A Evolução da Biblioteca

Situação da biblioteca do Solar da Gaurama, às 18h19 de sexta-feira.

Outro ângulo.

O ângulo do faquir.

Aqui, o importante são as rodinhas que ali estão para que os 1200 vinis possam passear.

Foto de merda. Nada deu certo.

Alguns livros bem detonados.

A situação no domingo, às 9h29 da manhã.

Quatro minutos depois.

E agora, segunda-feira? Vejam o resultado do trabalho deste que vos escreve.

Eram 12h10.

E a gente até já consegue redescobrir uns livros! Agora, faltam 3 paredes menores.

Um problema de peso: a invasão da sala pela biblioteca

Quem vem aqui em casa está acostumado com a imagem abaixo, que era a da biblioteca ontem pela manhã, domingo (18/11). Nossos livros nunca puderam ser organizados por que faltou área para eles. Então eles estavam em duas filas, inorganizáveis.

Vejam a confusão. Drácula, Eco, Machado, Backes, Carver, Bolaño…

Cervantes, Brecht, Pynchon, Hoffmann, Schnitzler….

Então, ontem à tarde, começou a revolução. Praticamente sozinho, tirei todos os livros. Hoje de manhã a coisa estava assim.

E depois ficou assim.

Que tristeza e que dor nas costas!

Não apenas os 3 ou 4 mil livros foram desalojados, como também meus 1200 vinis.

A sala de tantos Festins Diabólicos não poderia mais ser chamada de sala.

Vinis pesam pra caralho! O caminho para a cozinha está dificultado.

A frente do sofá.

A mesa de tantos prazeres gastronômicos e sociais.

Não dá também para ir à janela a fim de ver quem está chegando.

A mesa, novamente.

É o caos completo.

Em meio a isso,

o imbecil escreve posts em seu blog.

E come muito mais do que o prato acima. Muito mais mesmo.

P.S. — Estou em férias por 15 dias. Missão: Biblioteca. Ah, sobrarão muitos livros para bibliotecas. Só hoje, vi que tenho 4 Veias Abertas…

A morte de minha mãe e a eutanásia ausente

Minha mãe em 2007.

Este blog serve para várias coisas. Há as resenhas, as mulheres, o futebol, o cinema, as provocações e piadas, alguns comentários objetivos, mas quem tem um blog sempre acaba fazendo textos pessoais ou deixando escapar opiniões que jamais externaria em um meio mais formal, como, por exemplo, um jornal. Como minha mãe morreu na quarta-feira passada, 31/10, é natural que faça comentários sobre isso em meu espaço. Quanto mais não seja pela simples razão de que,  obviamente, é um dos assuntos mais presentes em meus pensamentos nestes dias.

A morte de minha mãe veio após longa doença e acredito que seu sofrimento deveria ter sido mais curto, ou seja, deveria ter sido dada à família a opção da eutanásia. Ela faleceu aos 85 anos e sofria, desde 2004, de uma doença muito parecida e irmã do Mal de Alzheimer: a Demência por Corpos de Lewy. Vários amigos que tiveram casos de Alzheimer ou de Lewy me alertavam para eu me preparar. Em fevereiro de 2007 — após uma queda em casa — ela passou a não mais caminhar. Também deixou de construir uma frase de mais de quatro palavras, raramente com sentido. Certa vez, chamei-a aqui de “minha bobinha feliz”. Ela vivia uma vida de total dependência, mas parecia satisfeita. Sua grande alegria era comer e nisto não se diferenciava muito de mim… Só que a doença seguia seu devastador curso e ela passou a simplesmente não interagir com as pessoas, até comer comia de olhos fechados. E, a partir de maio de 2011 — um ano e meio atrás — foi-lhe tirada sua única alegria.

Como ela não se dava conta mais de mastigar e engolir, parte do alimento ficava por muito tempo em sua boca e acabava indo para o pulmão. Este passou a funcionar muito mal. A asma eventual que ela sempre teve passou a ser regra. Eram várias nebulizações por dia, mas isso é apenas uma parte do problema. Foi-lhe colocada uma sonda. A comida passou a vir de uma garrafa plástica que ficava no alto de sua cadeira ou da cama e a ela ganhou um tubo de oxigênio para poder respirar.

Ou seja, minha mãe não interagia — foram meses e meses de visitas em que ela ficava de olhos fechados e, quando os abria, não acompanhava as pessoas, nem quando dirigíamos a palavra a ela — , não sentia o gosto de sua derradeira alegria — a comida — e respirava com auxílio de aparelhos. Uma mulher que era um furacão, como escreveu minha mulher no post abaixo, perdera toda a dignidade. Como se não bastasse, volta e meia agitava-se muito e confusamente, pois, apesar do oxigênio auxiliar, tinha fortes  crises asmáticas. Seu estado variava entre a completa apatia e zero de interação — suas maiores reações eram à temperatura da água durante o banho — e o sofrimento visível. Tinha a impressão de que ela gostava de ser beijada nas bochechas e na testa, mas é claro que nisto havia muito de desejo meu.

