Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXIX – Middlemarch, de George Eliot

O maior de muitos grandes romances vitorianos? Pois após este evento, acabei relendo Middlemarch em casa. Digo em casa porque normalmente leio na rua, no transporte coletivo ou quando pego uma fila qualquer. Descobri um erro naquilo que disse no StudioClio. Houve três encontros entre Dorothea Casaubon e Rosamond Lydgate, mas apenas em um há um diálogo mais longo, razão de meu erro. Confesso que fiquei muito triste quando descobri a coisa. Não vou lá corrigir; afinal, isto é um blog, não é formado por teses acadêmicas.

O que me levou a reler as 877 páginas do livro foi sua tremenda qualidade. Na verdade, recomecei muito lentamente, lendo um capítulo a cada dois ou três dias. Depois, o livro voltou a me envolver de tal forma que queria não saber o que já sabia, mas relembrar de cada detalhe. Valeu absurdamente a pena, pois Eliot tem muito a nos ensinar. Apertada e já desconfortável dentro da estrutura clássica do romance do século XIX, a autora expande os limites da forma até onde pode através de análises psicológicas e sociológicas que apontam para um outro gênero mais livre de romance. Eu também tinha esquecido do Epílogo, aqui chamado um tanto ironicamente de Finale. Em vez de deixar os personagens casadinhos e felizes para sempre, Eliot dá-lhes outras histórias, inclusive referindo à morte prematura de Mr. Lydgate e dando um novo casamento à viúva Rosamond. Quem é este novo marido? Também fica uma enorme interrogação a respeito da história do outro casal protagonista. A vida de Dorothea com Will Ladislaw é descrita no Finale com tão poucos detalhes que o livro deve ter irritado ao leitor vitoriano, acostumado a ver tudo abotoadinho ao término da narrativa.

A obra-prima de George Eliot, Middlemarch , apareceu após as mortes de Thackeray (1863) e Dickens (1870). Isso não é acidental. Subintitulado “um estudo da vida provinciana”, o romance tem um realismo didático que está a um mundo de distância de A Feira das Vaidades ou Grandes Esperanças. De fato, Middlemarch paira sobre a paisagem literária de meados da era vitoriana como um edifício de palavras em cuja vastidão sombria seus leitores podem encontrar todo tipo de desconforto viciante, uma sequência de verdades cruas: a decepção e a solidão do fracasso, as frustrações de sua esposa descontente, a humilhação de uma boa mulher, a amargura corrosiva de Casaubon, e assim por diante.

Poucos personagens de Eliot alcançam o que realmente querem. Alguns aprendem as lições e alcançam uma felicidade temporária. Outros se recusam ou são incapazes de aprender, e passam a vida ressentindo-se de sua situação e culpando os outros. E outros ainda percebem seus erros, mas são presos por uma decisão errada e nunca escapam. Dr. Lydgate é especialmente emblemático de Middlemarch : morre jovem, sendo um homem amargo e decepcionado que sabia que havia se casado com a mulher errada e não podia fazer nada a respeito.

A ação acontece cerca de 40 anos antes do momento da composição. Seus personagens discutem a chegada da ferrovia e o impacto da industrialização em um mundo inglês estabelecido em Midland. Aqui, a metáfora organizadora de Middlemarch se torna “a teia”. No meio dessa teia, encontramos a personagem sobre a qual todos os leitores de Middlemarch vão discutir e se identificar: a figura fascinante de Dorothea, esposa do monstro de frialdade coração frio reverendo Edward Casaubon. Dorothea se torna uma verdadeira heroína porque – apesar de tudo o que sofre, suas humilhações e mágoas – ela ainda tenta ser uma boa pessoa e fazer a coisa certa. Lydgate, em particular, vê isso e entende, para sua grande tristeza, com que tipo de mulher ele deveria ter se casado e quão diferente sua vida poderia ter sido. Em um sentido mais amplo, o destino de Dorothea (e também os tormentos autoinfligidos por Rosamond Vincy) dramatizam outro dos principais temas do romance, o lugar das mulheres em uma sociedade em mudança, mas ainda patriarcal.

Não há soluções fáceis em um grande romance.  Ou não há soluções em um grande romance. Alguns leitores ficarão consternados ao encontrar, nos capítulos finais, Dorothea descobrindo realização em seu trabalho para Will Ladislaw, quando ele se torna um parlamentar reformista. Mas Eliot tem a última palavra, uma página de despedida famosa e profundamente comovente.

No início de 1869, George Eliot listou suas tarefas para o ano seguinte em seu diário, incluindo “Um romance chamado Middlemarch”. No entanto, o progresso foi lento, interrompido pela doença fatal de Thornie Lewes, o segundo filho de seu parceiro George Henry Lewes. Em setembro, apenas três capítulos da história haviam sido concluídos, e quando Thornie finalmente morreu em novembro de 1869, Eliot havia parado de trabalhar em um romance que era, neste estágio, apenas um estudo da sociedade de Middlemarch, com Lydgate, o médico, e sua esposa incompatível Rosamond Vincy, como personagens principais.

No entanto, mais de um ano depois, em novembro de 1870, ela começou a trabalhar em uma nova história intitulada “Miss Brooke”, que apresentou Dorothea. Eliot combinou a história de Dorothea com a narrativa de Lydgate-Vincy, e começou a desdobrar o painel completo de Middlemarch.

À medida que ganhava asas, a obra se tornou tão diferente do tradicional romance vitoriano que John Blackwood, o editor, resolveu lançar o romance em oito partes, em intervalos de dois meses a partir de dezembro de 1871. Os oito livros apareceram ao longo de 1872, culminando nos capítulos finais de novembro e dezembro de 1872, embora a página de título da primeira edição tenha a data de 1871. Middlemarch foi imediatamente reconhecido como uma obra de gênio e garantiu o lugar de Eliot no alto do panteão da ficção inglesa. A primeira edição de um volume foi publicada em 1874 e vendeu bem para um público leitor entusiasmado.

A edição atual da Martin Claret: ótima tradução

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Fui procurar o sobrenome original de Dorothea (Brooke) e vejam o que encontrei:

Lista de personagens (traduzido pelo Google)

Dorothea Brooke
Dorothea é uma mulher de bom coração e honesta. Ela anseia por encontrar uma maneira de melhorar o mundo. Ela acha que Casaubon é um grande intelectual, mas depois que se casa com ele, rapidamente descobre que ele não é apaixonado o suficiente para fazê-la feliz. Ela também descobre que não é tão submissa e sacrificada quanto pensava anteriormente. Ela desenha planos para chalés confortáveis ​​para substituir os prédios em ruínas em grandes propriedades. Ela ajuda Lydgate quando ele sofre por suas conexões com Bulstrode. Ela se apaixona pelo jovem primo de Casaubon, Will Ladislaw. Ela desafia as maquinações de Casaubon e se casa com Will, mesmo que isso signifique perder sua herança como viúva de Casaubon.

Tertius Lydgate
Tertius Lydgate é o filho órfão de um militar. Ele escolheu a profissão médica ainda jovem, para desgosto de seus parentes ricos. Ele vem para Middlemarch esperando testar novos métodos de tratamento. Ele se casa com Rosamond Vincy, cujos hábitos caros o colocam em dívida. Ele pega um empréstimo de Bulstrode e se envolve no escândalo de Bulstrode. Dorothea o ajuda em sua hora mais sombria.

Rosamond Vincy
Rosamond Vincy é filha de Walter e Lucy Vincy. Ela cresce acostumada a um estilo de vida caro. Ela se casa com Lydgate porque acha que ele é rico e porque ele tem parentes titulados. Ela sonha em deixar Middlemarch e viver um estilo de vida aristocrático e emocionante, mas seus gostos caros deixam Lydgate profundamente endividado.

Walter Vincy
Walter Vincy é um modesto empresário abastado na indústria. Ele também é prefeito de Middlemarch. Os gostos caros de Fred e Rosamond o enfurecem. Ele se recusa a emprestar dinheiro a Rosamond e Lydgate para pagar a dívida de Lydgate. Ele é irmão de Harriet Bulstrode.

Lucy Vincy
Lucy Vincy é a esposa de Walter Vincy. Ela é filha de um estalajadeiro, para grande desgosto de Rosamond. Ela adora o filho e não quer que ele se case com Mary Garth. Ela é irmã da segunda esposa de Featherstone.

Fred Vincy
Fred Vincy é o filho mais velho de Walter e Lucy Vincy. Seu pai o manda para a faculdade porque quer que Fred se torne um clérigo, mas Fred não quer trabalhar na Igreja. Ele se endivida com jogos de azar. Ele está acostumado a um estilo de vida luxuoso. Ele causa dificuldades financeiras para os Garths porque não consegue pagar a dívida na qual Caleb Garth co-assinou seu nome. Ele quer se casar com Mary Garth, mas ela não o aceitará a menos que ele encontre uma ocupação estável além da Igreja. Ele espera herdar Stone Court de seu tio, Peter Featherstone. Essas esperanças são frustradas, então ele trabalha para Caleb Garth.

Arthur Brooke
Brooke é o tio solteiro de Dorothea e Celia. Ele é um homem atrapalhado que nunca consegue manter uma opinião, sempre querendo agradar a todos. Ele contrata Will Ladislaw para escrever para seu jornal, o Pioneer. Ele concorre a uma cadeira no Parlamento na plataforma da Reforma, mas deixa seus próprios inquilinos viverem na pobreza e na miséria. O escândalo resultante de sua hipocrisia o leva a melhorar as condições em sua própria propriedade, Tipton Grange.

Célia Brooke
Celia é irmã de Dorothea. Ela se casa com Sir James Chettam.

Nicolau Bulstrode
Nicholas Bulstrode é um rico banqueiro de Middlemarch. Ele é casado com a irmã de Walter Vincy. Bulstrode professa ser um protestante evangélico profundamente religioso, mas tem um passado obscuro: ele fez fortuna como penhorista vendendo bens roubados. Ele se casou com a avó de Will Ladislaw depois que seu primeiro marido morreu. Sua filha havia fugido anos antes, e ela insistiu que Bulstrode a encontrasse antes que ela se casasse novamente, porque ela queria deixar sua riqueza para seu único filho sobrevivente. Bulstrode localizou a filha e seu filho, Will Ladislaw, mas ele manteve sua existência em segredo. Ele subornou o homem que ele contratou para encontrá-la, John Raffles, para ficar quieto. John Raffles o chantageia com essa informação. Quando Raffles fica doente, Bulstrode cuida dele. No entanto, ele desobedece ao conselho médico de Lydgate, e Raffles morre como resultado. Quando o escândalo sobre seu passado e as circunstâncias da morte de Raffles se tornam conhecidas, Bulstrode deixa Middlemarch envergonhado. Ele compra Stone Court de Joshua Rigg Featherstone.

Harriet Bulstrode
Harriet Bulstrode é irmã de Walter Vincy. Ela é uma mulher gentil, honesta e religiosa. Ninguém em Middlemarch a culpa pelos erros do marido. Ela resolve ficar com o marido mesmo depois de saber de seus erros.

Elinor Cadwallader
Elinor Cadwallader é a esposa do Reitor em Tipton Grange, a propriedade de Brooke. Ela nasceu em uma boa família, mas se casou mal e irritou seus amigos e familiares. Ela é uma mulher prática que está sempre tentando bancar a casamenteira para jovens solteiros, incluindo Dorothea, Celia e Sir James.

Humphrey Cadwallader
Humphrey Cadwallader é o reitor de Tipton Grange, a propriedade de Brooke. Ao contrário de sua esposa, ele não acredita em se intrometer nos assuntos de outras pessoas.

Eduardo Casaubon
Edward Casaubon é dono de uma grande propriedade chamada Lowick. Ele é um clérigo erudito. Sua ambição de vida é escrever a Chave para todas as Mitologias, mas ele é inseguro e incerto sobre suas próprias habilidades. Ele se casa com Dorothea porque acha que ela é completamente submissa e adoradora. Sua independência teimosa o frustra, e ele erroneamente acredita que ela o critica constantemente. Casaubon é primo de Will Ladislaw. A irmã de sua mãe foi renegada por sua família por fugir para se casar com um homem de quem eles não gostavam. Sua própria filha, a mãe de Will, também fugiu para se casar. Casaubon oferece apoio financeiro a Will porque se sente obrigado a reparar a deserdação de sua tia. Ele fica com ciúmes do relacionamento de Will com Dorothea. Ele inclui um adendo em seu testamento afirmando que Dorothea perderá sua riqueza e propriedade se ela se casar com Will Ladislaw. Ele morre antes de terminar sua Chave.

Senhor James Chettam
Sir James Chettam é um baronete. Ele é dono de uma grande propriedade chamada Freshitt. Ele corteja Dorothea, mas ela escolhe se casar com Casaubon. Mais tarde, ele se casa com a irmã dela. Ele promulga os planos de chalé de Dorothea em sua própria propriedade.

Senhor Bambridge
Bambridge é um negociante de cavalos de Middlemarch. Fred Vincy afunda em dívidas; Raffles o encontra em uma feira de cavalos e lhe conta tudo sobre o passado de Bulstrode.

Senhor Dagley
Dagley é um dos inquilinos empobrecidos de Brooke. Seu filho é pego caçando ilegalmente nas terras de Brooke. Ele recusa o pedido de Brooke para que ele castigue seu filho.

Camden Farebrother
Camden Farebrother é um vigário, mas não se considera um bom clérigo, embora muitas pessoas gostem de seus sermões sensatos. Ele se torna amigo rápido de Lydgate e sustenta sua mãe, irmã e tia com sua pequena renda. Ele precisa apostar para sobreviver e perseguir seus hobbies científicos. Ele perde na eleição para a capelania no New Hospital. Ele recebe a paróquia de Lowick após a morte de Casaubon. Fred Vincy pede sua ajuda para cortejar Mary Garth. Ele mesmo ama Mary, mas cumpre seu dever.

Sra. Farebrother
A Sra. Farebrother é a mãe viúva de Camden Farebrother.

Winifred Farebrother
Winifred Farebrother é irmã solteira de Camden Farebrother.

