumo uma Terra de formato esferoide oblato, tá?). Como fui encontrá-la? Bem, é claro que sei responder, mas a rota é por demais surpreendente. Muita sorte. Nunca amei tanto alguém que não tivesse parentesco direto comigo. É óbvio que tudo o que faço é para ela.

Foto: Luiza Prado / Jornal do Comércio

Amor

Hoje eu fui a um velório de devastador impacto emocional. Era o velório de minha ex-babá, que faleceu aos 93 anos. Passei muitos anos sem vê-la, décadas, até que seu filho Jacó, em abril de 2015, me reconheceu na feira de sábado da Vasco, veio falar comigo e promoveu um reencontro imediato, pois ela estava ali. Pequenina, frágil, sorridente, ela me reconheceu e falou muito bem de mim e de minha mãe. Nos abraçamos, nos beijamos, a Elena tirou fotos. Se aquele foi um dia muito feliz, repetir hoje seria impossível.

Foto: Elena Romanov

Ver a babá é revisitar a infância. Fui uma criança agitada, muito ativa, devia ser insuportável. Se até hoje não consigo ficar parado, imagino a peste que fui. E imaginei a incomodação, a lavação de fraldas, a correria atrás de mim. Porém da Márcia só lembro de delicadezas. Minha mãe confirmava: dizia que eu tivera a mais amorosa das babás, que tivera sorte. (Minha mãe era uma dentista que, assim como a Márcia, trabalhava muito e na época as crianças só iam para o Jardim da Infância aos 6 anos).

A surpresa veio na conversa com seu filho Jacó. Ouvi muitas vezes coisas sobre o amor que a Márcia me dedicava, mas eu também cresci insuportável: sou o tipo de pessoa que não acredita ou reduz os elogios que raramente recebe. Com lágrimas nos olhos, mas mantendo o bom humor, o Jacó disse que estava feliz com minha presença e que “ficaria com ciúmes” porque a Márcia me adorava. Um exagero, pensei, mas não me passou despercebido um fato: um dos netos sabia quem eu era, eu era o cara do encontro na feira.

E desmanchei de vez quando Jacó pediu a palavra após a fala do padre. Orador nato, de fala inteligente, voz emocionada mas bem colocada, o advogado Jacó percorreu rapidamente o longo arco da vida de sua mãe e passou a referir cada pessoa presente. A pequena sala de velório estava apinhada. Falou de amigos e amigas de sua mãe, parentes — alguns dos quais ela também criara — e vizinhos.

Quando chegou a minha vez, soube que minha mãe era apenas a melhor amiga da sua. Márcia viera de Maquiné e minha mãe logo a empregara, mas eram mais amigas do que qualquer coisa, disse ele. E lembrei de visitas que fazíamos à Márcia quando ela não era mais babá. Lembrei que olhava para o Jacó e que ele era “muito criança” para mim — tinha seis anos a menos do que eu (aliás, tem até hoje…). E o Jacó lembrou do PUDIM que a Márcia fazia sempre para nossa chegada. Meu deus, eu lembro do pudim! Era um milagre! Até hoje amo pudim e sempre que vejo um tenho a esperança de que a massa homogênea e clara da parte de baixo seja laaaaarga, delicada e leve como os da Márcia.

E ele voltou a brincar sobre os ciúmes que tinha de mim, agora publicamente.

É claro que jamais retribuí nada para a Márcia, ao menos verbalmente. Esteja ela agora onde estiver, digo envergonhado que também a amo, que sei da sorte que tive ao conhecê-la — éramos dois jovens, Jacó — e que, mesmo sem esperanças, seguirei atrás de um pudim tão maravilhoso quanto o dela.

5 anos. 5 anos, Elena

5 anos. 5 anos, Elena

5 anos. 5 anos, Elena, completados neste 31 de agosto. E desde o primeiro momento, mesmo quando não tinha a menor ideia de como tu pensavas e falavas, mesmo quando não conhecia tua voz, mesmo quando eu só admirava de longe tua risada e a forma de caminhar, eu já tinha certeza, eu já sabia que te amava.

Obrigado por me aguentar por tanto tempo. Estou adorando.

Textos para o Sarau Clara Corleone (III): Rascunho de meu pai

Textos para o Sarau Clara Corleone (III): Rascunho de meu pai

Ele não pertencia ao Departamento de Preocupações e frequentemente licenciava-se do de Sustento. Em nossa casa e em todos os lugares onde ia, suas funções estavam mais ligadas ao Ministério do Lazer, Jogos e Cultura, sem esquecer o de Relações Públicas. Não posso imaginar coisa melhor para uma criança do que um pai sempre presente, brincalhão e meio irresponsável. Desde muito pequeno tive contato com os dois lados do Dr. Milton Cardoso Ribeiro — o pai adorável e o apostador. Meu pai e minha mãe eram dentistas numa época em que os bons profissionais desta área faturavam o que todos nós deveríamos faturar sempre. Ganhavam bem. Só que meu pai direcionava seus ganhos para as corridas de cavalos do Jockey Club. Minha mãe ficava maluca com isto, mas para mim, que não conhecia outra família, aquilo era algo tão normal que suas reclamações eram como a música incidental sob a qual vivíamos tranquilamente. E esta trilha não poderia ser mesmo muito tonitruante, pois meu pai era alguém tão doce que era difícil brigar com ele. Mas a verdade é que ele vivia e se divertia, enquanto ela trabalhava para manter nosso barco sobre as águas.

