Aí está a Elena no intervalo dos ensaios do musical Chimango. Querem saber de uma coisa? Eu acho que nunca deveriam colocar a mulher que eu amo num fosso, nem de orquestra. Muitas vezes, durante o dia, fico pensando no que ela estará fazendo e tenho que parar tudo porque começo a querer tê-la perto de mim. Em minhas fantasias, jamais estou atirando cordas para retirá-la de um fosso. Por favor, parem com isso, voltemos aos palcos.
E eu esclareço, pois sua filha não estava em casa:
— Elena NIET.
Isso parece tranquilizar dona Klara Zlatin, que diz:
— Hyys hsaidk ysgqa djdç oljkls çdlf oifdajdwql, OK?
— OK.
— OK.
— Pacá.
— Pacá.
Olha, acho que me saí super bem na minha primeira conversa com a sogra.
(*) O título deste post é uma modesta e inútil homenagem a um dos maiores romances da literatura de todos os tempos: “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann. Neste livro, há um esplêndido capítulo chamado “Hans Castorp faz uma tentativa de conversação em francês”. Nele, Hans tenta conversar com a bela russa Clawdia Chauchat, a qual costumava bater as portas do Sanatório Berghof com calculada violência… A foto acima é da personagem de Clawdia, vivida por Marie-France Pisier, no filme de Hans Geissendörfer. E o prêmio de maior legenda de foto vai para…
Filhos… Filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos Como sabê-lo? (…) Porém que coisa Que coisa louca Que coisa linda. Que os filhos são!
Vinícius de Moraes — Poema Enjoadinho
Sem comprovar, os cientistas sugerem que amamos nossos filhos em razão de um hormônio chamado ocitocina que é produzido no cérebro e armazenado na hipófise. Tenho certeza de que minha hipófise está lotada dele. Ele seria produzido ou durante a gestação ou nos primeiros meses de vida da criança ou — importante! — a qualquer momento, porque a ocitocina não diferencia os filhos naturais dos adotivos. A natureza é sábia, li isso em algum lugar.
Hoje minha hipófise fez a verificação quantidade (alta) da ocitocina, acendeu as luzes (pois embaixo do cérebro é muito escuro) e partiu para uma comemoração íntima. Afinal, apesar de termos perdido o contato diário, sempre que vejo a Babi me invade grande amor e tranquilidade. Talvez esteja enganado, mas acho que ela está muito bem. Vê-la me faz sentir que a vida é uma aventura e que “Somos feitos da mesma matéria dos sonhos e, entre um sono e outro, decorre nossa curta vida”, como disse Próspero para Miranda, pois, para mim, é simplesmente impossível vê-la sem pensar no passar do tempo, este irreversível.
E como lembro de seu primeiro dia! Veio aos berros e cheia de saúde num domingo à noite. Mas estes textos de pai apaixonado são muito chatos e óbvios. Melhor dizer logo que eu fico lotado de orgulho por ela ser a pessoa inteira (*) que é, que fico feliz por ela me suportar com tanta tolerância, por ser amorosa, por ter passado poucas e boas sempre a meu lado, por sempre opinar com calma, por ser mais propositiva do que destrutiva, por termos feito a mais maravilhosa e irrepetível das viagens no momento mais correto, e, fundamentalmente, por ela me abraçar e deixar-se abraçar a toda hora.
Muitas felicidades e aproveite todos os dias porque a coisa é curta.
(*) Pessoa inteira: jargão da área psi. Trata-se de uma pessoa centrada, mas não auto-centrada ou em faixa própria. Alguém que possui uma trajetória com um conceito, com uma essência que o apoia. Pessoa de ética inabalável e que não pula de galho em galho. Simplificando, o “inteiro” é o mesmo em qualquer circunstância, não diz uma coisa e faz outra, nem tem duas caras.
Estou quase correndo pela Rua da Praia quando uma senhora me para. Tiro os fones de ouvido — ouvia uma Partita para Violino Solo de Bach — e ela me pergunta educadamente.
— Desculpe, o Sr. não é filho do Dr. Milton Ribeiro que trabalhava na Azenha?
— Sim, sou.
— Seu pai era uma pessoa maravilhosa, raríssima.
E as coisas mergulhadas no sem-nome Da sua própria ausência regressadas Uma por uma ao seu nome respondiam Como sendo criadas
Sophia de Mello Breyner Andresen
O 31 de agosto de 2013 foi um dia de surpreendentes mudanças. Eu e ela estávamos muito deprimidos e machucados. Obedecendo minhas irmã e filha, eu estava quieto, proibido de contar tudo o que via, lia e de transcrever as conversas maravilhosas que tive. Enquanto isso, íamos lambendo as feridas um do outro e, naquele dia, resolvemos ir adiante por nós mesmos. Eu desejava isso há algum tempo e dizia isso de meu modo nada discreto. Um dia, meio bêbado durante um jantar, fui pretensioso o suficiente para pedir que ela me desse um pouco de tristeza para que eu pudesse devolvê-la na forma de boas lembranças. E ela terminou aceitando, numa estratégia para livrar-se do passado. Curiosamente, depois do dia 31, aqueles poucos sorrisos hostis de ironia — Salve, Paulinho da Viola, outro traído! — transformaram-se em esgares de ódio. E passei a amar a decadência, pois ela se manifestava de modo indiscreto, cumprindo meu papel de forma mais eficiente e autônoma.