Digam-me, por favor, para que tudo isso? Por que minha mãe teve que sofrer tanto? Sei que não é permitida a eutanásia em nosso país, mas passei os últimos 18 meses querendo que ela fosse sedada e que fosse permitida à natureza agir. Era de opinião que deveriam cessar todas as ações que tivessem como objetivo prolongar sua vida. Todos trabalhavam em torno dela como se ela fosse se recuperar, mas só havia sofrimento naquela pessoa que mal parecia ser a Maria Luiza que conhecíamos. Durante o período, ela foi extremamente bem tratada. O pessoal da Villa Argento fez um trabalho magnífico. Ela passava todo o tempo deitada ou sentada, amarrada para não cair. Apesar disso, recebia tais cuidados que nunca teve escaras ou quaisquer sinais de mau tratamento. Minha irmã e eu sempre concordamos em lhe dar o mesmo que ela sempre nos deu, ou seja, tudo o que fosse possível, mas nunca imaginei aquele cenário. Este era o do sofrimento diário e confuso. Ela devia não entender de onde via a dor, o desconforto e a impossibilidade de respirar.

Para que meus sete leitores tenham uma ideia: na última visita que fiz a ela, acompanhado de minha filha e de minha mulher, ambas saíram de lá chorando. E, na minha opinião, ela estava muito bem naquele dia, respirava sem muito ruído e, bem, era um corpo tranquilo. Só. Como estava acostumado a coisas muito piores — grande agitação e forte asma — estava saindo de lá quase feliz, o que é um conformismo absurdo. Através de minhas acompanhantes, vi o estado de minha mãe.

Mas lhes digo uma coisa: toda vez que ia lá — não ia todos os dias — , mesmo que parecesse normal, acabava o dia em frangalhos. Alguma coisa do que via lá acabava penetrando em mim de tal forma que ia dormir mais cedo. Com certa indignação misturada à ironia (sou assim e não vou mudar), pensava: “hoje fui ver minha plantinha e fiquei desse jeito. Que merda”.

Passei meses desejando que alguém pudesse realizar NÃO um ato que provocasse a morte, mas nenhum que a impedisse. Porém, é claro, a Dra. Maria Luiza foi até o último dia segundo as regras da “ética” vigente. Tal fato tornou seu fim muito mais longo e sofrido para todos, principalmente para ela.

Maria Luiza Cunha Ribeiro

Cruz Alta 05/07/1927 – Porto Alegre 31/10/2012

Faleceu hoje, depois de prolongada e dolorosa enfermidade,
a mãe do Milton, minha sogra, Maria Luiza Cunha Ribeiro.
Era uma mulher à frente de seu tempo,
formou-se dentista, quando a profissão era dominada pelo outro sexo,
trabalhou, quando lugar de mulher era em casa,
e certamente chefiava a família, quando o normal era a esposa se submeter.
Eu a conheci quando tinha 75 anos e já estava aposentada,
não era mais o furacão que todos relatavam.
Era generosa, carinhosa e, como todos diziam,
um exemplo de mulher, mãe e profissional.

O velório será na sala 04 do Crematório Metropolitano, na Av. Professor Oscar Pereira, 584, acerimônia de cremação será às 19h.

POEMA DA DESPEDIDA
[Mia Couto]

Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo.

Bárbara, 18 anos, hoje

Pois então minha filha está completando 18 anos hoje. De forma muito carinhosa, guardo comigo a parte de sua biografia que ela não conhece e que se torna cada vez menor em proporção à parte que eu não conheço. Interessante, nunca tinha pensado nisso. Mas, enfim, a gente faz os filhos para o mundo.

Organizamos uma festa surpresa no último sábado. Tudo foi antecipado. Conseguimos evitar dar-lhe o presente antes da data, apesar de que ele só poderá ser fruído muito depois, no final de janeiro.

Nada sei dessas coisas de datas, mas suponho que o 25 de setembro seja um dia de gente muito apaixonada, tímida, realista e… cabeça-dura, posso afirmar com certeza. Basta dizer que ela tem como companheiros de natalício as figuras de Dmitri Shostakovitch e William Faulkner. Só acho que ela não é tão propensa à melancolia como os citados, apesar de, como eles, amar uma boa desconstrução.

Feliz aniversário, Babi. É o que deseja teu pai, hoje todo atrapalhado pelos compromissos.

Festa pra mim?

Um aniversário e um baita investimento em estresse

O Natal de 2001 estava próximo e a situação era muito complicada. Eu me separara havia seis meses e estava me dando conta do tamanho do erro que cometera ao me despojar de tudo. Anos depois, perguntei a um psiquiatra amigo sobre o motivo que levava os pais que não ficam com os filhos a se desfazerem da maior parte de sua renda e de seu patrimônio. Sua resposta foi tão exata e óbvia que me senti humilhado por nunca ter pensado nela: “Ora, uma separação, ainda mais com filhos, gera um estresse descomunal e muitos pais pensam que deixar tudo para trás os livrará dele. O que eles conseguirão é apenas uma sensação de adiamento”. Foi o que fiz comigo. Culpa e mancada minha, claro. Minha sensação após o acordo era a de que poderia enfim dormir melhor. Ficou lá a herança de meu pai na forma da quitação de um apartamento com a finalidade de comprarmos uma casa maior, ficou lá a casa maior, ficaram um monte de compras que foram feitas para habitarmos a tal casa, ficaram lá dois filhos. O que não ficaram lá foram as horas e horas que passei como pãe para que minha ex pudesse fazer seus mestrado, doutorado, pós e sei lá mais o quê. Estas levei comigo e elas revertem em ganhos de afeto até hoje. Ainda fico infeliz quando chove nos finais de semana. É que eu costumava sumir durante os sábados e domingos com as crianças para que minha ex pudesse estudar e escrever suas teses sem ser perturbada. Às vezes chovia e, quando não tinha mais cinema para ver ou lugares para ir, a solução de desespero era o aeroporto. O Bernardo gostava de ver os aviões e também gostava das lojas que vendiam quinquilharias infantis — principalmente carrinhos — para pais que voltariam para seus filhos em outras cidades. Por isso, fico até hoje — mesmo que more com a Bárbara e tenha excelente relação com o Bernardo — um pouco triste quando chove nos finais de semana. Sem os parques, onde irei com os guris?

