Um Coração de Cachorro e outras novelas, de Mikhail Bulgákov

Um Coração de Cachorro e outras novelas, de Mikhail Bulgákov

um-coracao-de-cachorro-e-outras-novelas-mikhail-a-bulgakovFormado pelas novelas As Aventuras de Tchítchikov, Diabolíada, Os Ovos Fatais e Um Coração de Cachorro, e com excelente tradução de Homero Freitas de Andrade, este volume da Edusp é uma verdadeira joia que reflete a literatura satírica dos primeiros tempos da União Soviética — e que depois foi morta por Gorki e pelo medonho realismo socialista. Aliás, Bulgákov, em sua “Carta ao Governo”, reclamou do que hoje é sabido por todos: “toda a sátira autêntica é absolutamente inadmissível na União Soviética”. A URSS era um regime que apenas admitia uma verdade única e inabalável e nenhuma “verdade” deste gênero resiste ao riso, principalmente ao riso inteligente e cheio de curvas e dúvidas como o criado pelo gênio de Bulgákov.

As quatro novelas deste livro formam um crescendo de virtuosismo arrebatador.

Pessoalmente, a leitura de As Aventuras de Tchítchikov teve pouca validade. Afinal, faz 40 anos que li Almas Mortas, de Gógol, e Bulgákov utiliza os personagens do romance como se fossem velhos conhecidos nossos. É claro que, como confirma a Elena, todo russo tem o livro de Gógol tão na memória quanto nós temos os principais contos e os cinco últimos romances de Machado. Mas eu mal lembrava de Tchítchikov…

Mas tudo mudou com a aceleradíssima e louca Diabolíada. Filha literária dos filmes pastelão dos anos 20, a novela está repleta de perseguições e transformações fantásticas com a finalidade de caracterizar a enorme máquina burocrática soviética. Pessoas deixam de existir, pagamentos são feitos através de caixas de fósforos que não funcionam em vez de dinheiro, todos passam fome e os pequenos chefes são verdadeiros diabos transformistas que antecipam a obra-prima de Bulgákov O Mestre e Margarida.

Os Ovos Fatais (1924) e Um Coração de Cachorro (1925) são novelas irmãs e das melhores coisas que já passaram frente a minhas retinas tão fatigadas. (Obrigado, Drummond). São duas longas e esplêndidas sátiras de ficção científica. Os Ovos Fatais tem uma longa introdução séria, com alguns curtos episódios cômicos, mas depois tudo se descontrola, virando um enorme vaudeville. Um vaudeville de terror, uma coisa realmente original. Já Um Coração é uma sátira de cabo a rabo e suas variações de foco narrativo — que são passadas de um para outro personagem e para o autor, depois que um cachorro abre a narrativa na primeira pessoa do singular –, valeria um estudo.

As duas novelas brincam de tal forma com o modus operandi da Revolução Bolchevique, fazendo tantas observações que se revelariam exatas décadas depois, que não surpreendem suas proibições na época. O que surpreende é o fato de Bulgákov escrever cartas e mais cartas para Stálin pedindo para sair do país, recebendo em troca telefonemas gentis do georgiano em várias madrugadas. Pelo visto, o chefe gostava do humor de Bulgákov, mas o queria apenas para si. O escritor faleceu em sua casa.

Mikhail Bulgákov
Mikhail Bulgákov

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Os Ovos Fatais, de Mikhail Bulgákov

Os Ovos Fatais, de Mikhail Bulgákov

um-coracao-de-cachorro-e-outras-novelas-mikhail-a-bulgakovAnteontem, finalizei a leitura de uma novela de Mikhail Bulgákov (aqui, a resenha do romance O Mestre e Margarida, do mesmo autor) que está no livro Um Coração de Cachorro (Edusp). Seu título é Os Ovos Fatais. A indicação era da Elena que a tinha lido há anos, ainda na União Soviética, através do samizdat (*). Ela não lembrava bem da história, só que era muito apavorante e boa.

E é mesmo. Não que seja extremamente original, é que Bulgákov consegue colocar numa história simples de ficção científica todo um arsenal de elementos que contam também outras histórias, tornando a coisa realmente grandiosa. Vamos sem spoilers. Piérsikov é um cientista que descobre um raio que, incidindo sobre os ovos de rãs, tornarão os répteis enormes e hiperativos. Tudo aponta para uma daquelas histórias de cientista louco que enche o mundo de criaturas desconhecidas e perigosas. Mas por trás da máquina de escrever está um autor genial.

A desgraça acontece e é terrível, mas quem a causa não é Piérsikov, mas a burocracia soviética. O resultado final, porém, é um fenômeno de massas que saúda o estado soviético como grande herói. Ou seja, quem cria o problema acaba vencedor, recebendo a consagração popular. Como todo grande autor, Bulgákov conta sua história de forma polifônica. Mas… OK, é uma novela de terror, só que provavelmente o gênero em que Os Ovos Fatais melhor se enquadre seja o da literatura satírica, pois Bulgákov tripudia sobre tudo — e é muito engraçado. Do jornalismo à política, do mundo acadêmico aos correios, sobra para todos.

Gostei tanto do que li que resolvi fazer esta pré-resenha de um livro que não terminei. Ainda tenho que ler Um Coração de Cachorro, cujo narrador é um cão…

Ontem, assistimos ao filme russo baseado em Os Ovos Fatais. É daqueles casos que a Caminhante sempre cita: o livro é muito melhor.

Pergunta final: Por que o tradutor Homero Freitas de Andrade não enfrenta O Mestre e Margarida? As duas traduções existentes para o português deixam a desejar. Mesmo a da Alfaguara é estranha em muitos pontos. Bem, à leitura do resto do livro!

(*) Samizdat era uma prática nos tempos da União Soviética destinada a evitar a censura imposta pelos governos dos partidos comunistas nos países do Bloco oriental. Mediante esta prática, indivíduos e grupos de pessoas copiavam e distribuíam clandestinamente livros e outros bens culturais que haviam sido proibidos pelo governo.

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Tom Jones

Tom Jones

Tom JonesTom Jones (1749) foi um dos livros que me deixou mais feliz. Li-o há mais de 30 anos. Alguns dizem que foi o primeiro romance moderno. Fielding parece admitir a novidade: “Como sou, em realidade, o fundador de uma nova forma de escrever, posso ditar-lhe livremente as leis que me aprouverem”. O magistrado Fielding era um cômico de primeira linha. Os capítulos são divididos em grupos antecedidos de pequenos e hilariantes ensaios introdutórios de duas ou três páginas. Como Sterne, faria 10 anos depois em seu Tristram Shandy, Fielding bate longos papos com o leitor. Machado faria o mesmo, não? É um calhamaço de mais de 800 páginas, mas os capítulos são curtos e têm com títulos que antecipam o que vai acontecer. 100% sarcasmo e ironia, 100% de situações e conjecturas absurdas.

Anteontem, vi uma nova e bela edição de Tom Jones. Custava R$ 10,00 na Nova Roma, sebo da Gen. Câmara. Adivinham onde está o exemplar? Vou reler, claro. Espero reencontrar um pouco da alegria da primeira leitura.

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Que venha 2015!

Que venha 2015!

champanheTenho algumas resoluções a não cumprir, mas é melhor ficar calado, né? Coisas de todos os tipos, a manter e a fazer. Vamos lá. Vamos tentar aguentar 2015. Chega desta desgraça de 2014. Vade retro.

~o~

Desejo a todos um ano novo de muitas virtudes e alguns pecados suaves e bem aproveitados.

Rubem Braga

~o~

Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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O homem que amava os cachorros, de Leonardo Padura

O homem que amava os cachorros, de Leonardo Padura
A edição da Boitempo
A edição da Boitempo

Leonardo Padura sabe que não é Tolstói, mas que seu tema podia ser tão imenso ou maior quanto o de Guerra e Paz. A história do exílio e assassinato de Trotski e a de seu algoz Ramón Mercader, se bem circunstanciada e contada, tinha o potencial de mostrar o que foi boa parte do século XX, com a história da perversão e morte (e das mortes de seres humanos) de sua maior utopia, indo desde a Revolução de 1917 até a Guerra Fria. Raras histórias são tão amplas temporal e fisicamente. Só para comprovar o caráter cosmopolita do livro, basta saber das andanças de Padura durante os cinco anos de pesquisas e de escritura do romance: Espanha, para saber da participação de Mercader na Guerra Civil Espanhola; Moscou, é claro, atrás da história de Trotski e de seus primeiro exílios no Cazaquistão e na Turquia; Paris e interior da França, em novo exílio. E também Dinamarca e Noruega, por onde o russo passou antes de chegar ao México, país onde o russo encontraria a morte através da picareta de Mercader.

Após levar a picareta na cabeça, Trotski ainda lutou com Mercader, impediu sua morte, gritando "Não o matem! Esse homem tem uma história para contar!!' e sobreviveu um dia.
Após levar a picareta na cabeça, Trotski ainda lutou com Mercader, impediu sua morte, gritando “Não o matem! Esse homem tem uma história para contar!’, e sobreviveu um dia.

Mas O homem que amava os cachorros (Boitempo, 592 páginas) não é um documento histórico e sim um romance, um romance que se atém com toda a fidelidade aos conhecidos episódios e à cronologia dos anos finais de Trotski. Nem tanta fidelidade foi possível com Mercader, o homem que trabalhou no Ocidente para os russos sob diversos nomes e disfarces e cuja história é tão fácil de reconstruir quanto adivinhar as feições daqueles homens que Stalin fazia sumir das fotografias históricas da Revolução Russa.

Cadê o Trotski que estava aqui?
Cadê o Trotski que estava aqui?

O livro de Padura é excelente. A escolha pelo ritmo de thriller foi acertada, assim como a alternância de capítulos dedicados a Trotski, Mercader e ao futuro autor do livro, perdido, sem temas, comida ou perspectivas em Cuba. É claro que os diálogos do romance são inventados, mas não são artificiais ou inverossímeis. Para melhorar ainda mais, o livro cresce de forma espetacular a cada página, dando dimensão humana a todos os personagens, fugindo inteiramente dos discursos e do jargão dogmático, até ridicularizado por Padura. Graham Greene ficaria feliz de ler O Homem que Amava os Cachorros.

A história é narrada no ano de 2004 pelo personagem Iván, um aspirante a escritor que atua como veterinário em Havana e que, a partir de um encontro enigmático com um homem que passeava seus cães numa praia de Havana, retoma os últimos anos da vida do revolucionário russo Liev Trotski e de Mercader, voluntário das Brigadas Internacionais da Guerra Civil Espanhola e encarregado de executá-lo por Stalin. O dono dos cães, que Iván passa a denominar ‘o homem que amava os cachorros’, confia a ele histórias sobre Mercader, de quem conhece detalhes íntimos. Diante disso, o narrador reconstrói a trajetória de sua vítima Liev Davidovitch Bronstein, mais conhecido como Trotski, teórico russo e comandante do Exército Vermelho durante a Revolução de Outubro, exilado por Joseph Stalin após este assumir o controle do Partido Comunista e da URSS. Ramón Mercader é um homem quase sem voz na história. Ele recebeu, como militante comunista, uma única tarefa — eliminar Trotski. São descritas sua adesão ao Partido Comunista espanhol, o treinamento em Moscou, a mudança de identidade e os artifícios para ser aceito na intimidade do líder soviético, numa série de revelações que preenchem uma história pouco conhecida e coberta, ao longo dos anos, por inúmeras mistificações.