Pedro Featherstone
Peter Featherstone é um velho viúvo rico e manipulador. Ele é dono de Stone Court. Ele se casou duas vezes, mas não teve filhos legítimos. Sua primeira esposa foi irmã de Caleb Garth. Sua segunda esposa foi irmã de Lucy Vincy. Ele dá a entender há anos que planeja deixar toda a sua propriedade para Fred Vincy, seu sobrinho por casamento. Ele até escreve dois testamentos separados. Mary Garth se recusa a queimar um deles. Ele deixa sua propriedade para seu filho ilegítimo, Joshua Rigg.

Caleb Garth
Caleb Garth é um pobre homem de negócios. Ele ganha a vida administrando grandes propriedades. Ele co-assina uma dívida para Fred Vincy. Quando Fred não consegue pagar, a família de Garth sofre. Ele recebe novos negócios, supera a perda e contrata Fred Vincy para trabalhar para ele. Ele se recusa a administrar Stone Court para Bulstrode depois que Raffles revela o passado obscuro de Bulstrode.

Susan Garth
Susan Garth é a esposa de Caleb Garth. Ela é uma ex-professora.

Maria Garth
Mary Garth é filha de Caleb e Susan Garth. Ela ama Fred, mas se recusa a se casar com ele se ele se tornar um clérigo e não conseguir encontrar uma ocupação estável.

Vontade Ladislaw
Will Ladislaw é neto da tia deserdada de Casaubon. Bulstrode tenta dar-lhe dinheiro para expiar por esconder sua existência de sua avó. Ele recusa o dinheiro porque sabe que veio de roubo. Ele adora Dorothea. Ele não se importa com dinheiro e ama tudo que é bonito.

Senhor Godwin Lydgate
Sir Godwin Lydgate é tio de Tertius Lydgate.

Capitão Lydgate
O capitão Lydgate é o primo afetado de Tertius Lydgate. Ele leva Rosamond para cavalgar. Ela sofre um aborto espontâneo como resultado de um acidente a cavalo.

Naumann
Naumann é o amigo pintor de Ladislaw em Roma. Ele usa Casaubon como modelo para Thomas Aquinas como um ardil para desenhar um esboço de Dorothea.

Senhorita Nobre
Miss Noble é irmã da Sra. Farebrother. Ela rouba pequenos itens de comida para dar aos pobres. Ela se afeiçoa a Will Ladislaw.

Selina Plymdale

Selina Plymdale é uma boa amiga de Harriet Bulstrode. Seu filho corteja Rosamond Vincy, mas ele é rejeitado.

Ned Plymdale
Ned Plymdale corteja Rosamond, mas ela o recusa.

John Raffles
John Raffles é um antigo parceiro de negócios de Bulstrode. Bulstrode o subornou para manter em segredo a existência da filha e do neto de sua primeira esposa. Ele volta para chantagear Bulstrode. Ele é padrasto de Joshua Rigg Featherstone. Ele morre em Stone Court porque Bulstrode interfere no tratamento médico de Lydgate.

Joshua Rigg Featherstone
Joshua Rigg Featherstone é filho ilegítimo de Peter Featherstone. John Raffles é seu padrasto. Ele herda Stone Court. Ele a vende para Bulstrode porque quer se tornar um cambista.

Borthrop Trumbell
Borthrop Trumbell é um leiloeiro em Middlemarch.

Walter Tyke
Walter Tyke é um ministro protestante evangélico. Bulstrode é um apoiador dele. Ele vence a eleição para a capelania no New Hospital, derrotando Farebrother.

Senhor Chave Inglesa
O Sr. Wrench é um médico de Middlemarch. Ele diagnostica Fred erroneamente quando ele pega febre tifoide. Lydgate trata da doença de Fred, e os Vincys demitem o Sr. Wrench. O Sr. Wrench se torna inimigo de Lydgate como resultado.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVIII – A Cartuxa de Parma, de Stendhal

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVIII – A Cartuxa de Parma, de Stendhal

Que romance é tão essencial que até os mortos querem saber do que se trata? Descobri que no início do livro de Jean Giraudoux, Bella (1926, jamais traduzido para o português), o narrador, ao participar de um serviço funeral para os colegas de escola que caíram nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, passa a ouvir as vozes de seus amigos mortos. A maior parte deles falam sobre coisas mundanas e militares: os desconfortos da guerra, os insuportáveis oficiais comandantes. Mas a última voz é a de um jovem atormentado pelo pensamento de que nunca teve a chance de ler certo romance. O que o jovem morto quer é que o narrador resuma A Cartuxa de Parma. Sim, este é um livro que você deve ler antes de morrer, para usar um lugar comum.

A Cartuxa de Parma, de Stendhal, é um belíssimo épico político, além de uma história muito íntima de intrigas amorosas e sérias frustrações eróticas, ambientado na corte principesca de Parma, durante a época do próprio autor. Desde o momento em que apareceu, em 1839, o último romance completo de Stendhal foi considerado uma obra-prima. Apenas um ano após sua publicação, Balzac o elogiou em uma longa resenha que imediatamente estabeleceu a reputação do romance. ”Vejo perfeição em tudo” foi apenas um dos louros que Balzac deu à Cartuxa, no que foi certamente um dos maiores atos de generosidade literária que se conhece. Sessenta anos depois de Balzac, André Gide classificou o livro como o maior de todos os romances franceses e uma das duas únicas obras em língua francesa que poderiam ser contadas entre as 10 melhores da literatura mundial. (O outro seria As Ligações Perigosas). E há mais: em um artigo de 1874, Henry James colocou Cartuxa “entre os dez melhores romances de todos os tempos”. Eu, pequeno e humilde, faço o mesmo.

À primeira vista, o esqueleto da história de Stendhal sugere um simples romance histórico. A história começa com a tentativa do jovem e obstinado aristocrata italiano Fabrício del Dongo de ter uma vida coerente consigo mesmo como soldado no exército de Napoleão. Ele não sabe nada de guerra ou de armas e a cena cômica de que ele participa em Waterloo sem saber bem onde está, o que deve fazer e sentindo nojo de tudo aquilo, ensinou o Tolstói de Guerra e Paz. O russo confessou que sabia este capítulo de cor e salteado. Mas sigamos o Cartuxa sem dar muitos spoilers. Depois, de forma absolutamente cínica, Fabrício tenta estabelecer-se como prelado na Igreja Católica Romana sem desgrudar de suas muitas amantes. Há as tentativas de sua bela tia Gina, duquesa de Sanseverina, e de seu amante, o astuto (e casado) primeiro-ministro conde Mosca, para ajudar a estabelecer Fabrício na corte. Há a prisão de Fabrício na temida Torre Farnese. Há também seu caso de amor infeliz com a linda — e um tanto chata — filha de seu carcereiro, Clélia.

Então o que, exatamente, torna o Cartuxa tão indispensável para o soldado de Giraudoux? Ora, parece-me que Cartuxa exala um ar incomparável do qual todo ser humano precisa absolutamente ter respirado pelo menos uma vez. Não que este ar seja puro… Em nossos dias, estamos quase tão longe do romance de Giraudoux quanto os personagens de Giraudoux estavam da publicação de Stendhal. Por que o romance continua tão novo?

Em 4 de novembro de 1838, Stendhal (o mais famoso dos mais de 200 pseudônimos usados ​​por Henri-Marie Beyle, um diplomata de carreira nascido em Grenoble e amante de todas as coisas italianas, principalmente das mulheres) sentou-se em sua mesa no número 8 da Rue Caumartin em Paris, deu ordens para que não fosse incomodado mesmo que a cidade estivesse pegando fogo e começou a ditar um romance. O manuscrito foi concluído em apenas sete semanas, no dia seguinte ao Natal — um feito impressionante, quando você pensa que uma edição típica tem 500 páginas. A rapidez de sua composição se reflete na vivacidade narrativa pela qual o livro é tão bem conhecido. (Há momentos onde a velocidade claramente cobrou seu preço. Duas ou três vezes, Stendhal volta para explicar fatos que deixou para trás, mas até isso faz com grande charme).

A ideia do livro estava martelando a cabeça de Stendhal há algum tempo. Seus diários do final da década de 1820 estão cheios de anotações sobre as histórias complicadas da nobreza italiana. Os esboços do romance devem muito a uma crônica do século XVII sobre a vida de Alessandro Farnese, mais tarde Papa Paulo III, que Stendhal conhecia. (Farnese, que se tornou Papa em 1534, tinha uma linda tia, Vandozza Farnese que era amante do astuto Rodrigo Borgia. Ele assassinou o criado de uma jovem. Foi preso e escapou. Finalmente, manteve como amante uma mulher chamada Cléria.) Então, embora a extraordinária velocidade da composição do romance possa ser atribuída a um lampejo quase sobrenatural de inspiração, ela também pode ser vista como resultado de um longo processo.

Assim como as circunstâncias de sua criação, o romance parece espontâneo. O ritmo rápido da narrativa é compensado por uma avaliação fria e sarcástica da natureza humana e, em particular, da política. Stendhal era um liberal que, como jovem idealista, seguiu Napoleão para a Itália, Áustria e Rússia. Depois, viu-se como diplomata em uma época de alto cinismo político. O desgosto com a complacência burguesa de seus compatriotas desempenhou um papel importante em sua admiração pelos italianos, que considerava mais autênticos — mais profundos e mais suscetíveis a emoções violentas –, como ele escreveu em seu diário. A paixão italiana está evidente no livro, mas é o ímpeto, a velocidade do romance, que o faz uma leitura tão boa.

O que torna incontornável A Cartuxa de Parma não é seu estilo urgente, até mesmo impaciente (“Aqui pediremos permissão para passar, sem dizer uma única palavra sobre eles, por um intervalo de três anos”). O livro é uma lição de política, da linha tortuosa da política. Mosca e Gina são craques. Gina é também uma hábil manipuladora amorosa, mas parece desejar o impossível. Os personagens são vítimas de emoções incontroláveis. Há também o herói do romance, Fabrício, que, quando adolescente, desobedece seu pai conservador e foge para lutar por Napoleão. O que mais ressoa para os leitores não é o idealismo de Fabrício — que é, afinal, endêmico entre os protagonistas de romances românticos –, é que ele é sistematicamente desmentido pelas duras e ocasionalmente ridículas realidades da vida. (Fabrício, para nossa alegria como leitores, dorme durante boa parte de Waterloo). Mas há mais alguma coisa moderna: a forma com que o bom senso lhe escapa, às vezes disfarçado de inteligência…

Fabrício tenta se moldar a algum plano — um plano que, como o romance demonstra, nunca é capaz de seguir. Isto mais parece século XXI do que XIX. Não é de se admirar que ele se expresse tão frequentemente na interrogativa: “O que vi foi uma batalha? Essa batalha foi Waterloo?”, “Sou tão hipócrita?”. Uma medida irônica da incapacidade de Fabrício de dominar a arte de viver é que ele encontra a verdadeira felicidade apenas na segurança uterina de sua cela de prisão na Torre Farnese (como muitos notaram, ele está preso por exatamente nove meses), da qual ele reluta em escapar depois de se apaixonar por Clélia.

Fabrício não é o único personagem vívido e estranhamente contemporâneo aqui; você poderia facilmente argumentar que os verdadeiros heróis são sua tia e seu amante. Mestres políticos e sociais, eles são muito mais complicados e interessantes do que o jovem que eles passam tanto tempo tentando, em vão, estabelecer numa vida adulta. (Mosca para Gina: “Podemos encontrar para você um marido novo e acomodado. Ele teria que ser extremamente avançado em anos, pois por que você deveria me negar a esperança de eventualmente substituí-lo?”) Gina, em particular, é uma das grandes criações da imaginação romanesca do século XIX: brilhante, sedutora, astuta, vulnerável, apaixonada e, ainda assim, impotente, presa de uma paixão proibida por seu lindo sobrinho. Nós a conhecemos aos 13 anos, tentando conter uma risadinha diante da aparência esfarrapada de um oficial napoleônico que foi alojado no opulento palácio de seu irmão e daquele momento em diante nunca conseguimos tirar os olhos dessa mulher que, apesar de sua posição social e do dilema em que se encontra, nunca é menos do que totalmente humana. Mosca, também, que, na geometria perfeita do amor não correspondido, adora Gina desesperadamente de uma forma que ele sabe que nunca será correspondido, é uma criação intrincada, complexa e conflituosa em sua vida pública e privada. Além disso, é vítima de paixões eróticas que o agarram, na prosa extraordinária de Stendhal, “como uma cãibra”.

Não podemos esquecer que o ímpeto narrativo é claramente o trabalho de um escritor que, como seu herói, se rebelou em sua juventude contra sua família estupidamente convencional, um homem que queria ser conhecido como um artista e amante de mulheres. (O epitáfio de Stendhal, em italiano, que ele concebeu quando ainda tinha 30 anos, diz: “Ele viveu. Ele escreveu. Ele amou.”) Mas A Cartuxa também é o trabalho de um diplomata experiente, muito familiarizado com a política e os compromissos que a vida impõe. A voz mais velha do autor aparece no destino que ele escolhe para seus personagens.

Então, o romance é parte Fabrício e parte Mosca e Gina. Ou, para colocar de outra forma, ele contém as melhores qualidades de seus rivais franceses contemporâneos: ele tem as conspirações de Balzac, com assassinatos, documentos forjados, disfarces e a hipocrisia motivada pela política, e também o estilo glacial de Flaubert. Em outras palavras, tem algo para todos.

A Cartuxa transmite claramente o que Henry  James chamou de ”inquietação” da ”mente superior” de Stendhal por meio de uma série de escolhas sutis, mas bastante concretas. Há romantismo, mas há o estilo muito francês que Proust chamou de “voltairiano”, o estilo de ironia do século XVIII.

Antes de explicar o que significa, afinal, cartuxa, posso tentar dizer o que há no mundo de A Cartuxa de Parma? Há acertos públicos e erros privados, erros públicos e acertos privados, banquetes com inimigos, velocidade, história épica com detalhes jornalísticos, amores desastrosamente insatisfeitos, idealismo, cinismo, negligência da juventude satisfeita, tristes sabedorias da velhice, minutos dos quais a gente lembra em detalhes e três anos que não interessam, grandeza, desordens, magnificência.

