“Agradeço a todos os que participaram de nossas discussões sobre a escrita de ficção hoje. Eu quero deixá-los com um pensamento: acho que, em nome do politicamente correto, estamos diante de uma nova era de censura. Existem forças em ação no mundo do livro que querem controlar a escrita de ficção em termos de quem “tem o direito” para escrever sobre o quê. Alguns até defendem a censura de obras mais antigas que se utilizam de palavras que agora consideram totalmente inaceitáveis. Alguns são críticos dos romances envolvendo estupro. Alguns argumentam que os romancistas brancos não têm o direito de escrever sobre pessoas de cor e que os cristãos não devem escrever romances que envolvam ateus ou sobre temas que envolvam judeus. Acho que tudo isso é perigoso. Temos que defender a liberdade dos escritores de ficção para escreverem o que querem escrever, não importa o quão ofensivo possa ser a alguma pessoa. Temos de defender a ficção como um lugar onde o comportamento transgressivo e quaisquer ideias possam ser exploradas. Devemos defender a liberdade nas artes. Acho que temos que estar dispostos a examinar as pessoas e os temas desprezados. É uma questão de escolha pessoal se alguém compra ou lê um livro. Ninguém pode fazer isso por você. As campanhas de internet que tentam destruir autores ou assuntos “inadequados” são perigosas para todos nós. Essa é a minha opinião. Ignore o que você achar ofensivo. Ou fale a respeito de uma forma madura. Só não se proponha a censurar ou a destruir a carreira do autor de ofensa. Vejo vocês amanhã”.
Anne Rice, trazida por Mayquel Eleuthério
Tradução de Milton Ribeiro (em cima da perna)
Durante o velório de Mário de Andrade, Edgard Cavalheiro me perguntou, no jardinzinho que havia na frente da casa: “Para encontrar na literatura brasileira uma morte desta importância é preciso voltar até quando?”. Respondi: “Até a morte de Machado de Assis.”
Antonio Candido
Mário de Andrade (1893-1945) viveu apenas 51 anos, mas foi por mais de duas décadas uma figura central da cultura brasileira. Sua morte completou 70 anos na última quarta-feira (25), permitindo que sua obra entre em domínio público em 1º de janeiro de 2016. Em 2015, ele será o homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece em julho, e receberá uma série de lançamentos.
Como dissemos, Mário foi, em seu tempo, figura central da vanguarda artística de São Paulo. Exerceu cargos públicos e foi também músico, mas ficou muito mais conhecido como poeta, ensaísta e romancista. Mário esteve pessoalmente envolvido em praticamente todas as áreas relacionadas com o movimento modernista de São Paulo. Seus ensaios cobriram grande variedade de assuntos e foram amplamente divulgados na imprensa da época. Mário foi o maior incentivador da Semana de Arte Moderna, evento ocorrido em 1922 que reformulou a literatura e as artes visuais no Brasil, tendo sido um dos integrantes do “Grupo dos Cinco” (os outros quatro foram Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Menotti del Picchia e Oswald de Andrade). Ninguém delineou melhor as ideias por trás da Semana do que o prefácio de seu livro de poesia Paulicéia Desvairada.
Mário de Andrade, nacionalismo e múltiplos projetos
O prefácio não fala do livro, mas sim de uma atitude geral perante a literatura. É uma espécie de manifesto poético em versos livres. Depois de fundar o “Desvairismo”, Mário afirma que luta por uma expressão nova, por uma expressão que não esteja agarrada ao passado. Outra das ideias expressas por Mário de Andrade neste Prefácio/Manifesto é que a língua portuguesa é uma opressão para a livre expressão do escritor no Brasil. Ele afirma a existência de uma “língua brasileira”, que seria das mais ricas e sonoras. Para reforçar esta ideia do brasileiro como língua, grafa propositadamente a ortografia de modo a ficar com o sotaque brasileiro. Deste modo, Mário de Andrade não apenas atava os parnasianos como era um nacionalista.
Também era contra a rima e todas as imposições externas. “A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas”. “Os portugueses dizem ir à cidade. Os brasileiros, na cidade. Eu sou brasileiro”.
Suas múltiplas atividades incluíam um meticuloso levantamento sobre a história, o povo, a cultura e especialmente a música do interior do Brasil, tanto em São Paulo quanto no Nordeste. Andrade também publicou ensaios em jornais de São Paulo, algumas vezes ilustrados por suas próprias fotografias, a respeito da vida e do folclore brasileiros. Entre as viagens, Andrade lecionava piano no Conservatório, havendo sido também aluno de estética do poeta Venceslau de Queirós, sucedendo-o como professor no Conservatório após sua morte em 1921.
Mário foi nota de Cr$ 500.000 em tempos de inflação
Em 1938, Mário de Andrade reuniu uma equipe com o objetivo de catalogar músicas do Norte e Nordeste brasileiros. Tinha como objetivo declarado “conquistar e divulgar a todo país, a cultura brasileira”. O âmbito do recém-criado — por ele, Mário — Departamento de Cultura foi bastante amplo: a investigação cultural e demográfica, além de publicações culturais.
Assim dito, dá a impressão de que estamos falando sobre o criador de um projeto de arte vitorioso — mas não é bem assim.
A capa do volume da Edições de Janeiro
Sua recém lançada biografia Eu sou trezentos – Mário de Andrade: vida e obra (Edições de Janeiro/Biblioteca Nacional), de Eduardo Jardim, mostra um homem que dedicou sua existência a um projeto artístico para vê-lo derrotado no fim da vida.
– Não à toa, ele vai ficando mais amargurado. O Mário morreu com 51 anos. Você pega as fotos dele e vê uma pessoa arrasada, um homem velho – afirma Jardim, professor aposentado do Departamento de Letras da PUC-RJ. – Os admiradores de Mário o apresentaram como um escritor consagrado, mas ele foi sacrificado pelo ponto de vista autoritário.
Depois de ser demitido do Departamento de Cultura de São Paulo, em 1938, com o Estado Novo, Mário entra em um período de depressão. Enquanto esteve à frente do órgão, viu-se perto de concretizar seu credo modernista de uma arte social que servisse aos interesses coletivos do país. A reforma proposta por ele visava criar canais entre cultura erudita e popular, nacional e estrangeira, fundar uma arte para estabelecer vínculos comunitários.
Com a demissão — acompanhada de acusações de corrupção –, Mário mudou-se para o Rio, onde entregou-se à bebida, permanecendo afastado de amigos queridos que moravam na cidade, como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Nomeado por Gustavo Capanema, passou a ocupar cargos menores no Ministério da Educação e Cultura, que seriam incompatíveis com quem já tivera centralidade na vida cultural do país. Mesmo assim, ele ajudou a fundar as bases do que hoje é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). E sua visão de conservação do patrimônio cultural é usada até hoje.
— O Capanema quebra o Mário de Andrade. Bota ele no Rio como um zé ninguém, um funcionário que tinha que bater ponto. Você imagina um intelectual da estatura dele batendo ponto? No meio do Estado Novo, ele tinha um projeto antiautoritário, de inclusão – afirma Jardim.
O trabalho de Eduardo Jardim não analisa a sexualidade de Mário, a qual sempre teria intimidado seus biógrafos. A família o trata como “solteirão assexuado, dedicado exclusivamente ao trabalho”, mas Moacir Werneck de Castro, Mário de Andrade – Exílio no Rio, foi o primeiro a tratá-lo como homossexual. Tal fato não altera sua obra, mas até hoje há um surpreendente pudor em torno do assunto.
Ele foi o autor de dois romances: Amar, verbo intransitivo (1927) e Macunaíma (1928). O primeiro causou um escândalo na época, uma vez que descreve a iniciação sexual de um adolescente com uma mulher madura, uma alemã contratada pelo pai do jovem. O segundo, desde sua primeira edição, é apresentado pelo autor como uma rapsódia, e não como romance. É considerado um dos romances capitais da literatura brasileira.
A fonte principal para Macunaíma vem do trabalho etnográfico do alemão Koch-Grünberg, conforme relata o próprio autor. Koch-Grünberg, no livro Von Roraima zum Orinoco, recolheu lendas e histórias dos índios taulipangues e arecunás, da Venezuela e Amazônia brasileira. A partir desses materiais, Andrade criou o que ele chamou rapsódia, termo ligado a tradição oral da literatura. O protagonista, Macunaíma, é chamado de “o herói sem nenhum caráter”. A frase característica do personagem é “Ai, que preguiça!”. Como na língua indígena o som “aique” significa “preguiça”, Macunaíma seria duplamente preguiçoso. A parte inicial da obra assim o caracteriza: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite.”
Mas estamos perdendo tempo. Há um belo texto Antonio Candido — publicado no livro Eu sou trezentos, eu sou trezentos e cincoenta: Mário de Andrade visto por seus contemporâneos (Nova Fronteira) — que dá uma noção muito mais rica de Mário de Andrade do que aquela poderíamos ambicionar.
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O Mário que eu conheci Antonio Candido
Acho que tomei conhecimento da obra de Mário de Andrade na antologia renovadora de Estêvão Cruz, adotada pelo meu professor de Português na 3ª série do curso secundário no Ginásio Municipal de Poços de Caldas. O primeiro livro dele que li deve ter sido Primeiro andar, comprado na excelente livraria da cidade, Vida Social, que além dos clássicos e das novidades, além de obras em francês e inglês, tinha essa coisa rara: alguns livros dos modernistas, sempre editados em pequenas tiragens e muito mal distribuídos. Foi a única livraria em toda a minha vida onde vi Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, cuja edição quase secreta foi de 500 exemplares. Em 1938, já em São Paulo, li Macunaíma. Em 1939 e 1940 li os outros livros de Mário.
Só em 1940 vim a conhecê-lo pessoalmente, numa visita que lhe fizemos Décio de Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes e eu. A partir dali tivemos relações cordiais mas meio cerimoniosas, embora nos víssemos com certa frequência, inclusive porque São Paulo era menor, com pouco mais de um milhão de habitantes e toda a gente se cruzava nas poucas exposições, livrarias e espetáculos.
No fim de 1942 comecei a namorar sua prima Gilda de Moraes Rocha. Ele sempre morou com a mãe, D. Mariquinha, e uma tia solteira, D. Nhanhã, da qual era afilhado. Em 1930 Gilda e a irmã, Maria Elisa, vieram de Araraquara, onde o pai era fazendeiro, estudar em São Paulo e ficaram residindo lá. O pai delas era sobrinho muito ligado a D. Mariquinha Andrade. Gilda tinha dez anos e se tornou uma espécie de pupila de Mário, morando na mesma casa até o dia em que se casou comigo, em dezembro de 1943.
Em 1941 fundamos a revista Clima e ele fez para o primeiro número, a pedido de Alfredo Mesquita, o admirável ensaio sobre a posição do intelectual naquele momento, “Elegia de Abril”. No número 8, janeiro de 1942, publiquei uma resenha da edição reunida das suas Poesias. Ele gostou e agradeceu. Antes de sua morte ainda publiquei uns três artigos sobre escritos dele.
Em 1942 foi fundada no Rio a Associação Brasileira de Escritores, a famosa ABDE, e logo se cuidou de criar a seção paulista. A finalidade era defender os direitos autorais e arregimentar os intelectuais contra a ditadura do Estado Novo. Lembro que assisti então a uma cena curiosa, que já contei em livro mas vale a pena repetir. Estávamos conversando sobre a fundação da seção paulista na sede provisória, um grupo grande, inclusive Mário de Andrade, quando chegou Oswald. Vendo Mário, com quem era brigado, parou na porta e disse: “Boa tarde a todos”. Todos respondemos, menos Mário. Então teve lugar um diálogo virtual entre os dois, que se comunicavam de certo modo sem se falarem. Oswald, que sempre quis sem êxito fazer as pazes com Mário, informou que estava chegando do Rio, onde era grande o entusiasmo pela associação e onde todos achavam que Mário deveria presidir a seção paulista, concluindo: “Esta é também a minha opinião.” Na conversa que se generalizou Mário disse, dirigindo-se ao grupo, que considerava de fato importante a ABDE, mas não aceitava ser presidente, achando que devia ser Sérgio Milliet. Esse diálogo sui generis continuou por algum tempo, até que Oswald soltou uma das suas piadas irresistíveis. Todos riram, Mário tentou ficar sério, não conseguiu e estourou também na risada. Afinal o presidente acabou mesmo sendo Sérgio Milliet. Mário ficou vice e eu, segundo-secretário.
Em janeiro de 1943 ele fez em sua casa uma leitura de “Café”, poema dramático que tinha acabado de redigir, estando presentes Gilda, Oneida Alvarenga, seu marido Sílvio, Luís Saia, um argentino de passagem, Norberto Frontini, e eu. Fiquei transportado ouvindo Mário ler. Hoje “Café” não me toca muito, mas lido por ele naquele momento me pareceu um exemplo extraordinário de literatura política, “participante”, como se dizia. Passados uns dias escrevi a ele uma carta longa manifestando a minha opinião. Ele respondeu com outra também longa, na qual explicava a gênese e a estrutura da peça. Nos anos de 1950 Décio de Almeida Prado a publicou no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo.
A pedido de Otávio Tarqüínio de Sousa fui intermediário entre Mário e Frontini, que tinha vindo com o encargo de arranjar livros brasileiros para a coleção mexicana Tierra Firme, do Fondo de Cultura Económica, que estava começando. Ele queria que Mário escrevesse um livro sobre a música popular brasileira. Mário não quis, mas indicou Oneida, que fez uma obra fundamental sobre o assunto. Graças às gestões de Frontini, Caio Prado Júnior escreveu a História Econômica do Brasil para Tierra Firme.
Naquele janeiro de 1943 eu me tornei crítico oficial, chamado “crítico titular”, coisa que hoje não existe mais, da Folha da Manhã, atual Folha de S. Paulo, publicando todas as semanas um rodapé de cinco a seis laudas datilografadas tamanho ofício. Mário nunca comentou comigo artigos meus, mas acho que em geral os apreciava, porque uma vez me disse amavelmente: “Uma boa parada é artigo seu com caipirinha”, explicando que parada é como se designa no Nordeste uma boa combinação (goiabada com queijo, por exemplo), e contou: “Domingo (dia do meu rodapé) gosto de pegar o bonde, ir até o Largo Paissandu, tomar uma batida no Café Juca Pato, comprar o jornal e vir de volta lendo seu artigo”. Mas pelo menos uma vez criticou severamente um deles, de fato bastante errado, sobre mestiçagem e literatura, e mais tarde, quando Lauro Escorel começou a sua notável e infelizmente breve atuação como crítico titular d’A Manhã, do Rio, me disse rindo: “Tome cuidado, mineiro. Tem um paulista no Rio que está passando na sua frente.”
Eu costumava escrever os artigos à mão e ir à casa onde Gilda morava com as tias-avós para ela os datilografar. Eu tinha máquina, mas era um pretexto para vê-la. Às vezes, enquanto eu ditava, Mário entrava para pegar um livro e ouvia alguma coisa. Certo dia eu estava ditando um artigo sobre o novo romance de Oswald, Marco zero. Para me preparar, tinha lido a obra anterior dele e achara certos livros muito ruins. Aliás, sempre achei a obra de Oswald admirável numa parte e ruim na outra, e ele chegou a me atacar feio por escrito devido a isso, mas depois fizemos as pazes e ficamos bons amigos. Naquele momento eu estava comentando Estrela de absinto [de Oswald], quando Mário entrou e eu disse que o achava péssimo. Mário não retrucou, encontrou o livro e, saindo, virou-se da porta e disse com um sorriso meio sem graça: “Eu acho muito bom.”