Mas voltemos a minha história. Estávamos perto do Natal e eu tinha nas mãos a porcaria que tinha feito. Pagava grande parte dos gastos da Bárbara e do Bernardo e via o plano de passar no máximo três meses na casa de minha mãe indo por água abaixo. Parecia que voltaria a ser filho para sempre. Minhas reservas estavam acabando e eu pagava mais do que recebia. Pior, a fase depressiva da separação fizera-me pensar que eu nunca mais me interessaria por alguém, mas não era nada disso. Com quarenta anos, qualquer homem é um sucesso com as mulheres de trinta e tantos. E elas são maravilhosas. E eu via que estava sem casa, com um salário insuficiente para os gastos do dia-a-dia e sem ter como reorganizar minha vida num período vislumbrável. Aí, comparava minha situação com a do outro lado e me impressionava como tudo ia bem por lá. Depois, através do imposto de renda de minha ex, tive a informação clara do motivos que levavam a tanto conforto. Quando tentei um naturalíssimo novo acordo, a resposta foi negativa. O bom humor, a civilidade e a solidariedade que ela manteve no período pré-transferência da casa para o seu nome evaporara com a assinatura do contrato.

Eu me sentia como se estivesse num bote que estivesse fazendo água no meio do oceano. Tinha que ficar bem atento porque uma marolinha qualquer poderia fazer tudo afundar. Então, fui comprar os presentes de Natal. Apertei aqui e ali para tudo sair direitinho e funcionou. Não lembro do que dei para os guris, mas deve ter sido um sucesso, pois tenho uma memória implacável para tudo o que dá errado, esquecendo minuciosamente do resto. Porém, dez dias depois do Natal, havia o aniversário de onze anos do Bernardo e não via outra saída senão deixar a data passar em brancas nuvens. Sofria com aquilo, sofro novamente agora ao lembrar. Há toda uma educação que nos obriga a sermos provedores decentes. Tinha filhos de onze e oito anos e pensava em evitar confissões que fizessem com que ele pensasse: “se ele é este fracasso, estou fadado a ser outro?”.

Mas fui falar com ele. É óbvio que a palavra derrota me rondava. Sem entrar em grandes detalhes, expliquei que o dinheiro estava difícil e que seu presente atrasaria. Quando disse isso, nós estávamos saindo de uma quadra de futebol de salão onde tínhamos jogado e ele me respondeu que eu não precisava me preocupar, mas que gostaria de receber seu presente na data certa. Como assim? É que ele queria só algumas bolinhas de tênis para brincar com a Batalha, sua labradora. Quantas? Umas três, mas que eu poderia dar uma de cada vez para que não ficasse pesado. Ele também queria evitar que todas ficassem cheias de baba ao mesmo tempo. Ele recebeu a primeira bola em 4 de janeiro, na data correta.

Elas serviram a ele como poucos brinquedos. Eles moravam — ainda moram — numa rua tranquila e muitas vezes, quando eu chegava para buscá-lo, o Bernardo estava com as tais bolas, matando a cachorra no cansaço. Sempre me ficou uma dúvida: se aquilo foi um oportunismo que veio a calhar porque ninguém lhe daria algo tão barato ou se foi pura bondade com o pai subitamente empobrecido. Acho que foram ambas as coisas, só pode.

Sonho com abóboras

Era noite fechada quando fui ao cemitério visitar o túmulo do meu pai. Estava desconfiado de que ele tivesse sido enterrado vivo. Com aquela facilidade só encontrada nos sonhos, tirei o mármore, puxei o caixão e levei-o para o carro. Lá chegando, baixei os bancos de trás, pus o caixão no porta-malas e fui embora — afinal de contas, queria conferir o conteúdo sozinho, com toda a calma.

Saí de Porto Alegre e fui até Guaíba, entrei à direita na estrada para Pantano Grande e parei depois de alguns quilômetros. Desci um barranco bastante íngreme ao lado da estrada e ali, escondido, tirei o caixão do porta-malas, coloquei-o na frente do carro, liguei as lanternas do carro e abri o ataúde. Estava tudo direitinho. Meu pai estava conservado, frio e morto, tal como o vira pela última vez. Quando estava fechando o caixão, vi milhares de abóboras de todas as cores e formatos pelo chão inclinado. Era lindo de ver o contraste das cores e das sombras projetadas. Decidi levar algumas, digamos, centenas.

(clique para ampliar)

Comecei a encher o porta-malas de abóboras. Quando lotou, reabri o ataúde para utilizar  seus vãos. Meu pai ficou adornado por abóboras. Ela ficaram entre suas pernas, ao lado de seu corpo, de sua cabeça. Passei tanto tempo trabalhando naquilo que amanheceu. Tomado de susto e com a lógica própria dos sonhos, resolvi livrar-me de tudo, pois não haveria como recolocar o féretro em seu lugar sob a luz do dia. Não sei como consegui enfiar o caixão no porta-malas cheio, mas deu certo e fui adiante. Dobrei à direita em Pantano e cheguei a Rio Pardo. A cidade é banhada pelo Rio Jacuí, onde há uns barrancos que proporcionam belas paisagens aos habitantes da cidade, além de servirem para várias outras coisas. Fui até o rio, estacionei embaixo de uma ponte e tchum com o caixão. Coisa inaceitável: ele ficou boiando. Entrei no rio e voltei a abri-lo. Joguei água dentro a fim de que afundasse. Deu certo.

Quando fui embora havia centenas de abóboras flutuantes descendo o rio. Era bonito de ver.

Acordei com absoluta certeza de que meu pai não estava mais no cemitério e de que tinha perdido centenas de lindas abóboras.

(clique para ampliar)

Obs. 1: Dia desses, alguém falou neste sonho para mim. Não lembro quem foi, só lembro que me disseram: li há anos no teu blog. Só que hoje, certamente em função da lembrança do amigo, voltei a abrir o caixão de meu pai enquanto dormia. Desta vez dei apenas uma olhada.
Obs. 2: Meu pai faleceu em 11 de dezembro de 1993.

Amor

Escrevi este texto para o Impedimento quando o Inter completou 100 anos. Hoje, quando o Inter faz 103, ele foi citado. Fiquei feliz. Muito.

.oOo.

Quando eu era criança, costumava fechar a porta do meu quarto para narrar futebol em voz alta com maior liberdade. Minha irmã me enchia o saco, dizendo para eu parar de inventar aquilo. Narrava jogos espetaculares onde o Inter vingava-se de todas as humilhações que o Grêmio nos submetia naqueles anos 60. Era uma vida interior movimentada, que fazia minha garganta doer pelo esforço de gritar tantos gols. Também sonhava com jogos, escrevia escalações, contratava jogadores inatingíveis – muitas vezes era um deles – e fazia cálculos, anotando num caderno vermelho todos os jogos dos campeonatos que o Inter participava. Era uma coisa meio demente, ainda mais num tempo em que o Campeonato Gaúcho valia alguma coisa e em que o Grêmio havia vencido 12 dos últimos 13. Era uma tragédia ter 11 anos naquele 1968 que terminaria com o AI-5. Mas tinha certeza que os anos me fariam melhorar. Minha mãe também.

É, mas não mudou muito. É um grave defeito de fabricação. Vocês não me pegarão mais aos berros no meu quarto – ainda mais se estiver acompanhado -, mas minha vida interior, quando não estou submetido a estresse, inclui aquele momento em que passo a pensar na próximo jogo, na próxima escalação e, ainda, nas próximas jogadas. Entro no elevador e de repente vejo D`Alessandro pisando na bola, retardando o ataque… Aquilo me irrita e já saio do elevador preocupado. No dia seguinte, acordo e de cara levantam uma bola em nossa área. Sandro salva e partimos para um contra-ataque com Taison e Nilmar: gol certo enquanto escovo os dentes.

Acho que há pessoas que pensam em dinheiro e mulheres o tempo inteiro – eu até perco muito tempo também nisso -, mas a vida interior do torcedor de futebol é um pouco diferente. Claro que todo este interesse está associado a um clube que amamos e que, por definição, é mais importante do que todos os outros. E quando este clube tem um inimigo, este será o mais odioso e horrendo – e sifilítico e purulento e idiota e filha da puta e a nossa cara. Sim, acabo de descrever sucintamente o Grêmio.

E então este clube faz cem anos, contingência inevitável para quem, mesmo endividado, não morre, e a gente fica todo bobo, achando que o dia 4 de abril nos oferecerá vales onde correm o leite e o mel, com 11.000 virgens amorosas vertendo Bailey`s das tetas. Confesso que balancei quando meu sobrinho me convidou para ir ao jantar do centenário, mas recuei ao saber que custava R$ 200,00. Também não me entusiasmei pelos tais fogos – quase sempre fecho minhas noites de sextas-feiras em cinemas -, mas achei legal a coisa da caminhada até o Beira-rio no sábado, a tal Marcha do Centenário.

Fiquei indignado quando um pessoal aí, os quais são indiscutivelmente os maiores representantes das torcidas gaúchas (preciso indicar a ironia?), convidaram o prefeito gremista para a caminhada e ameaçaram até com a Yeda. Céus, que gente mais sem noção! Para que misturar a mais simples das comemorações – a procissão de colorados do incerto local onde o clube foi fundado até o Beira-Rio – com mais uma tentativa desesperada de manter a troca de favores com o poder? E eles seriam retaliados, vaiados, precisariam de seguranças. Nosso momento cívico ficaria uma merda.

Sim, eu disse cívico, pois colorado é o que sou. Se habito fisicamente a Rua Gaurama, tenho uma segunda vida com endereço aqui; se tenho um telefone, também tenho e-mail; se sou Suda de modo geral, sou especificamente brasileiro; se tenho o futebol em minha vida interior – assim como tenho a Gaurama, o blog, o número do telefone, o endereço de e-mail, a Suda e o Brasil – esta se foca repetida e especificamente para o Inter. O Inter e seus grandes times moram em mim, completam um século neste sábado e é fato dos mais dignos de celebração que eu possa imaginar, mesmo que tenha achado todos os outros centenários (principalmente aquele) manifestações ridículas e sentimentalóides, sem intersecção com nosso centenário. Não tinha pensado nisso, mas devo me comover na caminhada. Afinal, ninguém consegue ser crítico de si mesmo e o Inter, sei, sou eu.