Não é de se admirar que o jovem soldado de Giraudoux tenha sentido que precisava conhecer A Cartuxa de Parma. O que mais os mortos desejariam que não fosse a vida?

P.S. — Stendhal gostava de títulos estranhos. Ele jamais explicou o motivo pelo qual outra obra-prima sua se chamava O Vermelho e o Negro. Já a tal A Cartuxa de Parma é citada de passagem apenas no antepenúltimo parágrafo do livro… O que é? É um convento da ordem religiosa dos cartuxos. Esta ordem religiosa de grande austeridade foi fundada por São Bruno em 1066.


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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVII – Dom Casmurro, de Machado de Assis

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVII – Dom Casmurro, de Machado de Assis

Sim, aos poucos estou relendo Machado. E me surpreendendo, pois li Dom Casmurro na adolescência e tinha a memória de um bom livro, mas não a clara noção da autêntica obra-prima que é. Publicado em 1899, o Casmurro é o terceiro da série de 5 grandes romances finais de Machado. Os anteriores são Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1891) e os seguintes são Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). (De entremeio, também temos o desconhecido Casa Velha, de 1885). A história é contada na primeira pessoa por Bentinho. Ele é o célebre narrador não confiável, ainda mais que relata, no tom de uma longa conversa com leitor, um drama: a dupla traição que teria sofrido por parte de sua mulher, Capitu (Capitolina) e de seu melhor amigo, Escobar.

O romance começa numa situação posterior a todos os acontecimentos. Bentinho (Bento Santiago), já velho, conta ao leitor como recebeu o apelido de Dom Casmurro. A expressão fora inventada por um jovem poeta, que tentara ler para ele no trem alguns de seus versos. Como Bentinho cochilara durante a leitura, o rapaz ficou chateado e começou a chamá-lo daquela forma.

O narrador começa então a rememorar sua existência, o que ele chama de “atar as duas pontas da vida”. O leitor é apresentado à infância de Bentinho, quando ele vivia com a família num casarão da rua de Matacavalos.

Bentinho mora com a mãe amorosa, Dona Glória, o tio Cosme, a mal-humorada prima Justina e o agregado José Dias, um esplêndido modelo de chato. É uma família bem brasileira, destas que geram filhos mimados. Sua vida pode ser dividida em três fases: Bentinho, Dr. Bento Fernandes Santiago e Dom Casmurro.

Bentinho é o menino tímido e sem iniciativa que provavelmente acabará num seminário e depois padre — pois era uma promessa de D. Glória tornar seu filho padre. Mas há uma vizinha, uma vizinha de quintal, um dos maiores personagens da literatura brasileira, Capitu. Quando a ação começa, ela tem 14 anos e ele 15.

Capitu era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, mais mulher do que eu era homem.

Os dois se apaixonam, prometem que vão se casar um com o outro haja o que houver, só que a família de Bentinho quer vê-lo padre. Capitu e Bentinho vão crescendo e não são mais aquelas duas crianças que brincavam no quintal, a coisa esquenta e eles passam aos beijos e carícias… As brincadeiras e a rotina dos quintais passam da infância para o erótico, sempre puxadas por Capitu.

— Sou homem!

Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminário, mas como se pensa em perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extinto; todos os meus nervos me disseram que homens não são padres. O sangue era da mesma opinião. Outra vez senti os beiços de Capitu.

Capitu é linda. Bentinho também arranca suspiros, mas só tem olhos para ela, que, por sinal, puxa-o com os belos olhos e o engole.

Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.

Ele vai para o seminário, o que se torna uma tortura. Bentinho gosta de mulheres. Certa vez, no caminho para o seminário, vê uma muito bonita cair na rua e…

No seminário, a primeira hora foi insuportável. As batinas traziam ar de saias, e lembravam-me a queda da senhora. Já não era uma só que eu via cair; todas as que eu encontrara na rua mostravam-me agora de relance as ligas azuis. De noite, sonhei com elas. Uma multidão de abomináveis criaturas veio andar à roda de mim, tique-taque… Eram belas, umas finas, outras grossas, todas ágeis como o diabo. Acordei, busquei afugentá-las com esconjuros e outros métodos, mas tão depressa dormi como tornaram, e, com as mãos presas em volta de mim, faziam um vasto círculo de saias, ou, trepadas no ar, choviam pés e pernas sobre a minha cabeça.

Ele consegue livrar-se do seminário e casa com Capitu. E então começa uma certa estranheza que apenas aumenta.

A alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o ar de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o braço para andar na rua, tudo me mostrou que o ar de impaciência de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também.

E depois eu deixo para você descobrir o que e como acontece.

Mais detalhes, sem spoilers decisivos. No seminário, ele tinha conhecido Escobar, de quem se tornou inseparável. Eles tinham tudo em comum, inclusive o plano de sair de lá e não como padres. Escobar casa-se com Sancha, uma amiga de Capitu. Logo têm uma filha que recebe o nome de Capitolina… Depois de alguns anos e após penosas tentativas, Capitu finalmente tem um filho, e o casal pôde retribuir a homenagem que Escobar e Sancha lhes haviam prestado: o filho é batizado com o nome de Ezequiel, como Escobar.

Só que Ezequiel vai ficando cada vez mais parecido com Escobar… E Bentinho desconfia. A temática do ciúme, abordada com brilhantismo nesse livro, provoca polêmicas em torno do caráter de uma das principais personagens femininas da literatura brasileira: Capitu.

Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à bênção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para me não descobrir  mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém.

Assim como o enorme afeto e amor entre Capitu e Bentinho, a história do adultério (?) é composta por poucas pinceladas. Tudo é meio vago. Machado foi um mestre absoluto e deixa enorme espaço para nossa imaginação. Ele não apenas conta a história sem grandes detalhes como deixa para nós discutirmos se houve a traição de Capitu. Mas Bentinho enxerga no filho a figura do amigo e fica convencido de que fora traído pela mulher.

Cada um acha uma coisa. Como mais ou menos escreve Hélio Guimarães no posfácio desta linda edição da Carambaia — pois escrevo de memória — o livro pode ser sobre um adultério (traiu!), sobre o ciúme masculino (não traiu!), ou ainda uma denúncia a respeito do violento comportamento dos homens detentores do poder e da narrativa (sem dúvida não traiu, seus misóginos!) ou ainda uma gloriosa afirmação e reivindicação do desejo (pfff, e daí se traiu?).

Carlos Drummond de Andrade dizia que ler Machado de Assis era uma tentação permanente, quase um vício a ser combatido. Perguntem a um drogado (ou ex) quão fácil é livrar-se de um vício.

Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de junho de 1839 — Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1908)

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVI – A Guerra das Salamandras, de Karel Čapek

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVI – A Guerra das Salamandras, de Karel Čapek

A Guerra das SalamandrasEu tinha lido A Guerra das Salamandras (Record, 334 páginas, R$ 59,90) lá pelos anos 80, em uma edição portuguesa, creio que da Livros do Brasil, Coleção Argonauta. O livro me ficara na lembrança como a melhor distopia que já tinha lido. Busquei esta edição da Record, de 2011, para conferir minha impressão. Seria em equívoco? Não, de modo algum.

Não sou um grande leitor de distopias ou de ficção científica, mas creio ter lido todos os clássicos do gênero. E nenhum foi tão envolvente quanto este livro de Karel Čapek (1890-1938).

Vejamos as razões. Em primeiro lugar, a obra tem muito humor. Na verdade, o livro é uma sátira. Ciência, política, economia, jornalismo, capitalismo, fascismo, Hollywood… Tudo vai na receita do tcheco. É um humor sutil e sempre bem-vindo, mesmo que a história conte detalhadamente a derrocada final da raça humana.

Outro motivo é são as 3 divisões do livro. Primeiro, ficamos sabendo sobre o surgimento das salamandras e da enorme importância econômica que elas passam a ter no mundo. As salamandras Andreas Scheuchzeri foram descobertas pelo capitão Van Toch. Ele foi o primeiro a notar a alta inteligência dos bichos. Elas viviam nos Mares do Sul, em uma baía, lutando eternamente contra os tubarões que insistiam em comê-las. Van Toch descobre que são inteligentes — são salamandras grandes, de 1,20m, com jeito para usar ferramentas e para estabelecer comunicação com humanos. Ou seja, elas aprendem nossa língua. E Van Toch passa a lhes fornecer ferramentas simples como facões a fim de elas se defendam dos tubarões. Em troca, os inteligentes bichinhos, oferecem-lhe pérolas — elas sabem que os seres humanos gostam delas. Então, Van Toch corre para propor sociedade a um milionário tcheco, que logo vê uma oportunidade de lucro. Afinal, ferramentas por pérolas… Bom negócio! E elas — com notável capacidade de reprodução — acabam por se espalhar pelo mundo, tomando conta de todos os litorais. A humanidade progride espetacularmente, pois, é óbvio, o que fizemos com elas? Fizemos com que trabalhassem para nós e não apenas catando pérolas, ora!

O segundo capítulo traz um tratado científico sobre as salamandras Andreas Scheuchzeri. É discutido como elas falam, como acasalam e se reproduzem (há uma manual do sexo entre salamandras), seus rituais e sua tremenda disposição para o trabalho e resistência.

E nasce o Sindicado das Salamandras. É claro que as elas são cada vez mais necessárias e exploradas. Ao mesmo tempo, porém, criam consciência de si mesmas.

Ao final, vem a guerra. Com tudo o que o ser humano lhes disponibilizou, as salamandras vêm com tudo. Elas passam a ter um comandante, talvez humano. São numerosas, contam-se em bilhões e por isso querem aumentar os litorais do planeta, explodindo continentes. Os europeus, defendendo suas vidas e “cultura superior”, querem dar a China às salamandras. (Não esqueçam que, logo após a morte de Čapek, a Europa entregou a Tchecoslováquia a Hitler, em uma tentativa de apaziguar o expansionismo nazista). Mas nada as acalma.

As causas da derrocada são não apenas biológicas como também guardam um profundo e nada esquecível paralelo com fatos políticos do século XX.

Čapek não apela para o fantástico nem para o tecnológico. É tudo “biológico” e, é claro, altamente maluco e cômico. As salamandras são como seres de outro planeta que estavam escondidas num canto e que, sob condições favoráveis, vieram nos conquistar. Do princípio ao fim, o autor guarda um tom humano, preocupado e cômico.

É simplesmente demais.

Čapek morreu de pneumonia em 1938. Os nazistas foram atrás dele — ele era um inimigo e a Gestapo queria prendê-lo.  Mas encontraram apenas um cadáver.

Ou seja, os tchecos não tiveram apenas Kafka na primeira metade do século XX.

Karel Čapek: visto assim, parece normal

 

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXV – Almas Mortas, de Nikolai Gógol

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXV – Almas Mortas, de Nikolai Gógol

Tinha lido Almas Mortas quando adolescente, lá nos anos 70. O romance era o volume 42 da coleção Os Imortais da Literatura Universal, da Abril Cultural (livros vermelhos, capa dura, letras douradas, já viram?). Mas aquela velha tradução — mesmo sendo de autoria da ótima Tatiana Belinky — não se compara com o esplêndido trabalho de Rubens Figueiredo na edição recém lançada pela fundamental Editora 34.

Almas Mortas é um livro especialíssimo por diversas razões. Comecemos pelo fato de ser um romance inacabado. Explico: após publicar a primeira parte, Gógol tentou várias vezes completar o romance. Na segunda parte, ele demonstraria seu amor à Rússia e aos russos. Ele fez várias tentativas de escrevê-la e queimou várias vezes os manuscritos da mesma. O caso foi grave. Ele trabalhava um, dois anos e queimava. Escrevia mais e voltava a queimar tudo. Acho que o artista venceu. Ele não quis matar a primeira parte, dobrando-se a quem o criticara por ridicularizar seu país.

Em segundo lugar, há a modernidade. Na verdade, em muitos manuais de literatura o romance é qualificado como a primeira obra moderna da literatura russa. A leitura do livro confirma. O romance é moderno na criação de personagens nem bons nem maus, nem virtuosos nem exatamente corruptos, nem lindos nem feios, nem isso nem aquilo, nem gordos nem magros, como tantas vezes brinca Gógol. Durante a leitura, você esquece que aquilo foi escrito há quase dois séculos e com o romantismo ainda lacrimejando na Europa. Gógol concebeu uma obra que mostra a náusea da sociedade russa (e, por que não, de qualquer sociedade) através de uma história que se desenrola com extrema agilidade. Porque o enredo do livro, longe de ser um acessório, é um elemento importante. Vamos a ele SEM spoilers.

O hilariante Almas Mortas conta a história de Tchítchikov, um personagem que chega um dia à cidade de N. para empreender um negócio desconcertante. Ele busca estabelecer relações com os mais importantes proprietários de terra do lugar e faz a eles uma estranha oferta: comprar seus servos já falecidos a fim de que eles não precisem mais pagar ao Estado os impostos relativos àqueles. Ou seja, em linguagem do Brasil Imperial, ele comprava escravos mortos. As reações variam muito, mas ninguém sabe exatamente o motivo pelo qual Tchítchikov precisa das tais almas mortas.

As viagens de Tchítchikov dão-nos uma excelente visão da relação entre proprietários e servos e do funcionamento da economia da Rússia czarista. Mas há mais: de forma brilhante, Gógol cria alegorias, dando sentido a uma série de fatos aparentemente desconexos e de lógica escorregadia. Sob o manto de uma história cheia de humor e caricatura, de fervilhante energia, há outra realidade que o autor apenas nos deixa espreitar em momentos arrebatadores.

A resposta para a questão da compra de almas não é o ponto crucial do livro, mas contribui significativamente para criar uma atmosfera misteriosa em torno do personagem principal e de suas ações. Fundamental é o modo como Gógol retrata seus personagens. Tchítchikov é nobre na forma, mesquinho em pensamento. O cocheiro Selifán é bêbado e mentiroso. Nozdrióv é trapaceiro e escandaloso. Outros são corretíssimos e burros. Ou inteligentes. Ou corruptos. Enfim, uma fauna. São muitos personagens para descrevermos aqui, mas fica-se impressionado pela vivacidade deles. A gente devora o livro. Não há seres atormentados como em Dostoiévski. As criaturas de Gógol são mais amostras humorísticas de tipos sociais provavelmente existentes, acentuadas pela visão impiedosa do escritor.