Ainda nesse ano de 1943 dei uma grande mancada. Ele me pediu para ler um seu relato de viagem, O turista aprendiz, dizendo que não estava certo se valia a pena publicar e queria a minha opinião. Eu estava para casar, sobrecarregado de trabalho, fazendo a tradução de um enorme livro americano para juntar dinheiro, de modo que só dei uma olhada no texto e acabei não lendo, apesar do sentimento de culpa por essa desconsideração a um escritor da estatura de Mário, que tinha confiado em mim. Afinal chegou o dia do casamento. O civil foi na casa onde moravam a noiva e ele. Fui para lá com o manuscrito e quando entrei ele vinha descendo a escada. Entreguei-o dizendo que tinha achado muito interessante e depois conversaríamos a respeito…
Em 1944 resolvi fazer concurso para a cadeira de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, na qual eu era assistente de Sociologia. Naquele tempo o sistema era diferente: abria-se a inscrição e qualquer pessoa que tivesse diploma superior podia concorrer. Eu era licenciado em Ciências Sociais, mas tinha vontade de passar para Literatura e pensei: “É uma oportunidade. Não vou ganhar a cadeira (tinha 25 anos), mas, se for aprovado, fico livre-docente, o que me dá o grau de doutor em Letras, e assim poderei um dia ensinar Literatura na Universidade” (o que de fato aconteceu anos mais tarde).
Para a tese resolvi pedir sugestões a Mário. Ele me escreveu então uma carta sugerindo vários temas, visivelmente de cunho acadêmico, tendo em vista a situação convencional. Acabei não aceitando nenhum, mas o interessante foram certas opiniões dele na ocasião.
O diretor da Faculdade (então de Filosofia, Ciências e Letras) era um biólogo eminente e muito culto, André Dreyfus, que insistiu com Mário para concorrer, mas ele não aceitou a sugestão. Pediu então que ao menos fizesse parte da banca, e ele recusou também isso. A mim, disse que detestava concursos, não acreditava na sua eficiência como critério de seleção e se tivesse aceitado seria para me dar o primeiro lugar (éramos seis concorrentes). Eu estranhei esta falta de objetividade e ele voltou ao argumento, dando um exemplo: só aceitara participar da banca de um concurso de História da Música, no Rio, porque decidira previamente votar num dos concorrentes, Luís Heitor Correia de Azevedo, por saber que era o melhor, independente de provas. E reiterou que achava detestável a situação de concurso e seu ritual. Eu disse que gostava, achava bonito. Ele comentou rindo: “Ô mineiro arrivista!” Afinal não chegou a ver o concurso, que começou cinco meses depois de sua morte.
Mário costumava ir à Livraria Jaraguá, na Rua Marconi, no mesmo lugar onde houve depois outra com o mesmo nome, mas esta não tinha nada a ver com a primeira, que era encantadora, com uma sala de chá no fundo. Mário saía do Patrimônio Histórico, quase em frente, e ficava lá batendo um papo. Para explicar a cena engraçada de que participou um dia na Jaraguá, abro parêntese.
Uma vez fiz uma brincadeira literária. Tendo dedicado um rodapé a certa tradução de Maiakovski para o espanhol, publicada em Buenos Aires, pouco depois escrevi em Clima, com pseudônimo de Fabrício Antunes, um artigo contra o meu, dizendo que o sr. Antonio Candido não tinha entendido nada. É que, comparando a tradução de um poema que em espanhol era “La nube en pantalones” com a francesa, intitulada “L’homme nuage” (O homem nuvem), dei um palpite: a tônica na tradução espanhola parecia ser a nuvem, vestida de calças, quando na verdade se tratava de homem se sentindo nuvem. A tônica se deslocava, portanto, do natural para o humano. Era um jogo mental para me divertir, mas então aconteceu o inesperado: uma senhora russa me telefonou entusiasmada, dizendo que Fabrício Antunes obviamente sabia russo e tinha razão, e me pedia para apresentá-la a ele. Eu lhe disse que se tratava de um rapaz muito esquisito do Sul de Minas, caixeiro viajante que passava raramente em São Paulo, de modo que talvez custasse a voltar, mas quando viesse eu certamente os aproximaria. Meus amigos da revista sabiam de tudo, é claro, e Gilda contou o caso a Mário, que se divertiu muito.
Ora, uma tarde estávamos na Livraria Jaraguá ele e eu quando entra Lívio Xavier, intelectual de grande saber, e me pergunta quem era esse Fabrício Antunes que certamente sabia bem russo. Repeti a história do rapaz sul-mineiro e Mário, da cadeira onde estava, vendo o desenrolar da conversa, tentou segurar o riso, mas não conseguiu. Felizmente, Lívio não percebeu.
Em 1944 veio a São Paulo um argentino chamado Luís Riessig, que fundara em Buenos Aires uma instituição interessante, o Colégio Livre de Estudos Superiores. Ele escreveu a Mário dizendo que gostaria de conversar sobre a possibilidade de fundar um igual aqui. Mário me pediu para participar da conversa e marcou encontro às duas da tarde em frente ao Mappin, na Praça Ramos de Azevedo. Cheguei pontualmente, antes do argentino, e vi que Mário estava aborrecido, por um motivo que logo explicou mais ou menos assim: “Agora no almoço, em casa, houve uma cena desagradável. De vez em quando, para brincar, eu espicaço minha mãe contra minha tia. Minha mãe fica irritada, briga com minha tia, eu aí entro no meio, fico do lado desta e sou bruto com minha mãe. Foi o que aconteceu hoje. Não sei por que faço isso. Complexo de Édipo não é, porque já me auto-analisei…”
Em janeiro de 1945 houve em São Paulo o I Congresso Brasileiro de Escritores, verdadeira arregimentação dos intelectuais contra a ditadura. Foi um acontecimento memorável, com delegações maiores ou menores de todos os estados. Mário estava na Paulista, com Oswald, Sérgio Milliet, Monteiro Lobato, Fernando de Azevedo e outros, num total de 26, dos quais eu era o caçula. Mário foi assíduo, vestido sempre de branco no calorão que fazia, mas calado, sem participar dos debates nem das comissões.
Durante o Congresso houve um grande jantar na casa de Lasar Segall. Eu não fui, mas Paulo Mendes de Almeida foi e me contou uma cena divertidíssima. Estava lá um jovem escritor hispano-americano que se pôs a dizer coisas de um complicado pedantismo sobre a poesia a partir de Rimbaud, segundo ele o poeta supremo. Paulo, para o descartar, disse que quem entendia de Rimbaud era Rubens Borba de Moraes, a quem o rapaz se dirigiu com a mesma parolagem abstrusa. Rubens, por sua vez, tirou o corpo dizendo que cuidara de poesia na mocidade, mas agora era apenas bibliotecário, e passou a bola adiante, dizendo que bom conhecedor de Rimbaud era Mário de Andrade, ali presente. O rapaz delirou, bradando: “Mário de Andrade, el grande Mário de Andrade está acá? Quiero conocerlo, quiero conocerlo!” “É aquele ali”, disse Rubens mostrando. O rapaz se precipitou excitadíssimo, repicando o estranho jargão, que Paulo Mendes reproduzia na chave do bestialógico. Mário, já meio no pileque, exclamou: “Quanta besteira! Olhe aqui moço, poesia é safadeza! A gente quer pegar uma mulher, não pode, aí faz um poema. E comigo é na piririca!” Atarantado, o rapaz perguntava ansioso para os lados: “Que es esto de piririca? Que es esto de piririca?“
Nesse Congresso Paulo Emilio e eu provocamos involuntariamente duas explosões de Mário. A primeira foi devida ao seguinte: Paulo alertou a mim e a outros que determinado intelectual, não sendo eleito por São Paulo, fora incluído meio de contrabando na delegação de outro estado, o que era irregular e nos contrariava politicamente. Redigiu-se então um protesto e fomos pedir a adesão de Mário, que ficou danado e recusou. Nós procuramos argumentar que era algo politicamente importante, aí ele estourou, dizendo que por isso é que não queria saber de política, que era uma indignidade e não assinava mesmo. Tremendo de raiva, foi se juntar a um grupo próximo formado por Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e, se não me engano, José Lins do Rego. Trinta e sete anos depois, em 1982, pouco antes e morrer, Sérgio Buarque me disse, como quem quer tirar um peso da consciência, que precisava confessar uma coisa: certa vez tinha me censurado com Caio Prado Júnior e Mário de Andrade. Percebendo do que se tratava, não o deixei explicar, dizendo: “Eu sei. Foi no I Congresso de Escritores e vocês tinham toda a razão”. De fato, nós estávamos agindo mal por birras políticas.
A segunda explosão foi no encerramento do Congresso, no Teatro Municipal, onde Oswald fez um discurso notável, no qual lançou a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República. As oposições achavam que era cedo, o Partido Comunista não queria precipitação, mas nós socialistas independentes e também muitos liberais aplaudimos, porque era uma boa pancada na ditadura em declínio. Além disso, Oswald fez troças divertidas com a alta sociedade de São Paulo, provocando protestos violentos. Todo o mundo acabou berrando e lembro de um senhor agranfinado perto de mim que enfrentou as vaias (inclusive minhas) com muita coragem, parecendo pronto para dar bengaladas. Na saída, em frente do teatro, Paulo Emílio e eu fomos falar com Mário e gabamos o discurso de Oswald. Ingenuidade nossa. Ele perdeu a calma e falou exasperado que não reconhecia a Oswald autoridade moral para falar mal da sociedade paulistana. Nós ficamos passados e fomos tratando de dar o fora.
Isso foi no fim de janeiro de 1945. No dia 17 de fevereiro Gilda e eu recebemos um telegrama de Mário (não tínhamos telefone, coisa dificílima naquele tempo), convidando para irmos no dia 20 conhecer Henriqueta Lisboa, que viria a São Paulo e estaria presente na festinha de aniversário da sobrinha dele, em sua casa. Fomos, e em dado momento eu estava conversando com ele e seu irmão mais velho, Carlos de Moraes Andrade. Naturalmente ele tinha ficado constrangido por ter tido aquele rompante na porta do Municipal e perguntou risonho se eu o tinha levado a sério, alegando que era simples brincadeira. Eu fingi que acreditei e ele passou a manifestar muita amargura, dizendo já estar cansado de sofrer injustiças e ser atacado. Eu observei que não tinha razão, porque poucas pessoas eram mais estimadas e admiradas. “Eu é que sei”, disse ele bastante amargurado, e seu irmão o apoiou citando um dito popular: “Pimenta não arde no olho do vizinho.” Mário prosseguiu na mesma craveira, dizendo-se convencido de que o intelectual não devia se meter em política, que o recente Congresso lhe tinha ensinado isto e que a partir daquele momento se fecharia na torre de marfim. O que tivesse de dizer como cidadão diria da torre de marfim, não dentro de algum partido ou movimento.
Isso foi no dia 20 de fevereiro. No dia 25, morreu. Luís Martins foi nos avisar no começo da noite e Gilda e eu fomos para o velório. No dia seguinte vi uma cena impressionante: os Irmãos do Carmo, que ele fora e talvez nunca tenha deixado formalmente de ser, vieram rezar alinhados dos lados do caixão. Eram uns oito com o hábito, batina marrom e um manto comprido de lã creme.
Durante o velório, Edgard Cavalheiro, escritor bastante em voga naquele momento, autor de biografias de Fagundes Varela e de Monteiro Lobato, me perguntou, no jardinzinho que havia na frente da casa: “Para encontrar na literatura brasileira uma morte desta importância é preciso voltar até quando?” Respondi: “Até a de Machado de Assis.” “Pois é exatamente o que estou pensando”, disse ele. “Machado de Assis em 1908 e Mário de Andrade agora”. O enterro foi no Cemitério da Consolação, muito concorrido, e impressionava a tristeza profunda de todos, como se todos sentissem uma espécie de enorme vazio na cultura do Brasil.
Uns dias depois fui ao escritório do Serviço do Patrimônio Histórico Nacional e Luís Saia, delegado deste em São Paulo, me disse com os olhos espantados: “Tem um envelope com o seu nome na mesa do Mário”. Depois da morte de um amigo, coisas desse tipo parecem mensagem, e, meio perturbados, fomos abri-lo. Lá estava, com a letra de Mário no envelope grande: “Para o Antonio Candido”. Eram alguns poemas de Lira Paulistana, inclusive a versão final de “Meditação sobre o Tietê”, datada de poucos dias antes.
Naquele ano de 1945 preparei a primeira edição de Lira Paulistana e do Carro da miséria, pois Mário queria que saíssem em tiragem independente, antes de serem incorporadas às Obras completas que o editor José de Barros Martins estava publicando. Editei-os com um título que contrariou Oneida Alvarenga e Luís Saia, conhecedores mais seguros das intenções do amigo: Lira Paulistana seguida de O carro da miséria. Segundo eles, deveria ser: Lira Paulistana e O carro da miséria. Preparei também a edição de Contos novos, que só saiu em 1947, salvo engano. A Nota do Editor, anônima, foi escrita por mim.
Não lembro em que altura (fim de 1945, começo de 1946?) foi inaugurado o busto dele por Bruno Giorgi no jardim da Biblioteca Municipal, onde está até hoje. Na inauguração falaram Sérgio Milliet, diretor da Biblioteca, e Carlos de Moraes Andrade em nome da família. Oswald compareceu emocionado e discreto. (Não tem qualquer fundamento o boato segundo o qual teria escrito palavras desagradáveis no pedestal.)
Decidiu-se então promover a leitura pública de “Café”, ainda inédito, e eu achei que a pessoa indicada era Carlos Lacerda, que fora muito amigo de Mário, tinha uma bela voz abaritonada e viera para a inauguração do busto. Falei com ele e ele aceitou, mas foi precipitação minha, porque Oneida Alvarenga e Luís Saia, discípulos queridos muito chegados a Mário, vetaram, alegando que este desaprovaria totalmente as atitudes políticas que Carlos vinha assumindo, que aliás eu também reprovava. Muito sem graça, tive de lhe dizer que era melhor eu próprio ler. “Já percebi”, disse magoado. “É coisa da Oneida e do Saia”. Assim, em vez da bela voz de Carlos, “Café” foi comunicado ao público na minha, fraca e abafada.
Mário de Andrade era um homenzarrão feio e simpático, muito cordial, com um riso bom que quando virava gargalhada sacudia o seu corpo inteiro. Era certamente um feio charmoso que despertou várias paixões. Vestia-se bem, usava uns chapéus de aba meio larga enterrados na cabeça e calçava sapatos sob medida da Sapataria Guarani, a mais cara de São Paulo, sempre no modelo escocês furadinho de bico afinado. Os pés e as mãos eram enormes e ele me parecia ter pouca naturalidade, mas com os íntimos devia ser diferente.