Mercader na época do assassinato e após cumprir pena de 20 anos, já em Havana ou Moscou
Mercader na época do assassinato e após cumprir pena de 20 anos, já em Havana ou Moscou

Note-se que Mercader, Trotski e Ivan, todos eles, são “homens que amavam cachorros”. E um detalhe: o caso amoroso de Frida Kahlo e Liev Trotski, ocorrido sob o olhar digno de Natália Sedova é tratado com discrição, sem lances espetaculares. Apenas aconteceu por iniciativa do casal e desaconteceu a partir da elegante reação de Sedova.

Leon Trotsky (second right) and his wife Natalya Sedova (far left) are welcome to Tampico Harbour, Mexico by Frida Kahlo and the US Trotskyist leader Max Shachtman - See more at: http://www.historytoday.com/richard-cavendish/trotsky-offered-asylum-mexico#sthash.AAMNOTcG.dpuf
Leon Trotski (segunda, à direita) e sua esposa Natália Sedova (à esquerda) são recebidos no Aeroporto de Tampico, no México, por Frida Kahlo e o líder trotskista norte-americano Max Shachtman

Obra indicada a todos que não tenham saudades de Stalin, pois seu autor diz claramente: “Trotski podia ser duro, mas era um político; Stalin era um psicopata”.

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Notinha sobre a literatura de Georges Simenon

Notinha sobre a literatura de Georges Simenon

simenon2Georges Simenon vendeu aproximadamente 500 milhões de volumes de suas novelas e romances. Trata-se de um excepcional caso de sucesso popular e de crítica. Durante toda a sua vida, os leitores e editores pediram-lhe um grande romance através do qual o autor pudesse ser apresentado. A resposta era sempre a mesma:

– Minha grande obra é o mosaico formado por meus pequenos romances.

Grosso modo, podemos dividir sua obra em duas partes: os romances policiais com ou sem o célebre detetive Maigret e os duros romances psicológicos que lhe valeram o apelido “Balzac de Liége”, recebido de ninguém menos que André Gide. A popularidade destes livros não deixa de impressionar, pois são escritos em tom menor, são nada solares, sendo antes cheios de personagens deprimentes e deprimidos. Com suas ações quase sempre em cidades pequenas, Simenon envolve-nos numa triste realidade provinciana, onde o mal comanda.

O método de produção de Simenon é curioso. Ele escrevia seis ou sete romances ou novelas por ano, mas elas não lhe saiam continuamente e sim como espasmos. A história era inventada em 30 ou 40 dias em sua imaginação. Era o período de não escrever, de caça à história, quando ele passeava, ia a bares e convivia com as pessoas. Então, ele avisava aos familiares que trabalhar e todos sabiam o que aconteceria – ele sumiria em seu escritório por algo entre 10 e 20 dias. Nestes períodos, ninguém deveria falar com ele e a ordem era apenas alimentá-lo. Se um fato externo o interrompesse, abandonava o trabalho.

De certa forma, tal concentração está presente em seus trabalhos. As narrativas, a forma de envolver o leitor são via de regra impecáveis. A modernidade não está num trabalho de linguagem ou em tramas complexas ou contrapontísticas, está no fato de que o autor se exime dos princípios morais, apresentando tramas simples onde as atitudes são descritas de forma distante, muitas vezes cruel. Não há Deus nem julgamento, há sucessão de fatos que são jogados ao leitor no momento exato e que fazem excelente literatura.

Acabo de ler O Burgomestre de Furnes, um extraordinário estudo sobre o embrutecimento, o ódio e a avareza. Joris Terlink é o burgomestre que comanda a população, a economia e os conselheiros do povoado. Todos o temem e ele é consultado para tudo. Sua vida pessoal está associada a diversas tragédias, recentes e antigas: uma filha doente mental que é mantida presa em seu quarto sob o argumento de que não haveria um lugar melhor para ela, o câncer da mulher, os vários filhos fora do casamento – o quais são ignorados por Terlink – e a própria gestão de Furnes, cuja falta de solidariedade produz um suicídio no início da história. Há algo menos sedutor? Terlink é um monstro absoluto, circundado de idiotas que têm dificuldade de viver sem ele, mas a segurança com que Simenon leva sua narrativa não é menos monstruosa e sem compaixão.

Além do Burgomestre, os maiores romances desta face de Simenon provavelmente são Sangue na Neve, O homem que via o trem passar, O gato e Em caso de desgraça. Todos podem ser encontrados bem baratinho por aí. Saíram também em pockets.

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Albert Camus

Albert Camus

Alguma coisa em O homem que amava os cachorros me lembra Camus.

A morte de Camus, num medíocre acidente de automóvel, aos 46 anos, lembra Moscou. Só hoje descobri que não apenas eu faço a relação. O escritor e tradutor checo Jan Zabrana sugere a possibilidade de que Camus tenha sido assassinado por ordem do Ministro das Relações Exteriores da URSS, Dmitri Shepilov, em retaliação à oposição aberta que o escritor vinha fazendo ao país — particularmente no artigo publicado na revista Franc-Tireur de março de 1957, em que atacava pessoalmente o ministro, responsabilizando-o pelo que chamou de “massacre”, durante a repressão soviética à Revolução Húngara de 1956.

Em sua crítica, Camus citara o poeta americano Walt Whitman. Afirmara “sem liberdade, nada pode existir”. Ganhou assim, a inimizade de stalinistas e de simpatizantes da URSS. Olivier Todd, no livro Albert Camus — Uma Vida (Record, 877 páginas), relata o acidente:

A vinte e quatro quilômetros de Sens, na Rodovia 5, entre Champigny-sur-Yonne e Villeneuve-la-Guyard, o Facel-Véga, depois de uma guinada, sai da estrada em linha reta, se arrebenta contra um plátano, ricocheteia para cima de uma outra árvore, se desmantela. Michel Gallimard sai gravemente ferido — morreu cinco dias depois –, Janine ilesa, Anne também. O cachorro desaparece, Albert Camus morreu na hora. O relógio do painel é encontrado bloqueado às 13h55. A seus amigos, Camus dizia com frequência que nada era mais escandaloso do que a morte de uma criança e nada mais absurdo do que morrer num acidente de automóvel.

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Seis drops ou citações para meus sete leitores

Seis drops ou citações para meus sete leitores

1. Virginia Woolf:

As mulheres, durante séculos, serviram de espelho aos homens por possuírem o poder mágico e delicioso de refletirem uma imagem do homem duas vezes maior que o natural.

Não é isso mesmo? É assim que me sinto quando Elena me observa, me dá atenção ou revela alguma admiração. Um gigante. Os homens são BOBOS.

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2. A estátua de Davi foi levada a diversos museus norte-americanos por um período de três meses, mas agora está de volta à Florença.

Davi_Michelangelo

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3. Mia Couto:

O tempo é, como diz um provérbio de minha terra, um ovo: se não se segura bem, cai; se se aperta com força, quebra.

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4. Pablo Picasso:

Eu estou sempre trabalhando. Assim, quando a inspiração chegar, vou estar trabalhando.

Bach disse quase o mesmo. Comprovadamente, ambos trabalharam muito.

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5. Ontem, num restaurante onde sempre vou, o garçom me ofereceu a cerveja Coruja de sempre. Rejeitei-a, pois estava dirigindo. Ele respondeu que é o fim do mundo.

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6. Orhan Pamuk:

A pergunta que, com maior frequência, é dirigida a nós, escritores, a pergunta favorita, é: por que vocês escrevem? Escrevo porque tenho uma necessidade inata de escrever. Escrevo porque não posso ter um trabalho normal como as outras pessoas. Escrevo porque quero ler livros iguais aos que eu escrevo. Escrevo porque estou irritado com todo mundo. Escrevo porque adoro ficar sentado numa sala, escrevendo o dia todo. Escrevo porque só consigo tomar parte da vida real transformando-a. Escrevo porque quero que os outros, o mundo inteiro saiba que tipo de vida nós vivíamos e continuamos a viver, em Istambul, na Turquia. Escrevo porque amo o cheiro de papel, caneta e tinta. Escrevo porque acredito na literatura, na arte do romance, mais do que em qualquer outra coisa. Escrevo porque é um hábito, uma paixão. Escrevo porque tenho medo de ser esquecido. Escrevo porque gosto da glória e do interesse gerados pelo ato de escrever. Escrevo para ficar sozinho. Talvez eu escreva porque espero entender porque estou tão, tão irritado com todo mundo. Escrevo porque gosto de ser lido. Escrevo porque, tendo começado um romance, um ensaio, uma página, eu quero terminar. Escrevo porque todo mundo espera que eu escreva. Escrevo porque tenho uma crença pueril na imortalidade das bibliotecas e na maneira como meus livros ficam na estante. Escrevo porque é instigante transformar todas as belezas e riquezas da vida em palavras. Escrevo, não para contar uma estória, mas para compor uma estória. Escrevo porque desejo escapar do mau presságio de que há um lugar aonde eu devo ir, mas aonde – como num sonho – não posso chegar por completo. Escrevo porque nunca consegui ser feliz. Escrevo para ser feliz.

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Desaparecimento de Luísa Porto

Desaparecimento de Luísa Porto

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Divórcio, de Ricardo Lísias

Divórcio, de Ricardo Lísias

capa  Ricardo Lisias Divorcio.inddÉ óbvio que, até pela situação passada no ano passado, eu leria este livro. E começo dizendo que a traumática separação do personagem Ricardo Lísias — sim, Lísias é o nome do personagem de Lísias — foi fichinha perto da separação de Milton Ribeiro.

Divórcio é a história de uma separação com todos ingredientes que fazem parte deste tipo de situação: choque, ressentimento, ódio, divisão de bens, vinganças, recuperação. Tudo isto é catalisado por um narrador original e seguro, na primeira pessoa, que cria um texto grudento, apesar de cheio de quebras e opções. A sinceridade e a exposição do personagem Lísias só surpreende se pensarmos que Divórcio é um romance autobiográfico, fato negado pelo autor, inclusive para mim, pessoalmente.

Grosso modo, o romance alterna quatro tempos. O momento presente, a história do casamento, a preparação de Lisias para correr a São Silvestre — única fonte de prazer e o meio escolhido para o retorno à realidade e à vida — e a infância do Lísias personagem. Os jornalistas, profissão da ex-mulher, recebem muitas e justificadas críticas. Há uma coleção de frases antológicas de ódio no livro, mas se eu coloco aqui vão pensar que a coisa tem endereço. Então, vou colocá-las num contexto mais tranquilo. Num PHES fora da curva, por exemplo.

Indico, claro. Trata-se de um belo texto visceral.

(Curiosidade: fiquei contrariado com algumas metáforas utilizadas e, ao comentá-las com a Elena, fui convencido de que eram perfeitas. O problema é que eu sofro de outra maneira).

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Louis-Ferdinand Céline, os 120 anos do brilhante escritor antissemita

Louis-Ferdinand Céline, os 120 anos do brilhante escritor antissemita

Publicado pelo Sul21 em 1º de junho de 2014

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Céline: censura póstuma oficial

O fato de um escritor tão imenso quanto Louis-Ferdinand Céline (1894-1961) ter sido um antissemita dos mais abjetos sempre foi, no mínimo, perturbador. Em 2011, quando completou 50 anos de morte, Céline recebeu uma curiosa “des-homenagem” oficial. O Ministro da Cultura da França, Frédéric Mitterrand, retirou o nome de Céline das Célébrations Nationales. O motivo era o de sempre: “o antissemitismo virulento” do escritor e seus desprezíveis panfletos. O Ministro afirmou que apesar de seu talento, “não se deve esquecer o homem que fez a apologia do assassinato de judeus durante a ocupação. Não é digno que a República o celebre”. Um intenso debate seguiu-se e o Ministro afirmou que a retirada consistia numa moção de repúdio.

O professor emérito da Sorbonne, Henri Godard, ficou indignado: “É uma forma de censura. É perfeitamente possível distinguir os dois Céline: o grande escritor e o antissemita. O ato não constitui numa reparação às vítimas do antissemitismo, só as transforma em culpadas involuntárias de um ato de censura a um excepcional escritor”. Frédéric Vitoux, da Academia Francesa e biógrafo de Celine, afirmou que remover o nome de Céline de um catálogo é tão bobo quanto o fato de Stalin ter apagado das fotos oficiais os líderes comunistas de quem não gostava. “Isso não contornará o fato de que Céline foi um escritor genial, traduzido inclusive em hebraico. O que fazer, devemos queimar a tradução hebraica de Viagem ao Fundo da Noite?”.

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O escritor viu seu asilo na Espanha de Franco impedido por de Gaulle.

Amado e odiado, Céline é uma glória das letras europeias. Em 1950, foi julgado e condenado pela Repú­blica Francesa a um ano de prisão e a pagar 50 mil francos de multa. O governo confiscou cerca da metade de seus bens. O escritor ficou proibido de votar e ser votado, de portar armas e pleitear cargos públicos e não podia trabalhar em jornais, escolas e bancos. Quando a Segunda Guerra acabou, Céline pediu asilo a Franco, mas de Gaulle impediu pessoalmente que o ditador espanhol o recebesse, dizendo a Franco que tal asilo atrapalharia as relações diplomáticas e comerciais entre os dois países.

Nesta semana, ao completar 120 anos de nascimento, as homenagens a Céline partiram mais dos países de língua inglesa do que da França. Mas por que Céline é importante? Porque, na primeira metade do século passado, numa época em que os escritores e compositores experimentalistas tornavam suas obras mais e mais impenetráveis, Céline renovava a literatura utilizando-se da língua falada. É claro que a expressividade de Céline era muito estilizada, tratava-se de uma linguagem fabricada, mas o gosto pelas expressões orais e populares faziam parte de seu projeto, mesmo que seus temas fossem tão pouco seculares quanto a morte e a guerra. Suas posições políticas e opiniões não se fazem presentes em seus romances, apenas nos panfletos.

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Amor às reticências. Um pontilhista como Seurat e Signac…

Seu primeiro romance foi o citado Viagem ao Fundo da Noite.  A “viagem” é a aventura que se vive até a morte certa. Seu segundo romance, chama-se Morte à Crédito.

Quando se abre um livro de Céline, em qualquer página, toma-se um susto. O escritor simplesmente adorava as reticências. Suas páginas estão cheias delas, ao lado de uma linguagem fácil e fluida, raivosa e debochada. “As reticências arejam a frase”, dizia. A impressão que se tem é a de que o escritor raramente finaliza suas frases… Ele mesmo brincava que era pontilhista como os pintores Seurat e Signac. Já os estudiosos de sua obra garantem que a linguagem simples era resultado de uma elaboração rigorosa. Ou seja, ela parece simples, porque calcada na linguagem oral, mas é finamente elaborada. A tradutora Rosa Freire d’Aguiar anota: “Desde seu romance de estreia, Viagem ao Fim da Noite, de 1932, Céline forjou uma língua própria, incorporando gírias, corruptelas e palavrões, criando onomatopeias, elipses, rimas e neologismos”.

Seu estilo é raivoso e requer estômago forte. Por exemplo, a descrição que ele faz de uma viagem de barco em Morte à Crédito (1936) é algo inacreditável. O barco começa a jogar de um lado para outro e Céline não recua ao descrever a verdadeira epidemia de vômito que acomete os participantes. Não é um escritor que evite descrições por pudor.

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Herói e inválido na Primeira Guerra Mundial.

Nascido em 1894 em Courbevoie, periferia de Paris, em uma família de classe média baixa, Céline recebeu uma instrução escolar convencional antes de se incorporar ao exército francês em 1912, durante a primeira Guerra Mundial. Por ter levado a cabo uma missão de reconhecimento arriscada no setor de Ypres (Flandres Ocidental), foi condecorado como Herói de Guerra. No conflito, sofreu ferimentos na cabeça que lhe deixaram um zumbido recorrente no ouvido. Foi declarado inválido de guerra.

Depois, em 1916, esteve em Camarões trabalhando numa empresa francesa de madeiras. Retornou à França no ano seguinte. Trabalhou também numa fábrica de automóveis, enquanto começava o curso de Medicina. Em 1919 casou-se com Edith Follet, filha do diretor da Escola de Medicina de Rennes. Em 1920 nasce a sua filha Colette e dois anos depois Céline recebe a licenciatura em Medicina, tendo por tese um trabalho sobre o médico Ignaz Philipp Semmelweis.

Semmelweis em 1858, tese lida até nossos dias
Semmelweis em 1858. A tese de Céline é lida ainda em nossos dias

Esta tese é pura literatura e está publicada no Brasil, em livro da Companhia das Letras. É um relato espantoso e envolvente sobre a perseguição sofrida por Semmelweis pelo simples fato de ele ter sido o médico que tentava introduzir o ato de lavar as mãos e a esterilização de instrumentos e utensílios antes de quaisquer operações cirúrgicas. As estatísticas mostravam que seus pacientes morriam menos, mas a novidade era tão incompreensível para a época que o húngaro Semmeweis (1818–1865) só podia estar brincando ao fazer pouco da habilidade de quem fazia os procedimentos sem lavar as mãos.

O húngaro constatou que, quando se obrigava os médicos obstetras a lavarem as mãos antes de se aproximarem das parturientes, a proporção de infecções caía de 30% para menos de 1%. Vítima da hostilidade e da zombaria dos círculos médicos, Semmelweis foi expulso do hospital, teve de deixar Viena e acabou não somente alijado do mundo científico como internado num hospício… Tornou-se o primeiro grande personagem de Céline. A repercussão da tese de Céline, que não continha nenhuma novidade, ultrapassou muito o campo da medicina.

A morte, portanto, está presente na obra de Céline desde sua tese. Na verdade a morte já estava em sua vida desde a Primeira Guerra Mundial. Céline disse que tinha matado uma dezena de pessoas no conflito e que aquilo o afetava. Talvez tenha sido para aliviar a própria dor que Céline começou a escrever, o que acabou dando origem ao seu primeiro e melhor romance: Viagem ao Fundo da Noite.

Viagem narra a história de Ferdinand Bardamu, que luta na Primeira Guerra Mundial, envolve-se em uma empreitada de colonização na África, trabalha na linha de montagem da Ford nos Estados Unidos e termina em um subúrbio pobre de Paris, trabalhando em um manicômio. O romance é um grande retrato da loucura, mas da loucura não de um homem só, mas de toda a sociedade. Os caminhos de Bardamu reproduzem a própria história da França no começo do século passado, ingressando numa guerra genocida onde ninguém poderia ganhar, num projeto colonial e numa industrialização desumana ao estilo norte-americano da época… Não é casual que pareça que estamos recontando a biografia de Céline. Assim como seu alter ego, o escritor não guardava boas lembranças de nenhuma de suas experiências.

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“O amor é o infinito ponto fora do alcance”

O romance é dividido em duas partes. A primeira refere-se à descoberta de um mundo onde a paz e o amor entre os povos parecem impossíveis — por todo lado há homens explorando-se uns aos outros.  A segunda parece um prolongamento íntimo do primeira, notavelmente bem escrito. Serve para confirmar que o amor é impossível. Aqui, Céline examina a vontade de dominação e dependência nas relações amorosas. O romance desloca-se do social para o particular a fim de demonstrar que, de forma geral, “o amor é o infinito ponto fora de alcance”.

Morte a Crédito é tão autobiográfico quanto Viagem, só que voltado à infância do escritor. Como Céline, o protagonista também é um médico que descreve suas experiências no subúrbio da capital francesa, atendendo pessoas pobres. Com acidez, o narrador demonstra sua descrença a respeito de tudo. (Talvez seja importante citar que Céline, como médico, era amado por seus pacientes, sendo considerado um modelo de bondade e dedicação). Porém, a descrição de seus pacientes e parentes — dos quais recebia quantias miseráveis — é tão ressentida e permeada pelo ódio que se torna hilária. Todavia, num certo ponto da narrativa há uma ruptura e recuamos no tempo, dirigindo-se para a infância do escritor. O leitor, então, é levado à casa de Céline e de sua família. A vida era complicada. O pai trabalhava numa empresa de seguros e é um homem sem perspectivas e energia. A mãe mantinha a lojinha da família, enquanto a avó vive da renda de alugueis que quase não recebe e os tios não possuem um emprego fixo. Ou seja, todos sofrem com a falta de dinheiro. A narrativa é primorosa na descrição dos sentimentos humanos envolvidos.

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Um médico e escritor obcecado pela catástrofe

Mas, ao lado destes romances e de Norte, há os panfletos. O primeiro é Mea Culpa, onde manifesta seu desencanto com o comunismo. Depois vieram os políticos… A pedido do autor, Bagatelas para um massacre, A Escola dos cadáveres e Bonitos os Panos nunca foram reeditados. Dos panfletos antissemitas, apenas o célebre Vão Navios Cheios de Fantasmas pode ser lido.

O ensaísta Dau Bastos frisa que Céline “fez da escrita uma briga só” e nota que “ele mostrou-se tão obcecado pela catástrofe que a ela submeteu seu próprio texto”. Já Simone de Beauvoir confessa que chegou a saber de cor algumas das páginas de Viagem ao Fundo da Noite. O universo de Céline, que nos fala de desastres e das ruínas humanas, foi desfeito após a Segunda Guerra. E ele terminou sua vida exercendo a profissão de médico e não a de escritor em Meudon, no ano de 1961, sentindo a medicina como sua verdadeira vocação e a escrita como um acidente.

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A polêmica em torno do “terrível” Airton Ortiz

A polêmica em torno do “terrível” Airton Ortiz

livro do sargentinhoNão sou amigo de Airton Ortiz. Conheci-o fazendo uma longa entrevista com ele e, mesmo que não ponha a mão no fogo por ninguém, digo-lhes o que penso: olha, ele deve ter apoiado a ditadura militar tanto quanto eu. Se meus 57 anos servem para alguma coisa, uma delas é conversar com uma pessoa por uma hora e saber mais ou menos quem ela é.

Mas, além da intuição, há fatos. Sua ex-editora, a Tchê, publicou todos os comunas escreventes no Rio Grande do Sul dos anos 80, em especial os ligados ao PRC e ao PCB. Por exemplo, ele publicou obras do futuro ex-governador Tarso Genro e do professor Otto Alcides Ohlweiler.

Só que, na mesma época, a Tchê de Ortiz publicou um livro do então sargento Marco Pollo Giordani, chamado Brasil Sempre. O homem era — ou é, pois ainda vive — um ex-integrante do DOI-CODI e o livro uma resposta ao Brasil Nunca Mais. A tese do livro é de um espetacular absurdo: o autor diz que não houve tortura no País durante o regime militar. A justificativa de Ortiz para publicar o livro é crível: ele me disse que a “obra” disponibilizava uma série de documentos secretos do exército que nós da esquerda queríamos colocar a mão e que só se ele fosse muito louco sonegaria aquelas informações.

Visto do ponto de vista de nossa contemporaneidade, a atitude de Ortiz realmente parece estranha. Mas não guarda nadíssimo em comum com, por exemplo, a Editora Revisão de Siegfried Ellwanger. Ontem, entrei no sebo Nova Roma aqui da Gen. Câmara e dei de cara com o livro do sargento. Olha são, mais de setecentas páginas lotadas de documentos e fotografias. Passei uma boa meia hora examinando o volume. Todo o pessoal da luta armada que era do conhecimento dos milicos está catalogada ali, além de uma série de fotos e documentos sobre aquilo que o autor denomina de Contra-Revolução de 1964. Dilma está lá, claro. Pensando retrospectivamente, acho que, na posição do Ortiz, também publicaria o livro em função de seu ineditismo. Isto na época, porque se é hoje aquilo é puro lixo direitista, nos anos 80 era informação desconhecida permeada por um texto repugnante.

Dizer que Ortiz publicou um livro que defende os torturadores é rigorosamente verdadeiro e descontextualizado. A fogueira das vaidades literárias pegou pesado contra ele. Juremir Machado da Silva levantou o assunto no Correio e Alfredo Aquino chutou na Zero Hora, dizendo que a Câmara Rio-Grandense do Livro “profere um insulto aos que foram agredidos com torturas, aos que foram assassinados e feridos pela ditadura militar”. OK, são opiniões. Ou inimizades.

Voltando ao Ortiz. Ele é um homem tranquilo que, quando falou sobre Porto Alegre, trouxe naturalmente à conversa exemplos positivos de Havana — ele escreveu um livro premiado sobre a cidade. É um sujeito que fala de como são enriquecedoras as viagens e o conhecimento da diversidade, de como a gente deve aprender sobre outras culturas, que chega a um país e aprende 300 palavras básicas a fim de ser bem aceito, que fala com admiração dos aspectos culturais da Índia, do Nepal e de regiões da África. Que diz que as viagens pulverizam o preconceito.

E esse cara é pró-repressão e milicos? Tá bom, vão nessa.

Obs.: Sobre as capas na imagem que abre o post. É a primeira edição da Tchê nos anos 80 e a segunda, custeada pelo próprio autor, recém lançada.

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Porcarias, de Marie Darrieussecq

Porcarias, de Marie Darrieussecq
A capa de Porcarias
A capa de Porcarias

No original francês, é Truismes; em Portugal, é Estranhos Perfumes; em inglês, Pig Tales; e no Brasil recebeu o bom título de Porcarias.

Porcarias, livro de Marie Darrieussecq que ganhei de presente de minha filha, é apresentado como uma parábola. Parábola é uma “narração alegórica na qual o conjunto de elementos evoca, por comparação, outras realidades de ordem superior”.

Um pouco mais nojento do que seus modelos clássicos — A Metamorfose, de Kafka, e A Revolução dos Bichos, de Orwell –, Porcarias é uma narrativa fluida e grudenta como poucas.

Sem entrar em detalhes, o livro conta a história de uma vendedora de perfumes que se deixa levar um tanto passivamente pela vida e que acaba por deixar que seus instintos primitivos a dominem, fazendo com que vá se transformando lenta e literalmente numa porca. O final é fantástico e triunfante: o que era crise deixou de ser, pois agora ela é uma porca completa.

O que o livro tem de sensacional é a narrativa crua e eficiente da solidão, da não-aceitação, da angústia e da inadaptação de alguém que vai perdendo a auto-estima até resolver que o estilo de vida da selva é o mais mais adequado para si. Dizendo isso fica clara a parábola, mas há mais. Porcarias é um bonito e cômico ataque tanto ao politicamente correto como ao culto da vida sã e dos corpos sarados.

Lá em 1997, a Folha de São Paulo entrevistou Marie Darrieussecq. É muito interessante.

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A mulher que virou leitoa

Por Maria Ignez Mena Barreto

A história de uma vendedora de perfumes que se transforma em leitoa é o grande acontecimento literário do ano na França. “Truismes” (Truísmos) é o primeiro romance de Marie Darrieussecq, 27, nascida em Bayonne, País Basco, ex-aluna de uma das instituições acadêmicas mais prestigiosas da França, a École Normale Supérieure, e professora da Universidade de Lille.

Com 204 mil exemplares vendidos na França, “Truismes” seduz o meio editorial internacional: os direitos já foram vendidos para os Estados Unidos (New Press), Alemanha (Hanser), Itália (Guanda), entre outros. No Brasil, será lançado no próximo mês pela Companhia das Letras.

Para coroar o êxito, o diretor Jean-Luc Godard já adquiriu os direitos de adaptação para o cinema e deve escrever o roteiro a quatro mãos com a jovem autora.

Com um título que brinca com a consonância de “true” (verdade, em inglês) e “truie” (leitoa, em francês), “Truismes” conta a história de uma vendedora que, para enriquecer seu patrão, dá aos clientes um tratamento especial em discretas cabines clandestinas. Sob o efeito dos cosméticos que ela recebe em agradecimento a cada balanço, seu corpo começa a sofrer uma lenta modificação: ela percebe seu peso aumentar, sua carne se tornar firme e rosa, seus pêlos endurecerem. A carreira de vendedora-modelo degringola com o surgimento de sintomas menos compatíveis com o comércio sexual: comportamentos alimentares estranhos, atitudes corporais tão inconvenientes quanto um cio suíno incontrolável e caprichoso. Oscilando entre sua aparência suína e humana, a heroína passa por guerras, epidemias, vai parar em um asilo de loucos e dali escapa para se meter num imbroglio de políticos fascistas.

Para falar sobre o romance e o trabalho de adaptação para o cinema, no qual trabalha com Godard, Darrieussecq recebeu a Folha em seu apartamento em Paris.

*

Folha – “Truismes” é seu primeiro romance publicado, mas não o primeiro que você escreve…

Marie Darrieussecq – Eu escrevo desde os seis anos, sempre escrevi histórias. Aos seis anos, evidentemente, eu escrevia contos, coisas assim. Com 15, comecei a querer fazer coisas mais elaboradas. “Truismes” é o sexto romance que termino, no qual eu pus um ponto final. Os outros são exercícios, não estão suficientemente maduros para a publicação. “Truismes” é o primeiro que atinge este nível.

Folha – Mas você já recebeu um prêmio literário…

Darrieussecq – Sim, um prêmio por uma novela, quando eu tinha 19 anos, o Prix du Jeune Écrivain (Prêmio do Jovem Escritor). Este prêmio me deu uma certa legitimidade, foi a partir daí que eu comecei a dizer que eu escrevia. Antes, eu não ousava, acho extremamente pretensioso escrever.

Folha – E um belo dia você enviou um manuscrito a um editor…

Darrieussecq – Foi formidável. Fui aceita por quatro editores. Com um primeiro livro, isso acontece uma vez em mil.

Folha – E por que você escolheu a P.O.L., a editora menor e menos conhecida do grande público?

Darrieussecq – Porque, para mim, ela encarna um espírito de independência que não encontro, necessariamente, nos outros editores. O trabalho dela é muito singular, ela edita as coisas de que gosta antes de se perguntar se o livro vai ser vendido ou não. E isto me agrada. Além disto, P.O.L. era a de menor estrutura, eu logo tive um bom contato humano com as pessoas que trabalham lá.

Folha – É verdade que você escreveu “Truismes” em três semanas?

Darrieussecq – Sim, é verdade. Sempre que escrevo, acontece a mesma coisa. Eu tenho uma ideia, que me vem de não sei onde, e começo a sonhar com ela. Eu comecei a sonhar com essa história de uma mulher que se transformava em leitoa. Eu não sabia absolutamente aonde essa história ia me levar, que significado ela tinha. Sonhei com esta ideia durante três meses. Depois, vieram as greves de dezembro de 1995 na França. A confusão em que Paris se transformou não me incomodava em nada, ao contrário. Eu fiquei completamente eufórica, passeando pelas ruas, indo de manifestação em manifestação, numa atmosfera excitante, inimaginável. Logo depois das greves, me veio a voz do personagem, e, quando tenho a voz, tenho tudo, a forma do livro, o estilo. A partir do momento em que encontrei o registro dessa voz, eu me lancei. A redação propriamente dita levou, de fato, seis semanas. Mas, antes, teve esse período de pelo menos três meses de maturação.

Folha – Você não tinha, então, um projeto, uma ideia clara sobre o que ia escrever?

Darrieussecq – Sabia que ia seguir uma transformação. Que haveria uma série de sintomas que eu deveria descrever. Eu não sabia exatamente quais, eles foram surgindo à medida em que fui escrevendo. E sabia que a história terminaria em uma floresta. Era tudo o que sabia. O resto foi aventura. Eu me colocava em uma situação e me perguntava: como ela vai sair dessa? o que eu faria em seu lugar? Esse, aliás, é, para mim, o prazer de escrever. Eu morro de tédio se souber com antecedência o que vai acontecer.

Folha – “Truismes” é a história de um personagem singular ou um perfil da mulher contemporânea?

Darrieussecq – Não, “Truismes” é a história de uma mulher específica. Não cabe a mim interpretá-la, transformá-la em símbolo do que quer que seja. Eu proponho uma história, cabe ao leitor atribuir a ela um sentido. Eu recebo uma quantidade estupenda de cartas. Os leitores vêem no livro coisas que me surpreendem.

Folha – Por exemplo…

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A necessidade de justiça e a solidão de Michael Kohlhaas

A necessidade de justiça e a solidão de Michael Kohlhaas
A recente edição da Civilização Brasileira
A recente edição da Civilização Brasileira

Publicado em 20 de abril de 2014 no Sul21

Michael Kohlhaas, de Heinrich von Kleist, foi escrito em 1810, porém, apesar dos mais de 200 anos, é o mais atual dos livros. As discussões que suscita vão desde os meios que são permitidos na busca da justiça até questões mais amplas como o ideal subjetivo versus a realidade mundana, a liberdade individual versus a opressão governamental, o povo versus o poder. Trata-se de uma história de impotência. Tanto o tema da busca fanática pela justiça quanto o estilo, espécie de crônica longa, são surpreendentemente modernos.

Como Marcelo Backes escreve no excelente texto a seguir, Kafka “nasceu em Heinrich von Kleist, Joseph K. é bisneto de Michael Kohlhaas. Mais que isso, o autor tcheco se proclamou parente do personagem alemão, aproximando e confundindo de uma só tacada os dois escritores e suas figuras”. Comerciante de cavalos, Michael Kohlhaas é um homem simples,  justo e exemplar. Mas, face à arbitrariedade, vemos sua bonomia dar lugar à cólera. Desprezando a felicidade do lar, a fortuna e o futuro, encara sua vida como se esta estivesse destruída e contra-ataca. Ele pretende mostrar ao mundo que não se conformará com um caso onde acabou injustiçado e que para ele é fundamental viver numa terra onde seus direitos estejam assegurados.

O presente texto corresponde ao Posfácio de Michael Kohlhaas, de Heinrich von Kleist, publicado recentemente na coleção Fanfarrões, Libertinas & Outros Heróis, da Editora Civilização Brasileira, organizada por Marcelo Backes. A novela de Kleist também mereceu recentemente um filme do diretor Arnaud de Pallières, com Mads Mikkelsen no papel de herói. Mesmo que tenha sido selecionado para o Festival de Cannes, Michael Kohlhaas, o filme, fica a léguas de distância da grandiosidade do livro. (Milton Ribeiro)

A primeira página da novela em sua edição original
A primeira página da novela em sua edição original

Por Marcelo Backes

Heinrich von Kleist (1777-1811) é considerado o poeta do sentimento absoluto, o precursor do eu nômade e abandonado a si mesmo, o arauto do sujeito sem unidade, que já se encontra além dos limites da mera identidade. Foi trágico tanto na vida quanto na arte, tanto como homem quanto como autor. Seu gênio atormentado e cético sofreu com a orfandade transcendental, cortejou constantemente o fracasso e ultrapassou os limites da estética romântica e da arte clássica. Sua obra, tanto a narrativa quanto a teatral, é inclassificável sobretudo pela profundidade que manifesta, e antecipa movimentos literários bem posteriores como o expressionismo e o existencialismo.

Se Goethe via em Kleist a confusão de sentimentos que o impedia de chegar à harmonia, Deleuze registra nele, 150 anos depois, um autor bem contemporâneo na abordagem da desestruturação do sujeito, embora Kleist sofra e acabe sucumbindo diante daquilo que o filósofo francês de certo modo saúda auspiciosamente. Kleist estudou Voltaire e Rousseau, viu o mundo entrar em convulsão ao ler Kant – ou então encontrou no filósofo o fundamento para o distúrbio que já o revolvia internamente – e circulou com escritores como Ludwig Tieck, Adelbert von Chamisso, Wilhelm Grimm, Joseph von Eichendorff e Clemens von Brentano, além de pintores como Caspar David Friedrich.

Foi espião, preso como tal, exigido demais na vida e censurado sem cessar na literatura. Jamais encontrou seu verdadeiro lugar. Tentou na vida militar, depois na ciência, na vida comum e por fim na arte, e terminou se suicidando junto com uma amiga. Michael Kohlhaas, sua novela mais conhecida,é uma das maiores obras breves da história da literatura ocidental, junto com outras do calibre de A morte de Ivan Ílitch, de Tolstói, de A metamorfose, de Kafka, e de Coração das trevas, de Joseph Conrad.Criticada de forma avassaladora pelos leitores contemporâneos devido à falta de nexo, à estrutura confusa e por causa da aparente “pressa” do talhe formal, Michael Kohlhaas é uma narrativa de estilo lacônico que atinge a concretude de passar ao bom leitor a sensação quase física do perigo que ameaça o personagem. Tanto que Kafka, não por acaso, diria um século depois que se sentia “parente consanguíneo” de Kohlhaas, o personagem, percebendo como Kleist, o autor, já abria veredas num mundo que ele mesmo trilharia tantas décadas mais tarde. Diante de uma obra como Michael Kohlhaas, não são poucos os que pensam, impotentes diante da própria arte, que talvez tudo já tenha sido dito.

Heinrich von Kleist
Heinrich von Kleist (1777-1811)

A vida

Bernd Heinrich Wilhelm von Kleist (1777-1811) nasceu em Frankfurt an der Oder, na Prússia, descendente de uma família de nobres e soldados.

Com 15 anos, e já órfão, decide seguir o mandado familiar e busca a carreira militar, mas acaba desistindo das armas mais tarde para estudar direito, matemática e outras ciências. Interessado pela filosofia, foi marcado decisivamente pela leitura da Crítica da faculdade do juízo de Kant, que o abalou a ponto de fazer com que não mais acreditasse – definitivamente – na objetividade do conhecimento humano. A obra kantiana ainda o ajudou a sistematizar o descalabro interno, formalizando a percepção de uma ruptura já existente e concedendo a seus escritos um tema básico: o conflito permanente entre razão e emoção, o choque entre a subjetividade do ideal interno e a dureza da realidade externa. Em carta de 5 de fevereiro de 1801 a sua irmã Ulrike, Kleist se queixa dizendo que a vida é um jogo difícil porque constantemente se é obrigado a ir ao baralho e buscar uma nova carta, e mesmo assim não se sabe qual dessas cartas significa um verdadeiro trunfo. Em missiva a sua noiva Wilhelmine, alguns dias mais tarde, o autor aguçaria a percepção de sua crise escrevendo: “Não podemos decidir se aquilo que chamamos de verdade é verdadeiramente verdade ou se apenas assim nos parece (…) Meu único, meu maior objetivo sucumbiu, agora não tenho mais nenhum.”

Depois de se desiludir com a carreira militar – assim como Kafka não acreditava na vida de funcionário e mesmo assim era bem-sucedido, ele não acreditava na vida de soldado e continuava a ser promovido –, Kleist se volta para a ciência, buscando a formação do espírito e abrindo mão de um caminho voltado para a riqueza, para a dignidade e para a honra militar privilegiadas desde sempre por sua estirpe nobre. Em pouco, no entanto, vê que também a ciência perde o sentido diante do relativismo da verdade e abandona os estudos. Fica noivo de Wilhelmine von Zenge, filha de um general, moça que conhecera um ano antes, ao perceber que a sabedoria dos livros também não é capaz de satisfazê-lo. A família da noiva exige que Kleist tenha um cargo oficial, e o escritor, mais uma vez seguindo o mandado dos outros, teria até exercido as funções de agente secreto do ministério, e participado de espionagens econômicas a favor do governo prussiano. Mas, ao final das contas, Wilhelmine não se curva ao novo ideal de cultivar candidamente o próprio jardim de uma vida simples, que o próprio Kleist aliás acaba por reconhecer pouco verde depois de várias viagens pela Europa na companhia de Ulrike, sua irmã.

"O céu não lhe concede a fama, o maior bem da terra"
O céu não lhe concede “a fama, o maior entre os bens da terra”

Em carta de 26 de outubro de 1803, Kleist volta a se queixar à irmã de que o céu não lhe concede “a fama, o maior entre os bens da terra”. Decide lutar contra a Inglaterra, ingressando no exército francês, a fim de “buscar a morte na batalha”. Mas conhecidos convencem-no a retornar a Potsdam. Depois de mais um breve intervalo como funcionário, Kleist começa a esboçar o plano de deixar o serviço público para ganhar a vida como escritor e dramaturgo, mas em 1807 é preso como espião pelas autoridades francesas e levado ao Fort de Joux, em Pontarlier, e em seguida como prisioneiro de guerra a Châlons-sur-Marne. Kleist ainda tenta o trabalho jornalístico, e em 1808 volta a Berlim, onde conhece vários escritores de sua época e onde permanece até a morte.

Passando por necessidades, acossado pela censura e internamente “tão ferido que eu quase poderia dizer que, quando ponho o nariz para fora da janela, a luz do dia que brilha sobre ele me dói”, conforme carta de 10 de novembro de 1811 a Marie von Kleist, começa a ser dominado por pensamentos suicidas. Logo encontra uma companheira para o caminho previsto, a amiga Henriette Vogel, doente de câncer. A pedido de Henriette, Kleist a mata com um tiro e depois se suicida em 21 de novembro de 1811, aos 34 anos, junto ao Wannsee, um lago de Berlim. Henriette pede em carta de despedida que ambos sejam enterrados juntos “na fortaleza segura da terra”. Os dois jazem exatamente no local do suicídio, hoje um local de peregrinação, já que os que tiravam a própria vida não podiam ser enterrados em um cemitério.

Não haviam sido poucas as vezes em que Kleist falara sobre o suicídio em suas cartas. Na derradeira, dirigida à sua meia-irmã Ulrike na manhã do sucedido, há uma sentença definitiva: “A verdade é que nada na Terra poderia me ajudar.” Tranquilo, Kleist ainda agradece por todas as tentativas feitas no sentido de auxiliá-lo, e em seguida se despede, pedindo que seja dada à irmã pelo menos metade da alegria e da serenidade indizível que sente no momento em que decide levar o princípio sublime do fracasso às últimas consequências.

Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

A obra

Heinrich von Kleist é, simplesmente, o autor de uma das novelas mais grandiosas da Alemanha (Michael Kohlhaas), da maior tragédia alemã (Pentesileia)e da principal comédia em sua língua (A moringa quebrada). Se a vida de Kleist se caracterizou pela busca incansável da felicidade e pelo encontro constante da desilusão, isso também se reflete em sua obra de maneira indelével. Bailando entre o romantismo e o classicismo, seu caminho é, antes de tudo, pessoal e subjetivo. Os temas são clássicos, os gestos são românticos e o resultado é subjetivamente aterrador.

Na obra de Kleist o sujeito ideal, autônomo e com uma identidade claramente definida é questionado talvez pela primeira vez de maneira radical na história da literatura ocidental. A desmedida da explosão sentimental é levada às últimas consequências, a violência das imagens atinge os píncaros. Experimental e subjetivo, Kleist permaneceu esquecido por algum tempo, e só começou a ser revalorizado pela geração de Gerhart Hauptmann, Frank Wedekind e Carl Sternheim.

Foi na Suíça que Kleist escreveu seu primeiro drama, A família Schroffenstein, entre os anos de 1801 e 1802. Orientada no estilo dramático de Shakespeare, A família Schroffenstein tematiza, assim como as obras do bardo inglês, a disputa entre destino e acaso e a oposição entre juízo subjetivo e realidade objetiva. Da mesma época é a tragédia inacabada Robert Guiscard, na qual Kleist pretendeu unir os valores da tragédia grega às conquistas – outra vez – de Shakespeare, ao abordar a fatalidade do herói em meio às desgraças da peste. Kleist queimaria os trechos concluídos da tragédia por achar que não conseguira realizar literariamente o que esboçara mentalmente.

Quando Kleist se muda para Dresden, já bastante desiludido e alimentando pensamentos sombrios, escreve a comédia A moringa quebrada (1802-1806), talvez a mais conhecida de suas obras. No grande cenário do teatro universal, essa comédiaé uma espécie de irmã espúria de Édipo Rei e o juiz Adão, seu personagem principal, não deixa de ser um ridículo labdácida de peruca que vai se desnudando em toda sua culpa aos poucos. Aliás, tanto o herói da tragédia grega quanto o juiz da comédia alemã investigam, e o fato de Édipo, apesar de todos os alertas, querer descobrir e por fim descobrir aquilo que não sabe – ou seja, que é o culpado – dá o caráter trágico à peça de Sófocles, ao passo que o fato de o juiz Adão, apesar de todos os esforços e esquivas, ter deinvestigar aquilo que sabe e acabar sendo descoberto por todo mundo – ou seja, que é o culpado – dá o caráter cômico à peça de Kleist.

Mesmo nas comédias de Kleist – tome-se o Anfitrião, de 1807, fundamentado em Molière, como exemplo, embora A moringa quebrada também seja perfeita nesse sentido–, o que resta no final é o amargor da visão de mundo kleistiana. Se o crítico italiano Benedetto Croce, sempre preocupado em ver humor apenas mais ao sul do planeta e incapaz de compreender de verdade a contenção sorridente – amargamente sorridente – do norte, criticou uma obra como A moringa quebrada, Bjönstjerne Björnson, o dramaturgo norueguês, disse que poucas vezes lera algo tão divertido. Theodor Storm, um dos grandes representantes do realismo europeu, chegou a dizer que a peça era a única comédia alemã que lhe agradava do princípio ao fim. A moringa quebrada também foi traduzida por Boris Pasternak em 1914, e elogiada como uma das grandes obras do cânone literário alemão por Georg Lukács.

Goethe: hostil a Kleist
Goethe: hostil a Kleist

Em 1808, Goethe, que já esfacelara A moringa quebrada, partindo-a em três atos, recusa-se a permitir a encenação da tragédia Pentesileia no teatro de Weimar. Inspirada pelas tragédias de Eurípedes, a peça veria a luz do público pela primeira vez apenas em 1876. A dimensão moderna e profundamente psicológica alcançada pela linguagem de Kleist nessa tragédia em versos e a sequência de diálogos que se encadeiam um ao outro de maneira vertiginosa adquirem caráter musical, dionisíaco – sinfônico. Pentesileia, a obra mais avançada de Kleist,seu Michael Kohlhaas vestindo saia sobre o palco, inspiraria duas grandes peças da música: a composição de Hugo Wolf e a ópera de Othmar Schoeck.

Em 1810 Kleist publica dois volumes de novelas, interessantes e adiantadas em relação a seu tempo. Duas dessas novelas são verdadeiras obras-primas: Michael Kohlhaas e A marquesa de O. Ainda assim ambas são criticadas de forma avassaladora pelos críticos contemporâneos. Também narrativas mais breves como O terremoto do Chile mostram que Kleist vai às últimas consequências na abordagem da alma humana.

Assim como em Shakespeare, muitas das obras de Kleist são fundamentadas em figuras históricas, caso inclusive de Michael Kohlhaas. A diferença é que Kleist leva temas apenas esboçados por outros autores à perfeição de um grande debate e a um acabamento narrativo extraordinário, como no caso do príncipe de Homburgo, de Robert Guiscard, do já citado Kohlhaas e até do terremoto do Chile. O príncipe de Homburgo, sua última peça, elabora a condenação à morte de um general prussiano do século XVII. Já o drama A batalha de Armínio, de 1808, abordara a derrota de Varo ante o exército germano no século. Mas o nacionalismo de Kleist e seu amor à pátria alemã se revelam sobretudo em poemas como “Germânia a seus filhos” (“Germania an ihre Kinder”) e “Canção guerreira dos alemães” (“Kriegslied der Deutschen”).

O tom sombrio característico da obra de Kleist aparece logo em suas primeiras peças, notadamente na já mencionada A família Schroffenstein. A tragédia – que aborda com maestria o tema de Romeu e Julieta – evidencia o colapso do arcabouço otimista que orientava Kleist. O autor também percebe a incongruência existente entre a alma aqui dentro e o mundo lá fora, entre as exigências do eu e as obrigações familiares e civilizatórias, e antecipa de modo absolutamente simétrico – consideradas as diferenças de época e de contexto – sua própria obra Michael Kohlhaas e a obra inteira de um dos maiores autores do século XX: Franz Kafka.

Kohlhaas, o vingador | Ilustração de uma edição alemã
Kohlhaas, o vingador | Ilustração de uma edição alemã

Michael Kohlhaas

Franz Kafka nasceu em Heinrich von Kleist, Joseph K. é bisneto de Michael Kohlhaas. Mais que isso, o autor tcheco se proclamou parente do personagem alemão, aproximando e confundindo de uma só tacada os dois escritores e suas figuras.Kleist teria começado a escrever Michael Kohlhaas em 1805, quando tinha apenas 29 anos de idade. A novela seria publicada em sua versão definitiva em 1810, no primeiro volume de suas narrativas. Dois anos antes, em 1808, um trecho da obra já surgira na revista Phöbus, dirigida pelo próprio Kleist, que se orientou em uma coletânea de relatos históricos de Christian Schöttgen e Georg Kreysig [1] para criar seu personagem. No fundo, o Michael Kohlhaas de Kleist tem pouco a ver com o Hans Kohlhasen da vida real, comerciante em Cölln junto ao rio Spree, executado em 22 de março de 1540. Os autos do caso, de 1539, não chegaram às mãos de Kleist, mas sabe-se que o Kohlhasen histórico teve dois de seus cavalos roubados por um fidalgo Zachnitz, e que por isso tenta fazer justiça com as próprias mãos, incendiando várias casas em Wittenberg, mas não chega a perder a mulher, nem sofre às últimas consequências como o Kohlhaas literariamente bem construído de Kleist.

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É sempre bom lembrar: O VIAGRA É UM PRODUTO AUTENTICAMENTE BRASILEIRO E EXISTE DESDE O SÉCULO XIX!!!

É sempre bom lembrar: O VIAGRA É UM PRODUTO AUTENTICAMENTE BRASILEIRO E EXISTE DESDE O SÉCULO XIX!!!

O escritor Bernardo Guimarães (1825-1884), nascido em Ouro Preto e cuja notável austeridade pode ser apreendida na foto abaixo, escreveu A Escrava Isaura. OK, mas comecemos a leitura de seu clássico poema Elixir do Pajé.

O ínclito Bernardo Guimarães
O ínclito Bernardo Guimarães

Que tens, caralho, que pesar te oprime
que assim te vejo murcho e cabisbaixo,
sumido entre essa basta pentelheira,
mole, caindo pela perna abaixo?

Ao mesmo tempo em que escrevia o citado romance e também O Seminarista, O Garimpeiro e O Ermitão de Muquém – todos romances medíocres filiados à vertente regionalista da ficção romântica brasileira -, Bernardo….

Nessa postura merencória e triste
para trás tanto vergas o focinho
que eu cuido vais beijar, lá no traseiro,
teu sórdido vizinho!

…criou uma obra poética dotada de dimensão crítico-humorística incomum em meio aos indianismos, arroubos de eloquência e subjetividades lacrimejantes do romântismo brasileiro. (Flora Sussekind).

Que é feito desses tempos gloriosos
em que erguias as guelras inflamadas,
na barriga me dando de contínuo
tremendas cabeçadas?

O Elixir do Pajé, assim como o extraordinário A Origem do Mênstruo, só teve impressões clandestinas em folhetos de poucas páginas.

Qual hidra furiosa, o colo alçando,
co`a sanguinosa crista açoita os mares,
e sustos derramando
por terras e por mares,
aqui e além atira mortais botes,
dando co`a cauda horríveis piparotes,
assim tu, ó caralho,
erguendo o teu vermelho cabeçalho,
faminto e arquejante,
dando em vão rabanadas pelo espaço,
pedias um cabaço!

Um escritor da época, Artur Azevedo, nos revela que “de todos os livros de Bernardo Guimarães, o escrito mais popular é um poema obsceno intitulado Elixir do Pajé, que nunca foi impresso com o nome de seu autor. Porém é raro o mineiro que não o saiba de cor. Há na província um sem-número de cópias desse Elixir inútil e brejeiro.”

Um cabaço! Que era este o único esforço,
única empresa digna de teus brios;
porque surradas conas e punhetas
são ilusões, são petas,
só dignas de caralhos doentios.

A edição oficial das “poesias completas” de Bernardo Guimarães pelo Instituto Nacional do Livro, com data de 1959, omite sem (ou com) pudor alguns de seus poemas e mantém uma atitude de incompreensão diante de sua veia satírica e humorística.

Quem extinguiu-te o entusiasmo?
Quem sepultou-te neste vil marasmo?
Acaso para teu tormento,
indefluxou-te algum esquentamento?
Ou em pívias estéreis te cansaste,
ficando reduzido a inútil traste?
Porventura do tempo a dextra irada
quebrou-te as forças, envergou-te o colo,
e assim deixou-te pálido e pendente,
olhando para o solo,
bem como inútil lâmpada apagada
entre duas colunas pendurada?

Mas além de banir a produção satírica e humorística de Bernardo, os critérios românticos também não se ajustavam à sua lírica, nem sempre em consonância com os padrões da época.

Caralho sem tesão é fruta chocha,
sem gosto nem cherume,
linguiça com bolor, banana podre,
é lampião sem lume,
teta que não dá leite,
balão sem gás, candeia sem azeite.

Coube a Haroldo de Campos, em linhas sumárias mas decisivas, apontar de modo pioneiro a importância deste novo e ignorado Bernardo Guimarães.

Porém não é tempo ainda
de esmorecer,
pois que teu mal ainda pode
alívio ter.

…..

Terá Bernardo descoberto um Viagra indianista e romântico?

Eis um santo elixir miraculoso,
que vem de longes terras,
transpondo montes, serras,
e a mim chegou por modo misterioso.

…..

Com mais de cem anos de clandestinidade e antecipação, o Elixir impõem-se como a manifestação mais integral e debochada daquele indianismo às avessas que Haroldo de Campos teria visto em Oswald de Andrade.

Esse velho pajé de piça mole,
com uma gota desse feitiço,
sentiu de novo renascer os brios
de seu velho chouriço!

…..

No Elixir, uns dos alvos de Bernardo é o ritmo e a retórica de Gonçalves Dias em poemas como I-Juca-Pirama e Os Timbiras. E olha o ritmo do I-Juca-Pirama chegando aí, gente!!!

E ao som das inúbias,
ao som do boré,
na taba ou na brenha,
deitado ou de pé,
no macho ou na fêmea
da noite ou de dia,
fodendo se via
o velho pajé!

…..

E, na sátira ao indianismo, o índio vira sátiro.

Vassoura terrível
dos cus indianos
por anos e anos
fodendo passou,
levando de rojo
donzelas e putas,
no seio das grutas
fodendo acabou!
E com sua morte
milhares de gretas
fazendo punhetas
saudosas deixou…

José Veríssimo declarou que a metrificação de Bernardo é em geral mais rica, mais correta e mais variada que a de outros românticos. E completa dizendo que a forma é também mais clássica, mais simples, mais calma e mais fria. Sintam a calma do próximo trecho.

Feliz caralho meu, exulta, exulta!
Tu que aos conos fizeste guerra viva,
e nas guerras de amor criaste calos,
eleva a fronte altiva;
em triunfo sacode hoje os badalos;
alimpa esse bolor, lava essa cara,
que a Deusa dos amores,
já pródiga em favores
hoje novos triunfos de prepara,
graças ao santo elixir
que herdei do pajé bandalho,
vai hoje ficar em pé
o meu cansado caralho!

Só em Oswald de Andrade (O Santeiro do Mangue) e Gregório de Matos, encontra-se algo próximo a esta grossa prosa de palavrões, erotismo satírico e escatológico, tramada em tão inventiva poesia antipoética.

Vinde, ó putas e donzelas,
vinde a mim abrir as vossas pernas
ao meu tremendo marzapo,
que a todas, feias ou belas,
com caralhadas eternas
porei as cricas em trapo…
Graças ao santo elixir
que herdei do pajé bandalho,
vai hoje ficar em pé
o meu cansado caralho!

…..

Sem mais interrupções, deixo vocês com o final da epopeia.

Este elixir milagroso,
o maior mimo da terra,
em uma só gota encerra
quinze dias de tesão…
Do macróbio centenário
ao esquecido marzapo,
que já mole como um trapo,
nas pernas balança em vão,
dá tal força e valentia
que só com uma estocada
pôe a porta escancarada
do mais rebelde cabaço,
e pode um cento de fêmeas
foder de fio a pavio,
sem nunca sentir cansaço…

Desculpa, tive que interromper novamente. Quinze dias de tesão? O Cialis dá umas 6 horas, o Viagra menos!

Eu te adoro, água divina,
santo elixir da tesão,
eu te dou meu coração,
eu te entrego minha porra!
Faze que ela, sempre tesa,
e em tesão sempre crescendo,
sem cessar viva fodendo,
até que fodendo morra!

Sim, faze que este caralho,
por sua santa influência,
a todos vença em potência,
e, com gloriosos abonos,
seja logo proclamado
vencedor de cem mil conos…
E seja em todas as rodas
d`hoje em diante respeitado
como herói de cem mil fodas,
por seus heróicos trabalhos,
eleito – rei dos caralhos!

Os fragmentos do Elixir aqui publicados foram copiados do livro “Poesia Erótica e Satírica” de Bernardo Guimarães (Imago, 1992). Esta edição tem organização e prefácio de Duda Machado, do qual roubei algumas interrupções que fiz ao clássico Elixir.

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Gulliver, os Houyhnhnms e os Yahoos

Gulliver, os Houyhnhnms e os Yahoos

As Viagens de Gulliver foi publicado em 1726. É um dos textos fundamentais do rabugento e genial satírico Jonathan Swift (1667-1745). Lembrei do livro em razão do Yahoo Notícias

Único sobrevivente de um naufrágio, o médico Lemuel Gulliver consegue alcançar uma praia desconhecida. Exausto, desaba e adormece. Quando desperta, está totalmente amarrado, sendo observado por centenas de homenzinhos minúsculos, armados de arcos e flechas. Este primeiro encontro em Liliput é o mais conhecido do livro, mas suas viagens o levarão a outros lugares estranhos. Em Brobdingnag, ele é um ser minúsculo perto dos nativos gigantes. Em Laputa, terra dos intelectuais (atenção: La Puta), os habitantes investem seu tempo em complôs e conspirações enquanto o país se esvai. Finalmente, ele encontra os Houyhnhnms, sobre os quais pensei hoje.

(Ah, em carta a Alexander Pope, Swift afirmou que escrevera Gulliver Travels para a atacar o mundo, nunca para diverti-lo. O autor erra na segunda afirmativa. Gulliver ataca e diverte, mas fica claro que Swift odiava a organização social de seu tempo).

Os Houyhnhnms são uma raça de cavalos inteligentes. O nome é pronunciado de modo a ecoar o relinchar destes animais. Eles contrastam fortemente com os Yahoos, criaturas humanóides, selvagens. Enquanto os Yahoos representam tudo o que é ruim, os Houyhnhnms formam uma sociedade tranquila, confiável e racional. Gulliver prefere a companhia dos Houyhnhnms, não obstante o fato dos Yahoos serem-lhe biologicamente mais próximos.

gulliver

A interpretação dos Houyhnhnms é dúbia. Por um lado, podem ter sido criados como uma crítica de Swift ao tratamento do império britânico aos não-brancos. Estes seriam tratados como uma sub-raça, como seres humanos inferiores. Por outro lado, ampliando, seria uma crítica geral às sociedades formadas pelos homens. A preferência de Gulliver recai sobre os Houyhnhnms. Em um improvável contexto moderno, a criação deles pode ser vista como um dos primeiros exemplos das preocupações com os direitos dos animais, especialmente no trecho em que Gulliver conta de como os cavalos são cruelmente tratados em sua sociedade. A história é uma possível inspiração para o romance O Planeta dos Macacos, de Pierre Boulle.

A sociedade Houyhnhnm é baseada na razão. Por exemplo, os cavalos praticam a eugenia com base em análises de custo e benefício. Lembrem que estamos em 1726 e Swift não conheceu Hitler… Eles também não têm religião e sua única moralidade é baseada no pragmatismo. Não são movidos por piedade ou por crenças no valor intrínseco da vida. Uma visitante pede desculpas por ter chegado atrasado para uma festa. É que seu marido tinha acabado de morrer e ela teve que tomar as medidas adequadas para o funeral, que consiste num enterro no mar. Logo depois, ela participa do almoço como todos os outros Houyhnhnms. Passou, passou. Suas leis exigem que cada casal produza dois filhos, um macho e uma fêmea. No caso de um casamento produzir dois filhos do mesmo sexo, os pais levam seus filhos para a reunião anual e negocia uma das crianças um com um casal que produziu duas crianças do sexo oposto.

gulliver Houyhnhnms

Os Houyhnhnms têm uma sociedade ordeira e pacífica. Também não têm nenhuma palavra para “mentira”. “Dizer uma coisa que não é?”.

Os Houyhnhnms vêem Gulliver como apenas um mero Yahoo, até que um deles nota que Gulliver é diferente, toma-o sob sua proteção e procura aprender sobre sua cultura. Este Houyhnhnm se afeiçoa a Gulliver, tornando-se seu amigo. Gulliver, por sua vez, tenta aprender tudo o que pode. E passa a desprezar a raça humana, fazendo a apologia da cultura local, que valoriza a razão e o respeito à verdade, nunca mente e vive pelo bem estar comum. No entanto, após quatro anos, a Assembléia dos Houyhnhnms decide expulsar Gulliver do país, pois ele é muito parecido com um Yahoo. Gulliver fica profundamente triste, mas respeita as leis do país e se conforma com a decisão. Junto com Gulliver, os cavalos constroem as velas de seu barco com peles de Yahoos. Então Gulliver retorna à Inglaterra.

Sua família já o tinha dado como morto e fica chocada ao vê-lo. Ao revê-los, Gulliver acha-os detestáveis. O tempo que ele passou com os Houyhnhnms alterou sua perspectiva da sociedade para sempre, fazendo sua vida infeliz na Europa. Ele se acostuma novamente à vida na Inglaterra, mas compra dois cavalos para mantê-los como companhia. E fala com eles por várias horas. diariamente, contando sobre suas experiências e explorações pelo mundo, As Viagens de Gulliver.

gullivers.travels

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Literatura e sensibilidade feminina

Literatura e sensibilidade feminina

Publicado em 26 de janeiro de 2014 no Sul21

Houve tempo em que elas eram poucas, houve tempo em que Erico Verissimo dizia com certa ironia à Lygia Fagundes Telles que era bela demais para ser escritora. Este panorama, porém, alterou-se completamente. Um tanto irresponsavelmente, pinçando nomes aqui e ali, temos uma nominata nada desprezível de escritoras mulheres no Brasil. Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Maria Alice Barroso, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Teles, Nélida Piñon, Sonia Coutinho, Ana Cristina César, Hilda Hilst, Adélia Prado, Zelia Gattai, Ana Miranda, Marina Colasanti, Lygia Bojunga Nunes, Maria Adelaide Amaral, Flora Sussekind, Leyla Perrone-Moisés, Cora Coralina, Walnice Nogueira Galvão, Lucia Abreu, Regina Zilbermann, Marilena Chauí, Zulmira Ribeiro Tavares, Patricia Melo, Jane Tutikian, Fernanda Young, Claudia Tajes, Carol Bensimon, Mariana Ianelli.

O fato é que há muito tempo o termo “Literatura de Mulherzinha” tornou-se anacrônico. Apesar da dificuldade para caracterizar os elementos que fazem a literatura feminina ser diversa, os leitores reconhecem sua poética, parecendo pressentir seus elementos próprios: de modo geral, acertaremos dizendo que ela é habitualmente mais sensorial, poética e livre. Não se pode falar em gênero, pois os estilos e as temáticas variam muito. “Não se pode dizer que a literatura feminina seja sempre feita por mulheres, assim como boas narrativas gays podem ser escritas por heterossexuais e boas narrativas carcerárias podem ser escritas por gente que nunca esteve presa. Ao menos não há nada, nenhuma barreira física ou moral, que impeça isso.”, escreveu Nelson de Oliveira. “Da mesma maneira que a literatura policial não é a literatura escrita apenas pelos policiais, a literatura feminina não precisa necessariamente ser a literatura escrita apenas pelas mulheres. É certo que há policiais escrevendo literatura policial, mas também há professores, psicanalistas, filósofos… O mesmo acontece com a literatura feminina da maneira como eu a vejo: há homens e mulheres trabalhando dentro dos limites desse gênero”, completa.

Mas, se hoje Lídia Jorge é acompanhada de muitas outras, tivemos precursoras seminais. E a maior delas foi Virginia Woolf, que escreveu um curioso — e muito feminino — livro fundador.

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Virginia Woolf: a teórica e incentivadora de uma literatura feminina
Virginia Woolf: a teórica e incentivadora de uma literatura feminina

Um teto todo seu (A Room of One`s Own, 1929) é um dos mais surpreendentes livros da célebre ficcionista inglesa Virginia Woolf. A primeira surpresa é o fato de não ser ficção; a segunda é a absoluta ousadia no trato do assunto abordado: o feminismo.

O livro nasceu a partir de duas palestras chamadas “As mulheres e a ficção”, proferidas por Virginia para uma plateia essencialmente feminina da Sociedade das Artes, na Londres de outubro de 1928. O texto de Virginia tem a qualidade estupenda de seus livros da época. Mrs. Dalloway (1925), Passeio ao Farol (1927) e Orlando (1928) foram seus predecessores; As Ondas (1931) deu continuidade à série de grande livros. Encrustado na sequência mais importante de romances de Virginia, o ensaio Um teto todo seu não decepciona de modo algum. O livro tem cerca de 140 páginas. Não pensem que ela o leu por inteiro nas duas palestras – algo como 70 páginas por dia; na verdade o texto foi bastante ampliado para publicação logo após as palestras.

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Homenagem ao Clássico Desconhecido

Homenagem ao Clássico Desconhecido

Não, não pensei muito. Peguei a escada e procurei, a partir da letra A, os livros de que gosto muito e sobre os quais o mundo silencia. Encontrei vários. A “santa” tarefa de resgate de minhas obras-primas pessoais não me tomou muito tempo e é uma lista arbitrária que só vai de A a M, pois me apavorei com o número de livros sobre a mesa quando retirei da estante as folhas de papel A4 que formam a 19ª obra. Os de M a Z virão depois, sei lá quando. Meu critério é o descritério. Por exemplo, deixei de fora Hamsun, por considerá-lo “famoso demais” e incluí George Eliot. Vá entender. Alguns dos insuficientes textos explicativos que acompanham cada obra foram retirados de orelhas dos livros; outros, de obras sobre literatura; porém a maioria saiu perigosamente de minha cabeça.

Norberto Martini (10)

1. O Homem Amoroso, de Luiz Antonio Assis Brasil. Mercado Aberto, 1986, 118 p.: O elegante Assis Brasil, ex-violoncelista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, sai do sério ao compor de forma irônica e naturalista esta novela que descreve as vivências de um músico erudito gaúcho, durante o “milagre brasileiro” dos anos 70 e seu neo-ufanismo. Para encontrar, só em sebos.

2. Extinção, de Thomas Bernhard. Companhia das Letras, 2000, 476 p.: Bernhard talvez venha a tornar-se inevitavelmente um clássico, se já não o é. É um enorme romancista e dramaturgo austríaco que costuma despejar seu ódio contra a pequena burguesia e os intelectuais de seu país. Destaco a notável descrição de sua família, realizada em duzentas paginas, enquanto o narrador observa uma (apenas uma) foto que retrata, se não me engano, apenas duas ou três pessoas. Livro novo, fácil de achar.

3. Noturno do Chile, de Roberto Bolaño. Companhia das Letras, 2004, 118 p.: O narrador, testemunha do tempo que precede o assalto ao poder pelo general Pinochet e seus sequazes, repassa a sua vida num monólogo febril, reconstruindo dois momentos especiais da vida chilena – antes e depois do golpe. Este narrador, Lacroix, é um religioso ainda aferrado aos dogmas da Igreja, que não dispensa a sua batina surrada, usando-a como se fosse uma bandeira. Fácil de achar, assim como Os Detetives Selvagens.

4. Opiniones de un Payaso, de Heinrich Böll. Barral Editores, 1974, 244 p.: Hans Scheiner é um palhaço de circo que perde todos os seus bens durante o pós-guerra. Trata-se de um ateu muito propenso à melancolia e à monogamia. Mas seus problemas não terminam aí: sua mulher Maria o abandona por outro homem, um católico, com o qual se identifica. Por trás desta catástrofe emocional e material, pode-se ver um homem íntegro, que suporta sua queda com sarcasmo.Um grande livro. À venda na Internet por 16 Euros.

5. Fique Quieta, Por Favor, de Raymond Carver. Rocco, 1988, 240 p.: Grande contista americano homenageado por Robert Altman em Short Cuts . Este livro, assim como a coletânea Short Cuts, também da Rocco, é mais uma prova da boa influência de Tchékhov sobre a literatura atual. Vá ao sebo.

6. A História Maravilhosa de Peter Schlemihl, de Adelbert von Chamisso. Estação Liberdade, 1989, 111 p.: A história curiosíssima do homem que se vê marginalizado e perseguido após vender sua sombra ao Diabo. Até hoje a obra sofre todo o tipo de interpretações, mas o próprio autor nega a alegoria e critica aqueles que preocupam-se em saber o que significa a sombra. Este genial livrinho foi há pouco reeditado.

7. Uma Vida em Segredo, de Autran Dourado. Difel, 1977, 181 p.: Acanhada e deixando-se sempre levar pelas circunstâncias, a prima Biela é boazinha e vive conscientemente uma vida de renúncias. A comparação entre a prima Biela e a Felicité de Un Coeur Simple de Flaubert não obscurece a força da linguagem barroca do Autran Dourado em plena forma de 1964. Milhares de reedições.

8. Middlemarch, de George Eliot. Record, 1998, 877 p.: Desde Shakespeare e Jane Austen, ninguém criara personagens tão inesquecivelmente vivos. É o romance da vida frustrada de Dorothea, que casa-se com o pseudo-intelectual Causabon por um ideal de cultura e tenta desfazer seu casamento e refazer sua vida. O romance é um espetacular panorama das atividades e da moral de uma pequena cidade inglesa de 1830. Canta a tua aldeia e serás universal… George Eliot é o pseudônimo masculino de Mary Ann Evans. Só encontrável em sebos, parece-me.

9. Contos Completos, de Sergio Faraco. L&PM, 1995, 304 p.: Faraco é, disparado, o melhor contista vivo brasileiro e isto não é pouco. O livro foi reeditado no ano passado. Trata-se de um artesão tão econômico quanto rigoroso com as palavras. Sua capacidade de apresentar personagens com um grau de densidade psicológica inversamente proporcional à secura do ambiente, assim como sua maestria na invenção de enredos o tornam obrigatório. Recém relançado.

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Alucinações Musicais, de Oliver Sacks

Alucinações Musicais, de Oliver Sacks

alucinacoes-musicaisLamentei ter chegado à última página de Alucinações Musicais, do neurologista Oliver Sacks. O título que a Companhia das Letras deu para a edição brasileira não faz jus ao original Musicophilia – Tales of music and brain, até porque as tais alucinações musicais é apenas um dos temas de um livro rico em informações, ao menos para mim.

Os primeiros capítulos tratam de coisas muito próximas. Tenho um CD Player na cabeça. Ele nunca me incomodou ou foi hostil comigo, pelo contrário; mas está sempre tocando o que bem entende. Não sei o motivo da invocação da maior parte das músicas que ouço e meus principais companheiros são provavelmente Bach, Brahms, Beethoven, Mahler, Shostakovich e Bruckner. Só que o livro inicia descrevendo situações em que a música — ou pequenos trechos de músicas — está presente de maneira tão peremptória, descontrolada e repetitiva na cabeça de algumas pessoas que torna-se doença. Sempre orgulhei-me de minha jukebox e, dia desses, perdi o pudor. Um dia, acabei contando a meu amigo Augusto Maurer, primeiro clarinetista da OSPA e professor na UFRGS, os testes que fiz com ela. Ele ficou surpreso. Disse-lhe que podia tocar em minha cabeça movimentos completos de Bruckner com noções mais ou menos claras do que cada instrumento devia estar fazendo. Algumas vezes, poucas, cronometrei o tempo de execução e cheguei muito próximo aos tempos indicados nos CDs. Tudo começou quando descobri que podia tocar o terceiro movimento do Quarteto Op. 132 de Beethoven de cabo a rabo. Ele é muito complicado e resolvi cronometrar o tempo a fim de conferir se tinha passado por tudo. O CD demorava 15min35 para interpretá-lo, eu, 16min10. Repeti a experiência e voltou a dar mais ou menos o mesmo. Segundo Sacks, não sou louco; conseguir isto não é nada anormal, viram?

Vocês sabiam que Galileu, por não dispor de relógios confiáveis, marcava o tempo de seus experimentos cantando? Ele confiava mais em seu cantar do que em outros meios para comparar tempos…

São narrados casos semelhantes ao meu, como o do sujeito que não pôs o disco de Mozart para tocar, mas o ouviu… Augusto chama isso de memória de regente; eu, com mais simplicidade, digo que vim com um CD Player pré-instalado. Raramente uma música recusa-se a sair de minha cabeça, fato que ocorre com muitos casos analisados por Sacks. Para minha sorte, sempre consigo substituí-la por outra, por mais grudenta que seja a que se retira.

Alguns capítulos do livro de Sacks ficam desinteressantes pelo excesso de informação técnica e, infelizmente, não obtive resposta à outra pergunta que gostaria de ver respondida. É fato comprovado que a cegueira faz com que desenvolvamos áreas contíguas do cérebro que nos darão, por exemplo, uma audição melhor. Mas e a cegueira para cores, ou seja, meu daltonismo? Ele tem algo a ver com minha memória musical e a capacidade de me divertir com ela? Sei lá. (Para quem estranhou a expressão “cegueira para cores”, saiba que se trata exatamente disso: o termo “daltonismo” está caindo em desuso entre os médicos. A nova expressão é “Color Blindness”. Isto é, sou cego para algumas cores.)

Mas fui longe demais, voltemos ao livro. Se a primeira parte fala nos “Perseguidos pela Música”, a segunda dedica-se a problemas como a amusia e a anedonia (embotamento e indiferença aos prazeres), a terceira invade a “Memória, o Movimento e a Música” e a quarta e mais importante analisa a “Emoção, a Identidade e a Música”.

No último capítulo há muitas e importantes referências ao Mal de Alzheimer e a todas as doenças parkinsonianas em geral. Sacks explica que aquilo que chamamos de self raramente se esvai. Pude comprovar o fato em minha mãe quando ela se encontrava na fase final da doença de Alzheimer. Quando conseguimos motivá-la a manifestar-se, é a mesma pessoa que conhecemos, apesar de ela não articular mais frases. E junto a este self tão duradouro ficam, curiosamente, as impressões musicais e a respectiva capacidade de apreciação. A maioria dos que sofrem do Mal de Parkinson param ou reduzem seus movimentos repetidos se ouvem canções ritmadas e os Alzheimer, apesar de seu embotamento, têm suas emoções tocadas pela música e isto faz com que se sintam menos sós e tenham momentos de socialização. Muito interessante o fato de que as vítimas de Alzheimer possam cantar, emocionar-se e lembrar letras de músicas facilmente, sendo que um minuto depois não lembram de mais nada, só ficando-lhes a sensação de satisfação e consolo.

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Um Barão Genial

Um Barão Genial

Lembrei-me de um texto genial do conterrâneo Aparício Torelly, vulgo Apporelly, vulgo Barão de Itararé, que estranhamente não foi escrito por ele, mas por Graciliano Ramos. Explico: o alagoano Graciliano e o gaúcho Aparício foram companheiros de prisão e lá tornaram-se amigos; conheceram-se em 1936, quando o fascismo do também gaúcho Getúlio Vargas os colocou próximos. Vocês observarão que Apporelly – que recebeu seu título honorífico durante a Revolução de 1930, conforme nos explica Ernani Ssó em comentário a este post… – parecia estar muito bem. O trecho que copiei para meus 7 leitores narra uma conversa entre os dois amigos. Foi retirado de Memórias do Cárcere, do Capítulo 5 da Segunda Parte, Pavilhão dos Primários. Levei horas até encontrar o que procurava e que estava na página 187 do livro lido há muitos anos. Embriaguem-se com Graciliano e o Barão:

Aparicio5

Apporelly sustentava que tudo ia muito bem. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida. Ali onde vivíamos, Apporelly afirmava, utilizando seu método, que não havia motivo para receio. Que nos podia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas ainda assim não convinha alarmar-nos, pois esta desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela.

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