Gógol ama descrever a figura do funcionário administrativo e retrata-o sempre de uma forma burlesca e satirizada. Todas as descrições apontam para uma sociedade extremamente burocratizada e de complexa hierarquia. Quando Tchítchikov chega à província, vai cumprimentar o governador, o vice-governador, o procurador, o presidente do tribunal, o chefe da polícia, os maiores donos de terra, os menores, os famosos alguéns, todo mundo. Ou seja…

O tema de Almas Mortas foi oferecido a Gógol por Púchkin. Os dois tinham-se conhecido em 1831. O seu relacionamento seria estreito e Gógol revelou a Púchkin os manuscritos do romance para serem avaliados. Púchkin esperava algo ainda mais cômico, mas aprovou o livro. Em 1842, os censores autorizaram a publicação do romance na Rússia e o escândalo, sobretudo entre as classes dirigentes, foi imediato. Acusaram Gógol de descrever uma Rússia falsa, muito pior do que ela seria. No livro, o país estaria afundado em tolice, ineficiência e corrupção.

Como já disse, a continuação de Almas Mortas foi destruída várias vezes. Naqueles anos, Gógol desenvolvera uma relação obsessiva com a religião. Sucessivas depressões levaram-no a recusar-se a ser tratado e alimentado, vindo a falecer em 1852, dez dias depois de ter queimado novamente o segundo tomo de Almas Mortas. Ainda hoje, gerações de leitores se perguntam como acabaria Tchítchikov. Um tanto cruelmente, podemos considerar a queima dos manuscritos de Gógol como seu último grande ato como escritor. Assim, ele nos legou uma obra incerta e ambígua. Sabemos que ele queria, nesta segunda parte, demonstrar a bondade do povo russo. Ele desejava melhorar a relação com quem o criticara… Ora, cremos que… Foi melhor deixar assim o herói canalha… A obra-prima está incompleta e isto é perfeito.

Trechos de uma carta de Nikolai Gógol:

Eu teria sido perdoado se [em ‘Almas Mortas’], tivesse retratado monstruosidades, mas por mostrar a vulgaridade não me perdoaram. O que assustou o homem russo foi a insignificância, mais do que os vícios e limitações. É um fenômeno impressionante! Um belo susto!

(…)

Quando eu comecei a ler para Púchkin os primeiro capítulos do livro, ele, que sempre rira com minhas leituras (ele era um apreciador do riso), foi aos poucos ficando soturno. Quando a leitura terminou, ele articulou em tom de voz melancólico: “Meu Deus, como é triste a nossa Rússia”.

Ele (Tchítchikov) percorre a nossa terra russa, encontra gentes de todas as condições, nobres e gente “pequena”. Se eu o escolhi foi para evidenciar não os méritos e as virtudes do povo russo, mas sim os seus defeitos e vícios.

É em vão que o senhor se indigna com o tom imoderado de alguns dos ataques a ‘Almas Mortas’. Isso tem seu lado bom. Por vezes, é necessário ter contra si os amargurados.

A apresentação de eventos ocorridos provam o caso muito melhor do que simples palavras e verborragia literária.

Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852)

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXIV – Anna Kariênina, de Liev Tolstói

KariêninaEm meio a leitura fiz a seguinte anotação:

Li rapidamente um terço do livro de 814 páginas. Incrível como minha lembrança do romance era distorcida. É ainda melhor do que eu lembrava. Tolstói não é aquele estilista perfeito — usa estranhas pontuações e repete palavras tal como o tradutor Rubens Figueiredo (excelente) referiu no prefácio. Por exemplo, nas páginas 241-242 há um parágrafo de quase uma página onde a palavra “camponeses” aparece 15 vezes. Sem problemas, o homem sabe contar uma história como ninguém. Tais repetições não revelam descaso com o texto. Tolstói era um escritor cuidadoso, revisava muitas vezes seus textos que depois eram passados a limpo à noite por sua mulher. Ele usa as repetições em seu hábil discurso livre indireto, inserindo-se nas idiossincrasias e vícios de linguagem dos personagens.

Outra coisa é que as descrições nunca são contadas sem o filtro e a emoção de um personagem. Não são descrições mortas, sem ação, Tolstói integra tudo, fica lindo. Vemos a propriedade de Liêvin enquanto o mesmo sofre e trabalha nela. Nada para, tudo narra.

Esta tremenda obra de arte muito bem planejada é cheia de pequenos detalhes significativos. Há dois personagens principais, Liêvin e Anna. Em torno deles gira toda a ação, com apenas dois ou três pontos de contato mais claros, Kitty, Oblónski e sua mulher Dolly. Duas perspectivas da mesmíssima Rússia. Um painel? Sim, mas um painel de câmara, sem e com maior grandiosidade do que em Guerra e Paz.

Tal como na primeira leitura, que fiz aos 17 anos, o bovarismo de Anna me parece mais antipático do que o da heroína de Flaubert, mas sua impulsiva irreflexão é um dos pontos altos do romance. Uma coisa de que não lembrava era da ironia de frases que se contradizem em grande parte do romance. Às vezes umas contra as outras, às vezes internamente.

(Paixão de outros: estou num banco para falar com uma gélida gerente de contas. Ela se levanta para ver se um cartão está na agência. Quando volta, interrompe arregalada o ato de sentar. Fica suspensa olhando para o livro de Tolstói e me diz lenta e saborosamente: Anna Kariênina… eu simplesmente amo esse livro! Senta-se e começa a falar comigo com se fôssemos velhos amigos).

.oOo.

Bem, alguns dias após a leitura, procurando olhar o livro com impossível distância — durante um mês travei de grande intimidade com todos aqueles russos e não dá para negar que me envolvi com eles… — , dá para notar que a obra-prima de Tolstói funciona como um Gioco delle coppie (Jogo das Duplas). A narrativa vai todo o tempo em dois focos: de Anna-Vronski para Liévin-Kitty e de volta para Liévin para Anna. Mas há também Moscou e São Petersburgo (Moscou parece São Paulo; Petersburgo, Rio de Janeiro…), Vronski e Kariênin, os dois filhos de Anna, o campo e cidade, Aglaia e a modenidade. E podemos formar outras duplas contrastantes entre Liévin e seus irmãos, Anna e Kitty, etc.

Além da boa e famosa trama, da extrema habilidade de Tolstói como narrador — que se manifesta de forma espetacular quando das crises de Anna e na cena do parto de Kitty –, chama atenção o caminhão de realismo despejado pelo autor sobre seus personagens. Anna está a léguas de poder aspirar a condição de boa pessoa do século XIX ou de qualquer tempo. Na época, ser virtuoso era o que mais contava e ela, passando por cima de Kitty, largando o marido por pura concupiscência (OK, bom motivo), renegando a filha ainda bebê e sendo suscetível a atitudes muito, mas muito impulsivas, está longe da perfeição e muito próxima do que vemos por aí. Tolstói não faz o gesto de justificá-la assim ou assado. O leitor da época devia ter ficado bastante desconfiado… Vronski, o amante, é bem melhor, mas sua entrada no romance é a de um militar bonito (o autor gosta de citar seus dentes perfeitos), vaidoso e bastante chato. Kariênin, o marido traído, é um carola que obedece aos mandamentos divinos e consegue errar em tudo, principalmente na avaliação de si mesmo. Melhor é Liévin, o alter ego das maluquices idealistas de Tolstói que tem consciência de que todos o acham meio louco. Talvez, à exceção de Anna, que vive de amor e de impulsos, seja muita gente bem intencionada vivendo junto.

Oblónski, irmão de Anna, é o brilhante personagem que liga os dois lados do romance, o de Anna e o de Liévin. É um tipo bem Turguêniev: é simpático, tem impecável trato social, trai a esposa sem deixar margem à dúvidas e vive muito feliz, endividado e endividando-se. Mas chega de personagens.

O livro de Tolstói é de açambarcante virtuosismo. As descrições estão totalmente permeadas de humanidade, a trama e os mais mínimos conflitos são construídos com cuidado. As cenas de amor pelo povo e pelo campo, protagonizadas por Liévin, poderiam ser um porre na mão de um escritor médio. Na mão de Tolstói, deixam a gente repleto de literatura.

Não me arrependi de modo nenhum de relê-lo. Foi um bom investimento em 814 páginas perfeitas.

Ah, a tradução do russo de Rubens Figueiredo acompanha pari passu a qualidade de Tolstói.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXIII — Ao Farol, de Virginia Woolf

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXIII — Ao Farol, de Virginia Woolf

ao_farol_virginia_woolfUm crítico escreveu algo assim: “Li Ao Farol da mesma forma como costumo comer chocolate, pretendendo fazê-lo aos poucos entre outros afazeres, só que logo me deu aquela vontade incontrolável de ler tudo sem parar”. Certamente isso não se deveu a uma trama envolvente, nem a casos românticos para os quais ele precisasse saber do desenlace. E realmente, os livros de Virginia Woolf quase deixam de lado a trama e se fixam nas minúcias humanas, mesmo que a seção central de Ao Farol fale de como uma casa se deteriora. O curioso é que sou um sujeito que pede alguma profundidade dos romances, mas a diluição de VW jamais me incomoda, pois há profundidade de observação — mesmo que seja de coisas secundárias –, assim como qualidade narrativa, clareza estrutural e estupenda criação de personagens.

O livro trata da família Ramsay, casal, oito filhos e agregados em férias. A personagem central é a Sra. Ramsay, uma bela mulher que usa seu charme e trato social para manter a harmonia entre todos. Mas ela parece ser sabotada pelo próprio marido, um homem “do contra” e amargo.

O livro é dividido em 3 capítulos. A janela funciona como uma apresentação dos personagens, temperada pela inteligente e sutil dinâmica de Virginia. Tudo se passa em um só dia na casa de veraneio da família, próxima a um farol que James Ramsay, o filho caçula, deseja muito visitar. Só que a previsão do tempo conspira contra os planos. James alimenta ódio pelo pai, por ele ser tão grosseiro em suas colocações sobre o passeio. O tempo passa, além de mostrar a degradação da casa, revela acontecimentos cruciais na família Ramsay. Já O farol é o momento em que realmente acontece o tão esperado passeio, porém de uma forma muito diferente.

Ao Farol poderia ser um livro denso escrito em insistentes “fluxos de consciência”, mas é leve ao acompanhar o vaivém dos pensamentos, dos medos e vacilações de seus personagens. Estes são mostrados em extrema proximidade no microscópio de Woolf e a compreensão das pessoas é o que vale neste extraordinário romance. Que personagem notável é Lily Briscoe! Que descrições maravilhosas temos do que lhe ocorre enquanto pinta! Não são pensamentos extraordinários ou filosóficos — na verdade, pelo contrário, ela e os outros personagens são intelectuais bastante convencionais, do tipo que se encontra em muitos livros. Pode ser dito que eles não oferecem nada novo, mas um mundo interior muito semelhante ao nosso, com pensamentos completos ou incompletos e livres-associações as mais absurdas.

Excelente tradução de Denise Bottmann para a L&PM.

Recomendo fortemente!

Virginia Woolf

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXII – Oblómov, de Ivan Gontcharóv

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXII – Oblómov, de Ivan Gontcharóv

Oblómov

Ivan Gontcharóv viveu uma longa vida para alguém do século XIX. Nasceu em 1812 e morreu em 1891, aos 79 anos. Passou longos anos como aposentado — desde 1867 –, dizem que sempre reclamando da vida. Publicou apenas quatro livros, sendo três romances. Ele considerava o último, O Precipício, o melhor. Peço desculpas, Ivan, mas é difícil acreditar que seja melhor que este célebre Oblómov. Valeu muito a pena enfrentar suas mais de setecentas páginas.

(Aqui, os outros livros desta série.)

Oblómov é a história de um indolente e apático latifundiário russo. Ele passa seus dias admirando o teto, embora seus muitos e graves problemas, principalmente os relativos a sua fazenda, que cada vez mais gera menos benefícios e onde é claramente roubado por seu administrador e servos. Mas a mera ideia de deixar sua poltrona ou cama causa-lhe desconforto. Então, ele deixa a inércia guiar sua vida.

Iliá Illich Oblómov é o personagem principal de um épico, trata-se de um Ulisses de roupão, desprovido de vontade. Não age, optando por ficar imóvel, na contracorrente dos eventos. Quando deita no sofá, sente-se protegido de todo estresse, da grosseria e da confusão que rege as ações humanas. Porém, sua atividade mental é grande. Não nasceu para ser um gladiador na arena, mas um pacífico espectador. No fundo era uma alma boa, pura — como tantas vezes sublinha Gontcharóv — e preguiçosa.

Na primeira parte do livro, vemos o personagem principal receber amigos em seu quarto. Os rápidos e vivos diálogos nos enganam: parece que estamos diante de um romance cômico, tal é a galeria de visitantes. A prosa de Gontcharóv é leve. Seu criado Zakhar — também preguiçoso, muito atrapalhado e burro — é uma criação hilária, digna da alta comédia. Essas esplêndidas 200 páginas iniciais são finalizadas com uma visita do amigo de infância Stolz e com o sonho de Oblómov. O sonho é uma longa e famosa passagem, escrita dez anos antes da publicação do romance, que ocorreu em 1859.

Zakhar e Oblómov
Zakhar e Oblómov: já já alguma coisa vai cair no chão…

Neste capítulo IX, o do sonho, o autor fala poética e debochadamente sobre como se formou a visão de mundo de Oblómov e seus ideais de vida. Podemos resumi-lo assim: Iliá Iliich adormeceu e sua infância distante vem até ele. Ele está de volta à propriedade dos pais, na aldeia de Oblomovka. A aldeia era mais ou menos isolada, a cidade mais próxima ficava a cerca de vinte quilômetros de distância e os Oblómov não faziam muita questão de facilitar o acesso à cidade, pois eram avessos a mudar sua vida e ainda mais ao progresso. Durante séculos viviam ali, presos a uma ordem patriarcal, cheios de histórias malucas e crendices, levando a sério cada “sinal”. A vida fluía com tranquilidade e tudo era deixado para depois. Os camponeses viviam despreocupados, não se esforçando por nada, não conheciam ou queriam outra vida.