Um dos seus hábitos mais constantes era ir, geralmente à noite, tomar chope no Bar Franciscano, que ficava na Rua Líbero Badaró perto de uma esquina da Avenida São João, com fundo envidraçado sobre o Vale do Anhangabaú. Sentava numa mesa redonda de canto, perto do balcão, e ia consumindo sucessivas “pedras”, que são canecas grandes de louça clara. Os amigos sabiam que podiam encontrá-lo no Franciscano e ele costumava marcar encontros lá, por vezes à tarde. Foi de tarde que me convocou uma vez para conhecer João Alphonsus, que estava de passagem e me pareceu de pouca fala. Outra tarde de 1942 fui conhecer Fernando Sabino, que ainda não tinha vinte anos e já publicara um livro de contos: Os grilos não cantam mais. Ele e Mário admiravam os romances de Otávio de Faria, de certo porque estes abordavam problemas da adolescência católica que lembravam os deles. Eu os achava ruins e nesse encontro Fernando os defendia enquanto eu os atacava. Ele quis conhecer as minhas razões e eu disse que eram várias, inclusive o fato de Otávio escrever prolixamente mal e os seus romances não questionarem a ordem burguesa, concluindo: “Eles não tiram o sono de Roberto Simonsen” ― figura de proa da alta burguesia industrial de São Paulo. O meu sectarismo elementar era devido ao período de militância bastante radical que eu estava vivendo. Mário escutava, risonho.
Em 1943 Jorge Amado publicou Terras do Sem Fim, que foi uma inflexão na sua obra, por ser menos panfletário e mais compreensivo, inclusive humanizando representantes da oligarquia agrária. Gostei muito e escrevi um artigo favorável, levando-o como de costume para Gilda bater à máquina. Vendo do que se tratava, Mário me disse: “Quero ver se você percebeu uma coisa em Terras do Sem Fim“, mas apesar da minha curiosidade, não explicou o que era. Mais tarde refiz a pergunta e ele disse com certa ironia: “Este livro não tira o sono de Roberto Simonsen (**)…”.
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Antonio Candido é professor aposentado de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo. Foi professor de Literatura Brasileira da Universidade de Paris (1964-1966) e Professor Visitante de Literatura Brasileira e Comparada da Universidade de Yale (1968). Recebeu vários prêmios, entre os quais Machado de Assis (da Academia Brasileira de Letras), Almirante Álvaro Alberto, Moinho Santista, Jabuti, Camões e Alfonso Reyes. Entre os seus principais livros estão o clássico Formação da Literatura Brasileira (1959), Tese e Antítese (1964), Os Parceiros do Rio Bonito (1964), Literatura e Sociedade (1965), O Discurso e a Cidade (1993).
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(*) Com informações da resenha de Maurício Meireles, publicada em O Globo.
(**) Político, economista e escritor, presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP).
Na tarde de 3 de março de 1936, após passar a noite anterior revisando o romance Angústia, Graciliano Ramos entregou o manuscrito para sua datilógrafa, Dona Jeni. Depois, às 19h, foi levado de sua casa, preso. O motivo era a suspeita – jamais formalizada – de que o escritor tivesse conspirado no malsucedido levante comunista de novembro de 1935. Preso em Maceió, Graciliano foi demitido do serviço público e enviado a Recife, onde embarcou com outros 115 presos no navio “Manaus”. O país estava sob a ditadura Vargas. No período em que esteve preso no Rio, que durou até janeiro de 1937, passou pelo Pavilhão dos Primários da Casa de Detenção e depois foi mandado para o presídio de Ilha Grande, onde passou a célebre temporada descrita em Memórias do Cárcere.
“Haviam desencadeado uma perseguição feroz. Tudo se desarticulava, sombrio pessimismo anuviava as almas, tínhamos a impressão de viver numa bárbara colônia alemã. Pior: numa colônia italiana”, escreveu Graciliano em Memórias do Cárcere, referindo-se ao nazismo e ao fascismo que tanta admiração causava ao governo brasileiro. Foi uma época terrível. Ou nem tanto. Afinal, ele esteva preso com Aparício Torelly, o Barão de Itararé, que garantia que tudo ia muito bem… No Capítulo 5 da Segunda Parte do livro, ainda descrevendo o que passou no Pavilhão dos Primários, há a comprovação de que a convivência com o Barão era bem mais efetiva que qualquer autoajuda de nosso tempo:
O Barão com o jornal que escrevia, “A Manha”
Apporelly sustentava que tudo ia muito bem [no Pavilhão dos Primários]. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida. Ali onde vivíamos, Apporelly afirmava, utilizando seu método, que não havia motivo para receio. Que nos podia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas ainda assim não convinha alarmar-nos, pois esta desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela.
Angústia foi lançado no mês de agosto de 1936, durante a prisão de Graciliano Ramos. Naquele ano, o autor recebeu o Prêmio Lima Barreto, conferido pela Revista Acadêmica numa atitude encarada como desafiadora do regime.
Escrito após Caetés e São Bernardo, Angústia foi o terceiro romance de Graciliano. Nele, radicaliza-se seu estilo seco e contundente, assim como o foco na produção de uma literatura que una a ética ao fazer literário. Trata-se de um romance de tom confessional que acompanha em primeira pessoa a vida de Luís da Silva, funcionário público de 35 anos, tímido e solitário, que vive num bairro distante em uma casa caindo aos pedaços, acompanhado por ratos e desespero. Da mesma forma que em seus dois romances anteriores, Caetés e São Bernardo, também narrados em primeira pessoa, Graciliano apresenta personagens em grande conflito interno, buscando explicações sobre como agir e motivos para os acontecimentos que o atingem.
Graciliano: seco, direto, objetivo, estarrecedor
Além de trabalhar o dia todo, Luís completa o orçamento escrevendo, à noite, textos por encomenda para um jornal. Após curar-se de uma doença, retorna ao trabalho. Num fluxo de consciência escrito de forma seca e direta, Luís tenta entender seu passado com tamanha fúria que somos obrigados a lembrar que, na verdade, o existencialismo não começou apenas com Sartre, Camus e seus grupos após a Segunda Guerra Mundial.
Luís detestava todos e principalmente a si mesmo. Insatisfeito e pobre, frustra-se por sua vida inútil. Entregando-se à análise de sua vida, repassa-a desde a infância. O avô é um bêbado decrépito; o pai é um preguiçoso que vivia lendo e do qual herdara várias características, como o gosto pelas letras. Porém Luís, em crise, não consegue mais escrever, assediado por estes fantasmas e pela onipresente angústia.
Ilustração de Marcelo Grassmann para Angústia
Um dia, conhece a loira Marina. Pede-a em casamento, usando todas as suas economias para um enxoval. Porém, o gordo e eufórico Julião Tavares, com mais dinheiro, ousadia, lábia, posição social e, sobretudo, despreocupação, conquista Marina, que passa a desconhecer Luís. Humilhado, ele passa a desejar a própria morte. Quando vê que Julião abandonou Marina e fica sabendo que ela fez um aborto, cobre-a de ofensas em plena rua. Completa a obra fazendo mais bobagens. Todo o sofrimento e humilhação desaparecem e Luís passa a sentir-se forte, capaz e ativo. Porém, logo volta a angustiá-lo com o temor de ser descoberto. Não vai mais trabalhar, procurando destruir os indícios do que fez. Lava tudo e lava-se. A água tem importante papel no romance; é a purificação que percorre os canos sujos, conhecidos dos ratos. Mas Luís permanece em desvario, aniquilado, sufocado pela angústia, como o Raskonikov de Dostoiévski.
É curioso que um livro dedicado a um profundo estudo da frustração receba tantas homenagens e seja tão festejado. Afinal de contas, falamos de uma obra sem saída, cruel e violenta, cheia de amargura. Por que Angústia é tão importante? Porque é notavelmente bem executado; porque pela primeira vez na literatura nacional há um monólogo interior que parece não dirigir-se a um leitor, mas a si mesmo; porque Luís é muito nordestino, brasileiro e universal; porque comprova brilhantemente a célebre frase de Tolstói: “Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”. A essência do romance é Luís. Quase não há diálogos e as cenas parecem ser jogadas com certo descontrole pelo narrador, como se transbordassem dele. É um monólogo-pesadelo. “Ninguém dirá que sou vaidoso referindo-me a esses três indivíduos” – disse Graciliano em discurso no jantar de jantar de seus 50 anos, em 1942, referindo-se a seus três primeiros livros — “porque não sou Paulo Honório, não sou Luís da Silva, não sou Fabiano”.
Mas talvez o homem sério e duro que foi Graciliano se envaidecesse da permanência de seu personagem.
Erico Veríssimo dizia que Lygia Fagundes Telles não devia ter tanto talento para a literatura. Era bonita demais para isso. Ela ria, envaidecida.
Convencionou-se dizer que Clarice Lispector era uma bela mulher. Belo telefone, não?
Belíssima era Cecília Meirelles, dona daquele sorriso que tudo parece compreender. Foi tradutora de …
… Virginia Woolf *, que tinha perfil de camafeu, extraordinários livros e sofria enormemente com sua loucura.
Suicida como Virginia, tivemos a bonita brasileira Ana Cristina César. Apesar de sua boa poesia, ela ficaria aos pés de…
… Anna Akhmátova *, cujo grande sofrimento era de causas exteriores. Que poetisa maravilhosa ela era! Dá vontade de aprender russo como quis uma vez …
… Simone de Beauvoir, aqui em linda e arejada foto, demonstrando que tinha a frente, o conteúdo e o verso interessantes.
Tão de esquerda quanto Simone foi a ex-stalinista Doris Lessing, que se tornou a mais irritante das direitistas.
Sempre foi de direita a talentosa belga Marguerite Yourcenar, apesar do costume de fantasiar-se como agente da KGB.
A outra Marguerite, a Duras, gostava de cinema, de amantes orientais e sua obra permanecerá mais do que a das três anteriores.
Conversas mais íntimas tinha Anaïs Nin, que escrevia diários e corria atrás de um homem sensível.
Nome de francesa tinha a severamente inglesa Daphne du Maurier, autora de livros que assustaram minha adolescência, como Rebecca.
Também gostava de assustar a imensa, perfeita e maravilhosa dinamarquesa Karen Blixen *, que publicou suas obras-primas com o nome masculino de Isak Dinesen e que …
… traduzia seus livros para o inglês. Quando envelheceu, ficou “meio anoréxica”, mas mantinha as boas companhias — minha nossa!
Conversando com Karen, à direita, está a caçadora solitária Carson McCullers, …
… tão menos famosa do que Jane Austen *, cujos seis romances são cantados em prosa e verso pelos críticos e é adorada pelo cinema.
Em comum com Karen na utilização de nome um nome masculino, com Austen no espetacular talento, temos a insuperável George Eliot * (Mary Ann Evans).
A também inglesa Muriel Spark faz livros menos intelectuais quanto os de Eliot, mas é sempre fascinante e grudenta. Escreveu pelo menos duas obras-primas modernas.
Tem nome comprido e estranho a grande e bela poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, descoberta por mim logo após sua morte.
Com algumas exceções, são todas mulheres bonitas — às outras sobraria a beleza interior… — e as que receberam asterisco logo após seu nome são as minhas Top 5 da literatura feminina mundial.
Apesar de ter sua obra em grande parte traduzida no Brasil, Arthur Schnitzler (1862-1931), ainda é pouco conhecido em nosso país. O grande escritor é conhecido por referências, digamos, laterais. As mais comuns são duas. Ou se fala no fato de Stanley Kubrick ter adaptado Breve Romance de Sonho em seu filme De Olhos Bem Fechados, ou a referência gravita em torno da admiração que Freud tinha pelo autor.
Mesmo vivendo na mesma Viena, os dois pouco se encontraram. Em uma carta enviada a Schnitzler em 14 de maio de 1922, Sigmund Freud faz algumas observações sobre a obra do escritor e confessa ter evitado, durante muito tempo, ser apresentado a ele, pois, ao ler seus textos, acreditava que se tratava de seu “duplo”. “Sempre que me deixo absorver profundamente por suas belas criações, parece-me encontrar, sob a superfície poética, as mesmas suposições antecipadas, os interesses e conclusões que reconheço como meus próprios. Ficou-me a impressão de que o senhor sabe por intuição – realmente, a partir de uma fina auto-observação – tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho.”
Além escritor prolífico, Schnitzler era médico e judeu como Freud. Mas sua obra é profundamente original e sobrevive facilmente sem o aval do criador da psicanálise. Numa sociedade de grandes progressos científicos e técnicos, numa época de tantas agitações e mudanças, era necessário que tal ambiente se refletisse nas artes e na literatura. E Schnitzler foi do tamanho de sua época.
Neste mês, a Editora Record está publicando o volume autobiográfico Juventude em Viena, com tradução de Marcelo Backes. Solicitamos permissão ao tradutor para publicar no Sul21 o posfácio do livro, de autoria do próprio Backes, o qual também é escritor e ensaísta. Aqui está. (Milton Ribeiro)
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Marcelo Backes
Num tempo em que o gênero estava longe de alcançar a divulgação que tem hoje em dia, Arthur Schnitzler escreveu uma autobiografia de suma importância. Juventude em Viena é um documento central no sentido de compreender tanto uma época decisiva da história da humanidade, quanto a vida e a obra de um dos maiores autores da língua alemã. De quebra, ainda assinala a relevância que todo um gênero literário viria a adquirir apenas várias décadas depois.
Schnitzler já se encontra às voltas com a ideia de escrever uma autobiografia em 1901. Em suas anotações, aponta sempre para a “necessidade profunda” de ser “verdadeiro”, de “registrar suas recordações de modo completamente fiel à verdade”. Mas ao sentir as dificuldades do retorno ao passado, as falhas na memória, os enganos da recordação, já questiona em que medida a verdade é possível, apesar da inclinação reafirmada de ser “verdadeiro”, inclusive “contra si mesmo”.(1)
Desde o princípio, Schnitzler reconhece que não é necessária nenhuma coragem de caráter especial para registrar todas as piores oscilações nem as ações mais sórdidas das quais alguém se sabe culpado quando esse mesmo alguém está convencido de que antes de sua morte ninguém tomará conhecimento do que foi dito. Ele também logo se pergunta – autocrítico – se sua necessidade de verdade não viria, em parte, de uma característica radicada no sentimento patológico da ideia obsessiva, na tendência a um certo pedantismo exterior que no decorrer dos anos se desenvolveu de forma cada vez mais decidida como um corretivo ao desleixo interior.
Quando fala do antissemitismo – um dos assuntos essenciais de Juventude em Viena –nas mesmas anotações, diz ter sentido a necessidade de reagir, pois manifestar impassibilidade diante do assunto seria mais ou menos como ficar indiferente depois de mandar anestesiar a pele, mesmo vendo, de olhos arregalados, como facas sujas nos rasgam a carne até fazer o sangue jorrar.
Viena no início do século XX
Uma capital, um autor
Schnitzler compartilha seu destino com Viena, a capital em que nasceu, viveu e morreu.
Seu mundo é um dos maiores centros da arte, do pensamento e até mesmo do poder na época. A capital do império austro-húngaro é o universo de Robert Musil e Karl Kraus na literatura, de Gustav Mahler e Arnold Schönberg na música, de Oskar Kokoschka e Gustav Klimt na pintura – o mundo de Sigmund Freud na psicologia e o de Theodor Meynert na psiquiatria.
E não há escritor que melhor caracterize esse universo do que Arthur Schnitzler. Ele foi chamado de “Maupassant austríaco” por Alfred Kerr (o maior crítico alemão da época) e de “Tchekhov vienense” por Friedrich Torberg (um dos grandes autores austríacos do século XX). Torberg diz ainda que Schnitzler antecipou James Joyce com O tenente Gustl, e que a peça A cacatua verde já contém Pirandello inteiro.