Ele nasceu em 1927 e morreu em 1993, aos 66 anos. Um dia antes de morrer, dera-me um encontrão por trás no supermercado — uma tradição nossa — e comentáramos sobre um monte de coisas. Estava bem, normal, porém, na manhã seguinte, sofreu um ataque cardíaco. Minha mãe me ligou às 6h da manhã, dizendo teu pai está caído no banheiro. Quando cheguei, ele já tinha morrido.

Sua internet eram os muitos jornais dos quais não se separava e o chatíssimo rádio de pilha que usava para ouvir notícias e a meteorologia. Algumas vezes suas manias tornaram-se incontroláveis, como demonstra naquele caso ocorrido em pleno casamento de minha irmã. Durante a festa, organizada num dos hotéis mais chiques de POA, um amigo da Iracema chegou-se para dizer a ela que um convidado, desinteressado da festa, estava escondido na privada, ouvindo os páreos num radinho de pilha. Minha irmã voltou-se para ele e disse: “É meu pai”.

Não lembro de grandes brigas ou discussões com ele. Lembro é das disputas. Seu perfil de apostador adequava-se perfeitamente a elas. Eu e ele tínhamos um jogo que durou de minha adolescência até sua morte. Toda a vez que ligávamos na Rádio da Universidade — especializada em música erudita –, tratávamos de identificar o mais rapidamente possível qual era a música que estava sendo executada. Isto podia acontecer várias vezes ao dia. Com isto, sou, até hoje, supertreinado em descobrir tudo o que de clássico toca no rádio. Hoje mesmo liguei o rádio e disse rapidamente para mim mesmo: “Sarabanda da Suite Nº 2 da Música Aquática de Handel”.

Quando eu tinha menos de 13 anos, nos dedicávamos — sempre antes de dormir — à atividade de imaginar histórias para a música que estivéssemos ouvindo. Lembro dos numerosos tuaregues que acompanhavam o Bolero de Ravel… Dos prelúdios líquidos e cheios de peixes de Chopin… Dos concertos atléticos de Bach… Das histórias de terror que acompanhavam o Concerto Nº 1 para piano e orquestra de Brahms… Desnecessário dizer que meu pai amava a música. Qualquer música. Colocava Mozart, Beethoven, Noel e Cartola no mesmo patamar e misturava na mesma noite eruditos e populares. Como pianista amador, chegou a compor e a dedicar a valsa Férias de Julho a mim e minha irmã.

Uma vez, quando eu tinha uns 12 anos, estava levando nosso cachorro para fazer suas necessidades na rua quando um vizinho me chamou em sua mesa na calçada de um bar. Era à noite. Educado, parei a seu lado. O sujeito começou a conversar, conversar e acabou pegando minha mão. Fugi na hora.

Contei o caso para meu pai e ele quis que eu lhe indicasse quem tinha sido. Dias depois, apontei-lhe o cara, de longe. Era um cliente de seu consultório de dentista. Meses depois, o cara foi lá consultar. Meu pai abriu seu dente, disse para o homem ficar de boca aberta e perguntou se ele conhecia seu filho, Milton, um que andava com um cachorrinho assim assado. O cara passou a suar em profusão… Meu pai perguntou se ele estava nervoso, se estava doendo muito, essas coisas. Rindo, me garantiu que fez tudo direitinho do ponto de vista odontológico, mas que doeu. OK, acrescento que ele podia ser sádico.

Acho que meus pais se amavam. Lembro de gestos de carinho num e noutro sentido. Minha mãe – ela foi uma das primeiras dentista mulheres formadas pela Ufrgs e sua família cruz-altense reclamava de meu pai por deixá-la trabalhar (imaginem se soubessem do resto) – referia-se a ele como um homem que só tinha um só defeito (os cavalos!) e, quando ele morreu, disse-me com um olhar perdido que estava arrependida por ter recebido muito mais amor do que dera. Disse também que sempre sustentara a casa, mas que ao menos seu marido não fazia dívidas, apenas jogava dinheiro fora.

Considerável parte das minhas boas lembranças da infância e da juventude estão associadas a meu pai. Ele era um sujeito engraçado e bem-humorado que participava de tudo e era moderno o suficiente para não estabelecer distâncias. Sempre me senti seu par, fato que parecia ser um problema para os outros pais com os quais mantínhamos contato. Morreu e não lhe disse que aprendi muita coisa com ele, não lhe disse que sabia que era amado, que o amava e que nosso problema era o de ser gente comum, dessa que anda por aí, cega, surda e muda, falando todo tempo em coisas secundárias.