O tamanho de minha mãe

Tenho ido ver frequentemente minha mãe na clínica onde ela se encontra. Como seu cérebro está inteiramente tomado pelo Alzheimer, ela fala em raríssimas ocasiões e acabo indo lá apenas para olhar para ela e dizer algumas palavras que lhe sirvam de alguma forma. A psicóloga da clínica disse que vozes familiares podem servir de consolo ou de lastro aos portadores da doença. Então, próximo a seu ouvido, digo coisas. Pergunto se está tudo bem, falo no passado e dou notícias de nosso time. Depois, passo alguns minutos perguntando para as enfermeiras como foi sua noite e mais nada. Estar em sua presença é estar 100% ali, tal é sua situação. Não há vida interior que me leve para fora. Sou filho, sou mamífero. Ela alimenta-se através de uma sonda e recebe oxigênio, ou seja, sua vida é destituída de sinapses e prazeres, está viva por estar, é doloroso mesmo.

Ela pouco reage a minhas iniciativas, apenas solta uns gemidos. Durante os minutos que fico na clínica, acabo falando muito, mas o contraponto de meu tagarelar são os pensamentos sobre o que foi minha vida com minha mãe. Há muita coisa positiva, uma montanha delas, mas é óbvio que um admirador de Kafka e Bergman vê também o lado negativo. Minha mãe era o esteio de nossa pequena família. Enquanto meu pai dilapidava o que ganhava em seu trabalho como dentista no turfe, minha mãe cuidava de tudo. O que um destruía, era reconstruído do outro lado. Ela também era dentista e ambos deviam ganhar bastante bem. Também tinham outra característica: brigavam pouco. A mãe dizia com ar conformado que o pai era um bom homem com um defeito sério. Como todo mundo, pareciam insatisfeitos; como poucos, pareciam viver bem.

Então, minha mãe não apenas me dava carinho, mas também era o banco da casa. Sempre que precisava de dinheiro, o ideal era falar com ela. Minhas demandas eram muito simples — sempre fui um sujeito financeiramente contido — e não lembro de algo que me fosse negado. Livros, cinema, um pouco de dinheiro para sair, tênis, alguma roupa, quase nenhuma viagem, sua carteira sempre estava aberta para coisas pouco dispendiosas. E minha educação foi toda na escola e universidade públicas. Também foi quem insistiu comigo para que eu lesse muito. Porém, não lembro de ver minha mãe com um livro aberto — e eu a conheço há 54 anos. Ela simplesmente não lia, mas sabia vender bem o que quisesse ver realizado. Como esta, havia uma série de incoerências que eu apenas passei a ver depois de anos.

A mãe imensa e inatingível de Persona (Clique para ampliar)

Domingo passado, quando vi Persona, observando aquele menino sob o imenso fundo da imagem da mãe, pensei no tamanho que ela tinha para mim durante minha infância e adolescência e no que era necessário fazer a fim de agradá-la. Pois havia uma conta a pagar. Por exemplo, quando estava no segundo ano do segundo grau, apaixonei-me pela literatura e decidi que ia fazer Letras. A repercussão de minha descoberta foi a pior possível. Em duas conversas curtas, ela me disse que era um absurdo, que eu tinha que fazer a faculdade em algo da área científica e que era impossível viver de “Humanas”. Estávamos em plena ditadura militar e os cursos universitários não científicos eram coisas a serem quase combatidas. Sua preocupação era financeira. Como eu detestava Biologia, acabei fazendo vestibular para Engenharia Elétrica — o mesmo curso que fez um primo irmão meu e que eu sabia que estava dentre as profissões aceitáveis. Na verdade, eu mal sabia do que se tratava. Passei facilmente — poderia ter entrado em qualquer curso — , e fiquei perdendo tempo na Engenharia. Lia os clássicos, na verdade. Nunca terminei o curso. Dois anos depois, fiz Comunicação Social, mas aquilo foi rapidamente contestado e eu larguei o curso na metade. Então, entrei na área de Informática, voltei a ser aprovado por ela, me formei, coisa e tal. A culpa é dela e minha. Ela por ser autoritária e eu por ser o babaca que desejava vê-la feliz.

Minha mãe podia ter As Melhores Intenções (outro roteiro de Bergman), mas era uma equivocada. E eu permitia que ela o fosse. Nem tudo eram rosas com a Dra. Maria Luiza e às vezes tenho ganas de começar a reclamar do uso que ela fez da avassaladora influência que tinha sobre mim. Estranhamente, não lembro de reclamações de meu pai. Ele era divertido, talvez indiferente às preocupações da mãe e eu sempre o preferi. Ou será que eu simplesmente limpei tudo de ruim pelo fato de ele ter morrido em 1993?

Será que eu reclamasse dela agora mudaria o tom de seus gemidos? Não creio. Afinal, quando eu lhe disse que o Grêmio ganhara o último Gre-Nal ela não fez cara nem de ódio nem de decepção.

Três horas a mais, duas a menos

Primeiro, uma viajou terça-feira para Roma. Agora, deixei os guris no aeroporto; vão para Havana trabalhar nas Brigadas Internacionais. Trabalhar… O trabalho é leve e depois ele vão ficar flanando como personagens de Flaubert (lembrança dos flâneur) pela capital e Matanzas.

A viagem de uma começou complicada. Antecipou sua passagem em um dia a fim de ver o Concerto (sim, com cê maiúsculo!) comemorativo aos 70 anos de Maurizio Pollini. Só que a Gol atrasou-se e ela perdeu a conexão da Alitalia em Guarulhos. De dentro do avião da Gol, viu o avião onde devia estar fechar suas portas. Passou um dia num hotel da periferia de São Paulo, pensando no grande pianista e no fato de ter comprado a peso de ouro o último ingresso disponível. Acaba de entrar no Facebook. Eram 10h50 e estava 1 grau em Roma. Boa temperatura para a rodada de exposições que pretende fazer: O’Keefe, Mondrian e McCurry. Que sofrimento. Ela vai numa reunião do PD, Partito Democratico, volta na terça, dia 24.

Meio atrapalhados e com excesso de coisas pessoais nas malas, em minha opinião, os guris foram para Cuba hoje pela manhã. Acordei às 5h para levá-los. A Bárbara (17) diz que não dormiu, o Bernardo (21) adormece fácil, mas foi ele quem me despertou para dizer que não achava o café. Vão doar um monte de coisas e espero que comprem bastante livros, pois em Cuba eles são quase dados. Também vão se surpreender pelo fato dos cubanos saberem muito sobre a história latino-americana do que 99% dos brasileiros. Quem vai ao país volta apaixonado pelos cubanos. Também vão a Isla de la Juventud, que dizem ser uma coisa de louco. Voltam dia 11 de fevereiro. Dilma chegará ao país no dia 31, se não me engano. É uma invasão.

Fico por aqui. Não sei se estou triste de ficar ou se estou cansado. Tenho trabalhado demais e com uns horários meio loucos. É da vida.

P.S. — Ah, a Lia, a vizinha, também viajou com seu filho para o Rio de Janeiro. Tô só com a Juno e a Vicentina. O título do post poderia ser Minha vida como caseiro.

A fuga da Vicentina

Na verdade, a gente não gosta da Vicentina. Ela tenta entrar pela janela do carro para dormir protegida lá dentro — raspa com as unhas a pintura do carro — ; ela tem um medo fóbico de quase tudo — interage pouco — ; ela não aprende nada — todos nós desconfiamos de uma sub-sub-alimentação na mais tenra infância. Porém, depois que ela passou a morar lá em casa, sua vida é de boa ração, banho com o sabonete recomendado, vacinas em dia, essas coisas. Nós agregamos a Vicentina a fim de dar uma companhia à Juno, nossa pastora genial que tudo sabe da vida. Foi uma adoção. A Vicentina, coitada, apanha da Juno. Pois ela é um paradoxo: é uma viralata bem feínha que traz no peito a aspiração de ser uma cachorra de madame. Então ela se chega aos donos balançando o rabo, olhando-nos com olhos pedintes de um somali de jornal. Suas orelhas enormes e rebeldes caem para qualquer lado, o que lhe dá um ar cômico que nunca me ocorreria relacionar com um faminto. E quer um colo, mas não para brincar, quer um colo para ficar ali, parada e protegida, recebendo carinho. E a Juno fica com ciúmes. Quando a Vicentina volta para o chão, leva uma mordida no pescoço que é para deixar claro quem manda no pedaço.

Pois ela, sempre que o carro entra na garagem, dá uma voltinha pela rua e entra de volta correndo, coisa que a Juno não se permite. Na última quarta-feira, deve ter ficado lá fora. Talvez tenha visto um cachorro divertido ou um grupo animado deles. Era noite, a gente não se deu conta do sumiço. Na manhã seguinte, a Juno chorava pelos cantos. Num primeiro momento, procuramos desesperadamente a cachorra; num segundo momento, já projetávamos uma substituta da mesma raça da Juno enquanto minha filha rejeitava a ideia, pois há uma defensora da Vi lá em casa. Então começou a chover e todos nós fomos morrendo aos poucos de pena, porque uma das coisas que a Vicentina mais detesta é água, ainda mais aquela incontrolável que cai de cima. Faz cocô e mija na garagem quando chove. É impossível ensiná-la a fazer suas necessidades na rua quando chove no pátio. Preocupados, preparamos cartazes para tirar a Vicentina daquela situação, mas antes que os colássemos, a bichinha apareceu.

Estava na frente de casa, encostada na grade, com medo da chuva, claro. Voltou meio machucada e com uma coleira de plástico típica de quem passou uma curta temporada com um mendigo. Não preciso dizer que abanava o rabo como um helicóptero e que estava mais apavorada do que nunca. Será que ela vai aprender que aquela voltinha na rua é perigosa?

Vicentina em versão decente, com as orelhas baixas
Juno e Vicentina
Vicentina com orelhas abertas. Não merece uma plástica?

Coisa de feriado

Estávamos almoçando quando alguma coisa cinematográfica nos levou a falar em Jack Nicholson (1937). Minha filha — uma apaixonada por Kubrick que recém re-re-re-reviu O Iluminado — perguntou qual seria o maior ator de todos os tempos do cinema. Respondi que o senso comum respondia que era Marlon Brando (1924-2004), mas que eu preferia Erland Josephson (1923) e Marcello Mastroianni (1924-1996). Minha mulher votou em Vittorio Gassman (1922-2000). De nosso trio, fico com Josephson e não abro. Ingmar Bergman, Andrei Tarkovsky, Theo Angelopoulos e outros não estão errados.

Padrinho de casamento, a foto oficial

Eu, Bárbara, Bianca, Claudia e Bernardo em bela cristalização do fugidio — também conhecida pelo vulgo como “foto” — tirada no casamento da terceira. Para sempre. Eu abro o parêntese, o qual é maravilhosamente fechado por meu filho. Já tinha bebido algum espumante, mas não creio que tal fato tenha alterado alguma coisa em nosso comportamento.

Volver a los 17

Hoje nasceram muitas pessoas e coisas sensacionais. Nasceram meus amados Dmitri Shostakovich, Glenn Gould e Jean-Philippe Rameau, além da Casa de Cultura Mario Quintana e até Catherine Zeta-Jones. E, em 1994, num domingo como hoje, às 19h35, nasceu minha filha. É uma data muito bem frequentada.

Como era
E a débil de hoje, numa festa da escola

Minha Mãe, Um Réquiem Alemão e a Crônica de um concerto não visto

Minha mãe está internada na CTI (UTI) do Hospital Moinhos de Vento. Está com insuficiência respiratória aos quase 84 anos. Entubada, com respirador artificial, o prognóstico do médico e a cara de minha irmã — que também é médica — não são das coisas mais animadoras. Para completar, o horário noturno de visitação é o pior possível: das 20 às 21 horas. Então, o resultado é que ontem saí do hospital às 20h40.

O concerto da OSPA que ocorria quase no mesmo horário não era nada trivial. Era um programa de só uma obra, mas esta é das coisas que mais amo neste mundo e das quais tenho umas dez gravações: o notável, perfeito Um Réquiem Alemão, de Johannes Brahms, aquele mesmo que é chamado pelos tolos de O Réquiem Ateu, como se falar pouco em deus o tornasse ateu. (Ateu sou eu, Brahms não era). Só que, como disse, eram 20h40, o concerto começava às 20h30 e eu estava longe do local onde ele já iniciara.

Comecei a dirigir para casa pensando que talvez eu não quisesse ir por superstição ou quisesse ir para quebrá-la. Afinal, este Réquiem existe por um só motivo: a morte da mãe do compositor em fevereiro de 1865. O Réquiem de Brahms, escrito entre 1865 e 1868, tem várias curiosidades: é composto de sete movimentos, que juntos resultam em algo entre 65 a 75 minutos, tornando-o a mais longa composição de Brahms. Há mais: Um Réquiem Alemão é música sacra, mas não é litúrgica e, ao contrário de uma tradição musical de séculos, não é cantado em latim e sim em língua alemã, de onde vem seu título Ein deutsches Requiem ou Um Réquiem Alemão. Pois aquela bosta que me caracteriza de projetar um problema onde ele não está, naquele dilema desesperado entre ir ou não ir a um concerto em andamento acabou por furar um bloqueio longamente preparado e meu pragmatismo começou a desabar lentamente.

Enquanto os carros e as pessoas na rua perdiam seus contornos e algo quente descia pelo meu rosto, resolvi comer alguma coisa. Com a mulher viajando, a vizinha namorando e a Babi na mãe dela, estava condenado a comer mal se fosse para casa. E da forma mais imbecil possível comecei a procurar um lugar e a juntar na cabeça as informações que sabia para escrever um texto sobre o concerto não assistido. Sabem vocês que a primeira referência ao Réquiem está em uma carta de 1865 que Brahms escreveu para Clara Schumann, viúva de Robert e sua provável amante? Escreveu que pretendia desenvolver uma peça a ser “uma espécie de Réquiem alemão”. Depois, Brahms teria dito ao diretor de música na Catedral de Bremen, que teria de bom grado chamado o trabalho de Um Réquiem Humano. Mais adiante, vocês verão que este sujeito de Bremen era um cagão pior do que eu.

Embora as Missas de Réquiem na liturgia católica comecem com orações pelos mortos, o de Brahms centra-se na vida, começando com o texto “Bem-aventurados são aqueles que suportam a dor, porque serão consolados”. O tema do conforto aos que ficam repete-se em todos os movimentos seguintes, exceto o final, e era exatamente isso o que furara meu bloqueio. Simplesmente não deveria ter pensado. Acho que consigo passar longos dias só agindo. Ao menos tenho esta impressão.

Em seu Réquiem, Brahms omitiu propositalmente qualquer dogma cristão. Até pelo fato da ideia de deus ser vista sempre como fonte de consolo, a simpatia pelo humano persiste por todo o tempo, o que não significa dizer que o Réquiem seja ateu, apesar de sua contenção religiosa, longe daquele hábito de rasgar-se musicalmente pelo criador. De qualquer forma, a enigmática escolha dos textos fica para os musicólogos decifrarem. Quando o diretor da catedral de Bremen expressou sua preocupação com isso, Brahms recusou-se a adicionar o movimento que lhe fora sugerido: “A morte redentora do Senhor, etc.” (João 3 : 16). E, por incrivel que pareça, em Bremen, o citado diretor obrou finalizar o Réquiem por uma ária do Messias de Handel, — ??? — “I know that my redeemer liveth”. Tudo para satisfazer o clero. Um total abuso.

Sem encontrar um local para comer e pensando pouco, acabei voltando para o hospital, indo a um restaurante que há ali. Caro. Já tinha acabado o horário de entrar na CTI. Comi muito lentamente, refazendo várias vezes o texto sobre Brahms, imaginando que a OSPA já estaria finalizando o concerto. Sei que quando a música exige, a OSPA cresce. Certamente deveria ter atravessado a cidade furando todos sinais para que víssemos um pedaço. Fico mais lento sem ela.

Meus pensamentos giravam sobre como o Réquiem fora inicialmente detestado. Wagner mandou bala contra ele, mas temos que lhe dar o mérito da coerência e Wagner: ele erra sempre e sempre com farta documentação. Na verdade, estava apenas puto com o título “Alemão”. Nada mais “Alemão” do que ele, o que Brahmas estava pensando? A reavaliação do Réquiem veio através de Schoenberg e seu brilhante ensaio Brahms the progressive. Então, a história da percepção a Brahms  descreveu um círculo completo: a partir da década de 1860, seu trabalho passou a ser visto como “moderno” e “difícil”. As depreciações do inimigo Wagner o tornaram “clássico” e “‘acadêmico” em 1880. E, em meados do século XX, o homem voltou a ser moderno e denso. Agora, é eterno.

Fui embora do restaurante e do hospital de novo pensando na Dra. Maria Luiza. E em mim — pois assim como o homem de Bremen cometera um abuso, era um total abuso uma pessoa tentar agir como se não fosse um mamífero, fingindo preocupar-se apenas com o operacional. E fui finalmente para casa, onde fiquei sozinho.

~o~

Abaixo, o segundo movimento do Réquiem:

Sugestões para os clássicos dela?

— Pai, quem é o responsável pela minha educação?

— Acho que eu sou o responsável. Tu tem 16 anos e mora comigo. Mas, pera aí, como a guarda é compartilhada, acho que a tua mãe está junto nessa.

— Tu é quem me enche o saco para estudar, essas coisas. Então é tu o responsável.

— Tá bom, sou, quero ser. E daí?

— É que eu quero saber aquilo que tu sabe e a gente poderia começar pelo cinema.

— Como?

— Tu me mostraria todos os melhores filmes, os clássicos. Aquilo que a gente não pode parar em pé sem conhecer.

E assim, há três semanas, começamos nosso Projeto Clássicos aqui em casa. Um filme canônico por semana. Iniciamos por Cidadão Kane, de Orson Welles; depois veio A Bela da Tarde, de Luis Buñuel, e, aproveitando que estava em cartaz nos cinemas aqui de Porto Alegre, Um Dia Muito Especial, de Ettore Scola. Estou gostando muitode fazer esta revisão cinematográfica. Não reclamo nem um pouco, pois é uma grande chance de rever filmes queridos (ou detestados, também — afinal, haverá Pasolini).

Kane fez enorme sucesso junto a minha filha. Ela gostou de Um dia e A Bela, apesar de ela ter adorado o filme, causou-lhe grande surpresa, simplesmente porque o filme não era 100% compreensível e ela está acostumada a ver motivos para tudo. Afinal, o cinema moderno, negando a própria vida, adora explicar. Por exemplo, a caixinha do chinês de A Bela, da qual saía aquele barulho de mosca…

— Pai, o que é aquilo? E o que são aquelas cenas meio malucas que interrompem a narrativa a qualquer momento? Algumas parecem sonho ou imaginação, outras não.

Como é que eu explico que a gente não precisa entender tudo? Falo sobre o surrealismo de Buñuel? Ou deixo rolar?

Bem, meu sete leitores: vocês têm sugestões para os próximos filmes? Estava pensando em voltar ao cinema americano dos anos 50 ou ir para um clássico político. Bergman, o ataque à Tarkovsky ou à nouvelle vague eu deixaria para depois. Mas alguns de vocês terão excelentes sugestões, sei disso. Ah, não esquecer de meu amado Altman.

Voltando ao Buñuel…

Todos nos bastidores sabiam que Séverine era apenas uma personagem de A Bela da Tarde. Entretanto, quando o roteiro pediu que fosse jogado excremento nela, ninguém quis fazê-lo, e Buñuel teve que assumir a tarefa. Todos sabiam que se tratava de iogurte de chocolate, mas a atriz vestida com aquela personagem era Catherine Deneuve.

KROHN, Bill; DUNCAN, Paul (ed.) Luis Buñuel. Filmografia Completa. Köln: Taschen, 2005. P. 152.

Engraçado, eu também fiquei pensando: “Porra, estão jogando cocô na Catherine Deneuve, a mulher que estreou o Porque Hoje é Sábado”!!!

As cenas paralelas à narrativa: um pouco de excremento para Deneuve em A Bela da Tarde
OK, digam-me JÁ o que tem na caixinha?

Ah, bom

Eu e Bárbara. Falo eu.

— Babi, tu está em ano de vestibular e tenho uma péssima notícia pra ti: acabou a infância. Acho melhor tu estudar mais. Tu vai ao colégio de manhã, ao cursinho à tarde e, à noite, quando chega, pode e deve te dar uma folga para conversar com amigos, olhar o Facebook, o YouTube, jantar, tomar banho, essas coisas, mas depois tem que voltar aos livros porque teu desempenho está abaixo do normal e a gente se preocupa, principalmente pelo fato de tu não admitir ir para outra universidade que não seja a UFRGS. OK, concordamos contigo, a UFRGS é melhor, acho até legal tu não te inscrever na PUC nem nas outras, mas o problema é este: te aconselho a chegar ao final do ano tranquila no colégio e no vestibular. Para que tu use o tempo para as revisões e não para o desespero final lá no verão… Olha aqui. Tu estás me ouvindo?

— Claro, pai. Só acho que tu precisa respeitar minha fase de transição.

Ah, bom.