Que Arthur Schnitzler é capaz de mergulhos profundos na alma humana em sua literatura, fica claro também em sua autobiografia. Na obra – quando a literatura ainda nem era de fato, já que Schnitzler conclui o relato de sua vida no momento em que começa a gozar os louros de sua escrita, mas a escreve bem mais tarde – o elemento erótico já mostra ser muito mais do que um passatempo social e Eros já evidencia querer muito antes expulsar a morte do que passar o tempo; exatamente como na ficção. Se a consciência da morte é onipresente – ainda que latente –, o autor mostra um sentimento quase amistoso em relação a ela, um ceticismo ameno que o leva a se entender com o fim definitivo. Nas memórias de Schnitzler fica claro mais uma vez que só podia ser ele o autor que veio a anotar já em uma de suas primeiras peças: “A alma é uma terra vasta”, referendando seu tantas vezes repisado parentesco com o já citado Freud. Mas Schnitzler vai ainda mais longe, por exemplo quando antecipa Fernando Pessoa, ao dizer, na peça Paracelso: “Não existe segurança em lugar nenhum. Não sabemos nada dos outros, nada de nós. Estamos sempre fingindo; quem sabe disso, é sábio.” Que é isso se não o “poeta fingidor” do poeta português?
A autobiografia de Schnitzler se caracteriza pela humildade sóbria, pela ausência daquela arrogância que finge inocência e caracteriza tantos autores quando se ocupam de si mesmos. É preciso lembrar que Juventude em Viena é obra de um autor cinquentenário, nos píncaros da fama, que já sabia que o jovem inseguro de décadas antes que ele se ocupa em caracterizar nem de longe preponderaria. Schnitzler não contempla a juventude com a ironia distante da velhice, e sim com uma espécie de carinho crítico e analítico, como se o homem de 25 anos inclusive se mostrasse irônico em relação ao de 50, querendo dizer que a maturidade não deixa de ser – pelo menos em parte – o resultado daquela crueza.
Schnitzler: profundos mergulhos e sóbria humildade
Marcando as datas no calendário, Schnitzler escreveu Juventude em Viena entre 1915 e 1920. Planejava levar a história de sua vida até 1900 – que foi quando a fama o bafejou de vez com O tenente Gustl –, mas acabou por concluí-la em 1889, ao iniciar de fato sua atividade artística, ao se tornar definitivamente mais escritor do que médico. Coincidentemente, é também o momento em que conhece Olga Gussmann, aquela que viria a se tornar sua esposa.
E assim, lembrando uma grande autobiografia contemporânea – Nas peles da cebola, de um Günter Grass aliás nem de longe tão humilde –, Schnitzler termina seu relato praticamente antes do início de sua verdadeira carreira – a de escritor, a de médico não era mais que um preparativo para ela –, como se quisesse deixar claro que o poeta começa a se desenvolver quando o desenvolvimento do homem chegou ao fim. Um homem que à época ainda nem entrara em contato com Freud, que ainda não trocara suas inúmeras cartas com o crítico e filósofo norueguês Georg Brandes, que ainda não dialogara com Rainer Maria Rilke e Thomas Mann em suas correspondências.
A edição da Fischer de ‘Juventude em Viena’
Algumas questões fundamentais
Schnitzler é um mestre no aproveitamento universal de manifestações periféricas. Elas sempre lhe proporcionam a possibilidade de grandes conclusões. É o que acontece inclusive em relação ao antissemitismo, cujo horror o autor não chegou a vivenciar em sua pior feição.
Desde o princípio de Juventude em Viena, Schnitzler já sinaliza para a questão judaica, debatendo-a com autocrítica, ao se perguntar se alguém que nasceu em determinado lugar, nele cresceu e nele continua trabalhando, deve contemplar outro país – não aquele no qual há décadas vivem seus pais e seus avós, e sim aquele no qual seus ancestrais estiveram em casa há milênios –, e não apenas por motivos políticos, sociais e econômicos (que de todo modo podem ser discutidos), mas também sentimentalmente, como sua verdadeira terra natal.
Diante dos ritos religiosos do judaísmo, Schnitzler manifesta a mesma indiferença – quando não resistência, ou inclusive sarcasmo – que caracterizava por exemplo a postura de Freud. Theodor Herzl, que veio a ser conhecido como o pai do sionismo, é referido inclusive por ter militado em organizações estudantis de índole antissemita; Schnitzler diz tê-lo encontrado num passeio usando o boné azul daqueles que eram então os seus irmãos reacionários de crença e de partido. E Schnitzler arremata, mais uma vez um tanto crítico: “O fato de estes o rechaçarem, ou, como dizia o verbo ofensivo dos estudantes, o repelirem de seu meio como judeu, sem dúvida alguma foi o primeiro motivo que transformou o estudante e orador alemão-nacionalista dos pódios acadêmicos (onde nos olhamos com troça, ainda sem nos conhecer pessoalmente, em uma noite de reunião) no sionista talvez mais entusiasmado do que convicto que ficou sendo para a posteridade.”
Quando fala do duelo, e dos judeus que se tornaram esgrimistas habilidosíssimos e agressivos para melhor encarar as ofensas dos antissemitas, Schnitzler chega a citar a macabra “Resolução de Waidhofen”, que declarava os judeus “incapazes de tomar satisfações”, e ao mesmo tempo deixava claro que o véu do holocausto que encobriria a Europa já começava a ser estendido: “Todo o filho de mãe judia, todo ser humano por cujas veias corre sangue judeu é desprovido de honra desde o nascimento, incapaz de qualquer sentimento mais sutil. Ele não consegue distinguir entre o que é sujo e o que é limpo. Eticamente, é um sujeito bem mais baixo. A relação com um judeu é por isso desonrosa; é preciso evitar qualquer espécie de comunhão com os judeus. Não se pode ofender um judeu, e por isso um judeu não pode exigir satisfação sobre uma ofensa sofrida.” A marca amarela que identificava racialmente os judeus desde a Idade Média – e que aliás é referida por Schnitzler – começava a se mostrar cada vez mais excludente e perigosa.
Num âmbito bem mais individual, o medo das doenças venéreas é outra constante que sinaliza um dos grandes problemas da época (e do sujeito). E Schnitzler mergulha em sua “ciranda” juvenil, buscando no sexo seu caminho pessoal para a liberdade. A peculiaridade do homem Schnitzler, que antecipa o autor Schnitzler é tanta que o historiador Peter Gay fez dele o personagem central e mais representativo de toda uma época numa obra já clássica, ainda que lançada em 2002, O século de Schnitzler.
A obra de Peter Gay ‘O Século de Schnitzler’
A leveza e o vazio – a leviandade – dos anos jovens de Schnitzler, cheios de possibilidades de duelos (outra questão debatida que se tornaria foco da narrativa em O tenente Gustl) e apostas em cavalos (a descrição do apostador envolvido no auge da corrida é maravilhosa), quando o dinheiro significava havanas e jantares no restaurante da moda, mais um camarote no teatro, é destrinçada de cabo a rabo na autobiografia. Schnitzler inclusive reconhece que até uma determinada época de sua vida muitas vezes se esforçou em se estilizar; e que, se chegou a ser esnobe – e o confessa –, diz que seu esnobismo foi curado completamente pelo contato com os esnobes que veio a conhecer.
Ele também relata uma dúzia de casos amorosos. De algumas dessas mulheres, Schnitzler – que chama a si mesmo de “galã de cinco florins” – se lembra apenas porque estão registradas em seu diário, de outras nem recorda mais o nome, sequer. Chegou a terminar o caso que tinha com uma delas anotando os seguintes versos: “Também esta cinta-liga eu te mando de volta, encontrei-a hoje pela manhã em minha cama.” O amor já se mostrava líquido e o torpedo do celular comunicando o fim da relação parece não ter sido usado tão-somente porque ainda não existia…
Ainda assim muitas de suas relações – como por exemplo a que teve com Olga Waissnix, a primeira grande mulher de sua vida – se alongam por meses em sua vida e dezenas de páginas em sua autobiografia. Outras precisam apenas de algumas linhas sintéticas e vertiginosas: “Uma jovem americana, Cora Cahn, de apenas dezesseis anos, que se encontrava em Ischl com seus parentes, me atraiu vivamente por causa de seu sotaque, de seus caprichos e de sua coqueteria. Em um túnel entre Gmunden e Ebensee as coisas se tornaram quase preocupantes, mas túneis são curtos e uma passagem por Ischl não chega a ser bem mais longa, sobretudo quando se tem de lidar com uma série demasiado grande de variáveis; e assim também essa aventura acabou dando em nada.”
A “doce mocinha” do subúrbio, uma criação do autor, que caracterizaria tantas de suas personagens, é definida também em Juventude em Viena, a partir de uma das mulheres que cruzou sua vida. Schnitzler diz que ela é o “protótipo de uma vienense, figura encantadora, feita para dançar (…), feita para beijar – um par de olhos brilhantes e vivazes.” Suas roupas são “de gosto simples e com uma certa feição de grisette”. Seu andar é “cheio de rebolado… lépido e natural…” E as qualidades não param por aí: “A voz clara… A língua vibrando em dialeto original. O que ela diz, apenas assim, como ela consegue dizê-lo, como é obrigada a fazê-lo, quer dizer, cheia de vontade de viver, com um leve toque de precipitação. ‘A gente é jovem, que fazer’, ela considera com um dar de ombros meio indiferente… Não há nada a perder nisso, é o que ela pensa consigo… E isso é a razão mergulhada nas cores luminosas do sul.” Impossível não mergulhar no poço da aventura!
A oficina literária do autor
Os personagens ingleses do romance O caminho para a liberdade, sua obra ficcional mais volumosa, parecem ter saído todos eles da “realidade” de Juventude em Viena, que aliás deixa claro porque uma certa Claire se torna tão importante no romance… No momento em que o autor – leviano como a juventude – ameaça se matar com um tiro porque seu diário foi descoberto, manifesta também um pouco daquela altivez melindrosa e problemática que caracterizaria o já citado tenente Gustl.(2)
Quando conta sobre as dificuldades que teve em escrever a peça Aegidius e critica sua concepção, somos levados mais uma vez diretamente a O caminho para a liberdade e às dificuldades de Georg von Wergenthin às voltas com Ägidius, o grande personagem da ópera que não consegue levar a cabo. Ao ler a autobiografia, confirma-se que o personagem central do romance tem muito a ver com o autor, inclusive na relação com seu irmão. Arthur está para seu irmão Julius exatamente como Georg está para Felician. A certa altura de Juventude em Viena Schnitzler chega a dizer: “Meu irmão passou do piano ao violino, e também na música, assim como em todas as questões escolares e mais tarde na medicina, acabou me superando com sua persistência e sua conscienciosidade, mas também por sua visão e seu talento.” Felician também era muito mais hábil, muito mais ágil e mais objetivo do que Georg.
O livro como um todo propicia uma bela olhada na oficina literária do autor. Descobrimos, por exemplo, que seus amigos pronunciaram algumas das frases que mais tarde seus personagens diriam. Também ficamos sabendo que Gustav Pick se tornaria o modelo do velho Eissler de O caminho para a liberdade, assim como seu filho, Rudi Pick, se tornaria o modelo de Willy. E Schnitzler ainda arremata dizendo que “os conhecedores do romance por certo haverão de ter percebido” as coincidências, arrematando que o velho Pick se mostrou mais compreensivo e bem humorado com sua ousadia do que muitos outros que compartilharam de seu destino e mostrando mais uma vez como a obra – ainda que ficcional – se encontra fortemente vinculada à vida vienense de sua época. Muitas outras peças e contos são referidos de passagem, bem como os motivos que os inspiraram. A passagem em que comenta a suposta origem da peça O véu de Beatrice é maravilhosa, e diretamente vinculada a seu grande, ainda que platônico, amor por Olga Waissnix. As páginas em que conta as venturas e desventuras desse amor, aliás, estão entre as mais interessantes da autobiografia.
O filme ‘De Olhos Bem Fechados’, de Stanley Kubrick, foi baseado na novela ‘Breve Romance de Sonho’, de Schnitzler
Schnitzler também fala das estratégias – lícitas e ilícitas – de autores no sentido de se tornarem conhecidos em uma época em que o mercado editorial estava longe de ter o vulto que alcançou hoje em dia. Em muitos momentos, o autor adquire fumos de homem frio, que pensa que são necessárias razões cadastráveis para retribuir a simpatia que alguém tem por ele, e não entende quando isso acontece sem as mesmas razões. O mesmo homem, no entanto, é capaz de ridicularizar a si mesmo citando longos versos ingênuos e pueris para arrematar em seguida que havia “provado ser um poeta talentoso”.
Ao longo da autobiografia há conceitos maravilhosos, como por exemplo o do “apoio dialético” que Schnitzler dava para um amigo entediado terminar o namoro. E sentenças precisas como: “Nos lábios de uma mulher o sorriso da recordação jamais se apaga completamente. Elas são mais vingativas, mas também mais agradecidas do que os homens costumam ser.” Avançado, e pedagogicamente cético, o autor declara a certa altura: “E, nesse sentido, quando se conheceu e se experimentou diante de que material pronto, apesar de toda a falta de maturidade, se encontram pais e professores, é que se sente por inteiro que problema em certo sentido insolúvel a educação representa.” Em dado momento, chega a levantar a hipótese avançada de que o alcoolismo provavelmente seja hereditário. Sua sabedoria de índole aforística fica clara em sentenças como: “Sempre temos de ver um punhal brilhando para compreender que um assassinato aconteceu”. E Schnitzler – que está falando de uma relação amorosa – ainda complementa dizendo que “muitas vezes o vemos brilhar, e em vez de arrancá-lo à mão do assassino, nos contentamos em fazer admoestações de leve, dizendo que ele não deveria fazer uma coisa dessas, se é que não nos mostramos indiferentes e acomodados demais até mesmo para uma admoestação assim.”
Schnitzler também fala – talvez pela primeira vez na história da literatura, sobretudo se levarmos em conta que está falando de uma mulher e suas reações por volta de 1880 – de uma personagem deprimida (gemütskrank). Uma moça, namorada de um amigo, que parece ter protagonizado algo como uma fotonovela erótica – já que é fotografada nua ao lado de um tenente, e a fotografia era coisa nova na época – é outra que dá as caras em determinado trecho. Também a primeira manequim – modelo (Probiermamsell) – da literatura universal parece ter sido registrada por Schnitzler. Não apenas registrada, aliás. O mundo incipiente da moda já visitava a cama da arte bem cedo…
Freud, o aluno de Meynert
Muitas das grandes figuras científicas do final do século são apresentadas na autobiografia de Schnitzler. Assim, por exemplo, o neurologista francês Jean-Martin Charcot em sua lida com a hipnose, e os trabalhos do psiquiatra Hyppolyte Bernheim, também francês. Moritz Kaposi, fundador da dermatologia moderna, é outro dos citados. Schnitzler ainda caracteriza com detalhes o psiquiatra e neuroanatomista vienense Theodor Meynert, com quem trabalhou, e que aliás também foi professor de Freud.
Ao mesmo tempo percebe-se, em vários momentos, como a higiene é uma coisa nova e a ciência da medicina ainda estava longe de ter sido dessacralizada à época, mesmo que o mundo esteja em vertiginosa transformação, o que é registrado por exemplo quando o autor conta, entusiasmado, sobre a primeira vez em que ficou em um quarto com iluminação elétrica. Ciente do caráter ainda pouco científico da medicina, Schnitzler chega a contar de um médico que acreditava ter descoberto “no hábito enfadonho de lavar as costas” o verdadeiro motivo do catarro bronquial. Schnitzler diz ainda que o referido médico “foi tão longe a ponto de afirmar com toda a seriedade que o lado direito adoecia menos vezes porque a mão esquerda, mais fraca e mais lerda, não costumava tratar o lado direito das costas com tanta crueldade quanto acontecia com o lado esquerdo, que era lavado pela mão direita, muito mais forte.” E, assim, Juventude em Viena também é, em vários momentos, uma história subjetiva da medicina em um dos períodos em que mais evoluiu: o final do século XIX.