O dono da propriedade, Oblómov pai, era igualmente preguiçoso e apático. Todos se espantavam pelo fato de um telhado cair, mas na véspera tinham se admirado por ele se aguentar suspenso por tanto tempo sem manutenção. O pai nunca pensava em conferir o cereal produzido e vendido, nem em cobrar explicações por alguma negligência na fazenda, mas, se demorassem a trazer seu lenço de nariz, fazia uma gritaria. Todos os interesses da família eram as refeições e um bom sono nas pausas. É arrebatadora a cena em que as mulheres fazem tricô e riem, enquanto os homens olham pela janela. Neste interminável far niente, o objetivo era não se incomodar. Os pais não atribuíam grande importância à educação e Oblómov era relutante em ir à escola. Seu amigo mais próximo, o citado Andrei Stoltz, filho do professor da aldeia, ajudava-o a fazer suas lições de casa.

Oblómov no elogiado filme homônimo de Nikita Mikhalkov
Oblómov no elogiado filme homônimo de Nikita Mikhalkov

O “Sonho de Oblomov ” parece uma descrição irônica do Paraíso na Terra, do País da Cocanha. O autor ridiculariza implacavelmente o modo de vida satisfeito e inativo da maioria dos proprietários desta época. O texto caracteriza o estilo de vida do adulto Iliá Ilitch Oblómov, apenas o local muda.

Como dissemos antes, o sonho foi escrito e publicado numa revista em 1849, dez anos antes de surgir Oblómov. Ele foi a gênese do romance. Só que Gontcharóv ficou muito chateado de os leitores tirarem conclusões de todo trabalho a partir apenas de sua extraordinária primeira parte. Gontcharóv chegou a alertar Tolstói: “Não leia a primeira parte de Oblomóv, leia o resto. Isso de 1849 não é bom”. Impossível concordar, Ivan. A primeira parte é espetacular, viva, engraçada, tendo como destaques não apenas o sonho como a relação do personagem principal com o mundo e com seu criado Zakhar, espécie de reflexo do patrão.

Pieter Bruegel, o Velho – O País da Cocanha
Pieter Bruegel, o Velho – O País da Cocanha (1567)

Nesta primeira parte, o livro pode ser considerado uma sátira à nobreza russa, cuja função econômica e social era cada vez mais discutida na Rússia, em meados do século XIX. O romance tornou-se imediatamente popular quando foi lançado e alguns de seus personagens e ações tiveram influência sobre a cultura e a linguagem russas. “Oblomovismo” tornou-se uma palavra usada para descrever alguém que exibe os traços de personalidade de preguiça ou inércia semelhantes aos do personagem principal do romance.

Ao final da primeira parte, entra em cena Stolz. Ele, homem prático e de resultados, procura repetidamente mudar seu amigo Iliá. O próprio admite seus problemas e tenta superar sua apatia. Faz reavaliações, mas o processo é sempre complicado, cheio de objeções. Em suas poucas horas vagas, Stolz ajuda Oblómov a consertar seus graves problemas financeiros, enquanto Tarantiev — outro amigo de Oblomovka — busca roubá-lo.

Graças ao amigo Stoltz, Oblómov conhece Olga, uma jovem por quem se apaixona. Então, vive um despertar. Ela exige que ele resolva os assuntos de sua propriedade, que ele esteja atualizado com o que está acontecendo no mundo, só que isso é demais. Não, não vou contar a boa história do amor entre ambos, apenas alguns detalhes “externos”.

Stolz contou para Olga da inteligência e do potencial do amigo. Eles se conheceram e as apaixonaram. Olga, muito mais madura, começa a planejar sua vida com Oblómov. É ela quem conduz o casal. Mas Oblómov, cheio de indecisões, oferece resistência passiva quando se trata de dar passos significativos na direção do casamento. Olga decepciona-se ao perceber que não é motivo suficiente para arrancá-lo da letargia e que Oblómov se contenta com um amor platônico. Em cena altamente emocional e tensa, daquelas em que a gente come o livro para saber como o autor vai fazer para que Oblómov cumpra seu destino, Gontcharóv… Não, nada de spoilers.

Na imagem de Oblómov também há características autobiográficas. O autor admitia sua indolência pessoal. Amava a paz e o silêncio. Durante uma longa viagem de navio, passou a maior parte do tempo na cabine, deitado no sofá. Seu apelido era “Príncipe”.

Do filme de Mikhalkov
Do filme de Mikhalkov

O aparecimento do romance coincidiu com o tempo da crise mais aguda da servidão. A imagem de um senhor de terras apático e incompetente, que cresceu e foi criado em uma serena propriedade que vivia do trabalho pouco produtivo de servos, era muito relevante para seus contemporâneos. Dobrolyubov, em seu artigo “O que é o oblomovismo?”, agradeceu ao romance por dar uma visão clara do problema. A pessoa de Iliá Iliich Oblómov mostraria como o calmo ambiente da aristocracia russa e a falta de uma educação desfiguram a natureza do homem, engendrando um inútil.

O caminho de Oblómov é típico dos nobres russos do campo nas décadas de 1840 e 1870. Eles iam para a capital e tornavam-se funcionários públicos. Queixavam-se, faziam fofocas, escreviam petições, estabeleciam relações com os chefes. Oblómov cumpriu a mesma trajetória, mas demitiu-se. Não quis escalar na carreira, preferindo fazer planos em seu sofá, sem aspirações.

Gontcharov foi depreciado por várias gerações de escritores russos: Dostoiévski descreveu-o como “um funcionariozeco com olhos de peixe cozido a quem Deus (...) concedeu um talento brilhante” (Legenda copiada o Publico.pt)
Gontcharov foi depreciado por várias gerações de escritores russos: Dostoiévski descreveu-o como “um funcionariozeco com olhos de peixe cozido a quem Deus (…) concedeu um talento brilhante” (Legenda copiada do Publico.pt)

Gontcharóv escreveu sobre seu herói: “Eu tinha um ideal artístico inicial, era uma natureza gentil e honesta, que pensava em lutar o tempo todo, buscando a verdade, enganando-se e caindo em apatia e impotência; depois criei uma variação disso”. Oblómov faz e refaz planos, planeja apenas, agita-se sobre o sofá e adia mesmo a simples tarefa de escrever uma carta. É o rei da procrastinação. Sua alma é a de um poeta, pronto a fruir da beleza e se apaixonar. A percepção que tem da música o demonstra. Cada reunião com o amigo de infância Stolz tira-o da pasmaceira, mas não por muito tempo: a determinação de fazer algo dura sempre um curto período de tempo. No entanto, Stolz tem sua vida, não tem tempo suficiente para colocar Oblómov em outro caminho. Mas em qualquer sociedade há pessoas como Tarantiev, sempre prontas para roubar um trouxa desinteressado por seus negócios. São eles, Stolz e Tarantiev, que determinam os dois caminhos possíveis. Oblómov, contudo…

Publicado em 1859, o romance foi um evento público. Apareceu numa época de excitação social, alguns anos antes da reforma camponesa, e foi visto como um chamado para combater a estagnação da Rússia. Imediatamente após a publicação, o livro foi assunto de discussões em críticas de jornais e entre escritores. Muitos viram na imagem de Oblómov a compreensão filosófica do caráter nacional russo, bem como uma indicação da possibilidade de um caminho moral diferente, que se opusesse ao agitado “progresso” que consome a existência… O fato é que Gontcharóv fez uma descoberta artística. A publicação de Oblómov e seu enorme sucesso deram-lhe a fama de um dos mais destacados escritores russos de sua época.

O notável e paradoxal era que o fato de que autor trabalhou como censor do czarismo… Era necessário ganhar dinheiro de alguma forma e o funcionário público Gontcharóv foi discreto. Jamais tomou decisões muito conservadoras, apesar de odiar o “niilismo”, uma “doutrina miserável e dependente do materialismo, socialismo e comunismo”. Imagina-se que, por ele, possam ter passado obras de Dostoiévski e Tolstói, entre outros. Ou seja, estranhamente, ele trabalhava defendendo os princípios do governo após criar uma poderosa arma de discussão social que o fez, décadas depois, um ídolo da URSS. Seguiu censor até o final de 1867, quando se aposentou por vontade própria. Terminou sua vida em profunda depressão, acusando outros autores de roubarem suas ideias.

Oblómov é um tremendo livro. Não vou contar a história a partir da segunda parte para não atrapalhar a leitura de vocês. O romance é sempre interessante em suas 700 páginas, tendo momentos de alta tensão na quarta parte.

A má notícia é que, hoje, o livro virou raridade no Brasil. Com o fim da Cosac Naify, nenhuma editora herdou o calhamaço maravilhosamente bem traduzido por Rubens Figueiredo. Neste minuto, a Estante Virtual tem um exemplar da edição da Cosac: ele custa R$ 500. O Mercado Livre tem duas, uma a R$ 349 e outra a R$ 475. A Amazon também indica um “novo” por 660,00. Assim fica difícil.

Gontcharóv é o da esquerda. Com a mão na cabeça, parece desejar dormir. Como Oblómov.
Gontcharóv é o da esquerda. Com a mão na cabeça, parece desejar dormir. Como Oblómov. De braços cruzados, o mais alto é Tolstói.

Obs. de 2020: a boa notícia é a Cia. das Letras acaba de relançar o livro. A nova capa está ao lado. Agora, ele custa R$ 84,90. Melhor, né?

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXI – Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXI – Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski
Capa de Os Irmãos Karamázov da Editora 34
Capa de Os Irmãos Karamázov da Editora 34

É complicado escrever uma simples resenha de todo um mundo. Pois o que Dostoiévski realiza em Os Irmãos Karamázov é exatamente o que Mahler pretendia fazer com suas sinfonias, colocar todo um mundo dentro delas. Acredito que ambos tenham conseguido.

Há vários planos de leitura do livro. Pode-se ler os Karamázov como um romance de suspense — quem matou o velho Fiódor? –, ou filosófico — o capítulo do Grande Inquisidor, Deus, os problemas morais –, ou psicológico — o parricídio, os vários conflitos, o duplo de Ivan e Smerdiakóv, as várias interpretações dos pensamentos dos personagens. E, céus, deve haver outro planos de leitura para este tremendo romance. Mas vou tentar um mínimo de organização.

A ideia de criar este drama ocorreu a Dostoiévski em 1874, mas o leitmotiv foi-lhe dado ao acaso, cerca de trinta anos antes. Quando preso na Sibéria, Dostoiévski tinha um colega chamado Ilinski, Dmitri Ilinski. Alegre, fanfarrão, sempre despreocupado, ele negava ter sido o autor do crime pelo qual estava na prisão: Ilinski teria assassinado o próprio pai, Nikolai. A história é a seguinte: numa pequena cidade russa, pai e filho se detestavam, brigavam publicamente, não sentavam na mesma mesa, etc. Para piorar, o filho bebia e estava sempre metido em discussões e lutas físicas, além de ser perdulário. Devia para meia cidade e era detestado. Para piorar, o amigo de Dostô tinha avisado a todos na cidade que mataria o pai na primeira chance que tivesse. O pai chamava-lhe de facínora, não lhe dava mais dinheiro e fazia de conta que ele não existia. Um dia apareceu morto, assassinado, mas Dmitri negava o crime, apesar de tudo o que dissera antes. Dostoiévski logo saiu da prisão em episódio bem conhecido. Acreditando na inocência de Dmitri, o escritor ficou com a história trabalhando em sua cabeça. Quinze anos depois, descobriu-se o verdadeiro assassino e Dmitri Ilinski foi libertado. Durante todo este tempo Dostoiévski mantivera-se informado. A inspiração é claríssima, tanto que nos primeiros manuscritos do romance, Karamázov é chamado várias vezes de Ilinski. O escritor pediu que o erro fosse corrigido.

O conflito pai x filho é explorado sob diversas formas no romance. Se o centro do romance é o amor e ódio entre o velho Fiódor e o filho mais velho, também há conflitos mais silenciosos entre o velho e Ivan (o segundo filho) e entre o velho e o suposto filho bastardo Smerdiakóv. Lendo-se os romances anteriores de Dostô, vê-se que as personalidades de todos vinham sendo formadas há tempo. É fácil ver paralelos na natureza dos personagens de diferentes obras do autor: o terceiro filho Aliocha Karamázov e Grúchenka com o príncipe Míchkin e Nastácia Filippovna (de O Idiota), Ivan Karamazov com Raskolnikov (de Crime e Castigo), o starietz Zossima com Tikhon (de Os Demônios).

Apesar da indiscutível qualidade de todos os grande romances de Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov tem uma grandiosidade inalcançável. É um enorme painel russo, psicológico e político, trabalho maior da vida de um escritor genial. Com vida própria — separadas do autor — ali estão suas memórias de infância ligadas às reflexões e experiências dos últimos anos. As imagens dos irmãos Dmitri, Ivan e Aliócha — assim como a do bastardo Smerdiákov, espécie de duplo de Ivan — talvez simbolizem diferentes estágios de desenvolvimento espiritual do autor. O romance tem uma estrutura complexa, multidimensional, de gênero difícil de definir. São eventos que ocorrem em apenas duas semanas, mas nesse curto espaço de tempo se encaixam tantas histórias, disputas, conflitos e confrontos ideológicos, que estas seriam suficientes para vários romances de suspense, obras filosóficas, crônicas familiares ou dramas domésticos.

Há duas longas e compreensíveis interrupções na narrativa. A primeira serve para que Dostoiévski (ou Ivan) escreva aquele que talvez seja o melhor capítulo da literatura de todos os tempos. Trata-se do momento em que Ivan, num bar, narra para Aliócha a Parábola do Grande Inquisidor. Jesus retorna à Terra, mas o Grande Inquisidor, na pessoa de um velho bispo de 90 anos, argumenta que sua vinda é inútil e que agora ele só atrapalharia a Igreja. E condena-o à fogueira. (Este resumo chega a ser uma gozação, tal a riqueza do texto). O segundo serve para que Aliócha conte a história de seu mentor Zossima.