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Dia dos Namorados

Dia dos Namorados

A gente namora bastante de todo tipo de namoro. A gente se olha, conversa, se beija, se olha de novo, se abraça, faz planos, se apressa ou deixa tudo devagar, sempre juntos. O fato é que a Elena me mesmerizou desde a primeira vez que a vi. Eu nem sabia quem era — nem se vinha da Bielorrússia ou do Recife — e logo pensei: nossa, ela me atrai muito. E era violinista. E só depois soube que ela tinha linda expressão verbal e uma inteligência luminosa. Por isso é que, quando fico mal, sem solução, só posso pensar que estou sendo injusto com a melhor parte de minha vida. Elena, o que dizer além de eu te amo se o que quero dizer é que te amo? (Obrigado, Pessoa!)

Aqui no Brasil a gente não comemora o Valentine`s Day, mas o Dia dos Namorados num dia como hoje, 12 de junho. Tenho uma pequena história com o Valentine`s. Em 2014, em 14 de fevereiro, eu e a Elena fazíamos uma escala em Lisboa para chegar a Londres à tarde. À noite, fomos a um pub, o primeiro da Elena. Estava esquisito lá dentro, todas as mesas tinham velas e rosas. Então descobrimos o motivo, sentamos e ficamos sorrindo um para o outro. Sob meu sorriso havia o pensamento de que planejara detalhadamente toda a viagem, mas jamais aquele encontro tornado subitamente romântico sob o frio, a bruma e as luzes londrinas. E pensei, fazendo uma piada de mim para mim: “O que mais dará errado?”.

Feliz Dia dos Namorados, querida.

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Um médico

Eu finjo que não tô nem aí, tento minimizar, mas estou aí sim. Fiquei em estado de choque com uma consulta a um oftalmologista. Não consigo pensar em outra coisa. A paciente era a Elena. Ela fez uns óculos. Não deram certo. Foi a um segundo médico. Deu mais certo, mas não totalmente. E retornou ao segundo médico. O diálogo foi curto.

— Doutor, eu não consigo ler partituras com clareza. Vejo muito bem longe, vejo como se estivesse com um binóculo, mas perto não consigo. Normalmente, a partitura fica mais ou menos aqui — disse ela, estendendo o braço e fazendo um ângulo de 90 graus com a mão.

— Olha, acho que a senhora quer me dar um migué — respondeu ele.

Foi uma reação pra lá de inesperada.

Em gauchês, “dar um migué” significa “enganar” ou “levar vantagem”. O que não dá para entender é qual seria a vantagem que a Elena obteria ao vê-lo e em ir à ótica pela terceira vez.

— Não, eu quero apenas conseguir trabalhar com algum conforto. Meu trabalho exige que eu enxergue bem.

— A senhora pediu um receita para longe e eu dei! — respondeu ele taxativo e com a voz mais alta.

Comecei a me mexer na cadeira pensando em como intervir.

— Não, eu pedi uma receita para trabalhar — disse Elena.

Eu estava presente na primeira consulta e foi isso mesmo o que ela solicitou. Assenti ao que ela disse.

— A senhora viu que eu fiz testes para perto e longe, não para visão intermediária! — rebateu ele quase aos gritos.

— Eu não conheço o seu trabalho. Não sei quais são os testes. Sempre fui clara, preciso ver bem as partituras. Elas ficam a certa distância. E lhe disse claramente isso — falou Elena com extrema lentidão e sem mudar o tom de voz calmo.

— EU NÃO ME IMPORTO COM O TEU TRABALHO! PRA MIM TANTO FAZ!

O homem estava histérico. Então, levantou e a chamou para novo exame. Começou a fazê-lo ainda agressivo, mas foi se acalmando aos poucos. Eu estava pasmo, mas tratei de ajudar o dotô no novo exame. Eu segurava as letras que a Elena deveria ler na posição onde ficaria uma partitura. Na receita anterior, ele fez questão de escrever no verso, em letras garrafais: RECEITA OK.

Quando uma mulher se comporta assim, costuma-se dizer que é mal comida.

Bem, recebemos a nova receita. A despedida foi quase cordial.

Eu acho que as pessoas estão ficando loucas. Não vou avançar, mas acho que todo mundo entende o que quero dizer.

A Elena saiu de lá dizendo que precisava chorar um pouco. E eu, ainda pasmo, pensei que tenho que ir ao médico preparado para brigar. Como raramente grito e brigar fisicamente eu não sei, talvez devesse apresentar uma faca, algo assim. Ou será que o Boçalnato tem razão e devo andar com arma de fogo? Costumo acompanhá-la nos médicos apenas para poder conversar a respeito depois. É uma atitude de carinho, consideração, etc. Será que vou ter que me transformar em guarda-costas? Nunca antes tinha visto médicos maltratando clientes. Foi uma novidade destes tempos sombrios.

(Sim, ela tem convênio).