Henrik Ibsen: viver e escrever
O mundo literário e artístico da época e mesmo anterior também comparece em massa. Goethe é multicitado, mas também os conterrâneos e coetâneos do autor, por exemplo Alfred Polgar e Peter Altenberg, dão as caras. O dramaturgo norueguês Henrik Ibsen é citado quando Schnitzler refere indiretamente o sentido que este dá ao “dia do juízo”, e somos obrigados a investigar para descobrir que Ibsen disse num de seus poemas, intitulado “Um verso”: “Viver significa – lutar contra o fantasma das forças estranhas dentro de si. / Escrever – fazer o dia do juízo contra seu próprio eu.” A citação é demasiado importante, e Ibsen conhecido demais à época, para que Schnitzler a repita em sua autobiografia tal qual o dramaturgo norueguês a registrou. Afinal de contas, é isso que ele faz ao longo de toda a obra.
Em vários momentos, Juventude em Viena assume uma construção quase romanesca, antecipando a confusão entre os gêneros que se tornaria evidente só décadas mais tarde. Quando Schnitzler diz que em Salzburgo, no inverno de 1891 para 1892, as relações teatrais na cidade invocavam seu interesse de modo bem especial – e por um motivo bem pessoal – insinua tangencialmente seu caso longo e ardente com a atriz Marie Glümer, que trabalhou vários anos em Salzburgo. Quando fala do suicídio, especula sobre a “carga ancestral inerente à descendência” dos seus, já que vários de seus parentes se suicidaram. Na época, o autor sequer imaginava que sua filha Lili também acabaria se suicidando, e que praticamente morreria de desgosto por causa disso três anos depois, em 1931.
Perto do final de Juventude em Viena, ademais, o autor começa a manifestar dúvidas de que as páginas autobiográficas terão um prosseguimento. E, de fato, cinco ou seis páginas depois elas chegam ao fim, compondo apenas o painel de uma juventude vienense, o caminho de um homem antes de se tornar artista, o devir de um escritor até o instante em que começa a bafejar a fama…
(1) Ver “Autobiographische Notizen” in: Jugend in Wien. Herausgegeben von Therese Nickl und Heinrich Schnitzler, Frankfurt a. M. 1985.
(2) Tanto O tenente Gustl quanto O caminho para a liberdade já foram publicados nesta mesma coleção.
Valeu a pena esperar quase uma hora por Padura, que dava uma entrevista de última hora em seu quarto para a Folha de São Paulo. Fiquei muito feliz entrevistando o escritor cubano Leonardo Padura. O resultado físico do encontro é a dedicatória que ele escreveu no meu exemplar de O homem que amava os cachorros, mas o resultado intangível e pessoal foi maior.
Abaixo, a dedicatória:
Para o amigo Milton, com o desejo que a vida lhe sorria e que visite Havana.
Com o abraço cubano de Padura
2015
Foto: Elena Romanov
Por algum motivo incompreensível, eu sabia que nos entenderíamos perfeitamente e que meu roteiro de perguntas era bastante adequado a um autor que lera com boa dedicação. O resultado da entrevistafoi acima da média, porém o que mais gostei foi o que ficou, a pedido de Padura, off the record, confidencial. Fiz algumas perguntas sobre o mercado editorial que foram respondidas como se estivéssemos numa mesa de bar. Adentramos outros temas, como a cidade de Havana e a cultura em geral. Aludi ao fato de ter gostado muito de algumas partes de seu maior romance, deixando no ar certa contrariedade com certas proximidades. Ele entendeu e explicou tudo com lógica e sorrisos. Não faria sentido inserir minhas especificidades pessoais numa entrevista que já tinha cinco laudas, mas fiquei com a impressão de que poderíamos ter ficado horas conversando.
Saí de lá com a Fofonka, conversando sobre como a maioria das pessoas brilhantes não são arrogantes. E também sobre o fato de ele não ter perguntado sobre minha formação em literatura, como costumam fazer algumas sumidades da música porto-alegrense, que dizem que eu não entendo nada de sua arte, apesar do meu conhecimento do repertório. No caso de Padura, bastou lê-lo; no caso da música, não basta ouvir. Piada, né?
Acho vale a pena meus sete leitores darem uma olhada no link da entrevista. O Charlles Campos leu:
Rapaz, finalmente publicou a entrevista. Parabéns, Milton! (Pena que eu, claro, não tive meios de saber antecipadamente do evento, assim teria pedido a você o desconfortável favor de requisitar um exemplar do livro com o autógrafo do Padura, prontificando-me a pagar todas as despesas).
O homem que amava os cachorros, recomendação sua, foi um dos melhores romances latino-americanos que li nos últimos vinte anos. Creio que ele perde apenas para A festa do bode.
Note que Padura nunca externou a pretensão de pertencer ao primeiro time dos escritores cubanos. Ele não almeja nem a erudição de Carpentier, nem o esteticismo mirabolante de Cabrera Infante. Ele se contenta em ser um escritor de gênero_ a literatura cubana tem essa semelhança com a literatura norte-americana: se presta muito bem tanto ao alto cânone quanto a uma excelência de gênero. Há um artigo sobre Padura, publicado na revista Piauí, em que Padura diz que seu desejo é ser, apenas, o Paul Auster cubano. Ele conseguiu superar Paul Auster, que nunca escreveu um livro tão intenso e expressivo quanto O homem que amava os cachorros. O livro está sendo muito bem lido aqui no Brasil, e já se encontra em não sei qual reedição.
Sei lá se Thomas Mann está fora de moda — acho que está –, o fato é que ele foi um dos principais formadores deste que vos escreve. Casualmente, fui amigo do maior tradutor de Mann no Brasil, o Dr. Herbert Caro. Eu era um rapaz de uns 20 anos e o Dr. Caro, como o chamávamos, era 51 anos mais velho. Nossa principal ocupação aos sábados pela manhã, na King`s Discos, era a de discutir música, outras das especialidades dos dois mestres, Mann e Caro. Mas mesmo quando o assunto era este, Mann podia aparecer e não só através de seu romance Doutor Fausto, mas de seus comentários e opiniões a respeito.
Como quase todo mundo, conheci Mann através de Os Buddenbrook (tradução de Herbert Caro), o longo romance que publicou aos 26 anos. Depois fui para os pequenos Tônio Kroeger e A Morte em Veneza, empurrado pelo filme de Visconti. Quando conheci Caro pessoalmente, recém tinha lido uma tradução sua, a do maravilhoso A Montanha Mágica. De forma muito insistente, este livro, lido há aproximadamente 37 anos e nunca mais revisitado, permanece em minha memória e faz parte de minha vida interior. Às vezes brinco dizendo que a música é Politicamente Suspeita. Afinal, o personagem Settembrini diz, um tanto absurdamente:
A arte é moral na medida em que desperta. Mas que sucede quando ela faz o contrário? Quando entorpece, adormenta, estorva a atividade e o progresso? Também disso a música é capaz; sabe perfeitamente agir como ópio. Uma influência diabólica, meus senhores! O ópio é uma obra do Diabo, porque causa apatia, estagnação, passividade, inatividade servil… Há na música um elemento perigoso, senhores. Insisto no fato da sua natureza ambígua. Não exagero ao declarar que ela é politicamente suspeita.
E, quando estou irritado, consigo enxergar bem na minha frente o titulo do capítulo A Grande Irritação. Também lembro frequentemente do fascínio de Hans Castorp (minha senha neste computador!), “o filho enfermiço da vida”, pela bela e estranha Clawdia Chauchat e de como tal fascínio serviu para que Hans repensasse os argumentos de Settembrini e formulasse seus próprios pontos de vista. Lembro do capítulo onde o casal travava uma conversação em francês… Lembro também das digressões sobre a passagem do tempo no Sanatório Berghof.
Mas o livro de Mann que mais amo é outra tradução de Caro: Doutor Fausto. O romance tem o formato e as qualidades dos romances do século XIX, mas é o conteúdo é moderno. Começa como uma serena farsa, mas acaba sendo uma amostra do que se veria num inimigo intransitivo de Thomas Mann: Thomas Bernhard.
Leio Doutor Fausto como quem lê uma novela curta. Não noto nada ali que não contribua para compor a narrativa, nada me parece estéril, da primeira a última linha. O nazismo é apenas um viés da narrativa. Seu assunto principal, e Caro falava nisso, é a imortalidade e aquilo que Mann chamava de “a crise da arte ocidental”, tanto que quem irritou-se com o livro foi a Segunda Escola de Viena, na pessoa de Arnold Schoenberg. (Lembrem-se da nota que Thomas Mann teve que acrescentar ao final do livro, atribuindo as teorias dodecafônicas ao Harmonielehre de Schoenberg, e dizendo que associou tais teorias apenas a seu diabólico personagem em contexto fictício, etc.?)
O romance é o canto de cisne de toda uma música e literatura que estava sendo abandonada. Um grande tema, ainda atual.
Meu respeito e, quem sabe, compreensão do livro de Thomas Mann faz com que eu releia sempre e saiba quase de cor toda a explicação do professor Kretzschmar para a Sonata Op. 111 de Beethoven, o capítulo VIII do livro. Muito mais conhecido é o diálogo com o Demônio (Cap. XXV), onde Adrian Leverkühn faz “alguns pequenos acertos” com o homem. São páginas arrepiantes e é curioso que, a partir da leitura do livro – lido quando tinha… de que ano é a tradução de Caro? … 1984? Então tinha 27 anos — passei a relacionar o diabo como algo que exala frio e não calor. Ah, as “impressões equivocadas” dos católicos… Não, nada de fogo, nada de diabinho infantil, estamos falando de um diabo real, meus amigos!
Doutor Fausto é uma história íntima, pessoal, ontológica. O texto fala muito ao sociológico, mas sempre de uma perspectiva íntima. Aquelas chatas argumentações que veem o livro como 100% político — seria uma metáfora do Nazismo e da Europa pré e pós-guerra — servem mais para A Montanha Mágica e o pré-guerra. Acho tão complicado reduzir o Fausto a tal modelo que bocejo só de pensar em reler o esforço de alguns comentaristas, que estreitaram um romance, cujo assunto principal é a mortalidade, a uma mera alegoria política.
A obra de Thomas Mann é imensa. Produzia 3 páginas por dia, todos os dias. Era uma máquina de reflexão e de escrever bem. Produziu romances, novelas, contos, escritos políticos e ensaios. Profundo analista psicológico e estilista consumado, Mann é um goethiano, herdeiro tardio da tradição idealista e romântica alemã e um dos principais autores modernos. Era um clássico em tempos revolucionários e conseguia refletir de forma original e particular o espírito de seu tempo. Sua obra apresenta planos sociais minuciosos, assim como um realismo psicológico preciso e de peculiar minúcia e particularidade. Expressou esteticamente do conflito entre a sociedade, o senso comum e o valor dado à vida — jamais esquecer do capítulo Neve, de A Montanha Mágica — contra o individualismo, o escapismo e o jogo artístico-estético.
Nascido em Lübeck no dia 6 de junho de 1875, Thomas Mann foi filho do comerciante Johann Heinrich Mann e da, curiosamente, da brasileira Júlia da Silva Bruhns, a quem destinou várias páginas descrevendo-lhe o carinho e os belos olhos escuros vindos dos trópicos. Ela escreveu que “A infância tropical na cidade colonial de Parati, cercada pela pujança da mata, as amas negras e as frutas tropicais, seria depois trocada pelas ruelas sombrias da antiga Lübeck, no norte da Alemanha.”
Em 28 de Março de 1941, aos 57 anos, a escritora Virgínia Woolf vestiu um casaco, encheu os bolsos de pedras e afogou-se deliberadamente no Rio Ouse (Sussex, Reino Unido). Antes do ato suicida final, após um colapso nervoso, a escritora deixou uma breve carta para seu marido Leonard, que era o melhor conselheiro e editor de Virgínia.
Eis a sentida carta de despedida que Virginia Woolf deixou ao marido (manuscrito e transcrição):
Meu Muito Querido:
Tenho a certeza de que estou novamente enlouquecendo: sinto que não posso suportar outro destes terríveis períodos. E desta vez não me restabelecerei. Estou a começar a ouvir vozes e não consigo concentrar-me. Por isso vou fazer o que me parece ser o melhor. Deste-me a maior felicidade possível. Foste em todos os sentidos tudo o que qualquer pessoa podia ser. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes até surgir esta terrível doença. Não consigo lutar mais contra ela, sei que estou destruindo a tua vida, que sem mim poderias trabalhar. E trabalharás, eu sei. Como vês, nem isto consigo escrever como deve ser. Não consigo ler. O que quero dizer é que te devo toda a felicidade da minha vida. Foste inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom. Quero dizer isso — e toda a gente o sabe. Se alguém me pudesse ter salvo, esse alguém terias sido tu. Perdi tudo, menos a certeza da tua bondade. Não posso continuar a estragar a tua vida. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.
A Brasiliana Fotográfica identificou a presença de Machado de Assis na fotografia da Missa Campal de Ação de Graças pela Abolição da Escravatura realizada no dia 17 de maio de 1888, no Campo de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. O autor da foto foi Antonio Luiz Ferreira.
A identificação de Machado de Assis foi confirmada por Eduardo Assis Duarte, doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (USP) e professor da Faculdade de Letras da UFMG. Segundo ele, Machado de Assis teve uma “atitude mais ou menos esquiva na hora da foto, em que praticamente só o rosto aparece, dando a impressão de que procurou se esconder, mas sem conseguir realizar sua intenção totalmente. Atitude esta plenamente coerente com o jeito tímido que sempre adotou em público, uma vez que dependia do emprego público para viver e eram muitas as perseguições políticas aos que defendiam abertamente o fim da escravidão.”
Ali, à direita, meio escondido atrás do senhor de barba branca
O escritor paulistano Ricardo Lísias (1975) vem construindo uma sólida carreira literária. Estreou em 1999 com um romance, Cobertor de Estrelas; figurou na lista da Granta como um dos mais promissores escritores brasileiros; foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2010. O justo reconhecimento literário é contrabalançado pela dualidade amor e ódio, gerada pelas posições assumidas pelo autor.
Apesar da fala mansa, Ricardo gosta de comprar uma boa briga. Ganhou a cena em 2013 com a publicação de Divórcio, sem dúvida um dos livros brasileiros mais debatidos dos últimos tempos. Aqueles que achavam que encontrariam um relato que alimentaria taras voyeurísticas perderam a viagem. O livro faz duras críticas aos mecanismos da grande imprensa, com a sua indústria de fofocas, o uso indiscriminado do off, as tentativas de intimidar os descontentes e a criação de celebridades vazias.
No papo que segue, gravado em Porto Alegre quando de sua passagem pela PUCRS para ministrar um curso sobre escrita criativa, Ricardo fala de literatura, de política e da imprensa cultural. Sem papas na língua.
“Isso é uma coisa engraçada. As pessoas me acusam de não representá-las em seus anseios políticos. Ora, eu não sei quem eles são! Por que estão decepcionados?” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21: O romance Divórcio foi um raro sucesso comercial brasileiro, não?