Então, o 31 de agosto de 2013 foi o dia em que descobri que sobreviveria ao luto. Foi o dia em que vi iniciar um lento e novo processo, para o qual tínhamos exigências pragmáticas e potencialmente injustas. Desta vez, queríamos a qualidade de não precisar mudar muito para se adaptar um ao outro. Mas, apesar de rirmos demais quando juntos, estávamos mudados e esquisitos. Eu perdera a vontade de ler — coisa estranhíssima em mim –; ela, a vontade de tocar violino só por tocar, passando a manter apenas o estritamente necessário à sua profissão. A natureza do que nos acontecera cobrava sua conta e sempre voltávamos ao nosso começo de lamber feridas um do outro, pois a natureza é circular como este texto, além de não ser nada harmônica, mas caótica, predadora e violenta. E assim, indo e vindo, lentamente, fomos subindo como um casal de Chagall, observando o redemoinho no mar sob nosso voo. E, subindo, fomos adquirindo enorme confiança em nossos abraços e em nosso recomeço, nomeando-nos novamente como Elena e Milton, duas pessoas mais ou menos ímpares, frágeis e apaixonadas.
Estamos muito bem. Vivo um período inédito, realmente diferente de tudo o que vivi antes. Deve ser a felicidade possível, pois…
“Sobre a cidade”, do bielorrusso — assim como a Elena — Marc Chagall.
Tem alguma coisa me incomodando. Acho que sou eu. – WOODY ALLEN
Primeiro Movimento – Molto Vivace Paroxístico: É ridículo utilizar extrair a pasta de dentes apertando-se no meio do tubo, o correto é vir de baixo para cima. É ridículo tomar banho sem começar por cima, ou seja, pela cabeça, pescoço, tronco e assim por diante. É ridículo não se ouvir a-ten-ta-men-te todos os CDs que se compra ou ganha para só depois guardá-los. É ridículo não possuir uma montanha de livros sobre o criado-mudo. É patético ler sem uma caneta ou lápis na mão. É ridículo sair de casa sem antes dar uma olhada nos e-mails. É ridículo não comer tudo o que está no prato. É ridículo tomar vinho sem um copo d`água ao lado. É ridículo pôr o cinto de segurança com o carro parado. É equivocado não dizer todos os dias para a Elena que a amo. É ridículo não ficar cuidando o taxímetro (pois este pode disparar a qualquer momento como um ventilador). É ridículo não usar as roupas pela ordem – colocando embaixo a recém lavada e pegando sempre a de cima. É natural escrever o texto caminhando ou correndo e dizer que já está pronto, mesmo quando ainda não se passou para o computador. É maníaco achar que tenho que responder a todos os comentários. É reparação maníaca achar que toda a brincadeira pode ofender e que é bom fazer um agrado depois. É maníaco decorar fatos e datas, mesmo sem querer. É compreensível esconder algumas opiniões. É lógico pensar que as pessoas que não gostam de crianças são potencialmente más. É inteligente explicar para uma criancinha que estar doente e com dor não é uma punição. É maníaco acusar mentalmente todos os entediados de deprimidos. É maníaco achar que todos os deprimidos são muito chatos. É ridículo achar que todos os chatos têm pais chatos, apesar do que mostra a experiência. É lógico pensar que os de língua alemã são os melhores (Bach, Musil, Mann, Beethoven, Brahms, Bernhard, Kafka, Mozart, Goethe, Heine, Haydn, Handel, quem tem isso?). É lógico pensar que alemães podem ser também os piores. É paradoxal achar que uma mulher ou mostra parte das pernas ou parte dos seios. É ridículo pensar que se ela mostrar os dois estará denotando vulgaridade, principalmente quando se tem interesse em ver tudo. É paradoxal torcer apaixonadamente pelo Inter e achar estranho que alguém possa torcer da mesma forma por nosso adversário. É paradoxal achar docemente rídiculas as brincadeiras amorosas entre pais e filhos quando passamos nos gosmeando com os nossos. É paradoxal sonhar com a megasena quando nunca se aposta. É lógico pensar que os adultos que dizem não gostar de presentes estão negando sua infância. É ridículo fantasiar sobre jogos de futebol. É lógico que nos sentimos aliviados quando fazemos um personagem de ficção sofrer. É lógico pensar que o mundo é injusto. É lógico pensar que os melhores seres humanos normalmente se ralam. Mas será maníaco — ou é apenas experiência? — percorrer tantos caminhos mentais pouco menos que pré-moldados?
Segundo Movimento – Adágio Periódico: Não há como fazer Milton Ribeiro ler ou folhear uma revista ou jornal da primeira à última página. Normalmente, a seção cultural e a esportiva estão no final e estes assuntos são os que mais me interessam. Daí, a mania. Irrita-me quando divido a leitura de uma publicação com outra pessoa e esta quer lê-la da página 1 para a 2 e assim por diante. Ninguém parece entender que tenho idéias claras e procedimentos rigorosos e que estes indicam que o correto é de trás para a frente. Melhor ler sozinho.