A ação principal do romance está na relação entre o velho Fiódor e Dmitri. O whodunit é “Quem matou o velho Fiódor?”. E todos são desvairados, desesperados e negligentes com a verdade e a moral. Todos os personagens parecem meio loucos. A família Karamázov é apaixonada e violenta. O pai Fiódor e Dmitri amam a mesma mulher. Dmitri acha que o pai lhe deve a herança da mãe. Ambos são lascivos, rivais e imprevisíveis. Dmitri é um paradoxo. Incapaz de se controlar, tem grande dignidade pessoal e é cheio de justificativas. Ao contrário de seu pai, um cínico, Mítia visa os mais altos ideais. É dotado daquela tal alma russa que o leva a picos e a abismos como um ioiô. Dmitri Karamázov briga e cita Schiller. Quando preso sob a acusação de assassinato, pensa no sofrimento dos outros e chora.

Ivan não é nada disso. Inteligente e profundo, é um filósofo centrado nos problemas mais irreconciliáveis ​​da existência humana: a natureza de Deus e a ideia de permissão. Intelectual ateu, parece ter dentro de si um conflito permanente entre liberdade e autoridade. O Grande Inquisidor não está relacionado com a trama principal da novela. No entanto, sai de Ivan esta que é a parte mais importante do ponto de vista das ideias contidas no livro.

Aliócha é supostamente o herói do romance. Vivia num mosteiro, mas foi mandado para o mundo. Profundamente religioso, tudo compreende e passa o livro correndo de um lado para outro, tentando conciliar todos. Sem ele, o livro não existiria. É um personagem meio picaresco — vai de um lugar a outro e é uma espécie de informante de todas as tramas paralelas do livro. Acaba conseguindo conciliar apenas um grupo de crianças no belo final do romance.

Uma questão central na abordagem do romance é notar que as ideias do autor estão muito bem escondidas. As célebres citações que o livro contém foram todas rejeitadas por Dostoiévski ainda em vida. Quando lhe atribuíram algumas citações, Dostô respondeu simplesmente que não as assumiria: “Não sou eu quem diz isso, é Ivan. A linguagem é dele, o estilo é dele, o pathos é dele e não meu. Além disso, ele é muito jovem”.

No mundo criado por Dostoiévski, a Rússia e o mundo aparecem como se fossem o reino dos Karamázov. A noção da complexidade e da desorganização das relações talvez nunca tenha ficado tão clara como neste romance. Ninguém é confiável. A maldade pode explodir a qualquer momento. Todos dizem meias verdades por meio de mentiras. Os atos de uns são conduzidos pelos pensamentos de outros. A espiritualidade cristã é invocada a cada momento, mas sucumbe às necessidades tirânicas de felicidade terrestre, à sensualidade e ao álcool.

Numa frase, não dá para não ler.

P.S. — A tradução de Paulo Bezerra é incontornável. Se hoje você ler outra edição em português, não estará tão próximo do original.

(Livro comprado na Ladeira Livros).

Dostoiévski em 1876
Dostoiévski em 1876

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XX – Grandes Esperanças, de Charles Dickens

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XX – Grandes Esperanças, de Charles Dickens

Charles Dickens Grandes Esperancas Penguin Cia

No Charles Dickens Museum, há uma citação do autor reproduzida numa das paredes em letras garrafais:

Entradas anuais: 20 libras, gastos do ano: 19,60; resultado: felicidade. Entrada anual: 20 libras; gastos do ano: 20,60; resultado: miséria.

Considero de insuportável pieguice vários livros de Dickens, mas nunca a obra-prima do humor Pickwick Papers, o adorável David Copperfield e este Grandes Esperanças, a meu ver seu melhor romance. É importante dizer que a tradução de Paulo Henriques Britto, cuja capa da Penguin Companhia está ao lado, é disparada a melhor. Então, evitem procurar o livro em edições antigas, até porque o preço está abaixo de quarenta reais, excelente valor para um volume de 704 páginas.

Como muitos romances do autor inglês — e basta visitar o Museu Dickens em Londres para comprovar — , a questão econômica é central. (Não vou contar a história, tá?). Philip Pirrip ou Pip é um órfão que é criado pela irmã que o atormenta e o marido, o bondoso ferreiro Joe Gargery. Ele vivem numa pequena aldeia no interior. A vida de Pip se altera quando um benfeitor misterioso o faz herdeiro de uma grande fortuna, o que o faz conceber a primeira fornada de “grandes esperanças”. A partir do fato, lentamente vão se alterando não apenas o comportamento das pessoas em relação ao personagem como o próprio Pip passa a rejeitar suas origens.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XIX – Auto-de-fé, de Elias Canetti

canetti auto-de-féElias Canetti foi um judeu búlgaro de nome italiano e origem espanhola que viveu na Inglaterra e escrevia em alemão. Recebeu o Nobel em 1981, tendo iniciado sua carreira literária com seu único romance, este Auto-de-fé (atualmente na Cosac Naify, 631 paginas). Depois, produziu ensaios e algumas peças teatrais.

Aqui, a tradução é de Herbert Caro, o que tem claro significado. Meu velho amigo não costumava entrar em fria. Um dia, em nossas reuniões na King`s Discos com a finalidade de falar de música, o Dr. Herbert Caro disse que a Nova Fronteira estava publicando mais um calhamaço traduzido por ele. Disse que não ficava nada a dever a Doutor Fausto, nem a A Montanha Mágica e nem às outras traduções que ele já fizera. Parece que, naquela altura da vida, ele só traduzia o que queria, e sempre eram grandes obras. Assim que foi lançado, comprei (ou roubei, pois na época era um meliante literário) o livro.

Peter Klein é um eminente filólogo que só existe em função de sua biblioteca. Ele é um misantropo que vê o mundo através de seus milhares de livros, mantendo-se afastado da vida. Um dia, por impulso, este ser enormemente individualista resolve casar com a governanta — afinal, ela era tão competente, arrumava tudo tão direitinho… — , convencido de que esta lhe auxiliaria a manter-se afastado do mundo exterior. Casam-se. Porém, rapidamente o casal se incompatibiliza e Klein é posto no olho da rua. Forçado à vida, o professor parte para conhecê-la, entrando numa espiral auto-destrutiva.

Canetti_EliasLendo assim, parece simples; lendo o livro cruzamos com uma montanha de personagens estranhos. O livro é de 1935, segundo ano do nacional-socialismo de Hitler, e seu entendimento do livro deve ser buscado não apenas naquela Europa, mas também lá longe, na China de dois mil anos atrás. Não esqueçam que Peter Klein é um sinólogo e, há dois milênios, o império chinês foi dominado por um certo Qin Shi Huang. Huang foi quem pacificou os vários reinos em guerra que vieram a formar a China. Também divulgou o confucionismo e construiu um belo exército de terracota para proteger seu túmulo. Qin Shi Huang tinha algo de Hitler no sangue e determinou que todos os livros que discordassem de sua linha filosófica deviam ser queimados. Para o servidor que demonstrasse negligência ou piedade ao punir os portadores de livros proibidos, estava prevista a pena de morte. Depois, Huang achou que as fogueiras de livros não bastavam e decidiu enterrar vivos os aproximadamente 500 intelectuais e alquimistas do reino, só para deixar claro seu apreço pela opinião alheia e pelo debate franco e aberto de ideias.

Huang e Hitler, Hitler e Huang. Como escreveu Felipe de Amorim em seu extenso e pessoalíssimo comentário sobre Auto-de-fé, o tema de Canetti é o embate entre o totalitarismo e a liberdade intelectual, descrita numa linguagem colorida e com farpas para todos os lados. Os personagens deste estranho livro interagem, mas não dialogam efetivamente, pois cada um deles está fechado em seu próprio mundo e em suas metas individualistas. Falam e não se ouvem uns aos outros. Eles não conseguem, em momento algum, estabelecer uma compreensão concreta do outro, nem do mundo.

Canetti era um apaixonado pelo tema da formação de grupos populares e da comunicação entre seres humanos. Sua maior obra de ensaios, Massa e Poder, deseja compreender como pessoas pretensamente racionais podiam subitamente se transformar em uma coletividade enfurecida cheia de paranoia, medo e voracidade. Quem manda e quem obedece, quem deve ser exterminado e quem deve sobreviver? Enfim, como se obtém e se perde o poder. “A massa traz sempre vivo em si um pressentimento de desintegração que ameaça e da qual busca escapar através do rápido crescimento”, diz em Massa e Poder. E tudo o que está claramente presente neste ensaio de 1960, aparece de forma alegórica em Auto-de-fé.

Em Auto-de-fé, o ingresso do homem no grupo, na massa, não o torna mais tolerante. Na massa, ele ganha permissão para radicalizar suas opiniões e atos. É este o processo que move as ações dos personagens do romance em sua jornada aniquiladora.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XVIII – Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa

Faz muito tempo que li Grande Sertão: Veredas. Foi uma leitura adolescente e nunca mais revisitei o livro. O fato não impede que eu tenha a melhor das lembranças. Dele e de Sagarana. Mas jamais poderia escrever algo honesto se às vezes confundo trechos  do romance e da coleção de contos. Então, convidei Fernanda Melo (2 links) — grande admiradora da obra-prima de Guimarães Rosa — para escrever o 18º post desta série.

.oOo.

Grande Sertão: Veredas entra com mérito e facilmente em qualquer lista de livros preferidos de quem o tenha lido. Mas ele é um daqueles livros que exige do seu leitor. Não é um livro para ler pressionado por prazos, para fazer prova de vestibular ou com o objetivo de aprender sobre o interior do Brasil. É preciso tempo para se adaptar à linguagem, para que ela, ao invés de truncada, se torne musical. A narrativa de Riobaldo, feita na primeira pessoa, avança, recua e muitas vezes confunde, tal como seria recordar uma vida. A viagem pelo Sertão é longa e cheia de pequenos causos. Se for para ler com pressa, querendo chegar logo ao fim, vai parecer uma eternidade. O outro caminho é curtir cada pedaço, se interessar pelas expressões (quase todas as frases de Guimarães Rosa citadas por aí são retiradas deste livro), embarcar nas reminiscências, compartilhar a visão de mundo de Riobaldo, apaixonar-se por Diadorim…

Eu gostaria muito de ter lido Grande Sertão: Veredas sem saber que foi representado por Bruna Lombardi numa minissérie da Globo (os mais velhos poderão apelar para uma referência ainda mais antiga, do filme de 1965, com a atriz Sonia Clara). Apesar das andanças, das superstições, da linguagem do sertão, das disputas de terra e do amadurecimento de Riobaldo, é Diadorim que o leitor busca em cada uma de suas páginas. Os seus olhos verdes, o seu comportamento reservado, as mãos delicadas, sua maneira firme e determinada, o perfume do seu corpo, as palavras soltas… tudo em Diadorim confunde e deixa Riobaldo em suspenso. Diadorim e a saga no sertão se confundem. Acredito que antes o amor de Riobaldo e Diadorim também confundiam também o leitor. Riobaldo não se permite dar vazão ao que sente por Diadorim, outro homem, algo ainda hoje – apesar de tantas lutas e progressos com relação à aceitação da homossexualidade – perfeitamente compreensível. Quem lia aquilo sem saber previamente da história de Diadorim, não conseguiria deixar de perguntar: Riobaldo é gay? O que teria acontecido se ele tivesse tentado? Ou será que no fundo ele sabia que Diadorim era uma mulher? A explicação mais bonita que vi da história de Diadorim e Riobaldo foi de uma entrevista de um ator italiano, desses de novela da Globo, que disse que Grande Sertão lhe ensinou que amor não tem sexo, que amor é algo que existe entre essências. Talvez conhecer o livro antecipadamente tenha nos retirado o privilégio de chegar a uma conclusão semelhante.

Falando em paixão, em amor, não dá para deixar de citar a evidente torcida de Guimarães Rosa, demonstrada nesse e em outros livros, pelo sertão. Falando de modo bem amargo, o sertanejo seria quase um bom selvagem. A linguagem deliciosa e musical do livro, ao invés de eternizar a fala do jagunço, criaria outra, realmente musical e deliciosa, só que fora da realidade. Metidos em guerras confusas, dormindo sob o céu estrelado e sem saber do que será o amanhã, os personagens de Guimarães têm sempre uma grandeza, uma proximidade com o eterno. O homem a cavalo, a filha do moço da venda, o matador de aluguel, nunca podem ser reduzidos apenas ao que fazem. Mesmo quando fala da morte, da necessidade e da ignorância, o leitor sempre têm a impressão de que eles, interioranos, vivem de uma maneira mais autêntica do que nós, leitores citadinos.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XVII – O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov

Capa de O Mestre e a Margarida, edição da Alfaguara

Sabem aqueles livros que valem por cada palavra? Que é engraçado, profundo, social, histórico, existencial e grudento? Pois O Mestre e Margarida satisfaz todas as condições acima. A influência do livro pode ser medida não apenas por minhas conversas com os amigos russos da Ospa, mas no reflexo da obra na cultura mundial. O livro Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, tem clara e confessa influência de Bulgákov; a letra da canção Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, foi escrita logo após Mick Jagger ter lido o livro, assim como Pilate, do Pearl Jam, e Love and Destroy da Franz Ferdinand, a qual é baseada no voo de Margarida sobre Moscou. Mas nem só a literatura e o rock, que não viveu para ouvir, homenageia Bulgákov: o compositor alemão York Höller compôs a ópera Der Meister und Margarita, que foi apresentada em 1989 na ópera de Paris e lançada em CD em 2000.

Em vida, tudo que o ucraniano Bulgákov (1891-1940) desejava era sair de Moscou e da União Soviética. Escreveu mais de uma centena de cartas a Stálin, justificando-se e pedindo permissão para deixar o país. Afinal, se tudo o que escrevia era proibido, era um inútil para a URSS. Tanto escreveu cartas que acabou recebendo um telefonema do próprio Stálin: este lhe oferecia um emprego num teatro, para o qual deveria escrever pecinhas tranquilas com seu indiscutível talento — e Stálin sabia reconhecer quem o tinha —  e referendava o “desejo” de não ver o escritor fora do país. E Bulgákov sobreviveu escrevendo umas poucas peças de sucesso para o teatro, além de adaptar para o palco Dom Quixote e Almas Mortas.

Bulgákov brincando de Koroviev: censura e cartas a Stálin

Ele começou a escrever o romance em 1928. Em 1930, o primeiro manuscrito foi queimado pelo autor após ver censurada outra novela de sua autoria. O trabalho foi recomeçado em 1931 e finalizado em 1936. Sem perspectiva alguma de publicação, Bulgákov dedicou-se a revisar e revisar. Veio uma nova versão em 1937 e ainda outra em 1940, ano de sua morte. Na época, só sua mulher e amigos sabiam da existência do romance.

Uma versão modificada e com cortes da censura foi publicada na revista Moscou entre 1966 e 1967, enquanto o Samizdat publicava a versão integral. Em livro, a URSS só pôde ler a versão integral em 1973 e, em 1989, a pesquisadora Lidiya Yanovskaya fez uma nova versão — a que lemos atualmente — baseada em manuscritos do autor. A vida era assim na URSS.

O livro é digno da história contada por minha amiga bielo-russa Elena Romanov (aqui em uma versão livre e talvez equivocada de minha lavra…):

— Eu tinha uma colega de quarto que lia apenas O Mestre e Margarida. Ela terminava e voltava ao início. E dava gargalhadas e mais gargalhadas. Na Rússia o livro foi tão lido que surgiram expressões coloquiais inspiradas por ele. A frase dita por Woland “Manuscritos não ardem” é usada quando uma coisa não pode ou não será destruída. Outra é “Ánnuchka já derramou o óleo”, para dizer que o cenário da tragédia está montado.

O jovem Bulgákov e um daqueles escritores russos

As cenas de Pôncio Pilatos, do teatro, do belíssimo voo de Margarida e do baile eram conhecidas de mim por serem citadas aqui e ali com enorme admiração. E a fama é justa. Digo tudo isto porque é triste ver O Mestre e Margarida, obra muito popular em vários países, ignorada no Brasil.

Em 2006, o Museu Bulgákov, em Moscou, foi vandalizado por fundamentalistas. O museu fica no antigo apartamento de Bulgákov, ricamente descrito no romance e local dos mais diabólicos absurdos. Os fundamentalistas alegavam que O Mestre e Margarida era um romance satanista.

Bulgákov e esposa em 1937. Ele tinha uma Margarida que era pura poesia.

A ação do romance ocorre em duas frentes: a da chegada do diabo a Moscou e a da história de Pôncio Pilatos e Jesus, com destaque para o primeiro. O estilo do romance varia. Os capítulos que se passam em Moscou têm ritmo vivo e tom de farsa, enquanto os capítulos de Jerusalém estão escritos em forma clássica e naturalista. Em Moscou, o demônio (Woland) vem acompanhado de uma improvável claque composta por Koroviev — altíssimo com seu monóculo rachado –, o enorme gato Behemoth (hipopótamo, que rima com gato em russo), o pequeno Azazello e a bruxa Hella, sempre nua. Moscou surge como um caos: é uma cidade atolada em denúncias e na burocracia, as pessoas simplesmente somem e há comitês para tudo. No livro, o principal comitê é uma certa Massolit (abreviatura para sociedade moscovita de literatura, que também pode ser interpretada como literatura para as massas) onde escritores lutam por apartamentos e férias melhores. Há também toda uma incrível burocracia, tão incompreensível quanto as descritas por Kafka, mas que aqui vive uma atordoante e espetacular série de cenas hilariantes.

Homenagem do Google aos 120 anos de nascimento de Bulgákov em 2011

Como veem, em Moscou o diabo está casa e podem deixar tudo com ele, pois Woland e sua trupe demonstram toda a sua incrível criatividade para atrapalhar, alterar, sumir e assombrar. O escritor Bulgákov responde à altura das cenas criadas. A cena do teatro onde é distribuído dinheiro e a do baile — há ecos dos bailes dos romances de Tolstói — são simplesmente inesquecíveis. Falei em Tolstói, mas, fora de dúvida, a base de criação de Bulgákov é seu conterrâneo Gógol.

O livro pode ser lido como uma comédia de humor negro, como alegoria místico-religiosa, como sátira á Rússia soviética ou como crítica da superficialidade das pessoas. Bulgákov não é tolo: não há nostalgia da Rússia czarista. E mais: Woland não está em oposição direta a deus, mas como o ser que pune os maus e a covardia — é frequente no livro a menção de que a covardia é a pior das fraquezas (concordo muito). Porém, as punições de Woland são desconcertantes.

Agora é só ler, né? A tradução de Zoia Prestes, para a Alfaguara, é bastante superior à antiga, lançada lá por volta de 1993 pela Ars Poetica.

Finalmente tranquilo: Mikhaíl Afanasyevich Bulgákov em Kiev

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XVI – Esperando Godot, de Samuel Beckett

O ar está cheio de nossos gritos, mas o hábito é uma grande surdina.

Teatro vale? Mas é claro! No planejamento desta série, que não existe e que teria sido feito por mim enquanto caminhava pela rua, há também Macbeth ou A Tempestade, peças de estupenda qualidade literária escritas por Shakespeare. Beckett detestava aparecer e foi por este motivo que não foi receber o merecido Nobel em 1969. Ele preferiu ficar em casa. Uma frase atribuída a ele é a seguinte: “Eu nada tenho a dizer, mas só eu sei exprimi-lo”. Beckett teve o bom gosto de jamais explicar o significado simbólico de Esperando Godot, apenas veio à público para afirmar que Godot, não era deus (god).

Vladimir e Estragon são dois vagabundos de vaudeville que aguardam inutilmente a chega de Godot, uma coisa ou alguém que não se sabe o que ou quem é. Enquanto esperam, tagarelam a respeito de tudo, desde seus calçados, até a opção pelo suicídio e a existência de deus. Sem traços ideológicos, a peça não tem um enredo ou conflitos definidos e se passa ao lado de uma árvore. Pode-se dizer que se trata antes de um portal onde são vistos em sequência temas fundamentais da humanidade, vindo todos num ritmo alucinado de cinema mudo: o desejo de afeto, a necessidade de companhia, o ressentimento, o medo da velhice e da solidão, a salvação e o vazio. O destino em Beckett é um carro alegre e brincalhão que atropela indiferente (lembram da música?) personagens que procuram escapar dele divertindo-se de forma nada monótona. O que dizer da qualidade dos diálogos Allegro Scherzando do irlandês? Talvez devamos nos recolher como Beckett faria. Paremos aqui.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XV – Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift

Em sua crônica de hoje no Sul21, o escritor Ernani Ssó voltou a falar sobre um de seus assuntos preferidos: o humor ou a falta de. Eu acho curioso que um dos livros mais engraçados já escritos — Viagens de Gulliver (1726, revisado em 1735) — tenha sido sequestrado pela literatura infantil como se dela fizesse exclusivamente parte. Nada contra as crianças, mas este livro de Swift não foi de modo nenhum apenas dedicada a elas. Assim como também não foi a Modesta Proposta, onde o autor explica com clareza exemplar como a Irlanda poderia livrar-se da fome… O que ocorre com Gulliver é curioso. Por exemplo, o personagem principal vai a uma terra onde só há intelectuais e o nome do país é Laputa, singela homenagem àqueles que estão sempre prontos a vender sua pena e ideias a quem lhes pagar melhor… Acho que nem todas as crianças conhecem tal característica, tão nossa.

A narrativa inicia com o naufrágio do navio onde Gulliver estava. Após o naufrágio, ele é arrastado para uma ilha chamada Lilliput. Os habitantes da ilha, que eram extremamente pequenos, estavam constantemente em guerra por futilidades. Foi através dos lilliputianos que Swift demonstrou a realidade inglesa e francesa da época. Na segunda parte, Gulliver conhece Brobdingnag. Em contraposição a Liliput, é uma terra de Gigantes e lá Gulliver percebe a enorme dimensão da mediocridade da sociedade inglesa. A terceira parte, na ilha flutuante de Laputa, é uma feroz crítica ao pensamento cientifico que não traz benefícios para a humanidade e aos intelectuais. Na última viagem, Gulliver encontra os Houyhnhm, uma raça de cavalos que possuía rara inteligência e bom senso, representando os ideais iluministas da razão. Os Houyhnhm temiam que alguém dos Yahoo, a raça imperfeita de “humanos”, movidas por instintos primitivos, se tornasse culta.

Swift foi o mais pessimista dos humoristas e um dos mais brilhantes deles. Foi sistematicamente trucidado por críticas a cada lançamento obra. Os críticos encararam seus trabalhos como resultantes de um misantropo, como se fossem parte da vingança de um homem amargurado e frustrado em suas ambições poéticas, políticas e eclesiásticas.

O fato de ser entendido pelas crianças — certamente de outro modo — apenas o engrandece. Agora, a forma como superou as adaptações e os abusos cometidos há quase 300 anos, chegando até nós, isso eu não imagino como possa ser explicado. A última tentativa foi um filme de Hollywood que vou te contar…

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XIV – O Anão, de Pär Lagerkvist

Neste momento, há três exemplares de O Anão à venda na Estante Virtual. A única edição nacional é da Civilização Brasileira, dos anos 70. Não é um livro grande, é um volume de 150 páginas. O valor mais barato praticado é de R$ 189,90; o mais caro, R$ 250,00. Não me surpreende. Tornou-se raro e é uma obra-prima daquelas que tem de ser levadas para a ilha deserta.

(Tenho certeza que meu exemplar está lá em casa. Mas agora, sabedor do que ele vale, vou dar uma conferida).

O Anão é a história de Picolino, o bobo da corte de um príncipe italiano da Renascença. Sua função é a de divertir e ele a cumpre; só que ele odeia minuciosamente a todos os seus amos e quase todos são seus amos, claro. A repugnância que sente, a repulsa que Picolino dedica a todos é descrita de forma estupenda — com um foco narrativo que tentaremos explicar à frente — pelo Nobel de 1951, assim como também a forma como passa a influenciar os assuntos políticos da corte, sempre com a única e exclusiva intenção de prejudicar a todos. É um romance originalíssimo sobre o mal, a inveja e o desprezo.

A cidade-estado renascentista onde ocorre a ação não é clara, mas há um personagem chamado Bernardo, que é sem dúvida inspirado em Leonardo da Vinci, o que nos faz pensar no final do século XV. Também há referências a igrejas que se encontram na região de Florença. Ao mesmo tempo, o anão, narrador do romance, fala em criações como A Última Ceia e a Mona Lisa, a primeira delas pintada em Milão e segunda provavelmente em Florença. Além disso, o príncipe parece ser César Bórgia, que empregou Leonardo da Vinci como arquiteto militar… Desta forma, há muitas referências históricas dançando incontrolavelmente no contexto do romance.

Como disse, o anão é o narrador e tudo é contado retrospectivamente alguns minutos, horas ou semanas após a ocorrência dos fatos e antes dos seguintes. Tal artifício faz com que todos os acontecimentos sejam quentes, contados com emoção, e que O Anão planeje no papel seus próximos passos. Ou seja, a colocação do foco narrativo é muito inteligente, fazendo com que o leitor sinta a respiração do anão-monstro arquitetando suas vinganças, incorporando o mal e curtindo seu ódio de misantropo.

Ele ama a guerra, claro, e quando lhe pedem para cometer um crime, ele o expande sob o pretexto de beneficiar o príncipe… Todos mudam durante o romance, todos mudam na cabeça do narrador, menos ele, que se mantém coerente da primeira à última página. Curiosamente, é profundamente religioso, mas sua crença inclui um Deus que nunca perdoa. Mesmo impressionado com a ciência de Bernardo, sente repulsa pela busca que este empreende para chegar à verdade e ao âmago das coisas.

Por tudo isso e muito mais, este clássico de 1944 é de leitura obrigatória, o que justifica (ou não) seu preço (abusivo).

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XIII – Breve Romance do Sonho, de Arthur Schnitzler

Pequena obra-prima do austríaco Schnitzler (1862-1931), a história de Breve Romance de Sonho (1926) é mais conhecida na versão de Stanley Kubrick, que o transformou no filme De Olhos Bem Fechados, título bastante adequado a este curioso livrinho de cem páginas. Não é uma história pânica, é a história de um pânico, de um enorme pânico. Sem revelar inteiramente a trama, vamos em frente.

O médico Fridolin e sua mulher, Albertine, são jovens, belos e bem sucedidos. Formam uma família exemplar, eles e sua querida filhinha. Então Albertina revela a seu marido uma fantasia sexual com amigo do passado, um quase-amor, e a vida de Fridolin vira pelo avesso. Ele passa a agir como num sonho, à procura de sexo e problemas. Para piorar, a mulher, no outro dia, conta-lhe um sonho sobre um bacanal em que o marido é condenado à morte. Freud era um dos admiradores de Schnitzler e deste novela absolutamente brilhante em expor o medo e a questão de até onde deve ser levada a intimidade dos casais. A partir de uma simples revelação, tudo o que sustinha a relação parece ter perdido subitamente o sentido. Paradoxalmente, o medo faz Fridolin perder qualquer receio da morte — ao contrário, ele parece procurá-la demorando-se em aventuras pelas ruas e criando fantasias de um retorno impossível à felicidade burguesa anterior.

Talvez as temáticas psicológicas propostas pelo autor vienense ainda no tempo de Freud possam estar cientificamente superadas, mas, na verdade, isso é o que menos importa. A arte de Schnitzler ao descrever as reações de Fridolin é arrebatadora, de um virtuosismo absoluto, que torna a leitura desta Traumnovelle uma das coisas mais fascinantes que conheço.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XII – Orlando, de Virginia Woolf

Mrs. Dalloway, há As Ondas, Passeio ao farol e Entre os atos. Há também o fantástico ensaio de Um teto todo seu, mas se tiver que escolher o melhor livro de Virginia Woolf, escolho a alegria de ler Orlando. Nem vou comparar a qualidade literária de um e outro livro de VW. Escolho Orlando pelo mais puro afeto. Pois não lembro de nada mais que seja ao mesmo tempo tão satisfatoriamente feérico, alegre e inteligente do que este romance digno de grandes paixões.

Orlando é um jovem aristocrata inglês da época elisabetana (1558-1603). Sacha, uma jovem russa, foi sua grande paixão e desilusão. Os encontros entre eles são puro tesão literário. Mas acontecem coisas a Orlando: ele algumas vezes dorme e avança no tempo. Então, no século XVIII, vai a Constantinopla como embaixador. Um dia, há uma revolta na cidade. E Orlando acorda mulher. É recolhida por ciganos e regressa a Inglaterra. O livro prossegue até Orlando chegar ao século XX, com 36 anos. E, mesmo desprovido da sua masculinidade, continua a amar Sacha. Virginia era casada com o grande Leonard Woolf, a quem amava incondicionalmente como amigo. Talvez o seu maior amor carnal tivesse sido Vita Sackville-West, a quem Orlando e sua indefinições é dedicado.

Como em Um teto todo seu, Virginia Woolf permanece dentro de um feminismo esclarecido, sem culpas ou ódio, apenas fazendo anotações sarcásticas e desencantadas sobre uma humanidade que despreza as mulheres. Os símbolos são fortes e elegantes, como quando Orlando retorna à Inglaterra e apenas os cães e os animais o(a) reconhecem. São os únicos a respeitarem Orlando sem se importar com seu novo sexo.

Mas não pensem Orlando como um livro centrado apenas na questão do feminino. Há as questões da sabedoria, do tempo, da felicidade e da permanência, representada pelo filho que ela tem com o estranho Marmaduke Bonthrop Shelmerdine. Quando lançado, Orlando fez imenso sucesso e permitiu a Virginia e Leonard comprarem o carro em que passeavam por Londres… Nenhuma surpresa, pois o livro é de um modernismo alegre,  repleto de poesia e humor. Apaixone-se por Orlando. Na minha opinião, é inevitável que isto ocorra logo nas primeira páginas.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XI – Orgulho e Preconceito, de Jane Austen

O teste final de um romance será a nossa afeição por ele, como é o teste de nossos amigos e de qualquer outra coisa que não possamos definir.

E. M. Forster – Aspectos do Romance

Publicado pela primeira vez em 1813, Orgulho e Preconceito é o romance mais popular de uma autora que viveu apenas 41 anos, tendo escrito apenas outros cinco, todos excelentes: Razão e Sensibilidade (1811), Mansfield Park (1814), Emma (1815) e os póstumos A Abadia de Northanger (1818) e Persuasão (1818).

É compreensível a insistência do cinema em adaptar os trabalhos de Austen. Numa camada mais superficial, sua literatura trata de temas simples e universais dentro do cenário da pacata sociedade rural pré-vitoriana. São romances de costumes. As moças estão sempre à procura do amor e de um bom casamento, enquanto os mais velhos pensam no dinheiro e nas conveniências. Todos os conflitos são aparentemente fúteis, mas aí é que entra a autora. Austen tem um tom delicioso para contar suas histórias. Ela não faz comédia, mas é engraçada; expõe dramas, mas não é trágica; é grave, porém leve. A ação é posta em movimento pela tensão variável entre poucos personagens e pela intervenção de outras. O romance não deixa transparecer seu esquema por trás de diálogos absolutamente fluentes e de uma narradora de tom zombeteiro. Num espaço rural limitado, as pessoas fazem visitas, vão a bailes, tomam chá, enganam umas às outras, armam situações e divagam sobre suas vidas e planos. O refinado humor da escritora se manifesta em tudo: ameniza os dramas, diverte-se com os personagens e faz humor.

Em Orgulho e Preconceito, a maior fonte de humor é a convivência doméstica do casal Bennet, pais das cinco irmãs casadouras. Expliquemos a história do romance sem prejudicar a leitura de quem não o conhece. Os personagens principais são Elizabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy. Nada mais típico e copiado: Darcy é um rico nobre e Elizabeth é a moça da pequena nobreza rural inglesa que parece apenas esperar a dádiva de um marido. Só parece. Pois Elisabeth é muito inteligente, crítica e unicamente a culpa em relação à família a faria casar com o primeiro que aparecesse. Ou nem isso, como veremos. Aliás, em sua família, apenas ela, sua irmã mais velha (Jane) e o ultrassarcático papai Bennet têm comportamentos razoáveis. A mãe só pensa em livrar-se das filhas e as outras irmãs — talvez com a exceção da moralista e puritana Mary — podem ser sintonizadas na mesma faixa da mãe. Para catalisar ainda mais a histeria familiar, há o fato de que a lei inglesa proibia que mulheres herdassem quaisquer patrimônios. Isto significa que, quando da morte de Mr. Bennet, a casa e a pequena propriedade familiar iria para um primo e as mulheres da família ficariam sem renda. Ora, você já conhece este enredo? Sim, claro, Austen foi imitadíssima, sem sucesso. Elizabeth e Mr. Darcy se conhecem e a primeira impressão é de antipatia mútua. Nos encontros seguintes, pouco a pouco, Darcy começa a ver em Elisabeth uma moça bem longe das simplesmente casadouras, reconhecendo um espírito crítico que lhe agrada inteiramente.  O Preconceito do título do romance é principalmente dele e é o primeiro a lentamente cair. Darcy chega a declarar seu amor, mas é rechaçado pelo Orgulho de Elizabeth. Como quase sempre, a personagem feminina é muito mais fascinante do que a masculina. Incompreendida ao impor dificuldades a um rico casamento, Elisabeth só encontra respaldo em seu pai, o sarcástico. Mr. Bennet é um excêntrico que se refugia em seus estudos para não ter de conviver com a mulher, mas que apoia incondicionalmente Elisabeth.

Além do conflito principal, Jane Austen traz uma galeria de personagens perfeitamente construídos — a tia hostil, a irmã fujona, Jane — que, acompanhados de seus draminhas, interferem com Darcy e Elisabeth. Os personagens nos proporcionam renovado prazer cada vez que aparecem. Seus diálogos nos conduzem naturalmente de um assunto a outro, fazendo de Orgulho e Preconceito um dos ápices da literatura mundial. Uma vez, ao ser perguntado sobre o maior casal da literatura, votei em Elisabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy, o que provocou certo desconforto em quem esperava Beatrice Portinari e Dante Alighieri, dentre tantos outros. Acharam que eu me utilizara de um lugar-comum. Mas que culpa eu tenho de Orgulho e Preconceito ser um daqueles casos em que qualidade e popularidade permaneceram juntas?

Austen nunca casou, sempre morou com os pais na casa acima (hoje sede do Museu Jane Austen, claro). Escrevia seus romances no quarto e tinha pudor de quando alguém abria a porta — escondia imediatamente seus cadernos. Sua vida não teve grandes acontecimentos e ela ficou para titia. Porém, se você ler por aí que ela teve um caso com sua irmã Cassandra, esqueça. Uma vez, Paulo Francis deu demasiada divulgação a um artigo da imprensa marrom inglesa: Was Jane Austen gay? Era uma mero chute, mas Francis descobriu que Jane dividira por décadas a mesma cama com Cassandra — ambas solteironas — e levou a coisa à sério. Ignorando que este era um costume da época, a ex-batata inglesa do Manhattan Connection fez uma festinha com seus amigos a respeito.

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Dois updates mais do que pertinentes:

1. Um novo show da Nikelen nos comentários:

Querido Milton, desde que comecei a comentar aqui, fiz a autocrítica de que meus comentários acabaram ficando longos demais. Porém, desta vez, você me obriga.

Conheci Austen já em idade avançada. Estava no início do doutorado, presa no Rio de Janeiro (entendam isso como quiserem), e, após o dia lendo para a tese, restava apenas a TV aberta e andar por um cubículo de pouco mais de 30 m2. Então, resolvi tapar minhas falhas literárias, fui a um sebo e me muni de Austen, Henri James, e versões adultas de Sabatini e Dumas (até então eu apenas lera as versões juvenís da Ediouro).

Esperava que Austen fosse um pouco massante, qual minha surpresa quando me vi as gargalhadas com Orgulho e Preconceito. Foi mais do que amor à primeira vista, foi o início de uma devoção. Pode parecer exagerado para quem não leu, mas eu explicarei meus pontos. Já até ameacei amigos que me franziram a testa perguntando: “é bom?” Até hoje nenhum dos meus convertidos se arrependeu de dedicar longas e perfeitas horas a Miss Austen. Por isso, adorei sua resenha e concordo quanto à sua escolha quanto ao maior casal da literatura.

E acredito que Elizabeth é, igualmente, uma das mais fantásticas heroínas já escritas. Ela não é uma mocinha romântica (esse papel é da sua irmã Jane). Elizabeth sabe ser maliciosa, dura, debochada, sem deixar de ter um bom coração. Envergonha-se de sua família, mas ama-os a ponto de defendê-los mesmo com seus imensos defeitos. O que poucos notam é o quão revolucionário é este romance para a época e as pessoas para quem foi escrito. Ele é a reivindicação de uma possibilidade de escolha que nem as mulheres, nem os homens tinham em sua época. Embora publicado no início do século XIX, o romance é de fins do século XVIII, e está ancorado numa moral em que a família e as convenções ditam as escolhas e os destinos.

Mas Austen pega seus dois personagens principais – cheios de dúvidas e de contradições, quase incapazes de um comportamento retilíneo – e os faz rebeldes para o mundo em que vivem. Elizabeth é uma rebelde nata. Não quer se submeter a um homem apenas para ter um marido. Ela quer alguém que a respeite como o pai a respeita (um Édipo bem resolvido, eu diria), e tem o apoio do pai – que a considera acima de todas as filhas por ver nela uma mente irmã.

Mas Darcy? Darcy é aparentemente convencional, preso aos costumes e a sua posição (embora de uma antipatia pouco aceita naquela sociedade, mesmo de alguém tão rico. Até Mrs. Bennet o esnoba por isso). E aí, de repente (ou lentamente como narrou o Milton), Mr. Darcy também se torna um rebelde (contra si mesmo, como ele afirma) e passa a querer o que não lhe seria permitido.

O romance não é apenas uma aula sobre o convencionalismo inglês, mas também sobre uma revolução nos costumes, marca desta virada de século. A família nuclear começa a deixar de ser vista como uma entidade reprodutora de pessoas para abastecer linhagens, passa a ser vista como um núcleo formativo de indivíduos e, nisso, as ideias de harmonia e amor conjugal começam a aparecer. É óbvio que se trata de uma mudança de longa duração. Daí o elemento revolucionário do romance de Austen (escrito no princípio desta transformação).

Ahh Milton, eu iria longe aqui, muito longe. Há tanto o que falar de Mr. Bennet e sua posição ambígua de crítica sem nada transformar. Ou da insuportável Lydia, cuja tagarelice vazia faz nossa mente voar para fora do papel e quando retornamos, percebemos que fomos acompanhados no voo por Elizabeth (tão avessa à futilidades quanto nós). Ou ainda falar sobre Mr. Collins, a realista Charlotte ou Mrs. de Bourgh (entulho de um século precedente), cada um deles, um universo de análise.

Vou apenas, se me permite, discordar de dois pontos em sua resenha. Um: Elizabeth não é plebéia. Ela pertence à pequena nobreza rural inglesa que, em tese, poderia sim se casar com a alta nobreza, embora isso não fosse visto como conveniente para quem estava no andar de cima.

Dois: não acho Mary uma precursora dos nerds. Ela é uma jovem moralista, leitora ávida dos textos protestantes e metodistas da época, que tentavam regrar as vidas das pessoas conforme uma rígida postura puritana. Sempre acho uma pena que Mr. Collins não a tenha escolhido, mas… o final feliz não é para todos.

Um grande abraço e obrigada por não deletar este comentário exagerado.

2. E outro da Emma Thompson quando da entrega do Globo de Ouro de 1995. Ela se faz de… Jane Austen:

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): X – Madame Bovary, de Gustave Flaubert

Li Madame Bovary apenas uma vez e acho que não preciso de outra para colocar o livro em minha antologia. Se o ser humano é uma coisa eternamente insatisfeita, aqui temos o microcosmo da infelicidade feminina e da desilusão romântica. Não vou contar em detalhes a história do livro, mas esta foi tão imitada e recontada que não guarda mais nenhuma novidade. É o romance que fundou o realismo em 1857 e, assim como a cabeça do Quixote estava cheia de romances de cavalaria, a de Emma Bovary estava lotada de romances sentimentais. Emma casa-se com o médico Charles Bovary, insípido e apaixonado por ela. O tédio insere-se de tal forma na relação que ela passa a detestar o marido. A progressão do tédio e sua transformação em desinteresse e depois ódio são contadas por um autor absolutamente impecável e no perfeito domínio de seus meios. Nada parece estar fora do lugar, nenhuma palavra. Dividido em três partes, como um concerto, demonstra como Emma permanece insatisfeita mesmo após o nascimento da filha e de seus apenas prometedores adultérios.

Na época em que foi publicado, Madame Bovary causou escândalo e foi julgado por obscenidade. Quando perguntaram a Flaubert quem era a protagonista que tinha sido descrita com tamanha perfeição e riqueza de detalhes, o autor respondeu ao tribunal com a célebre frase que diz tudo: “Madame Bovary c`est moi!”.

E era. Flaubert passou mais de uma década observando, apurando, polindo, reescrevendo e inaugurando o realismo na literatura. Flaubert foi absolvido no ridículo processo, mas não foi perdoado pelos puritanos, que não conseguiam admitir o tratamento cru dado ao tema do adultério e pelas críticas implícitas ao clero e à burguesia, ambos desprezados por Flaubert. Mas esqueçam o fundador do realismo, o processo e tudo o que cerca Bovary. O livro é antes de tudo um texto admirável, construído com arrebatador virtuosismo; um texto trabalhadíssimo onde não se notam sinais do suor do autor. Tudo flui, tudo ganha seu devido ritmo e todo detalhe jogado ali é significante e contribui para a narrativa. Talvez Madame Bovary seja a maior das aulas práticas de narração.

James Wood escreveu em Como funciona a ficção que “Tudo começa e tudo termina com Flaubert”. Discordo. A literatura moderna recebe notável impulso com Flaubert, mas já começara com Stendhal. E não termina no autor de Bovary, como diz a frase de efeito de Wood. Porém, para usar uma palavra que está na moda, Madame Bovary é um romance verdadeiramente incontornável.

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