Lísias: Minha editora tem uma contagem online e há mais de 1000 textos de mais de um parágrafo falando sobre Divórcio. Mesmo a grande imprensa, que fez algumas besteiras, deu espaço ao livro. Eu sabia que teria repercussão, mas não imaginei que seria tanta. Há duas semanas, o livro foi citado num programa de TV, o Saia Justa. Os caras têm uma audiência espantosa. A atriz Maria Ribeiro, participante do programa, recomendou o livro. Três minutos depois de ela ter falado, eu já estava recebendo mensagens no celular. No sábado daquela semana, já não havia nenhum exemplar em São Paulo. Fui às livrarias e perguntei sobre Divórcio. A resposta era de que tinham falado dele na TV e que tinham vendido tudo. O alcance desses caras é espantoso.
Sul21: Isso nos faz pensar que se nossa TV tivesse bons programas sobre literatura, como há na Europa, a divulgação da literatura no Brasil seria muito diferente?
Lísias: Ah, certamente ajudaria nas vendas. Maria Ribeiro completou a obra escrevendo o mesmo no Twitter. Disse que não conseguiu largar o livro antes de terminar. E acabou. Simples assim. Essa frase fez esgotar o livro. O resultado é que vão fazer mais uma edição.
Sul21: Indo na direção de tua formação, Beatriz Resende afirmou em uma mesa redonda com o Alcir Pécora que pode sair um escritor de qualquer curso universitário, menos de uma Faculdade de Letras.
Lísias: Fiz graduação em Letras na Unicamp porque gostava de ler. Usei a Faculdade para ler os clássicos. Quando fui fazer mestrado, ainda achava que ia seguir a carreira acadêmica. Continuei estudando, mas no doutorado entrei numa espécie de crise de representatividade. Eu achei que não deveria ser professor de literatura, porque as minhas opções como ficcionista não batiam com qualquer currículo de Letras. Falando no que disse a Beatriz, acho que a origem do autor não interessa, temos que atentar para seu texto. Talvez a fala dela deva ser interpretada mais como uma crítica mais aos cursos de letras do que a seus alunos. Acho que no passado a coisa era mesmo muito ruim. Hoje em dia as Faculdades de Letras tratam a literatura contemporânea com maior leveza e interesse. Para mim, a Faculdade foi bastante importante.
Sul21: Tu te vês mais como escritor ou como professor?
Lísias: Eu dou aula numa Faculdade pequena. Dou aula de Língua Portuguesa, de gramática. Normalmente, só falo em literatura como convidado, na condição de ficcionista. Quem me ouve falar para efeitos de currículo, não me ouve falar em literatura. Quem me ouve falar sobre literatura está lá porque quer. Neste caso, estou inteiramente livre para falar sobre minhas opções literárias, sobre meu projeto literário. O professor e o escritor são dois fatos paralelos.
“Não vou lá tomar chá na Academia, não, ainda mais na companhia do Sarney” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21: E que autores são de tua preferência?
Lísias: São os do alto modernismo, tanto o europeu quanto o brasileiro. Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Joyce, Kafka, Proust, os bons.
Sul21: Eu acompanho tuas postagens no Facebook…
Lísias: Cuidado, muitas vezes eu estou bêbado.
Sul21: Ah, nós também. Ficamos no mesmo patamar. (risos) O que chama a atenção é que quando tu elogias obras, estas são sempre do modernismo. Tu citaste Os Últimos Dias da Humanidade do Kraus, Ulysses de Joyce. São raras as menções à literatura contemporânea, outro dia citaste o Vladímir Sorókin, um cara contemporâneo que flerta com a vanguarda. Quais os contemporâneos que estás lendo?
Lísias: Eu curto muito a literatura marginal. Em São Paulo este movimento é muito forte. Alguns autores são excelentes, discutindo questões prementes e atraentes. Também gosto da Elvira Vigna. Na literatura marginal há muita gente boa que não está ligada às grandes editoras. Eles fazem algo muito cru. O líder é o Ferrez, um bom escritor. Eles falam na violência urbana sem a mediação da classe média. Gosto de outros autores como o Cristóvão Tezza, por exemplo.
Sul21: Na semana passada, foi publicado que tu és um futuro candidato à Academia Brasileira de Letras, junto com outros autores ditos novos. O que achas? Que cadeira tu gostarias de ocupar lá?
Lísias: (risos) Não quero saber dum negócio desses, pô. Ninguém me perguntou nada. Eu chego no hotel ontem, aqui em Porto Alegre e vejo que sou candidato junto, por exemplo, com uma autora de que gosto, que é a Vanessa Bárbara. Tu achas que eu me preocupei? Não quero saber disso, eu quero viver. Não vou lá tomar chá, não, ainda mais na companhia do Sarney. Além disso, candidato no Brasil morre…
“Se um autor chorar num evento no Brasil, a plateia chora junto e pode virar fenômeno. Se você fizer o mesmo na Argentina, a plateia vai se retirar dizendo que o cara é um chorão” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21: Em vários momentos da tua obra trabalhas com o narrador em primeira pessoa. Como trabalhas com os riscos de confundir o autor Ricardo Lísias com o personagem, às vezes também chamado Ricardo Lísias?
Lísias: O Ricardo Lísias é um personagem ficcional como qualquer outro. A primeira pessoa do singular ou o personagem Lísias não desficcionalizam o romance. O meu romance Divórcio foi tomado inicialmente pela boataria. Isso foi gerado por alguns contos anteriores que escrevi sobre o tema do divórcio. Pessoalmente, eu também vinha de um processo de divórcio traumático. Em São Paulo, houve a expectativa de que eu escreveria um livro sobre o meu divórcio, a fim de lavar roupa suja. A imprensa pensava isso. Mas o que veio foi um livro de ficção, não o que as pessoas esperavam. O grupo mais intelectualizado, a maioria, logo percebeu, mas outro grupo não aceitou que o livro não alimentasse a boataria. Então, incorreram em erros ginasiais de leitura. Um deles foi especialmente ridículo. Eu sou corredor, já corri inclusive a São Silvestre. E há um personagem que está se divorciando e que, para sobreviver, adota a corrida de rua. Muita gente achou que eu, por ser corredor, estava colocando minha experiência no personagem. Não era bem isso. O treinamento de três meses que o personagem fez para correr a São Silvestre – e que está explicitado no texto — era um completo absurdo, uma coisa que devia revelar a completa ignorância dele sobre o assunto. Era um desvario completo. Mas muitos desses leitores pensaram que aquilo era uma espécie de método para correr a São Silvestre. Um professor de Educação Física daria risada daquilo. Duas revistas de corrida, surpreendentemente, resenharam o livro. Elas não caíram no conto do treinamento. Os de literatura, sim. O treinamento dele é o de um cara transtornado. Este é um dos exemplos de erros causados pela falta de informação. Desficcionalizar pode gerar monstros. E o pior é que não adianta eu negar. Um grupo da imprensa segue afirmando que é autobiográfico. Eles querem que seja. Nada do que eu faça ou diga ou negue adianta.
Sul21: Aconteceu também com O Céu dos Suicidas, não?
Lísias: Tanto Divórcio quanto O Céu dos Suicidas têm pontos de partida em experiências pessoais e traumáticas. O problema é que isso não significa que o livro é de não-ficção. O Céu dos Suicidas parte do caso de um amigo muito próximo que cometeu suicídio. Porém, no meio do livro, o personagem Ricardo Lísias é sequestrado pelo Hamas. É claro que só pode ser invenção! Divórcio também é ficcional. Acho que esta desficcionalização tem o objetivo de despolitizar o livro, de aliviar as críticas que há no livro sobre o trabalho da imprensa. É um erro tornar tudo pessoal. Minha crítica não é generalizada, é a alguns setores da imprensa, é uma crítica específica. Por exemplo, ontem, li sobre o rapaz que ganhou esta medalha de matemática (Artur Ávila, ganhador da Medalha Fields). Fui tentar saber o que ele fazia, qual era seu trabalho na área. Pois entrevistaram o orientador de sua tese, mas nada do que ele fazia foi explicado. Era só pedir para um professor de matemática escrever 30 linhas explicativas… mas não foi feito isso.
Sul21: Já que exploras bastante o problema do “off”, o que dizer do caso Genoíno?
Lísias: Sim. Li ontem que “pessoas muito próximas ligadas a José Genoíno” afirmaram isso e aquilo. Bem, ele estava preso. Então, tais pessoas são ou o José Dirceu, ou outro companheiro de cela, a mulher, a filha ou os carcereiros. Bem, quem foi? Essa informação é importante. Se o Dirceu traiu o Genoíno para ajudar um grande jornal é fundamental informar. Ou será apenas uma construção do jornalista? Isso é um descalabro que acontece diariamente nos grandes jornais. São “fontes”, “pessoas”, etc. E, juridicamente, o jornalista não precisa dizer a origem, pode ocultar a fonte. Ou seja, o cara pode destruir a vida de uma pessoa sem dizer a fonte. E fonte anônima tem todo dia no jornal. Divórcio fala nisso.
“Na verdade, eu trabalho com traumas. Me interessa muito como o trauma é desconsiderado pela sociedade” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21: Tu tens algumas diferenças com a imprensa…
Sul21: A leitura que alguns grupos da imprensa fizeram do meu livro Divórcio confirmam a crítica que o livro faz a eles. O que eu não esperava era que as pessoas fossem cair como patos nas minhas esparrelas. Ingenuidade minha? Talvez… No romance O Céu dos Suicidas, Ricardo Lísias foi campeão Pan-americano de xadrez aos 13 anos. Eu nunca fui campeão de nada, sou um jogador canhestro. A leitura é tão primária que basta você digitar no Google o nome do adversário de Ricardo para notar que tudo aquilo é ficção, mas teve gente que disse que bastava me conhecer para ter certeza que eu fora um ex-campeão de xadrez. Meu adversário é um enxadrista que existe e é muito velho, muito mais do que eu. Depois, com o tempo, o livro cercou-se de um aparato crítico que afastou o besteirol.
Sul21: Tens algum caso pessoal de declarações tuas que foram alteradas?
Lísias: Sim, dei uma entrevista e apareceu uma palavra que eu não tinha dito. Era algo significativo. A entrevista fora por e-mail e apareceu uma palavra que eu não dissera. Falei com o entrevistador. Ele me respondeu que eu deveria entender, que o trabalho no jornal era precário, com horário de entrega, que às vezes dava confusão, etc. Eu insisti na reclamação, disse que muitos profissionais trabalhavam sob pressão e que eu não poderia aceitar como justificativa a precariedade do trabalho do jornalista. A resposta foi de que eu estava atacando a imprensa brasileira, que eu queria calar o trabalho do jornalista… Aí eu respondi que estava bem, OK. Subsiste, em São Paulo, a fama de que eu sou meio mau caráter, já escreveram que eu teria copiado um diário de outra pessoa, etc. Porém, em ficção, jamais retratei uma pessoa viva e nem fui processado. O que escrevo é contra um determinado grupo político que é elite paulistana. Não são pessoas isoladas. Escrevo às vezes contra aquela gente que vive em Paris estando em São Paulo.
Sul21: Tu estavas numa Feira Literária na Argentina e disseste que lá tudo era diferente.
Lísias: Sim, lá a relação com a literatura é totalmente diferente. Por exemplo, se um autor chorar num evento no Brasil, a plateia chora junto e pode virar fenômeno. Se você fizer o mesmo na Argentina, a plateia vai se retirar dizendo que o cara é um chorão. Lá, o pessoal quer discutir e argumentar. Aliás, meus livros são muito bem recebidos na Argentina. Mas é bom dizer que não tenho ressentimento nenhum da forma como são recebidos em lugar nenhum.
Sul21: Tu tens predileção por personagens obsessivos, não?
Lísias: Sim, acho que esta é uma questão contemporânea. Na verdade, eu trabalho com traumas. Me interessa muito como o trauma é desconsiderado pela sociedade. Por exemplo, eu conversei com um segurança do metrô de São Paulo, e perguntei sobre o que eles fariam se um cara sentasse num banco do metrô e chorasse a tarde inteira. A resposta foi a seguinte: se ele não incomodar ninguém e não quebrar nada, se não atacar o patrimônio, a gente não faz nada. Ou seja, ninguém vai lá perguntar se ele precisa de alguma coisa. O desarranjo psíquico está naturalizado.
Sul21: Tu tens um discurso político forte. Discutiste as manifestações de junho, a Copa, etc. Já tiveste leitores que admiravam tua literatura e que manifestaram decepção a respeito de tuas posições mais à esquerda. Ou seja, as pessoas não desejam saber das posições políticas.
Lísias: Isso é uma coisa engraçada. As pessoas me acusam de não representá-las em seus anseios políticos. Ora, eu não sei quem eles são! Por que estão decepcionados? Isso é causado por dois motivos: as pessoas leem os livros e sentem-se próximas a mim, então se aproximam… E discordam. Também há aqueles que me escrevem coisas que só diriam para seu psicanalista. Acham que estão me repassando material para romances. Há dificuldade de aceitação, no Brasil, do aspecto ideológico da arte. A arte, aqui, ainda é recebida pelo ponto de vista do afeto, da emoção. Não é o que ocorre na Argentina, por exemplo, que tem uma relação mais madura com o fenômeno. Lá, a politização é imediata.
“Se você for convidado por uma Secretaria de Cultura do PSDB e se declara eleitor do PSOL, você deixará de ser convidado. Então, grandes autores brasileiros são hoje chapa branca” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21: No passado, Graciliano e Jorge Amado foram do PCB, Erico, que foi um moderado, enfrentava a ditadura militar, os intelectuais tomavam posições e isto era normal. Hoje, o leitor pede que o autor seja inodoro, há uma certa, por assim dizer, esterilização do autor.
Lísias: Isso é de hoje! É um fenômeno atual. As artes, no Brasil, estão crescendo muito e se profissionalizando. Então, os autores passaram a viver de eventos, de suas participações em eventos. Não há mal nenhum nisso. Porém, quando você se posiciona, acaba por decepcionar 50% e fecha mercado para si mesmo. Se você for convidado por uma Secretaria de Cultura do PSDB e se declara eleitor do PSOL, você deixará de ser convidado. Então, grandes autores brasileiros são hoje chapa branca. O mesmo vale para concursos literários. Há alguns sérios, outros não. Então é melhor ficar em silêncio. A cultura da boquinha não é geral, mas existe. Há uma preocupação em manter boas relações. Na época do Graciliano não havia eventos.
Sul21: Tu e a Vanessa Bárbara foram muito participativos durante as manifestações de junho.
Lísias: Sim, e acho que ela foi mais aguerrida do que eu. Fomos para a rua e escrevemos a respeito.
Sul21: O João Ubaldo dizia que não tinha muitos amigos escritores e que não gostava de falar em literatura. Perguntaram para ele “quando tu encontras um escritor, vocês falam sobre o quê?”. E ele respondeu, “de dinheiro!”. Tu curtes o papo literário?
Lísias: Não, tenho poucos amigos escritores, mas não tenho problemas de falar sobre literatura para um público atento. Gosto da troca de ideias em um evento especializado, apesar de meu círculo mais próximo ser extraliterário. Vou, em média, a um evento por mês. Não tenho preconceito, mas seleciono.
Sul21: E agora?
Lísias: O próximo livro é uma coletânea de contos e depois virá um romance sobre o mundo das artes plásticas. Elas estão envolvidas com uma quantidade de dinheiro que até Deus duvida.
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Publicações de Ricardo Lísias:
· 1999 – Cobertor de estrelas (Rocco)
· 2001 – Capuz (Hedra)
· 2004 – Dos nervos (Hedra)
· 2005 – Duas praças (Globo)
· 2007 – Anna O. e outras novelas (Globo)
· 2009 – O livro dos mandarins (Alfaguara)
· 2012 – O céu dos suicidas (Alfaguara)
· 2013 – Divórcio (Alfaguara)
Georges Simenon vendeu aproximadamente 500 milhões de volumes de suas novelas e romances. Trata-se de um excepcional caso de sucesso popular e de crítica. Durante toda a sua vida, os leitores e editores pediram-lhe um grande romance através do qual o autor pudesse ser apresentado. A resposta era sempre a mesma:
– Minha grande obra é o mosaico formado por meus pequenos romances.