Terceiro Movimento – Surdo Assai: A música deve ser ouvida como se fosse ao vivo. Esta coisinha de música ambiente é para enfastiados e para cobrir silêncios em reuniões sociais. Se a orquestra soa ensurdecedora, devemos ouvir também assim em nossa casa. O mesmo vale para um grupo de rock ou samba. Mas não podemos ouvir um violoncelo solando de forma ensurdecedora, pois este nunca soa assim. Não devemos distorcer. Então, ouço intimamente as Suítes para Violoncelo de Bach — na gravação de Bruno Cocset, de preferência, pois Rostropovich e Bach não são miscíveis –, mas as obras sinfônicas são fruídas por todo o edifício. Gosto de me sentir no meio da orquestra. É lógico e cartesiano, não concordam?
Quarto Movimento – Allegretto de Funes: A memória é uma coisa que se treina, principalmente a musical. Nunca abandonei uma mania que adquiri com meu pai. Tínhamos um jogo que durou de minha adolescência até sua morte. Toda a vez que ligavámos na Rádio da Universidade — especializada em música erudita –, tratávamos de identificar o mais rapidamente possível qual era a música que estava sendo executada. Isto podia acontecer várias vezes ao dia. Com isto, sou, até hoje, super-treinado em descobrir tudo o que toca no rádio. Quando a obra terminava e o locutor dizia seu nome, comentávamos o resultado e desligávamos o aparelho para não ouvir o nome da próxima e seguirmos na luta. Nunca apostamos, ou melhor, apostamos muitas vezes, mas os valores eram de um real, um cruzeiro, um cruzado, etc. Como ficamos anos nesta briga… hoje mesmo liguei o rádio e disse rapidamente, para mim mesmo: “Sarabanda da Suite Nº 2 da Música Aquática de Handel”. Angustia-me muito não saber qual é a música ou, no mínimo, o compositor. Ele faleceu em 1993. Ainda estou disputando com ele..
(*) Os confusos conceitos de “mania” aqui externados, comprovam que meus conhecimentos da área psi são de farmácia. Espero que os profissionais mantenham-se longe, mas duvido muito. Sem pensar muito já encontrei quatro psicanalistas, psicólogos, psiquiatras, etc. entre meus sete leitores. Ainda bem que o método de retaliação preferido deles é o silêncio.
Ops! Não é bem uma resposta. Na verdade, ela me escreveu e eu escrevi para ela. Diria que as mensagens foram na mesma direção, quase no mesmo horário neste início de madrugada, em sentidos contrários.
Q u e r i d o Milton!
Meu primeiro “Feliz Dia dos Namorados” para você!
Já sabemos que fazer avaliações, resumir e concluir são alguns dos meus vícios… então.
Parece que não consigo escapar disso nem dando parabéns, desculpa.
Pois para mim também é o primeiro Dia de Namorados em estatuto de namorada no Brasil.
Sempre volto a lembrar como tudo começou. Nós dois, abandonados, traídos, desvalorizados até um ponto impossível, “tristes e descrentes deste mundo”, vivendo um desamor crônico. E depois, como uma mágica, tudo virou canção e descobrimos “o que é felicidade…”
Eu me sinto muito bem ao seu lado. Em Porto Alegre, Paris, Londres, Lisboa. Tenho certeza que vou me sentir muito bem ao seu lado num lugar qualquer do mapa, não importa a quantidade das atrações culturais e as condições. Só um abraço e já me sinto bem…
Quando a gente se entende tão bem, não existe assunto para se preocupar. E, ao redor, tudo se resolve mais fácil. E os obstáculos desaparecem sem menor esforço. E a gente não se faz questão de planejar tudo, porque o tempo “nosso” tem andamento diferente, de outra dimensão, e as coisas se organizam em outra ordem e se resolvem de outras maneiras.
E, se por alguma razão isso acabar, tenho certeza que só vamos lembrar coisas boas, esquecendo as “coisas bobas”.
Obrigada, meu caro Milton, por ser meu menino doce, meu homem amoroso, meu conselheiro, às vezes até minha baba e sempre meu travesseiro! Te adoro!
Parabéns para nós que estamos passando nosso primeiro Dia dos Namorados dividindo o mesmo ar, a mesma cama, o mesmo guarda-roupas, quase a mesma comida (a minha tem leite), os mesmos filmes, os mesmos (poucos) livros, os mesmos amigos, o mesmo TRI, as mesmas preocupações, as mesmas pernas e braços, nós que rimos das mesmas coisas, que discordamos sem asperezas e no outro dia acordamos conciliados, que caminhamos perigosamente pelas ruas (ontem podíamos ser encontrados às 20h no meio da Redenção), que não calculamos, que temos sotaques diferentes, que fizemos uma longa viagem (em vários sentidos inclusive o da foto), que já temos memórias, incrível, já temos memórias, nós que sabemos que cada um é um estranho ímpar, mas que nos ajudamos em tudo, que tentamos sempre e a cada dia ser um par, que vemos que tudo ainda pode ser melhor pois ainda estamos melhorando e que combinamos não trocar presentes no Dia dos Namorados, mas que vamos festejar, é claro. Elena, eu sempre estou com desejo de estar perto de ti. E quando não estamos, fico pensando no que estarás fazendo e meio que fico lento porque começo a querer muito te abraçar.
(Hoje, no almoço, ainda lembrei de como chovia naquela quarta-feira em que eu comprava roupas para usar no dia seguinte e ia de novo para aquele hotel. Tu me ligaste na hora mais oportuna para dizer que tinhas máquina de lavar e secadora e que eu não podia ficar todo molhado na rua. Eu fiquei muito sem jeito, mas tinha que aceitar, ainda mais quando tu disseste que eu seria teu convidado. Sim, passamos por muitas coisas. Tudo foi tão aventuresco como se estivéssemos num filme de roteiro muito complexo mas todo fechadinho, tão fechadinho que tudo acontecia na hora certa com o objetivo de pôr fim ao desamor).
Elena naquele cubículos da Shakespeare and Company onde os caras escreviam
Logo que tudo isso começou, avisamos no Facebook que tínhamos um relacionamento SÉRIO, mas que na verdade não era sério, estava mais para o DIVERTIDO. Ontem, com razão, tu me disseste que estávamos mudando para um relacionamento SIMBIÓTICO…
Eu sou mesmo um sujeito de muita sorte. Descobri bem atrasado — só aos 56 anos, mas descobri e isso é que vale — que a gente pode se apaixonar incondicional e inteiramente por alguém. Quando digo que, descontando uns outros, és meu primeiro amor, brinco apenas parcialmente.
Tu és uma pessoa maravilhosa, mas considerando-se que és uma cética, reformo a frase para: a gente acha maravilhosa a pessoa que combina perfeitamente conosco. E me parabenizo diariamente por ter insistido tanto. Tinha razão, né? Passamos cada vez mais tempo juntos e nunca é chato. Acho admirável a delicadeza, o interesse e o respeito com que tratamos um ao outro. Construção nossa. Posso contar, Elena? Em plena Paris, às vezes saíamos para passear só às 15h porque a companhia um do outro estava empatando com o encanto da cidade lá fora. E ríamos por estarmos fazendo um turismo todo errado e livre.
Curiosamente, é a primeira vez que, nesses quase nove meses, um de nós faz aniversário. Eu até fico sem saber como agir, como te tratar hoje, etc. Mas sei que a solução para nossas inseguranças sempre foram os abraços e pretendo fazer uso deles em qualquer caso… Afinal, eles vêm sempre facilmente.
A palavra russa acima tem o seguinte som: “parassionak”. Eu lhes digo que é um belo som. Vamos conferir lendo-a novamente e dizendo bem alto: “Parassionak”. Imagine o parassionak de seu país. Parece um grande personagem que ocupa uma presidência qualquer ou um cargo especial no STF. Ou talvez seja um aiatolá, sei lá. Imagine o parassionak de sua cidade… Será certamente alguém a ser saudado com fanfarras e que mora num palácio.
E se fosse a representação fonética de uma coisa não viva? Neste caso, certamente seria um transatlântico ou um gênero de limusine. Quem sabe o último modelo da Ferrari? “Hoje vi uma Parassionak B3, parece uma nave”.
Pois então você joga migalhas de pão por toda a cozinha e é chamado de parassionak. Bá, quanto orgulho senti! Eu, logo eu, um parassionak! E perguntei o que significava.
Sim, parassionak é apenas “porquinho”. A fonética é muito enganadora.
Mas gremistas, saibam: “azul”, em russo é “голубой”. A pronúncia é “galubói”, uma palavra de som horrível! Aqui, a fonética volta a revelar-se genial.
Já vermelho é “красный”, “krássny”. Digam bem alto: “Krássny”. E voltei a me apaixonar pela fonética. Tudo bem, sou um porquinho.
Uma medida bem pessoal que posso ter da grandeza de Gabriel García Márquez é a seguinte.
Minha q u e r i d a e a m a d a Elena Romanov nasceu em Mogilev, na Bielorrússia. Ela morou lá, acho, até por volta de seus 20 anos. Durante a adolescência, ela se apaixonou pela tradução russa de Cem Anos de Solidão de tal forma que não apenas a leu 4 vezes como fez com que seus amigos a lessem. E, hoje “pela manhã”, durante o café tomado após às 14h, ela contava sobre José Arcadio Buendía, o que pensava que o tempo havia parado e que morreu louco, amarrado ao castanheiro da família.
Ou não. Talvez seja tudo novo, isso sim, pois não consigo lembrar de algo parecido em minha vida e olha que tenho boa memória. Tenho voltado feliz pra casa em meio ao calorão que nos assola. Caminhando na canícula, fico até envergonhado de meu meio sorriso. Sou o único feliz. É claro que, descontando uns outros aí, és meu primeiro amor. Tudo me parece tão inédito ou estava tão escondido e afastado no tempo que nem lembrava mais de como era. Meu único trabalho tem sido o de tentar retirar quaisquer objetos incômodos, oferecendo-te as horas calmas. E assim vamos atrás do que há para ser alcançado, que é a hora seguinte e que sempre chega a tempo. Tudo tem sido tão, mas tão bom e simples que estou pasmo, Elena. Talvez seja estranho agradecer, mas é o que tenho vontade de fazer.
O termo daltonismo deriva de John Dalton, um cientista inglês que estudou teoria atômica, autor da lei de Dalton (algo sobre pressão, se não me engano) e que foi o primeiro a estudar a anomalia de que sofria. Atualmente, o termo mais utilizado não é mais daltonismo e sim Color Blindness ou Cegueira para Cores. Uma vez que esse problema está geneticamente ligado ao cromossomo X, ocorre mais frequentemente entre homens pois, no caso das mulheres, seria necessário que os dois cromossomos X contivessem “gens daltônicos”.
Curiosamente, os daltônicos muitas vezes apresentam genitália avantajada. Seus filhos, não.
Você reconhece um daltônico quando ele, ainda adolescente, morando na casa da mãe, sai de casa bem arrumado para alguma ocasião especial trajando estranhas combinações, como calça verde e camisa vermelha. No meu caso, a Dra. Maria Luiza Cunha Ribeiro dizia para mim:
– Pelo amor de Deus, muda de roupa, Miltinho. Tu mais pareces um periquito – não estranhem, minha mãe sempre falou um português perfeito, com todos os verbos bem conjugadinhos…
E o periquito voltava para seu quarto, acompanhado de sua mãe, dentista e consultora cromática, a fim de trocar de roupa. Mas nunca o fazia na frente dela, pois tinha vergonha de mostrar a característica secundária que os daltônicos carregam consigo.
Outra forma de identificar um daltônico é quando pedem a ele um objeto mais ou menos assim:
— Vai lá no quarto e pega a caixinha lilás.
Para nós, uma caixinha lilás ou marinho ou azul ou cor-de-burro-quando-foge é exatamente o mesmo. Ou, melhor dizendo, são diferentes, bem diferentes, o que não significa que eu saiba qual é especificamente a lilás (cor especialmente complicada). Quando eu não sabia que era daltônico, pensava que era apenas idiota, impressão que até hoje não se desfez inteiramente. Concluí que era incapaz de aprender as cores e ficava mal-humorado quando via algum mapa cheio de legendas coloridas no livro de geografia. Enchia os livros de flechinhas e anotações…
Porém, meu colega de daltonismo, fique sabendo que a culpada é sua mãe e desta forma ela não pode ficar irritada quando você não pega as meias nem as toalhas certas ou ameaça explodir a casa se errar aquela ligação elétrica identificada por fiozinhos coloridos. Neste momento, você deve mandá-la examinar seu cromossomo X — que você herdou exatamente dela — ou a puta que a pariu. Tudo depende do contexto.
Mas depois você casa e sua mulher lhe grita do banheiro para pegar no quarto a calcinha rosa e você lhe traz uma igual só que verde azulada, na opinião dela. E ela vai lhe dizer mui compreensivamente:
— Que má vontade, hein? Pegaste a primeira que te apareceu na frente! Isso demonstra teu desinteresse por mim — sem imaginar que você quase morreu dentro daquela gaveta colorida e que, de tão angustiado, esqueceu de mergulhar o nariz nela (no meu caso, um nariz igualmente avantajado).
Mas observem a imagem acima. À esquerda, está a imagem normal; à direita, as pessoas que não são daltônicas verão a imagem que nós, daltônicos avantajados, vemos. Pois é, dizem que para nós o mundo é mais feio, mas você só diz isso porque você não revisou em detalhes nossa anatomia.
A mesma mágica acima. A do lado esquerdo é a sua; a do direito, a nossa. Minha mulher tirou esta foto de minha filha para mostrar que eu não vejo o vermelho, cor do Sport Club Internacional, minha maior paixão. Diz ela que, à esquerda, o sofá é vermelho e, à direita, é outra coisa que esqueci. Talvez não esteja mentindo; afinal, aprendi a distinguir os gremistas por seu comportamento. Eles nem sempre estão fantasiados com seus pijamas.
Acima, foto de meu filho com sua ex-namorada Carol. Bernardo e Carol, aos 16 anos (isso em 2007), são certamente virgens – nem imagino outra hipótese! Acontece que dizem que o verde dos daltônicos (lado direito) é uma coisa desmaiada e seca, fato que nos torna mais concentrados, desligados do mundo exterior, das coisas materiais, mais reflexivos e inteligentes. Além, claro, de termos aquilo que vocês, pessoas espertas, já sabem.
Voltamos ao infeliz tema do vermelho. Agora, em nova e elegante referência subliminar ao casalzinho anteriormente citado, vemos uma maçã ainda intacta, claro. Ao lado direito está a maçã normal… Não brincadeirinha, a do lado direito é a nossa, a do esquerdo é a de vocês.
Eu adoro quindim. A simples visão de um, mesmo num bar de beira de estrada, mesmo que este seja imundo e pouco freqüentado, com milhares de quindins esperando uma meia dúzia de clientes diários, mesmo que haja mofo no doce vizinho, eu como com enorme prazer. Simplesmente amo e você não vai dizer que o quindim que vejo (foto à direita) não é bem amarelo.
Em pé, da esquerda para a direita: Filipe (sobrinho), Iracema (irmã) e Bárbara (filha). Agachados: George Clonney e Bernardo (filho).
Esta foto lamentável de colorados foi tirada por uma gremista. Vejam como ficamos feios e fora de foco. E iríamos mandá-la para um amigo português que encontrou a certidão de nascimento de meu avô em Lisboa, o que nos permitirá a dupla cidadania. Pois mesmo nesta foto de agradecimento por parte dos beneficiários da gentileza de um bom amigo, manifestou-se o ruindade gremista. Ela tremeu, desconfigurou a câmera e deixou-nos horrorosos, com caras de néscios sifilíticos. Resultado: ainda não mandei a foto, nem os mimos para o amigo. Não conte com gremistas para nada.
Vemos perfeitamente o azul. É importante reconhecer claramente…
… o inimigo.
Abaixo, o teste de Ishihara para identificar homens de genit… vocês sabem.
Acho
Obs: o software que transforma as fotos foi tirado daqui. E o teste do japa daqui.
Na Rússia, o Natal é comemorado no dia 7 de janeiro e o Ano Novo na noite de 13 para 14 de janeiro de cada ano. O motivo dos 13 dias de diferença é a divergência entre os calendários gregoriano e juliano. Eles usam o juliano. Hoje, na Rússia, tanto a data ocidental quanto a adotada pelo país são consideradas, o que aumenta o número das festas. Para fugir do comércio, sugeri à Elena que adotássemos o calendário juliano para trocarmos nossos presentes de Natal. Deu certo. Nada de correria ou atrapalhações. O que não esperava é que minha bielorrussa preparasse ontem à noite uma ceia saudando o novo ano. Foi uma coisa bem íntima, simples e secreta. Ficamos discretamente bêbados. Não havia foguetes, nada. E hoje, “primeiro do ano”, não nos quedamos esquecidos, aquecendo nossas bochechas no travesseiro. Eu saí para trabalhar; ela foi revalidar seu passaporte. Mas foi a melhor virada, garanto.
Sobre a frase acima, espero que tenha copiado corretamente a saudação usada pelo russos: “Feliz Velho Ano Novo!”.
Observação: Rodrigo Cardia explica com clareza exemplar no Facebook: “O calendário juliano é usado pelos cristãos ortodoxos para suas celebrações. Tem uma defasagem de 13 dias em relação ao nosso, o que explica a confusão com as datas da Revolução Russa (a Revolução de Outubro, por exemplo, começou em 7 de novembro, só que pelo calendário juliano era 25 de outubro)”.
Hoje faz 20 anos que meu pai morreu. Estou afastado das fotos de família, tudo a que tenho acesso está num disco externo que tenho aqui comigo e que possui o conteúdo do HD de minha ex-casa. Mas lá tenho uma mala e uma frasqueira — sim, isso mesmo — com muitas fotos não digitalizadas, em papel, e hoje me deu vontade de fuçar naquilo. Mas é só simples desejo, passa. Há pouco, conversando com a Elena na cozinha, notei que leio livros como ele o fazia com seus jornais, marcando as linhas com um caneta. Como alguém consegue ler sem uma caneta, hein? Os jornais do Dr. Milton… Aprendi a ler no colo dele, pela manhã, enquanto tomávamos café com o Correio do Povo. Claro que a primeira palavra que li foi a do nome do jornal do Dr. Breno Caldas. Mas sua maior herança, aquela que grudou em mim, foi mesmo a música. Ele passava as noites ouvindo seus discos em uma louca sequência. Sempre misturava erudito e popular, Pixinguinha e Beethoven, Chopin e Chico Buarque, chorinho e tango, mazurca e polca, em sucessões que nunca me perturbaram, pois nasci com elas.
Meu filho Bernardo, eu e meu pai em meados de 93. Ele se chamava Milton Cardoso Ribeiro; eu, como alguns sabem, sou Milton Luiz Cunha Ribeiro.
Ele reclamava que eu o fizera voltar ao futebol. Ele me fez colorado, mas logo eu passei a amar o futebol muito mais do que ele, passei a amá-lo como ele amava o turfe. E nós, eu e o Sylvio, marido de minha irmã — fizemos com que ele voltasse aos estádios de forma tão cabal que ele assistiu a final do Brasileiro de 1975 e eu não, pois estava estudando para o vestibular. Acho que eu não precisava me punir daquela forma — passei fácil no exame, glória juvenil — mas ele me contou que, quando Figueroa fez o gol que nos deu o título, ele se sentou com as mãos na cabeça na arquibancada do Beira-Rio, enquanto todos comemoravam, culpando-me por tê-lo tornado aquele fanático que quase morreria com cada chute de Nelinho — e defesa de Manga — nos minutos seguintes.
Talvez pela identificação, ambos homens e pais, penso muito no Dr. Milton. Acho que ele gostava mais de minha irmã do que de mim, assim como minha irmã escolhia minha mãe e esta a mim, que preferia meu pai. Nunca tinha pensado nisso! Será que era mesmo assim? Vamos organizar: Dr. Milton que amava Iracema que amava Maria Luiza que amava Milton (eu) que amava o Dr. Milton? Na verdade, acho que nós todos nos adorávamos, mas penso que as afinidades eletivas eram as que citei. Ou não? Tenho que consultar minha irmã a respeito.
E, bem, o dia 11 de dezembro de 1993 foi o mais triste que vivi até hoje. No dia 10, à noite, tínhamos nos encontrado no Zaffari da Ipiranga. Ele comentou uns discos que comprara, dentre eles uma gravação da Nona Sinfonia de Schubert, a Grande, sob a regência do Abbado. Estava animado, feliz. Na manhã seguinte, às 6 horas de um sábado, minha mãe me ligou dizendo que ele estava caído no banheiro. Um ataque cardíaco fulminante, um velório num fim-de-semana, lotadíssimo. Fiquei inconsolável, mas nada ficou de mais terrível do que o último beijo que lhe dei. Aquilo me estragou para sempre. Ele estava frio, totalmente esquecido dele, de mim, de Schubert e do gol de Figueroa.
Acabo de escrever 10 mil caracteres sobre Heitor Villa-Lobos. Por minha biblioteca estar longe, praticamente só utilizei a memória, além da ajuda no site do Museu Villa-Lobos. Sob a pressão de ter de entregar a matéria, acabei lembrando de coisas que nem sabia mais… Tive que conferir tudo e acho que não menti muito. A coisa deve ser publicada amanhã no Sul21.
Mas não estou aqui para me gabar. Todos têm memória. Só que é tanta coisa armazenada que a gente mal consegue fazer aflorar e deixar disponível. Eu, por exemplo, sou lentíssimo. Precisei de uma noite de sono e de preocupação. Porém, hoje pela manhã, cheguei a recordar a voz de Villa-Lobos, presente em um de meus CDs. Ainda estou surpreso e lembro agora de uma cena aterradora.
Em 1993, no velório de meu pai, fiz-lhe um carinho e ele estava frio como nunca estivera. Notei que toda a memória que ele tinha de mim se esvaíra e este pensamento acabou comigo. Muito do que ele sabia de mim se fora, muito do que eu ainda podia saber se perdera. Isto me deixa triste e choramingas até hoje. Ele morreu cedo demais.
(Fazia tempo que eu não publicava nada na categoria “Em torno do meu umbigo”…)
Detesto a palavra classe, até porque uma dos piores chagas de nossa sociedade é o preconceito de classe, mas vá lá. Aqui cabe.
Eu e Elena fomos ao cinema no último sábado à tarde para ver o excelente Pedalando com Molière. Compramos os lugares E08 e E09. Na hora de sentar, a Elena pensou que nosso lugar estivesse ocupado. Porém, estava errada e a senhora de cabelo brancos que ocupava a cadeira, sorriu e mostrou seu ingresso, dizendo:
— O meu é o E10.
Ao ouvir aquela voz, fui remetido a não sei quantos anos atrás, talvez 40. Era a voz de Jacqueline ou Jaqueline Monteiro, uma das maiores amigas de minha mãe. Olhei para a ela, era uma senhora muito bonita, como a tia Jac sempre fora. Analisando o rosto, só podia ser ela. Sentamos ao lado e eu disse para a Elena, que me incentivou a fazer minha apresentação. Fiquei tímido e confuso por dois minutos — não queria dar para ela a notícia da morte de minha mãe no ano passado –, mas depois tomei coragem e perguntei se o nome dela não era Jacqueline. Ela me olhou com um belo sorriso de surpresa.
— Ah, sim, não tinha te visto… Não. Meu nome é Jacquely, com ípsilon no final, e tu deves ser o filho da Maria Luiza, não?
— Sim. Sou o Milton.
— E eu sou a tia Jac, que era como tu e tua irmã Iracema me chamavam.
Introduzi a Elena na conversação e o encantamento que a tia Jac ficou ao saber que ela era violinista talvez só tenha sido superado pelo meu ao ver que pusera em funcionamento duas pessoas da mais alta elegância e educação. E cultura. Não sei como, chegaram logo ao último filme do Woody Allen, sobre o qual a tia Jac parecia saber tudo (e de uma forma bastante crítica), e depois aos Quintetos de Schubert. Só me restava observar — além de dizer que o Quinteto de que elas estavam falando era aquele com dois violoncelos –, porque, se sou um silvícola perto da Elena, com aquelas duas juntas passo a visigodo. Não saberia me comportar. Senti que o momento de ela se referir a minha mãe estava chegando… Ela perguntou:
— Talvez a Maria Luiza já tenha infelizmente falecido…? — e, ao ver que eu confirmava com a cabeça, continuou.
— Vi-a há uns dez anos e ela estava confusa. Acho que não me reconheceu, que estava apenas sendo gentil. Telefonei algumas vezes e as notícias não eram boas. Deve ter sido doloroso para vocês.
Claro que ela sabia da morte. O vínculo com minha mãe estava estampado no português perfeito, com todas as conjugações certinhas, o mesmo de minha mãe. Mudou de assunto, dizendo que eu era parecido com os meus dois pais, uma mistura deles. É óbvio que me orgulhei de que a tia Jac — que demonstrara em cinco minutos elegância ímpar, vida cultural ativa e excelente memória — fora uma pessoa que convivera com minha mãe, cada vez mais irreconhecível em seus últimos anos de vida.
O filme — que se revelou extraordinário — começou. A Elena se aconchegou a mim e me disse no ouvido:
— Que senhora agradável! Ela é o máximo! Viu como eu estava certa?
Claro que estava. No final do filme, comentamos a três sobre o brilhantismo da história sobre o ator aposentado que é convidado a voltar aos palcos e entra em confronto com quem tenta contratá-lo. A tia Jac desceu as escadas segurando-se no corrimão, mas depois acelerou, caminhando na mesma velocidade que nós. Permanecemos sob o seu efeito.
(Voltamos para a casa a pé. Eu pensava na influência que as pessoas têm umas sobre as outras e no que dissera o queridíssimo Arthur, filho de dez anos do meu amigo Augusto Maurer:
— Com a classe da Elena, o Milton ficou muito mais educado).
Como não tenho fotos da Tia Jac, eu e Arthur Bertuol Maurer | Foto: Augusto Maurer
Não lembro de que ano é a foto, mas acho que eu estava na faixa dos 30 e ela na dos 60, pois tínhamos exatos 30 anos de diferença.
O 31 de outubro já foi, para mim, apenas a data de nascimento de Carlos Drummond de Andrade. Apenas? Depois, passou também a ser a data da morte de Federico Fellini. Pois é. Porém, no ano passado, a data ganhou novo significado; afinal, em 31 de outubro de 2012, às 6h20, faleceu minha mãe. É estranho como lembro absolutamente de todos os que lá foram, dos sentimentos externados e de algumas piadas, as quais ficaram muito mais engraçadas contra um ambiente de luto. Lembro com carinho do encontro da Inah — velha empregada de minha mãe — com minha filha Bárbara. Vi como as lágrimas brotaram imediatamente dos olhos da Bárbara, saudosa das amadas sopas que comeu por toda sua infância. Lembro de comportamentos fora do tom daqueles que não percorreram todo o período do Alzheimer de D. Maria Luiza. Nós estávamos tristes e aliviados. O sofrimento da doença fora imenso e ninguém estava muito desesperado com aquele final que livrava minha mãe de enorme desconforto, apesar de todos os cuidados. Nem sua alimentação era autônoma e as dificuldades respiratórias eram severas. Lembro do dia. Do incrível preço do caixão. Das perguntas que sobre se minha mãe realmente desejara a cremação enquanto estava lúcida. Da escolha da caixinha onde seriam colocadas suas cinzas. De ficar em casa sem ter nada o que fazer enquanto não iniciava o velório. Da música de Chopin que ela amava e que acompanhou o caixão. Da conversa com o padre, ao qual explicamos que ela apenas discretamente religiosa. Das várias histórias contadas a respeito de minha mãe. De seus clientes que diziam que ela fora a melhor dentista que tiveram. Dos que perguntavam como fora toda a evolução da doença e ouviam minha voz (ou a da minha irmã) em piloto automático. Dos constrangidos que não sabiam cumprimentar com “Meus pêsames”, nem com “Lamento muito”, e que ficavam em silêncio ou diziam “Tudo bem?” (e ficavam ainda mais atrapalhados). Daquela noite. Dos dias posteriores. De buscar a caixa com as cinzas e de notar como era pesada e não me causava emoção.
Foto: Augusto Maurer
Porém, esquecida de tudo isso, hoje fui acordado por uma voz me dizendo: “Dois meses”. E só pude sorrir ante o novo e delicado significado da data. E o espumante já está aguardando a noite.
Não adianta, eu sempre odiei meus professores. Admiro o sujeito que abraça esta profissão tão difícil e mal paga, mas… Hoje, muita gente lembrou saudosamente de seus melhores mestres. Alguns citaram seis, sete, dez, vinte nomes. Eu não tenho quase nenhum para lembrar, detestei a maioria deles, sempre me pareceram um bando neurótico de pequenas autoridades. Gostava mais daqueles que exerciam a profissão como cômicos, mas eles sempre foram muito impessoais para serem amados.
Tenho apenas duas admirações, uma incondicional, outra com muitas e justificadas restrições. A admiração vai para a Sarinha, minha professora de português no primeiro ano do segundo grau no Colégio Júlio de Castilhos. Ela me inoculou a literatura. Eu não lia durante a infância, só jogava bola. A Sarinha fez tudo com grande economia de meios, chegou ao ponto muito rapidamente. Ela viu como eu — péssimo aluno de boas notas — detestava sentir o poder que ela tinha sobre mim e me disse: “Leia dois livros por mês, de minha escolha”. A cada quinze dias, eu vou te fazer um questionário verbal e tu não precisas assistir as aulas. Te dou a nota pelas respostas que tu me deres”. E indicou o primeiro livro, O Continente, de Erico Verissimo. Eu enlouqueci e li o que ela pedira e mais a continuação, O Retrato. Ela me perguntou tudo sobre O Continente e saí com nota dez. Pedi para que o próximo questionário fosse sobre O Arquipélago, continuação de O Retrato. Nova nota dez. Assistir aulas sempre foi um tormento para mim e a Sarinha me abriu as portas do paraíso.
E assim eu passei o ano inteiro lendo livros para a esperta Sarinha, uma professora de olhos azuis e 1,50m de altura. Passei a idolatrá-la. Ela tinha uma irmã que era professora de inglês de nossa turma, uma jararaca. Voltando à Sarinha, o terceiro livro foi Laranja Mecânica, depois veio Manuel Bandeira, Dostoiévski e Guimarães Rosa, meu maior espanto. Era 1974, um ano feliz. Foi o ano em que conheci a Maria Cristina, a menina com quem depois dividi minha primeira experiência sexual. Dizíamos rindo um para o outro: “Vamos praticar bastante e aprender juntos”.
De meu outro mestre-exemplo não declino o nome. Estava na universidade e o cara apoiava o Golpe de 64. Era muito inteligente, muito capaz, tinha farta biografia de realizações, mas era minuciosamente maquiavélico. Por isso era todo aquele sucesso acadêmico. Construíra prédios na UFRGS, fundara departamentos. Devia ter esmagado dezenas de inimigos políticos. Prometia coisas e descumpria: “O que não foi escrito não foi dito”, respondia para nós, os idiotas. Aprendi com ele que se deve esperar pelo pior das pessoas para não haver decepções. Foi algo muito instrutivo. Mesmo assim, sou bondoso e otimista com as pessoas como um cãozinho labrador. Apenas não me surpreendo quando vejo certas mudanças de comportamento. Este professor foi fundamental no meu conhecimento da natureza humana. Seus ensinamentos foram preciosos e não me abandonaram até hoje, 37 anos depois.
Abaixo, minha mãe, Maria Luiza, aos 21 anos. A foto é de 7 de março de 1949.
No verso da foto, meu pai escreveu de forma bem portuguesa, cheia de diminutivos carinhosos: “Está ou não está um verdadeiro amorzinho a minha Luizinha neste fotografia?”.