Grosso modo, podemos dividir sua obra em duas partes: os romances policiais com ou sem o célebre detetive Maigret e os duros romances psicológicos que lhe valeram o apelido “Balzac de Liége”, recebido de ninguém menos que André Gide. A popularidade destes livros não deixa de impressionar, pois são escritos em tom menor, são nada solares, sendo antes cheios de personagens deprimentes e deprimidos. Com suas ações quase sempre em cidades pequenas, Simenon envolve-nos numa triste realidade provinciana, onde o mal comanda.
O método de produção de Simenon é curioso. Ele escrevia seis ou sete romances ou novelas por ano, mas elas não lhe saiam continuamente e sim como espasmos. A história era inventada em 30 ou 40 dias em sua imaginação. Era o período de não escrever, de caça à história, quando ele passeava, ia a bares e convivia com as pessoas. Então, ele avisava aos familiares que trabalhar e todos sabiam o que aconteceria – ele sumiria em seu escritório por algo entre 10 e 20 dias. Nestes períodos, ninguém deveria falar com ele e a ordem era apenas alimentá-lo. Se um fato externo o interrompesse, abandonava o trabalho.
De certa forma, tal concentração está presente em seus trabalhos. As narrativas, a forma de envolver o leitor são via de regra impecáveis. A modernidade não está num trabalho de linguagem ou em tramas complexas ou contrapontísticas, está no fato de que o autor se exime dos princípios morais, apresentando tramas simples onde as atitudes são descritas de forma distante, muitas vezes cruel. Não há Deus nem julgamento, há sucessão de fatos que são jogados ao leitor no momento exato e que fazem excelente literatura.
Acabo de ler O Burgomestre de Furnes, um extraordinário estudo sobre o embrutecimento, o ódio e a avareza. Joris Terlink é o burgomestre que comanda a população, a economia e os conselheiros do povoado. Todos o temem e ele é consultado para tudo. Sua vida pessoal está associada a diversas tragédias, recentes e antigas: uma filha doente mental que é mantida presa em seu quarto sob o argumento de que não haveria um lugar melhor para ela, o câncer da mulher, os vários filhos fora do casamento – o quais são ignorados por Terlink – e a própria gestão de Furnes, cuja falta de solidariedade produz um suicídio no início da história. Há algo menos sedutor? Terlink é um monstro absoluto, circundado de idiotas que têm dificuldade de viver sem ele, mas a segurança com que Simenon leva sua narrativa não é menos monstruosa e sem compaixão.
Além do Burgomestre, os maiores romances desta face de Simenon provavelmente são Sangue na Neve, O homem que via o trem passar, O gato e Em caso de desgraça. Todos podem ser encontrados bem baratinho por aí. Saíram também em pockets.
Alguma coisa em O homem que amava os cachorros me lembra Camus.
A morte de Camus, num medíocre acidente de automóvel, aos 46 anos, lembra Moscou. Só hoje descobri que não apenas eu faço a relação. O escritor e tradutor checo Jan Zabrana sugere a possibilidade de que Camus tenha sido assassinado por ordem do Ministro das Relações Exteriores da URSS, Dmitri Shepilov, em retaliação à oposição aberta que o escritor vinha fazendo ao país — particularmente no artigo publicado na revista Franc-Tireur de março de 1957, em que atacava pessoalmente o ministro, responsabilizando-o pelo que chamou de “massacre”, durante a repressão soviética à Revolução Húngara de 1956.
Em sua crítica, Camus citara o poeta americano Walt Whitman. Afirmara “sem liberdade, nada pode existir”. Ganhou assim, a inimizade de stalinistas e de simpatizantes da URSS. Olivier Todd, no livro Albert Camus — Uma Vida (Record, 877 páginas), relata o acidente:
A vinte e quatro quilômetros de Sens, na Rodovia 5, entre Champigny-sur-Yonne e Villeneuve-la-Guyard, o Facel-Véga, depois de uma guinada, sai da estrada em linha reta, se arrebenta contra um plátano, ricocheteia para cima de uma outra árvore, se desmantela. Michel Gallimard sai gravemente ferido — morreu cinco dias depois –, Janine ilesa, Anne também. O cachorro desaparece, Albert Camus morreu na hora. O relógio do painel é encontrado bloqueado às 13h55. A seus amigos, Camus dizia com frequência que nada era mais escandaloso do que a morte de uma criança e nada mais absurdo do que morrer num acidente de automóvel.
As mulheres, durante séculos, serviram de espelho aos homens por possuírem o poder mágico e delicioso de refletirem uma imagem do homem duas vezes maior que o natural.
Não é isso mesmo? É assim que me sinto quando Elena me observa, me dá atenção ou revela alguma admiração. Um gigante. Os homens são BOBOS.
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2. A estátua de Davi foi levada a diversos museus norte-americanos por um período de três meses, mas agora está de volta à Florença.
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3. Mia Couto:
O tempo é, como diz um provérbio de minha terra, um ovo: se não se segura bem, cai; se se aperta com força, quebra.
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4. Pablo Picasso:
Eu estou sempre trabalhando. Assim, quando a inspiração chegar, vou estar trabalhando.
Bach disse quase o mesmo. Comprovadamente, ambos trabalharam muito.
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5. Ontem, num restaurante onde sempre vou, o garçom me ofereceu a cerveja Coruja de sempre. Rejeitei-a, pois estava dirigindo. Ele respondeu que é o fim do mundo.
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6. Orhan Pamuk:
A pergunta que, com maior frequência, é dirigida a nós, escritores, a pergunta favorita, é: por que vocês escrevem? Escrevo porque tenho uma necessidade inata de escrever. Escrevo porque não posso ter um trabalho normal como as outras pessoas. Escrevo porque quero ler livros iguais aos que eu escrevo. Escrevo porque estou irritado com todo mundo. Escrevo porque adoro ficar sentado numa sala, escrevendo o dia todo. Escrevo porque só consigo tomar parte da vida real transformando-a. Escrevo porque quero que os outros, o mundo inteiro saiba que tipo de vida nós vivíamos e continuamos a viver, em Istambul, na Turquia. Escrevo porque amo o cheiro de papel, caneta e tinta. Escrevo porque acredito na literatura, na arte do romance, mais do que em qualquer outra coisa. Escrevo porque é um hábito, uma paixão. Escrevo porque tenho medo de ser esquecido. Escrevo porque gosto da glória e do interesse gerados pelo ato de escrever. Escrevo para ficar sozinho. Talvez eu escreva porque espero entender porque estou tão, tão irritado com todo mundo. Escrevo porque gosto de ser lido. Escrevo porque, tendo começado um romance, um ensaio, uma página, eu quero terminar. Escrevo porque todo mundo espera que eu escreva. Escrevo porque tenho uma crença pueril na imortalidade das bibliotecas e na maneira como meus livros ficam na estante. Escrevo porque é instigante transformar todas as belezas e riquezas da vida em palavras. Escrevo, não para contar uma estória, mas para compor uma estória. Escrevo porque desejo escapar do mau presságio de que há um lugar aonde eu devo ir, mas aonde – como num sonho – não posso chegar por completo. Escrevo porque nunca consegui ser feliz. Escrevo para ser feliz.
O fato de um escritor tão imenso quanto Louis-Ferdinand Céline (1894-1961) ter sido um antissemita dos mais abjetos sempre foi, no mínimo, perturbador. Em 2011, quando completou 50 anos de morte, Céline recebeu uma curiosa “des-homenagem” oficial. O Ministro da Cultura da França, Frédéric Mitterrand, retirou o nome de Céline das Célébrations Nationales. O motivo era o de sempre: “o antissemitismo virulento” do escritor e seus desprezíveis panfletos. O Ministro afirmou que apesar de seu talento, “não se deve esquecer o homem que fez a apologia do assassinato de judeus durante a ocupação. Não é digno que a República o celebre”. Um intenso debate seguiu-se e o Ministro afirmou que a retirada consistia numa moção de repúdio.
O professor emérito da Sorbonne, Henri Godard, ficou indignado: “É uma forma de censura. É perfeitamente possível distinguir os dois Céline: o grande escritor e o antissemita. O ato não constitui numa reparação às vítimas do antissemitismo, só as transforma em culpadas involuntárias de um ato de censura a um excepcional escritor”. Frédéric Vitoux, da Academia Francesa e biógrafo de Celine, afirmou que remover o nome de Céline de um catálogo é tão bobo quanto o fato de Stalin ter apagado das fotos oficiais os líderes comunistas de quem não gostava. “Isso não contornará o fato de que Céline foi um escritor genial, traduzido inclusive em hebraico. O que fazer, devemos queimar a tradução hebraica de Viagem ao Fundo da Noite?”.
O escritor viu seu asilo na Espanha de Franco impedido por de Gaulle.
Amado e odiado, Céline é uma glória das letras europeias. Em 1950, foi julgado e condenado pela República Francesa a um ano de prisão e a pagar 50 mil francos de multa. O governo confiscou cerca da metade de seus bens. O escritor ficou proibido de votar e ser votado, de portar armas e pleitear cargos públicos e não podia trabalhar em jornais, escolas e bancos. Quando a Segunda Guerra acabou, Céline pediu asilo a Franco, mas de Gaulle impediu pessoalmente que o ditador espanhol o recebesse, dizendo a Franco que tal asilo atrapalharia as relações diplomáticas e comerciais entre os dois países.
Nesta semana, ao completar 120 anos de nascimento, as homenagens a Céline partiram mais dos países de língua inglesa do que da França. Mas por que Céline é importante? Porque, na primeira metade do século passado, numa época em que os escritores e compositores experimentalistas tornavam suas obras mais e mais impenetráveis, Céline renovava a literatura utilizando-se da língua falada. É claro que a expressividade de Céline era muito estilizada, tratava-se de uma linguagem fabricada, mas o gosto pelas expressões orais e populares faziam parte de seu projeto, mesmo que seus temas fossem tão pouco seculares quanto a morte e a guerra. Suas posições políticas e opiniões não se fazem presentes em seus romances, apenas nos panfletos.
Amor às reticências. Um pontilhista como Seurat e Signac…
Seu primeiro romance foi o citado Viagem ao Fundo da Noite. A “viagem” é a aventura que se vive até a morte certa. Seu segundo romance, chama-se Morte à Crédito.
Quando se abre um livro de Céline, em qualquer página, toma-se um susto. O escritor simplesmente adorava as reticências. Suas páginas estão cheias delas, ao lado de uma linguagem fácil e fluida, raivosa e debochada. “As reticências arejam a frase”, dizia. A impressão que se tem é a de que o escritor raramente finaliza suas frases… Ele mesmo brincava que era pontilhista como os pintores Seurat e Signac. Já os estudiosos de sua obra garantem que a linguagem simples era resultado de uma elaboração rigorosa. Ou seja, ela parece simples, porque calcada na linguagem oral, mas é finamente elaborada. A tradutora Rosa Freire d’Aguiar anota: “Desde seu romance de estreia, Viagem ao Fim da Noite, de 1932, Céline forjou uma língua própria, incorporando gírias, corruptelas e palavrões, criando onomatopeias, elipses, rimas e neologismos”.
Seu estilo é raivoso e requer estômago forte. Por exemplo, a descrição que ele faz de uma viagem de barco em Morte à Crédito (1936) é algo inacreditável. O barco começa a jogar de um lado para outro e Céline não recua ao descrever a verdadeira epidemia de vômito que acomete os participantes. Não é um escritor que evite descrições por pudor.
Herói e inválido na Primeira Guerra Mundial.
Nascido em 1894 em Courbevoie, periferia de Paris, em uma família de classe média baixa, Céline recebeu uma instrução escolar convencional antes de se incorporar ao exército francês em 1912, durante a primeira Guerra Mundial. Por ter levado a cabo uma missão de reconhecimento arriscada no setor de Ypres (Flandres Ocidental), foi condecorado como Herói de Guerra. No conflito, sofreu ferimentos na cabeça que lhe deixaram um zumbido recorrente no ouvido. Foi declarado inválido de guerra.
Depois, em 1916, esteve em Camarões trabalhando numa empresa francesa de madeiras. Retornou à França no ano seguinte. Trabalhou também numa fábrica de automóveis, enquanto começava o curso de Medicina. Em 1919 casou-se com Edith Follet, filha do diretor da Escola de Medicina de Rennes. Em 1920 nasce a sua filha Colette e dois anos depois Céline recebe a licenciatura em Medicina, tendo por tese um trabalho sobre o médico Ignaz Philipp Semmelweis.
Semmelweis em 1858. A tese de Céline é lida ainda em nossos dias
Esta tese é pura literatura e está publicada no Brasil, em livro da Companhia das Letras. É um relato espantoso e envolvente sobre a perseguição sofrida por Semmelweis pelo simples fato de ele ter sido o médico que tentava introduzir o ato de lavar as mãos e a esterilização de instrumentos e utensílios antes de quaisquer operações cirúrgicas. As estatísticas mostravam que seus pacientes morriam menos, mas a novidade era tão incompreensível para a época que o húngaro Semmeweis (1818–1865) só podia estar brincando ao fazer pouco da habilidade de quem fazia os procedimentos sem lavar as mãos.
O húngaro constatou que, quando se obrigava os médicos obstetras a lavarem as mãos antes de se aproximarem das parturientes, a proporção de infecções caía de 30% para menos de 1%. Vítima da hostilidade e da zombaria dos círculos médicos, Semmelweis foi expulso do hospital, teve de deixar Viena e acabou não somente alijado do mundo científico como internado num hospício… Tornou-se o primeiro grande personagem de Céline. A repercussão da tese de Céline, que não continha nenhuma novidade, ultrapassou muito o campo da medicina.
A morte, portanto, está presente na obra de Céline desde sua tese. Na verdade a morte já estava em sua vida desde a Primeira Guerra Mundial. Céline disse que tinha matado uma dezena de pessoas no conflito e que aquilo o afetava. Talvez tenha sido para aliviar a própria dor que Céline começou a escrever, o que acabou dando origem ao seu primeiro e melhor romance: Viagem ao Fundo da Noite.
Viagem narra a história de Ferdinand Bardamu, que luta na Primeira Guerra Mundial, envolve-se em uma empreitada de colonização na África, trabalha na linha de montagem da Ford nos Estados Unidos e termina em um subúrbio pobre de Paris, trabalhando em um manicômio. O romance é um grande retrato da loucura, mas da loucura não de um homem só, mas de toda a sociedade. Os caminhos de Bardamu reproduzem a própria história da França no começo do século passado, ingressando numa guerra genocida onde ninguém poderia ganhar, num projeto colonial e numa industrialização desumana ao estilo norte-americano da época… Não é casual que pareça que estamos recontando a biografia de Céline. Assim como seu alter ego, o escritor não guardava boas lembranças de nenhuma de suas experiências.
“O amor é o infinito ponto fora do alcance”
O romance é dividido em duas partes. A primeira refere-se à descoberta de um mundo onde a paz e o amor entre os povos parecem impossíveis — por todo lado há homens explorando-se uns aos outros. A segunda parece um prolongamento íntimo do primeira, notavelmente bem escrito. Serve para confirmar que o amor é impossível. Aqui, Céline examina a vontade de dominação e dependência nas relações amorosas. O romance desloca-se do social para o particular a fim de demonstrar que, de forma geral, “o amor é o infinito ponto fora de alcance”.
Morte a Crédito é tão autobiográfico quanto Viagem, só que voltado à infância do escritor. Como Céline, o protagonista também é um médico que descreve suas experiências no subúrbio da capital francesa, atendendo pessoas pobres. Com acidez, o narrador demonstra sua descrença a respeito de tudo. (Talvez seja importante citar que Céline, como médico, era amado por seus pacientes, sendo considerado um modelo de bondade e dedicação). Porém, a descrição de seus pacientes e parentes — dos quais recebia quantias miseráveis — é tão ressentida e permeada pelo ódio que se torna hilária. Todavia, num certo ponto da narrativa há uma ruptura e recuamos no tempo, dirigindo-se para a infância do escritor. O leitor, então, é levado à casa de Céline e de sua família. A vida era complicada. O pai trabalhava numa empresa de seguros e é um homem sem perspectivas e energia. A mãe mantinha a lojinha da família, enquanto a avó vive da renda de alugueis que quase não recebe e os tios não possuem um emprego fixo. Ou seja, todos sofrem com a falta de dinheiro. A narrativa é primorosa na descrição dos sentimentos humanos envolvidos.
Um médico e escritor obcecado pela catástrofe
Mas, ao lado destes romances e de Norte, há os panfletos. O primeiro é Mea Culpa, onde manifesta seu desencanto com o comunismo. Depois vieram os políticos… A pedido do autor, Bagatelas para um massacre, A Escola dos cadáveres e Bonitos os Panos nunca foram reeditados. Dos panfletos antissemitas, apenas o célebre Vão Navios Cheios de Fantasmas pode ser lido.
O ensaísta Dau Bastos frisa que Céline “fez da escrita uma briga só” e nota que “ele mostrou-se tão obcecado pela catástrofe que a ela submeteu seu próprio texto”. Já Simone de Beauvoir confessa que chegou a saber de cor algumas das páginas de Viagem ao Fundo da Noite. O universo de Céline, que nos fala de desastres e das ruínas humanas, foi desfeito após a Segunda Guerra. E ele terminou sua vida exercendo a profissão de médico e não a de escritor em Meudon, no ano de 1961, sentindo a medicina como sua verdadeira vocação e a escrita como um acidente.
Não sou amigo de Airton Ortiz. Conheci-o fazendo uma longa entrevista com ele e, mesmo que não ponha a mão no fogo por ninguém, digo-lhes o que penso: olha, ele deve ter apoiado a ditadura militar tanto quanto eu. Se meus 57 anos servem para alguma coisa, uma delas é conversar com uma pessoa por uma hora e saber mais ou menos quem ela é.
Mas, além da intuição, há fatos. Sua ex-editora, a Tchê, publicou todos os comunas escreventes no Rio Grande do Sul dos anos 80, em especial os ligados ao PRC e ao PCB. Por exemplo, ele publicou obras do futuro ex-governador Tarso Genro e do professor Otto Alcides Ohlweiler.
Só que, na mesma época, a Tchê de Ortiz publicou um livro do então sargento Marco Pollo Giordani, chamado Brasil Sempre. O homem era — ou é, pois ainda vive — um ex-integrante do DOI-CODI e o livro uma resposta ao Brasil Nunca Mais. A tese do livro é de um espetacular absurdo: o autor diz que não houve tortura no País durante o regime militar. A justificativa de Ortiz para publicar o livro é crível: ele me disse que a “obra” disponibilizava uma série de documentos secretos do exército que nós da esquerda queríamos colocar a mão e que só se ele fosse muito louco sonegaria aquelas informações.
Visto do ponto de vista de nossa contemporaneidade, a atitude de Ortiz realmente parece estranha. Mas não guarda nadíssimo em comum com, por exemplo, a Editora Revisão de Siegfried Ellwanger. Ontem, entrei no sebo Nova Roma aqui da Gen. Câmara e dei de cara com o livro do sargento. Olha são, mais de setecentas páginas lotadas de documentos e fotografias. Passei uma boa meia hora examinando o volume. Todo o pessoal da luta armada que era do conhecimento dos milicos está catalogada ali, além de uma série de fotos e documentos sobre aquilo que o autor denomina de Contra-Revolução de 1964. Dilma está lá, claro. Pensando retrospectivamente, acho que, na posição do Ortiz, também publicaria o livro em função de seu ineditismo. Isto na época, porque se é hoje aquilo é puro lixo direitista, nos anos 80 era informação desconhecida permeada por um texto repugnante.
Dizer que Ortiz publicou um livro que defende os torturadores é rigorosamente verdadeiro e descontextualizado. A fogueira das vaidades literárias pegou pesado contra ele. Juremir Machado da Silva levantou o assunto no Correio e Alfredo Aquino chutou na Zero Hora, dizendo que a Câmara Rio-Grandense do Livro “profere um insulto aos que foram agredidos com torturas, aos que foram assassinados e feridos pela ditadura militar”. OK, são opiniões. Ou inimizades.
Voltando ao Ortiz. Ele é um homem tranquilo que, quando falou sobre Porto Alegre, trouxe naturalmente à conversa exemplos positivos de Havana — ele escreveu um livro premiado sobre a cidade. É um sujeito que fala de como são enriquecedoras as viagens e o conhecimento da diversidade, de como a gente deve aprender sobre outras culturas, que chega a um país e aprende 300 palavras básicas a fim de ser bem aceito, que fala com admiração dos aspectos culturais da Índia, do Nepal e de regiões da África. Que diz que as viagens pulverizam o preconceito.
E esse cara é pró-repressão e milicos? Tá bom, vão nessa.
Obs.: Sobre as capas na imagem que abre o post. É a primeira edição da Tchê nos anos 80 e a segunda, custeada pelo próprio autor, recém lançada.
Do jornalista e escritor Flávio Tavares, autor de vários bons livros e importante figura na luta contra a ditadura militar, ao receber o titulo de Cidadão de Porto Alegre (citação retirada de ZH):
Recebi (o título) como homenagem às posições independentes, destituídas de fanatismo, intemperança ou rancor que tento manter ao longo de 80 anos de vida. Ao agradecer, frisei que me esforço para ser aberto e sem preconceitos, mas sem ser neutro ou impassível. Não há neutralidade quando o crime nos espreita a cada dia, quando se cultiva o individualismo egoísta e se abandona a solidariedade. Menos ainda quando se degrada a vida no planeta.
No que faço ou escrevo, nos livros e artigos de jornal, nos amores e dores, busco guiar-me pela máxima de austeridade de São Josemaría Escrivá: “Não criemos necessidades. Aquele que menos necessita, mais tem”. Feito isto, a recompensa será a vida.
Tudo bem se São Josemaría Escrivá não fosse o fundador da Opus Dei. Destituído de fanatismo? Sei lá. Sigo gostando do Flávio do passado..
O escritor Bernardo Guimarães (1825-1884), nascido em Ouro Preto e cuja notável austeridade pode ser apreendida na foto abaixo, escreveu A Escrava Isaura. OK, mas comecemos a leitura de seu clássico poema Elixir do Pajé.
O ínclito Bernardo Guimarães
Que tens, caralho, que pesar te oprime
que assim te vejo murcho e cabisbaixo,
sumido entre essa basta pentelheira,
mole, caindo pela perna abaixo?
Ao mesmo tempo em que escrevia o citado romance e também O Seminarista, O Garimpeiro e O Ermitão de Muquém – todos romances medíocres filiados à vertente regionalista da ficção romântica brasileira -, Bernardo….
Nessa postura merencória e triste
para trás tanto vergas o focinho
que eu cuido vais beijar, lá no traseiro,
teu sórdido vizinho!
…criou uma obra poética dotada de dimensão crítico-humorística incomum em meio aos indianismos, arroubos de eloquência e subjetividades lacrimejantes do romântismo brasileiro. (Flora Sussekind).
Que é feito desses tempos gloriosos
em que erguias as guelras inflamadas,
na barriga me dando de contínuo
tremendas cabeçadas?
O Elixir do Pajé, assim como o extraordinário A Origem do Mênstruo, só teve impressões clandestinas em folhetos de poucas páginas.
Qual hidra furiosa, o colo alçando,
co`a sanguinosa crista açoita os mares,
e sustos derramando
por terras e por mares,
aqui e além atira mortais botes,
dando co`a cauda horríveis piparotes,
assim tu, ó caralho,
erguendo o teu vermelho cabeçalho,
faminto e arquejante,
dando em vão rabanadas pelo espaço,
pedias um cabaço!
Um escritor da época, Artur Azevedo, nos revela que “de todos os livros de Bernardo Guimarães, o escrito mais popular é um poema obsceno intitulado Elixir do Pajé, que nunca foi impresso com o nome de seu autor. Porém é raro o mineiro que não o saiba de cor. Há na província um sem-número de cópias desse Elixir inútil e brejeiro.”
Um cabaço! Que era este o único esforço,
única empresa digna de teus brios;
porque surradas conas e punhetas
são ilusões, são petas,
só dignas de caralhos doentios.
A edição oficial das “poesias completas” de Bernardo Guimarães pelo Instituto Nacional do Livro, com data de 1959, omite sem (ou com) pudor alguns de seus poemas e mantém uma atitude de incompreensão diante de sua veia satírica e humorística.
Quem extinguiu-te o entusiasmo?
Quem sepultou-te neste vil marasmo?
Acaso para teu tormento,
indefluxou-te algum esquentamento?
Ou em pívias estéreis te cansaste,
ficando reduzido a inútil traste?
Porventura do tempo a dextra irada
quebrou-te as forças, envergou-te o colo,
e assim deixou-te pálido e pendente,
olhando para o solo,
bem como inútil lâmpada apagada
entre duas colunas pendurada?
Mas além de banir a produção satírica e humorística de Bernardo, os critérios românticos também não se ajustavam à sua lírica, nem sempre em consonância com os padrões da época.
Caralho sem tesão é fruta chocha,
sem gosto nem cherume,
linguiça com bolor, banana podre,
é lampião sem lume,
teta que não dá leite,
balão sem gás, candeia sem azeite.
Coube a Haroldo de Campos, em linhas sumárias mas decisivas, apontar de modo pioneiro a importância deste novo e ignorado Bernardo Guimarães.
Porém não é tempo ainda
de esmorecer,
pois que teu mal ainda pode
alívio ter.
…..
Terá Bernardo descoberto um Viagra indianista e romântico?
Eis um santo elixir miraculoso,
que vem de longes terras,
transpondo montes, serras,
e a mim chegou por modo misterioso.
…..
Com mais de cem anos de clandestinidade e antecipação, o Elixir impõem-se como a manifestação mais integral e debochada daquele indianismo às avessas que Haroldo de Campos teria visto em Oswald de Andrade.
Esse velho pajé de piça mole,
com uma gota desse feitiço,
sentiu de novo renascer os brios
de seu velho chouriço!
…..
No Elixir, uns dos alvos de Bernardo é o ritmo e a retórica de Gonçalves Dias em poemas como I-Juca-Pirama e Os Timbiras. E olha o ritmo do I-Juca-Pirama chegando aí, gente!!!
E ao som das inúbias,
ao som do boré,
na taba ou na brenha,
deitado ou de pé,
no macho ou na fêmea
da noite ou de dia,
fodendo se via
o velho pajé!
…..
E, na sátira ao indianismo, o índio vira sátiro.
Vassoura terrível
dos cus indianos
por anos e anos
fodendo passou,
levando de rojo
donzelas e putas,
no seio das grutas
fodendo acabou!
E com sua morte
milhares de gretas
fazendo punhetas
saudosas deixou…
José Veríssimo declarou que a metrificação de Bernardo é em geral mais rica, mais correta e mais variada que a de outros românticos. E completa dizendo que a forma é também mais clássica, mais simples, mais calma e mais fria. Sintam a calma do próximo trecho.
Feliz caralho meu, exulta, exulta!
Tu que aos conos fizeste guerra viva,
e nas guerras de amor criaste calos,
eleva a fronte altiva;
em triunfo sacode hoje os badalos;
alimpa esse bolor, lava essa cara,
que a Deusa dos amores,
já pródiga em favores
hoje novos triunfos de prepara,
graças ao santo elixir
que herdei do pajé bandalho,
vai hoje ficar em pé
o meu cansado caralho!
Só em Oswald de Andrade (O Santeiro do Mangue) e Gregório de Matos, encontra-se algo próximo a esta grossa prosa de palavrões, erotismo satírico e escatológico, tramada em tão inventiva poesia antipoética.
Vinde, ó putas e donzelas,
vinde a mim abrir as vossas pernas
ao meu tremendo marzapo,
que a todas, feias ou belas,
com caralhadas eternas
porei as cricas em trapo…
Graças ao santo elixir
que herdei do pajé bandalho,
vai hoje ficar em pé
o meu cansado caralho!
…..
Sem mais interrupções, deixo vocês com o final da epopeia.
Este elixir milagroso,
o maior mimo da terra,
em uma só gota encerra
quinze dias de tesão…
Do macróbio centenário
ao esquecido marzapo,
que já mole como um trapo,
nas pernas balança em vão,
dá tal força e valentia
que só com uma estocada
pôe a porta escancarada
do mais rebelde cabaço,
e pode um cento de fêmeas
foder de fio a pavio,
sem nunca sentir cansaço…
Desculpa, tive que interromper novamente. Quinze dias de tesão? O Cialis dá umas 6 horas, o Viagra menos!
Eu te adoro, água divina,
santo elixir da tesão,
eu te dou meu coração,
eu te entrego minha porra!
Faze que ela, sempre tesa,
e em tesão sempre crescendo,
sem cessar viva fodendo,
até que fodendo morra!
Sim, faze que este caralho,
por sua santa influência,
a todos vença em potência,
e, com gloriosos abonos,
seja logo proclamado
vencedor de cem mil conos…
E seja em todas as rodas
d`hoje em diante respeitado
como herói de cem mil fodas,
por seus heróicos trabalhos,
eleito – rei dos caralhos!
Os fragmentos do Elixir aqui publicados foram copiados do livro “Poesia Erótica e Satírica” de Bernardo Guimarães (Imago, 1992). Esta edição tem organização e prefácio de Duda Machado, do qual roubei algumas interrupções que fiz ao clássico Elixir.
Lembrei-me de um texto genial do conterrâneo Aparício Torelly, vulgo Apporelly, vulgo Barão de Itararé, que estranhamente não foi escrito por ele, mas por Graciliano Ramos. Explico: o alagoano Graciliano e o gaúcho Aparício foram companheiros de prisão e lá tornaram-se amigos; conheceram-se em 1936, quando o fascismo do também gaúcho Getúlio Vargas os colocou próximos. Vocês observarão que Apporelly – que recebeu seu título honorífico durante a Revolução de 1930, conforme nos explica Ernani Ssó em comentário a este post… – parecia estar muito bem. O trecho que copiei para meus 7 leitores narra uma conversa entre os dois amigos. Foi retirado de Memórias do Cárcere, do Capítulo 5 da Segunda Parte, Pavilhão dos Primários. Levei horas até encontrar o que procurava e que estava na página 187 do livro lido há muitos anos. Embriaguem-se com Graciliano e o Barão:
Apporelly sustentava que tudo ia muito bem. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida. Ali onde vivíamos, Apporelly afirmava, utilizando seu método, que não havia motivo para receio. Que nos podia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas ainda assim não convinha alarmar-nos, pois esta desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela.