Há no RS algum apreciador de futebol com mais de 30 anos que não tenha ouvido, visto ou lido Ruy Carlos Ostermann? Não creio. Pedir distância crítica a qualquer um deles é impossível. Eu, por exemplo, comecei a ouvi-lo na Rádio Guaíba no distante ano de 1967 e de lá para cá o contato foi muito frequente. Para deixar ainda maior a proximidade, passei boa parte de minha vida trabalhando em dois empregos e eles me obrigavam a um deslocamento a partir das 16h, bem no horário do Gaúcha Entrevista, onde o Ruy, produzido por longo tempo pelo saudoso Paulo Moreira, entrevistava pessoas ouvindo-as com curiosidade e sem interrompê-las. Pois ele foi um comunicador multitemático, multimídia e aparentemente ubíquo.
Li Ruy Carlos Ostermann: um encontro com o Professor (436 páginas), em 3 dias e não me considero masoquista, ou seja, o livro e a extensiva pesquisa de Carlos Guimarães me prenderam por completo. São 35 capítulos diagramados com inteligência, deixando claros os depoimentos, as crônicas do biografado e o próprio texto de Guimarães, o que torna o livro um longo diálogo em que as comprovações do que está sendo dito aparecem de forma fluida.
O começo não promete muito. As origens familiares não são, digamos, fascinantes, mas isto dura pouco. Logo o texto ganha em velocidade e interesse. Também pudera! Seus pais tomam a atitude incompreensível de colocá-lo num internato a poucos metros de casa. E Ruy não parecia ser um problema. Ali parece nascer uma revolta que faria nascer outra pessoa, uma que, inclusive, teria dificuldades na escola e que aprenderia a dirigir seus interesses apenas para o que lhe interessava — a linguagem, a escritura, o pensamento e o esporte.
Ruy foi dos primeiros intelectuais que quebraram a falsa impossibilidade de alguém ser conhecedor de futebol e, ao mesmo tempo, uma pessoa de amplo conhecimento em áreas como arte, filosofia, literatura, história, ciências e música. De forma muito pessoal, ele foi o jornalista que trouxe a linguagem culta e elegante para o rádio, ao mesmo tempo que destronava o achismo reinante. Foi Ruy quem implantou as planilhas em seus comentários. Ele não dizia apenas que um time jogou melhor que o outro, depois enfiando um blá-blá-blá qualquer — nosso homem “de humanas” tratava de informar o número de chutes e de chances de gol, os escanteios, as defesas difíceis dos goleiros, etc. E tudo isto traduzido numa linguagem ausente de aridez. Imagino a festa que ele faria com as estatísticas de posse de bola e os mapas de calor que temos hoje.
Além disso, Ruy era um interessado observador de esquemas táticos, ou seja, ele podia descer alguns degraus em direção ao campo sem passar vergonha. Podia conversar com um técnico sem que este sugerisse a ignorância do jornalista.
O livro de Guimarães também oferece um belo e atraente painel da história do rádio e dos jornais de Porto Alegre, com destaque para o apogeu e declínio da Caldas Junior e a tomada de liderança pela RBS, através de uma administração mais sensata e da paulatina contratação das mesmas figuras que antes brilhavam na Guaíba. As fofocas, hesitações e desafios estão todos muito bem contados, inclusive a rivalidade entre Ruy e Lauro Quadros. Por muito tempo, Ruy foi chefe do departamento de esportes da Rádio Gaúcha e âncora de programas com a participação de Lauro.
Lauro e Ruy, de 85 e 90 anos de idade, parecem dois embaixadores. Eles negam quaisquer confusões, mas não era o que se dizia na época. De um lado e de outro, Guimarães tenta furar o bloqueio dos dois velhos, sem sucesso. São amigos. E as amizades são um importante ponto na vida de Ruy, Ele as cultivava com uma tão especial dedicação que elas foram o que impediu sua ida para a Globo, que lhe ofereceu “rios de dinheiro” para se transferir e que recebeu sempre a mesma resposta: a vida dele, a família e os amigos estavam aqui.
Recomendo o livro de Guimarães. E não apenas para os amantes do futebol.
Carlos Guimarães e Ruy Carlos Ostermann | Foto: Rogério Fernandes / Matinal
A Sala de Câmara do Auditório Nacional de Música da Madrid acolherá no dia 18 de novembro um concerto extraordinário no âmbito da temporada musical da Fundação Scherzo: trata-se do concerto beneficente Non sei solo in memoriam Javier Rodríguez-Miñón Falero, cuja receita irá para o National Organização de Transplantes e bolsas de estudo para jovens artistas. O programa é composto por cinco concertos de Johann Sebastian Bach para diferentes solistas, em versões da violinista francesa Amandine Beyer e do seu grupo Gli Incogniti, principais intérpretes do repertório barroco.
Entrevista concedida à revista Scherzo
Tradução de Milton Ribeiro, auxiliado pelo Juraci
O que a música de Bach representa para você?
Tenho uma relação muito longa com este compositor. Pela minha parte, tenho imensa admiração, fascínio e renovado espanto pela sua forma de captar em notas a sua visão do universo. Mas também muito respeito, porque compôs as Sonatas e Partitas para violino solo: peças tão complexas com as quais passei tantas horas da minha vida que já não sei o que pensar delas!
Felizmente, Bach também escreveu muitas outras coisas que envolvem o violino, e elas são muito mais acessíveis. Como por exemplo as que incluímos no programa Non sei solo . Este título brinca com o subtítulo que o próprio Bach deu às sonatas e partitas, Sei solo, o que por si só é um mistério (ele queria dizer “seis solos” mas se enganou, porque em italiano seria sei soli, ou ele queria dizer você está sozinho, o que parece um pouco desafiador?).
Como você concebeu o programa Non sei solo?
Este é o segundo volume de uma trilogia de programas onde apresentamos praticamente a totalidade dos concertos compostos por Bach em Köthen. O primeiro teve a presença de flautas e oboés, este segundo limitamos às cordas e o terceiro será repleto de fogos de artifício com os metais e outros sopros. Foi um período extraordinariamente criativo para o compositor, onde pôde contar com uma pequena orquestra de virtuosos a seu serviço, e onde, apesar das vicissitudes da sua vida, “nunca esteve sozinho ” .
O programa bachiano que apresenta em Madrid inclui o Concerto BWV 1064R , que funciona maravilhosamente na reconstrução para três violinos solo. Você pode nos contar sobre ela?
Com muito prazer! É um imenso privilégio poder tocar esta música em Madrid em breve. É uma peça que acabamos de adicionar ao nosso repertório. Apesar de já termos várias reconstruções disponíveis, decidimos fazer a nossa própria “receita” e voltar à partitura de Bach e ver como poderia funcionar para nós. E adoro o processo, porque este concerto, quando tocado na versão para três violinos, ganha uma dimensão completamente diferente. Já tinha feito este trabalho na versão para violino do Concerto em Ré menor para cravo , e tinha sido uma experiência enriquecedora. Obviamente, existem padrões de solo que são pensados para teclado e que devem ser “traduzidos” para o violino, mas também tentando combinar o estilo do compositor e o gosto do intérprete, então, por exemplo, transformei meus solos um pouco a meu gosto e deixei os outros dois solistas, Yoko Kawakubo e Vadym Makarenko, livres para adaptar suas partes aos seus gostos e necessidades. Também fizemos algumas pequenas alterações no acompanhamento orquestral que, na minha opinião, produzem uma textura muito mais italiana. Em tutti, ainda estamos experimentando a oitava adequada e é um trabalho muito divertido. Parece que, afinal, há mais liberdade do que às vezes pensamos…
Em muitos concertos de Bach é evidente a influência italiana, o espírito de Vivaldi, que o compositor combina com uma densidade orquestral mais “alemã”, como no Concerto de Brandemburgo Nº 3 . Na sua abordagem a estas peças, que componente gosta de destacar?
Acho que gostaria de destacar o que acho que Bach gostava na música italiana (ele e todos nós!): a vitalidade, o frescor, a leveza da complexidade e a ludicidade. Existe também esse culto ao violino virtuoso que gera cordas muito enérgicas… sem falar na luz totalmente sulista!
A sua abordagem da música de Vivaldi e da música de Bach é muito diferente?
É difícil dizer como abordo um repertório, um compositor. Há muito carinho, carinho, respeito, humildade, vontade, vontade de fazer bem, em todos os casos. Mas é como amizade. É uma questão de dois! e também depende do momento… Para mim a música do Vivaldi é mais imediatamente acessível, porque ele era violinista. E o de Bach tem que passar por outro filtro, porque sempre sai a veia harmônica do tecladista. Ter sempre um órgão em mente não é o mesmo que pensar nas possibilidades (também infinitas, mas de uma forma diferente) de um violino… Com Vivaldi tudo parece imediato: o lirismo, a genialidade, a surpresa… Em Bach , tudo isso é muito mais elaborado, mas no fundo tudo está lá e deve ser destacado. Às vezes, como a própria música de Bach é excepcionalmente rica, parece que apenas tocar as notas seria suficiente e que uma versão puramente “informatizada” (sem intervenção humana) seria suficiente para mostrar a genialidade por trás dela. Obviamente este não é o nosso caminho. Tentamos descobrir onde Bach escondeu as suas surpresas num complexo tecido contrapontístico, onde está aquela harmonia que nos acaricia cada vez que a alcançamos, e onde a aparente simetria e ordem são interrompidas muito ligeiramente para mostrar uma direção inesperada. E uma vez encontrados, pretendemos transmiti-los ao público para que possam experimentar o mesmo prazer que nos proporcionam.
Você pode nos contar algo sobre os solistas que atuam ao seu lado neste concerto?
No Gli Incogniti tenho a sorte de compartilhar a vida musical e os palcos com pessoas especiais. Tocamos muito juntos em partes iguais, ou acompanhando um ao outro, ocasionalmente em tutti, ocasionalmente solo, e adoro essa flexibilidade. A todo momento surge a amizade, e isso é o mais importante para mim. Além disso, fico hipnotizada cada vez que Anna Fontana deixa as harmonias de seu fantástico continuo para exibir seu solo no imenso Concerto para cravo em Fá menor, quando Marco Ceccato assume a liderança com seu violoncelo para Haydn ou Vivaldi ou o que posso dizer? Tenho também as notáveis Alba Roca e Marta Páramo. Já mencionei Yoko e Vadym, mas há também Ottavia Rausa e Baldomero Barciela, sem esquecer Francesco Galligioni e Dmitri Kindynis, nossos convidados especiais em duplo papel de violoncelo/viola da gamba… Todo um grupo de pessoas deliciosas e talentosas com quem me relacionei. ter a sorte de viajar, rir (às vezes de excitação, às vezes de frustração ou cansaço), comer e ensaiar, porque um grupo não é só concerto. São acima de tudo pessoas que se unem pelo amor de divulgar músicas maravilhosas.
Você planeja gravar este programa? O que mais você planeja trazer para o álbum em breve?
Bom, não é exatamente o mesmo programa, mas em janeiro próximo gravaremos um álbum com quase todas as obras desta noite e algumas de outros compositores (Vivaldi, Marcello) que serviram de modelo para Bach, vamos colocá-los um na frente do outro. Eles permitem que você ouça essa música sob uma luz diferente. E é claro que também temos em mente um novo projeto de Vivaldi que achamos que poderia ser divertidamente “polêmico”.
Em entrevista ao nosso saudoso Eduardo Torrico realizada em fevereiro do ano passado, você afirmou que com Gli Incogniti gostaria de fazer música clássica (CPE Bach, Haydn…) com uma equipe maior. Você está trabalhando nisso ou ainda é um objetivo distante?
Embora não o conhecesse muito bem, as conversas com o Eduardo foram sempre muito enriquecedoras e lamento muito a sua perda. Quanto ao repertório clássico, estamos fazendo aos poucos. Não é tão fácil movimentar uma orquestra grande, mas estou muito animada com isso. Já apresentamos um programa completo de sinfonias de Carl Philipp Emanuel Bach, como fizemos no Festival Torroella de Montgrí neste verão, ou uma mistura de Haydn, e CPE Bach em Brühl (na Alemanha), também no verão passado. Fiquei muito feliz.
Trump venceu. Muda pouco a questão do Oriente Médio, mas a vida do Zelensky deverá mudar muito. Para a Ucrânia, melhor seria negociar logo com os russos e evitar mais mortes.
A questão ambiental? Vai ser uma luta.
O protecionismo de Trump deve atrapalhar a economia do Brasil e, dizem, da China. Não entendo muito disso. Só acho que se ele começar a deportar os estrangeiros ilegais, vai fazer subir a inflação porque são os mexicanos que aceitam salários mais baixos para funções que não necessitam maior qualificação.
Seria otimista demais dizer que o apoio irrestrito a Israel prejudicou Kamala-Biden?
O pior mesmo é que a direita fascista se anima toda com esse cara na Presidência.
Hoje, depois de levar a Elena na Ospa, passei quase todo o dia na Livraria Bamboletras. Dei umas saídas curtas. Fui pagar uma conta na lotérica, fui ao Banrisul, fui resolver um problema na Jacinto Gomes. Ah, e almocei fora, sozinho.
Quando a Elena voltou e conversamos, ela perguntou o que era aquele rabo preto na minha bunda. Não entendi nada. Pus a mão atrás e puxei uma meia social preta que estava presa no cinto. Apenas uma meia do par.
Sim, pela manhã, tinha pegado a calça de cima da cadeira de balanço. Debaixo da calça estava um par de meias.
Conclusão: dei várias voltas pela Cidade Baixa e na Livraria com um rabo preto. Depois a gente fica famoso e pensa que o motivo são nossos livros, textos e bom atendimento. Pfff, o véio do rabo preto.
Um dos melhores dias da minha vida ocorreu em 2017, próximo do meu aniversário de 60 anos. Eu e a Elena tínhamos ido para um hotel no interior a final de descansar. Ela levou o violino. Nós já conhecíamos a cidade da Salvador do Sul e ela me dissera que uma igrejinha de lá possuía uma acústica incrível.
Ela pegou seu violino e fomos. Pedimos permissão e entramos na igreja — quase uma capela — vazia. Ela abriu o estojo do violino e pediu que eu fosse ouvi-la do balcão, lá em cima.
E começou a tocar a Chaconne de Bach. É uma obra lindíssina, dificílima e longa, de uns 15 min. Pensei que ela tocaria apenas o início… Afinal, não devia saber de cor. Mas ela não parava e a interpretação era realmente muito boa. Pensava que a Elena não se apresentava em grupos que não a Ospa por não gostar de panelinhas…. De repente, me veio a certeza: aquilo era o meu presente. Era. Pedi-lhe para que ela tocar tudo novamente, para poder ouvir com mais calma.
Quando desci do balcão para lhe agradecer, um padre estava atônito na plateia. Ele disse que tinha vindo fazer suas orações mas que, depois daquilo, achava que já estavam feitas.
Hoje, à convite do Bernardo Frederes Kramer Alcalde, voltei a assistir uma Chaconne ao vivo. Tenho sorte com a peça porque foi novamente maravilhoso. O violinista foi o alemão Oscar Bohórquez, filho de um fagotista peruano e de uma pianista uruguaia. A promotora do recital foi a Bach Society Brasil, entidade porto-alegrense que você deveria apoiar.
Valeu muito a pena e eles farão novo Concerto em 4 de dezembro, agora com orquestra.
Nós recebemos uma doação de livros aqui na Livraria Bamboletras. Bons livros. Um monte de coisas de filosofia e bons romances clássicos. Deixei-os um tempo sobre o balcão de entrada.
Mas…
Dentre eles estava um certo Cabo de Guerra, de Políbio Braga.
As pessoas viam o livro e se afastavam com repugnância. Logo, a coisa tornou-se assunto de conversa — e crítica — e tive que dar um basta naquilo. Fui meio radical.
Gustav Mahler dirigiu a Orquestra Gürzenich em Colônia na estreia de sua Sinfonia Nº 5. Depois de passar por uma doença quase fatal no inverno anterior, ele encontrou conforto na música de Johann Sebastian Bach, e o rico contraponto da sinfonia mostra claramente a influência de Bach. Esta obra marca o início de uma trilogia de sinfonias puramente instrumentais. Ao contrário das três anteriores, que eram orientadas pela narrativa e incluíam elementos vocais, as Sinfonias 5, 6 e 7 não trazem a voz humana.
A estreia não correu nada bem. Em carta à sua esposa, Mahler expressou sua decepção, afirmando: “Ninguém entendeu. Gostaria de poder reger a primeira apresentação desta peça cinquenta anos após minha morte.”
O quarto movimento, o célebre Adagietto tocado pelas cordas e harpa, é originalmente uma canção de amor para sua esposa Alma, em comemoração ao recente casamento, o que sugere que deveria ser executada em um ritmo adequado para o canto. Isso é apoiado por marcações na partitura do maestro Willem Mengelberg, que assistiu à execução da sinfonia por Mahler. Porém, embora as interpretações modernas do Adagietto possam variar de 10 a 14 minutos, o próprio Mahler conduziu-a em apenas 7 minutos e 30 segundos. Mengelberg devia ser muito criativo, pois a versão lenta criou a tradição plenamente aceita hoje, tendo o trecho sido tocado no filme A Morte em Veneza, de Visconti, em modo 100% Mengelberg.
Mas eu fiquei assobiando com a Elena hoje pela manhã um Adagietto em velocidade duplicada. Não gostei…
Negro, militante e latino. É demais para a Bola da Ouro.
Mas não é novidade: em 1996, o alemão Matthias Sammer recebeu o prêmio, superando o não-militante Ronaldo Fenômeno, que vivia uma super temporada no Barcelona.
Agora, comparar jogadores fora do contexto do time é tolice. Quem conhece futebol compara equipes ou jogadores de mesma posição e características — e mesmo assim depende do time onde vão entrar.
Por exemplo, quem é melhor no Inter: Alan Patrick ou Vitão? Wesley ou Fernando? São perguntas ridículas. Agora, imagine fazer isso em âmbito mundial?
Quem é melhor? Borré ou Valencia? Para o time de Roger, Borré. Para o de Coudet, Valencia.
Antes das eleições municipais, defendi prévias para estabelecer a chapa do PT-PSOL. E volto a defender o mesmo para as próximas majoritárias. Atendo pessoas o dia inteiro na Livraria e sei muito bem do desconforto com a chapa que enfrentou Melo.
Agora serão mais 4 anos de uma cidade bagunçada, com corrupção bolsonarista muito ativa e com as empreiteiras c@gando em cima da população. E Melo não fez nada para preparar a cidade para a próxima enchente. Então, quando acontecer novamente, não haverá tanta peninha e doações. Estaremos sozinhos com Melo, Leite e os espigões. É o que nós queremos.
O maior de muitos grandes romances vitorianos? Pois após este evento, acabei relendo Middlemarch em casa. Digo em casa porque normalmente leio na rua, no transporte coletivo ou quando pego uma fila qualquer. Descobri um erro naquilo que disse no StudioClio. Houve três encontros entre Dorothea Casaubon e Rosamond Lydgate, mas apenas em um há um diálogo mais longo, razão de meu erro. Confesso que fiquei muito triste quando descobri a coisa. Não vou lá corrigir; afinal, isto é um blog, não é formado por teses acadêmicas.
O que me levou a reler as 877 páginas do livro foi sua tremenda qualidade. Na verdade, recomecei muito lentamente, lendo um capítulo a cada dois ou três dias. Depois, o livro voltou a me envolver de tal forma que queria não saber o que já sabia, mas relembrar de cada detalhe. Valeu absurdamente a pena, pois Eliot tem muito a nos ensinar. Apertada e já desconfortável dentro da estrutura clássica do romance do século XIX, a autora expande os limites da forma até onde pode através de análises psicológicas e sociológicas que apontam para um outro gênero mais livre de romance. Eu também tinha esquecido do Epílogo, aqui chamado um tanto ironicamente de Finale. Em vez de deixar os personagens casadinhos e felizes para sempre, Eliot dá-lhes outras histórias, inclusive referindo à morte prematura de Mr. Lydgate e dando um novo casamento à viúva Rosamond. Quem é este novo marido? Também fica uma enorme interrogação a respeito da história do outro casal protagonista. A vida de Dorothea com Will Ladislaw é descrita no Finale com tão poucos detalhes que o livro deve ter irritado ao leitor vitoriano, acostumado a ver tudo abotoadinho ao término da narrativa.
A obra-prima de George Eliot, Middlemarch , apareceu após as mortes de Thackeray (1863) e Dickens (1870). Isso não é acidental. Subintitulado “um estudo da vida provinciana”, o romance tem um realismo didático que está a um mundo de distância de A Feira das Vaidades ou Grandes Esperanças. De fato, Middlemarch paira sobre a paisagem literária de meados da era vitoriana como um edifício de palavras em cuja vastidão sombria seus leitores podem encontrar todo tipo de desconforto viciante, uma sequência de verdades cruas: a decepção e a solidão do fracasso, as frustrações de sua esposa descontente, a humilhação de uma boa mulher, a amargura corrosiva de Casaubon, e assim por diante.
Poucos personagens de Eliot alcançam o que realmente querem. Alguns aprendem as lições e alcançam uma felicidade temporária. Outros se recusam ou são incapazes de aprender, e passam a vida ressentindo-se de sua situação e culpando os outros. E outros ainda percebem seus erros, mas são presos por uma decisão errada e nunca escapam. Dr. Lydgate é especialmente emblemático de Middlemarch : morre jovem, sendo um homem amargo e decepcionado que sabia que havia se casado com a mulher errada e não podia fazer nada a respeito.
A ação acontece cerca de 40 anos antes do momento da composição. Seus personagens discutem a chegada da ferrovia e o impacto da industrialização em um mundo inglês estabelecido em Midland. Aqui, a metáfora organizadora de Middlemarch se torna “a teia”. No meio dessa teia, encontramos a personagem sobre a qual todos os leitores de Middlemarch vão discutir e se identificar: a figura fascinante de Dorothea, esposa do monstro de frialdade coração frio reverendo Edward Casaubon. Dorothea se torna uma verdadeira heroína porque – apesar de tudo o que sofre, suas humilhações e mágoas – ela ainda tenta ser uma boa pessoa e fazer a coisa certa. Lydgate, em particular, vê isso e entende, para sua grande tristeza, com que tipo de mulher ele deveria ter se casado e quão diferente sua vida poderia ter sido. Em um sentido mais amplo, o destino de Dorothea (e também os tormentos autoinfligidos por Rosamond Vincy) dramatizam outro dos principais temas do romance, o lugar das mulheres em uma sociedade em mudança, mas ainda patriarcal.
Não há soluções fáceis em um grande romance. Ou não há soluções em um grande romance. Alguns leitores ficarão consternados ao encontrar, nos capítulos finais, Dorothea descobrindo realização em seu trabalho para Will Ladislaw, quando ele se torna um parlamentar reformista. Mas Eliot tem a última palavra, uma página de despedida famosa e profundamente comovente.
No início de 1869, George Eliot listou suas tarefas para o ano seguinte em seu diário, incluindo “Um romance chamado Middlemarch”. No entanto, o progresso foi lento, interrompido pela doença fatal de Thornie Lewes, o segundo filho de seu parceiro George Henry Lewes. Em setembro, apenas três capítulos da história haviam sido concluídos, e quando Thornie finalmente morreu em novembro de 1869, Eliot havia parado de trabalhar em um romance que era, neste estágio, apenas um estudo da sociedade de Middlemarch, com Lydgate, o médico, e sua esposa incompatível Rosamond Vincy, como personagens principais.
No entanto, mais de um ano depois, em novembro de 1870, ela começou a trabalhar em uma nova história intitulada “Miss Brooke”, que apresentou Dorothea. Eliot combinou a história de Dorothea com a narrativa de Lydgate-Vincy, e começou a desdobrar o painel completo de Middlemarch.
À medida que ganhava asas, a obra se tornou tão diferente do tradicional romance vitoriano que John Blackwood, o editor, resolveu lançar o romance em oito partes, em intervalos de dois meses a partir de dezembro de 1871. Os oito livros apareceram ao longo de 1872, culminando nos capítulos finais de novembro e dezembro de 1872, embora a página de título da primeira edição tenha a data de 1871. Middlemarch foi imediatamente reconhecido como uma obra de gênio e garantiu o lugar de Eliot no alto do panteão da ficção inglesa. A primeira edição de um volume foi publicada em 1874 e vendeu bem para um público leitor entusiasmado.
Dorothea Brooke
Dorothea é uma mulher de bom coração e honesta. Ela anseia por encontrar uma maneira de melhorar o mundo. Ela acha que Casaubon é um grande intelectual, mas depois que se casa com ele, rapidamente descobre que ele não é apaixonado o suficiente para fazê-la feliz. Ela também descobre que não é tão submissa e sacrificada quanto pensava anteriormente. Ela desenha planos para chalés confortáveis para substituir os prédios em ruínas em grandes propriedades. Ela ajuda Lydgate quando ele sofre por suas conexões com Bulstrode. Ela se apaixona pelo jovem primo de Casaubon, Will Ladislaw. Ela desafia as maquinações de Casaubon e se casa com Will, mesmo que isso signifique perder sua herança como viúva de Casaubon.
Tertius Lydgate
Tertius Lydgate é o filho órfão de um militar. Ele escolheu a profissão médica ainda jovem, para desgosto de seus parentes ricos. Ele vem para Middlemarch esperando testar novos métodos de tratamento. Ele se casa com Rosamond Vincy, cujos hábitos caros o colocam em dívida. Ele pega um empréstimo de Bulstrode e se envolve no escândalo de Bulstrode. Dorothea o ajuda em sua hora mais sombria.
Rosamond Vincy
Rosamond Vincy é filha de Walter e Lucy Vincy. Ela cresce acostumada a um estilo de vida caro. Ela se casa com Lydgate porque acha que ele é rico e porque ele tem parentes titulados. Ela sonha em deixar Middlemarch e viver um estilo de vida aristocrático e emocionante, mas seus gostos caros deixam Lydgate profundamente endividado.
Walter Vincy
Walter Vincy é um modesto empresário abastado na indústria. Ele também é prefeito de Middlemarch. Os gostos caros de Fred e Rosamond o enfurecem. Ele se recusa a emprestar dinheiro a Rosamond e Lydgate para pagar a dívida de Lydgate. Ele é irmão de Harriet Bulstrode.
Lucy Vincy
Lucy Vincy é a esposa de Walter Vincy. Ela é filha de um estalajadeiro, para grande desgosto de Rosamond. Ela adora o filho e não quer que ele se case com Mary Garth. Ela é irmã da segunda esposa de Featherstone.
Fred Vincy
Fred Vincy é o filho mais velho de Walter e Lucy Vincy. Seu pai o manda para a faculdade porque quer que Fred se torne um clérigo, mas Fred não quer trabalhar na Igreja. Ele se endivida com jogos de azar. Ele está acostumado a um estilo de vida luxuoso. Ele causa dificuldades financeiras para os Garths porque não consegue pagar a dívida na qual Caleb Garth co-assinou seu nome. Ele quer se casar com Mary Garth, mas ela não o aceitará a menos que ele encontre uma ocupação estável além da Igreja. Ele espera herdar Stone Court de seu tio, Peter Featherstone. Essas esperanças são frustradas, então ele trabalha para Caleb Garth.
Arthur Brooke
Brooke é o tio solteiro de Dorothea e Celia. Ele é um homem atrapalhado que nunca consegue manter uma opinião, sempre querendo agradar a todos. Ele contrata Will Ladislaw para escrever para seu jornal, o Pioneer. Ele concorre a uma cadeira no Parlamento na plataforma da Reforma, mas deixa seus próprios inquilinos viverem na pobreza e na miséria. O escândalo resultante de sua hipocrisia o leva a melhorar as condições em sua própria propriedade, Tipton Grange.
Célia Brooke
Celia é irmã de Dorothea. Ela se casa com Sir James Chettam.
Nicolau Bulstrode
Nicholas Bulstrode é um rico banqueiro de Middlemarch. Ele é casado com a irmã de Walter Vincy. Bulstrode professa ser um protestante evangélico profundamente religioso, mas tem um passado obscuro: ele fez fortuna como penhorista vendendo bens roubados. Ele se casou com a avó de Will Ladislaw depois que seu primeiro marido morreu. Sua filha havia fugido anos antes, e ela insistiu que Bulstrode a encontrasse antes que ela se casasse novamente, porque ela queria deixar sua riqueza para seu único filho sobrevivente. Bulstrode localizou a filha e seu filho, Will Ladislaw, mas ele manteve sua existência em segredo. Ele subornou o homem que ele contratou para encontrá-la, John Raffles, para ficar quieto. John Raffles o chantageia com essa informação. Quando Raffles fica doente, Bulstrode cuida dele. No entanto, ele desobedece ao conselho médico de Lydgate, e Raffles morre como resultado. Quando o escândalo sobre seu passado e as circunstâncias da morte de Raffles se tornam conhecidas, Bulstrode deixa Middlemarch envergonhado. Ele compra Stone Court de Joshua Rigg Featherstone.
Harriet Bulstrode
Harriet Bulstrode é irmã de Walter Vincy. Ela é uma mulher gentil, honesta e religiosa. Ninguém em Middlemarch a culpa pelos erros do marido. Ela resolve ficar com o marido mesmo depois de saber de seus erros.
Elinor Cadwallader
Elinor Cadwallader é a esposa do Reitor em Tipton Grange, a propriedade de Brooke. Ela nasceu em uma boa família, mas se casou mal e irritou seus amigos e familiares. Ela é uma mulher prática que está sempre tentando bancar a casamenteira para jovens solteiros, incluindo Dorothea, Celia e Sir James.
Humphrey Cadwallader
Humphrey Cadwallader é o reitor de Tipton Grange, a propriedade de Brooke. Ao contrário de sua esposa, ele não acredita em se intrometer nos assuntos de outras pessoas.
Eduardo Casaubon
Edward Casaubon é dono de uma grande propriedade chamada Lowick. Ele é um clérigo erudito. Sua ambição de vida é escrever a Chave para todas as Mitologias, mas ele é inseguro e incerto sobre suas próprias habilidades. Ele se casa com Dorothea porque acha que ela é completamente submissa e adoradora. Sua independência teimosa o frustra, e ele erroneamente acredita que ela o critica constantemente. Casaubon é primo de Will Ladislaw. A irmã de sua mãe foi renegada por sua família por fugir para se casar com um homem de quem eles não gostavam. Sua própria filha, a mãe de Will, também fugiu para se casar. Casaubon oferece apoio financeiro a Will porque se sente obrigado a reparar a deserdação de sua tia. Ele fica com ciúmes do relacionamento de Will com Dorothea. Ele inclui um adendo em seu testamento afirmando que Dorothea perderá sua riqueza e propriedade se ela se casar com Will Ladislaw. Ele morre antes de terminar sua Chave.
Senhor James Chettam
Sir James Chettam é um baronete. Ele é dono de uma grande propriedade chamada Freshitt. Ele corteja Dorothea, mas ela escolhe se casar com Casaubon. Mais tarde, ele se casa com a irmã dela. Ele promulga os planos de chalé de Dorothea em sua própria propriedade.
Senhor Bambridge
Bambridge é um negociante de cavalos de Middlemarch. Fred Vincy afunda em dívidas; Raffles o encontra em uma feira de cavalos e lhe conta tudo sobre o passado de Bulstrode.
Senhor Dagley
Dagley é um dos inquilinos empobrecidos de Brooke. Seu filho é pego caçando ilegalmente nas terras de Brooke. Ele recusa o pedido de Brooke para que ele castigue seu filho.
Camden Farebrother
Camden Farebrother é um vigário, mas não se considera um bom clérigo, embora muitas pessoas gostem de seus sermões sensatos. Ele se torna amigo rápido de Lydgate e sustenta sua mãe, irmã e tia com sua pequena renda. Ele precisa apostar para sobreviver e perseguir seus hobbies científicos. Ele perde na eleição para a capelania no New Hospital. Ele recebe a paróquia de Lowick após a morte de Casaubon. Fred Vincy pede sua ajuda para cortejar Mary Garth. Ele mesmo ama Mary, mas cumpre seu dever.
Sra. Farebrother
A Sra. Farebrother é a mãe viúva de Camden Farebrother.
Winifred Farebrother
Winifred Farebrother é irmã solteira de Camden Farebrother.
Pedro Featherstone
Peter Featherstone é um velho viúvo rico e manipulador. Ele é dono de Stone Court. Ele se casou duas vezes, mas não teve filhos legítimos. Sua primeira esposa foi irmã de Caleb Garth. Sua segunda esposa foi irmã de Lucy Vincy. Ele dá a entender há anos que planeja deixar toda a sua propriedade para Fred Vincy, seu sobrinho por casamento. Ele até escreve dois testamentos separados. Mary Garth se recusa a queimar um deles. Ele deixa sua propriedade para seu filho ilegítimo, Joshua Rigg.
Caleb Garth
Caleb Garth é um pobre homem de negócios. Ele ganha a vida administrando grandes propriedades. Ele co-assina uma dívida para Fred Vincy. Quando Fred não consegue pagar, a família de Garth sofre. Ele recebe novos negócios, supera a perda e contrata Fred Vincy para trabalhar para ele. Ele se recusa a administrar Stone Court para Bulstrode depois que Raffles revela o passado obscuro de Bulstrode.
Susan Garth
Susan Garth é a esposa de Caleb Garth. Ela é uma ex-professora.
Maria Garth
Mary Garth é filha de Caleb e Susan Garth. Ela ama Fred, mas se recusa a se casar com ele se ele se tornar um clérigo e não conseguir encontrar uma ocupação estável.
Vontade Ladislaw
Will Ladislaw é neto da tia deserdada de Casaubon. Bulstrode tenta dar-lhe dinheiro para expiar por esconder sua existência de sua avó. Ele recusa o dinheiro porque sabe que veio de roubo. Ele adora Dorothea. Ele não se importa com dinheiro e ama tudo que é bonito.
Senhor Godwin Lydgate
Sir Godwin Lydgate é tio de Tertius Lydgate.
Capitão Lydgate
O capitão Lydgate é o primo afetado de Tertius Lydgate. Ele leva Rosamond para cavalgar. Ela sofre um aborto espontâneo como resultado de um acidente a cavalo.
Naumann
Naumann é o amigo pintor de Ladislaw em Roma. Ele usa Casaubon como modelo para Thomas Aquinas como um ardil para desenhar um esboço de Dorothea.
Senhorita Nobre
Miss Noble é irmã da Sra. Farebrother. Ela rouba pequenos itens de comida para dar aos pobres. Ela se afeiçoa a Will Ladislaw.
Selina Plymdale
Selina Plymdale é uma boa amiga de Harriet Bulstrode. Seu filho corteja Rosamond Vincy, mas ele é rejeitado.
Ned Plymdale
Ned Plymdale corteja Rosamond, mas ela o recusa.
John Raffles
John Raffles é um antigo parceiro de negócios de Bulstrode. Bulstrode o subornou para manter em segredo a existência da filha e do neto de sua primeira esposa. Ele volta para chantagear Bulstrode. Ele é padrasto de Joshua Rigg Featherstone. Ele morre em Stone Court porque Bulstrode interfere no tratamento médico de Lydgate.
Joshua Rigg Featherstone
Joshua Rigg Featherstone é filho ilegítimo de Peter Featherstone. John Raffles é seu padrasto. Ele herda Stone Court. Ele a vende para Bulstrode porque quer se tornar um cambista.
Borthrop Trumbell
Borthrop Trumbell é um leiloeiro em Middlemarch.
Walter Tyke
Walter Tyke é um ministro protestante evangélico. Bulstrode é um apoiador dele. Ele vence a eleição para a capelania no New Hospital, derrotando Farebrother.
Senhor Chave Inglesa
O Sr. Wrench é um médico de Middlemarch. Ele diagnostica Fred erroneamente quando ele pega febre tifoide. Lydgate trata da doença de Fred, e os Vincys demitem o Sr. Wrench. O Sr. Wrench se torna inimigo de Lydgate como resultado.
Middlemarch é um mistério. Muitos clássicos do século XIX são de conhecimento quase geral entre leitores contumazes, mas o livro de George Eliot — que era uma mulher, nascida Mary Anne Evans — permanece ignorado pela maioria.
Acertando como sempre, Virginia Woolf escreveu que Middlemarch era “um dos poucos romances ingleses escritos para adultos”. Eu diria: “escrito exclusivamente para adultos”. O livro aborda temas muito atuais: o status das mulheres perante à sociedade, a ascensão da classe média e a crítica da moralidade, da religião e do casamento.
Sem exagero, trata-se de um livro estupendamente inteligente, publicado em 1871.
Middlemarch é o nome de uma cidade fictícia do interior da Inglaterra a a ação se passa lá volta de 1830. Como Anna Kariênina, o livro tem enredo múltiplo, centrando-se em dois casais, montando um quadro da vida rural inglesa e uma análise dos relacionamentos humanos em geral, especialmente das relações amorosas e do casamento.
O núcleo são os casais Dorothea e Edward Casaubon, Rosamond e Tertius Lydgate.
Dorothea, mulher excepcionalmente independente, politizada para sua época e de grande sede intelectual, casa-se com Casaubon, homem erudito e quase 30 anos mais velho. Ela o admirava, ele prometia muito, mas se revelou frio e chato. Um desastre.
Por outro lado, Lydgate é um médico entusiasmado, amante da ciência, que casa com a fútil Rosamond, que o faz gastar o que não tem. Outro desastre.
O curioso é o afastamento dos dois casais. algo muito semelhante novamente à Anna Kariênina. Um drama aqui, outro lá.
Mas nada desta apresentação faz sentido se não levarmos em conta as intervenções da narradora, com comentários cheios de ideias, pensamentos revolucionários e a colocação de situações morais muito originais.
Nas suas 800 páginas, há um bom número de personagens e tramas que encontram os temas subliminares, incluindo a situação das mulheres, a natureza do casamento, o idealismo e o interesse pessoal, religião e hipocrisia, reforma política e educação. Esse livro é maravilhoso!
Ah, tem algo que não era uma novidade no romance vitoriano, mas que Eliot professa como ninguém: sua profunda simpatia pelos personagens secundários, pelas pessoas simples, feias e pobres,
Vamos a um pouco mais de Virginia Woolf?
“A luta das heroínas de George Eliot, por conta da suprema coragem do empreendimento a que se dedicavam, termina em tragédia ou num compromisso que é ainda mais melancólico”.
Tudo porque, ainda nas palavras de Woolf, “o fardo e a complexidade da condição feminina não lhes era suficiente. Elas desejavam sair do santuário e colher para si mesmas os estranhos frutos da arte e do conhecimento”.
Temos Middlemarch na Livraria Bamboletras. Sim, a tradução da Martim Claret é boa.
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Piadas de fagote, piadas de trompete, piadas de violino, piadas de oboé — todas funcionam como ferramentas de ligação que reforçam a hierarquia social da orquestra. E, nesse sentido, não há coleção mais extensa dessas paródias do que a piada de viola (ou de violista).
As piadas de viola vieram do século XVIII e surgiram com a criação da orquestra moderna. logo ficou enraizada a crença de que o instrumento era pesado e seus músicos lamentavelmente incompetentes. Esta implacável da reputação dos violistas, escrita em 1752 pelo eminente compositor e flautista Johann Joachim Quantz, era típica:
A viola é comumente considerada de pouca importância no meio musical. A razão pode muito bem ser o fato de ser frequentemente tocada por pessoas que ainda são principiantes ou não têm dons específicos para se distinguirem no violino. O instrumento proporciona muito poucas vantagens aos seus executantes, de modo que pessoas capazes não são facilmente persuadidos a aceitá-lo.
Estes estereótipos permanecem firmemente em vigor, apesar da presença atual de violistas virtuosos que amam as qualidades úde seus instrumentos. Só que as piadas são boas demais para serem desperdiçadas.
Este é um exemplar do chamado romance híbrido, isto é, aquele que mistura gêneros. Cada capítulo nos surpreende e não somente por seus saltos temporais. Começa com um (bom) conto escrito pela personagem principal, segue com a vida da mesma durante a pandemia, há um capítulo-catálogo todo de medos e desejos relacionados à gravidez, etc. Na verdade, o romance parece um livro de contos com a mesma personagem em quase todos eles.
Não pretendo estragar a leitura de ninguém, mas digo que o capítulo-conto de abertura é bastante pânico, seguido por outro que traz uma discussão puxada pelo namorado da escritora a respeito do conto do primeiro capítulo. E aqui o livro segue já de outra forma. O chamado “namorado” não é abusivo, mas digamos que tende a ser. Ele não apenas complica a vida como pode, como vai invadindo o espaço físico da autora dentro do pequeno apartamento que dividem durante a pandemia. Ele é hábil nisso. Julia também é muito hábil e sutil ao descrever o relacionamento. Parece que ela também cede a ele. Se a personagem evita o conflito, Julia evita a crítica direta. Paradoxalmente, a contenção é um catalisador feminista fortíssimo para quem lê. (Posso dizer que estava lendo este capítulo durante a madrugada e que ele me acordou totalmente. Putz, achei o tal namorado um baita chato).
Há um capítulo que lembra o Ítaca, do Ulysses de Joyce, mas sem as perguntas. É um interessante catálogo ou catecismo de medos e desejos da personagem-escritora a respeito de engravidar. Ela está com quase 40 anos e, se não tiver filhos agora, a biologia logo decidirá por ela. Muitos dos medos são irreais e lá vamos nós para mais uma intervenção do resenhista gonzo. (Afinal, um obstetra que leu o livro inteiro numa tarde — prova de sua alta qualidade — voltou aqui na Bamboletras e deu risadas sobre algumas das suposições da personagem. Elas seriam totalmente fantasiosas. Conheço um pouco o problema: minha ex teve dois filhos de mim e, se eu tinha mil receios do que poderia acontecer, imagine uma portadora imaginativa).
Para aumentar a dúvida, nos capítulos seguintes Julia passa a tratar seu parceiro não mais como “namorado” e sim como “companheiro”. Ora, parece que o cara é outro e este é bem legal, mais digno de ser pai, creio eu. (Sim, quem lhes escreve é um homem cuja barriga só cresce por ser glutão, mas achei o sujeito digno de uma paternidade, fazer o quê?).
Importante ressaltar que há muito humor no texto de Julia. Não vou contar o final, vou deixar para vocês saberem como Vitor Ramil, Caio Fernando Abreu e suas runas entram na história, mas afirmo que Julia Dantas leva brilhantemente sua história até a última página com um texto inteligente, interessante, leve… E dubitativo.
Recomendo!
Se eu fosse o “namorado”, jamais desalojaria Julia de sua cadeira de balanço. Tenho uma igual. Foto: Renan Mattos / Agencia RBS
Não adianta ofender quem vota no Abobado da Enchente. Aliás, chamá-lo de Abobado da Enchente é errado. Chamar de chinelo, então, nem se fala, é erradíssimo. Chinelo é ser / estar sem grana, é estar sempre mal arrumado, chinelo sou eu. Tornaram Melo o Rei dos Chinelos, coisa que ele recebeu de braços abertos como o Rei da Maioria.
Enquanto a gente condenar o voto das pessoas por serem absolutamente burros, totalmente desinformados ou causado por mau caráter, não vamos entender o que efetivamente define o voto e não saberemos como disputá-lo, restando apenas esse prêmio de superioridade autoconferida. Parabéns a quem quer agregar ofendendo!
Os argumentos para mudar o voto têm de ser outros. Podem ser as múltiplas suspeitas de corrupção de sua gestão que nunca vão adiante. (Chega a ser cômico como tudo dá em nada quando a direita é acusada. Já quando a esquerda é acusada, dá).
Em nível mais geral, temos que exorcizar a esquerda, temos que dar um jeito de desdemonizá-la.. Afinal, Lula governa e o mercado acha normal. Cadê o demônio? Até o Moody`s — que é uma empresa norte-americana de serviços financeiros que também classifica os países segundo o risco para investir neles — virou comuna porque aprova o Haddad.
E, mein Gott, como fazer os evangélicos recuarem da política quando tantos políticos da própria esquerda pedem bênçãos e votos a eles? Todos os políticos ignoram a laicidade, este é mais um caso para exorcismo.
Convivemos com anos e anos de incultura, de educação de péssima qualidade, e isso segue sendo cultivado. Então é um longo caminho que nem começou. Que, aliás, estamos cada vez mais longe de começar.
J. S. Bach desenhou este monograma para si mesmo, na esperança de ser nomeado Compositor da Corte do Eleitor da Saxônia (daí a coroa). O selo de Bach é composto por suas iniciais JSB sobrepostas à imagem espelhada e encimadas pela citada coroa. Foi uma tentativa de alcançar mais um cargo. Não conseguiu. Mas ficou lindo, né?
Dentre os vereadores eleitos em Porto Alegre há os excelentes, os aceitáveis, os fascistas e os especiais. Vejam o “nome” do último vereador da lista do PL. Porto Alegre é demais!
Pablo Marçal publicou um laudo falso — com nome de clínica com erro, assinado por um médico já morto na data do laudo — que dizia que Boulos fora internado por overdose de cocaína.
Fez isso 48h antes do pleito. Claro, o tal laudo vai colar pra muita gente. Sabe-se que a acusação sempre repercute mais do que o desmentido. Tem gente que diz que onde há fumaça há fogo… Nem sempre as metáforas funcionam.
O que não entendo é o fato da candidatura de Marçal ainda não ter sido cassada. Também não entendo o fato de outras prisões (sim, aquelas) não terem ocorrido ainda. Cadê a tal da Justiça? Ou a partir de agora vale tudo?
Não há nenhum problema em um livro ser divertido, né?, desde que seja bem escrito e com bons artifícios para a gente ficar preso à leitura. Um escritor não precisa tentar sempre escrever a bíblia. Por exemplo, várias histórias da incensada Mariana Enriquez — e eu sou dos que a adoram — são apenas isso: divertidos. Eu gostei demais deste As Willis, de Carlos Gerbase. Largava e pegava o livro novamente, para ler mais um capítulo. É preciso que haja livros assim, capazes de desviar nossa atenção da loucura diária e, se eles forem intrigantes e inteligentes, melhor. Ainda melhor se tiverem uma pitada de humor negro. E se incluir sexo, magnífico! Aqui tem tudo isso.
Originalmente, as Willis são espíritos de virgens que morreram antes de casarem e que aparecem no balé Giselle ou Les Willis, de Adolphe Adam. Giselle é um dos mais famosos balés românticos e costuma ser dançado na ponta dos pés, como manda a tradição. No argumento original, as Willis saem de suas tumbas à noite para atrair homens com a dança e levá-los à morte. O balé tem música bastante chata, mas, se esquecermos desta e dos bailarinos nas pontas dos pés, vai sobrar uma história perfeitamente gótica.
O gótico literário foi uma vertente do romantismo voltada para o obscuro. Fala de morte, insanidade, sonhos e demônios, coisas assim do tipo Frankenstein (1818), de Mary Shelley. A origem das Willis parece estar em Heine (1797-1856) que escreveu sobre uma lenda alemã em que os espíritos das noivas que morreram antes do casamento atraem seus noivos para a floresta, a fim de fazê-los dançarem até a morte. Acho que o nome deveria ser dito vilís (francês) ou vilis (alemão?) e não como o nome do ex-deputado Jean Wyllys, que não foi ameaçado exatamente por virgens.
As Willis tem quase tudo do gótico — claro, os cemitérios também se fazem presentes, no caso, o da Santa Casa em Porto Alegre. Não se preocupem, ninguém dança até morrer, não foi um spoiler, mas, obviamente, o autor baseou-se na história original e faz referências à tradição, apesar de desobedecê-la. Há uma Giselle na trama, há um Alberto apaixonado por ela — no original ele é Albrecht –, e há a Rainha das Willis, que se chama Myrtha em ambas as histórias. Tem também uma bailarina que se chama Margot (Fonteyn?).
Faço este “intermezzo culto” não para me mostrar nem para dizer que Gerbase copiou uma história existente. A história original é ínfima e há muito de invenção nas Willis de Gerbase, que também são virgens que morreram antes do casamento e que podem, sim, matar. E matam facilmente por serem belas e por se alimentarem de suas conquistas através de mecanismos não antropofágicos que não irei explicar por motivos óbvios. Estaria contando parte fundamental da história.
As Willis é um tremendo livro de entretenimento, passado todo em Porto Alegre. Eu me diverti bastante com a boa trama criada sobre a base que expliquei acima, A coisa funciona maravilhosamente. O livro não é sanguinolento, o bom humor perpassa toda a história. Há uma interessante dupla de policiais, uma dupla de irmãs Willis sensacionais e um pastor evangélico que é exatamente aquilo que se espera dele. E, já disse, a coisa funciona.
O livro é uma espécie de tese acadêmica muito livre, escrita por Irina, uma willi. Sabe-se que Gerbase é ou foi professor na PUCRS e que deve ter sofrido horrores com alunos e com o formato insípido das teses (opinião minha). Além de professor, Gerbase dirigiu e fez o roteiro de vários filmes e isto está claro no livro. Como numa boa série, ele consegue envolver o leitor, deixando para o final o desenlace de várias tramas. Eu engoli o livro rapidinho. E curti.
Recomendo!
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Num domingo, 25 de setembro, há 30 anos, vi a Bárbara Jardim Ribeiro pela primeira vez. Era no fim da tarde e fomos ao Parque da Redenção com nosso filho Bernardo, de 3 anos. Lá, a bolsa estourou e acabamos no hospital. Poucos minutos depois, ouvi a indignação dela por ter sido retirada do quentinho. Ela berrava de forma verdadeiramente espetacular. Toda satisfeita, a pediatra me trouxe a bebê. Lembro de ter dito Que fera, enquanto observava aquele serzinho de cabelos lisos e pretos e cara de índia. Depois ela ficou loira e crespa, depois castanha clara e crespa, cor de chá, prova de que 30 anos é muito tempo. Hoje, acho que sempre se desprende um ar feliz da Bárbara e as pessoas adoram me dizer, rindo, que conhecem ela. Como se fosse um privilégio. E é. Eu acho ela maravilhosa. É minha filha.
Devíamos estar ali pelo início de junho. Houvera a enchente de maio e todo mundo estava deprimido, pois ela atingira, direta ou indiretamente a todos. A livraria, claro, estava com poucos clientes e a gente bem desesperado. Aliás, deixa pra lá… Mas a situação de muitos cães era ainda pior. Centenas ou milhares fugiram e estavam perdidos nas ruas.
Numa tarde nublada, por volta das 15h, saí da livraria para olhar o céu e dei de cara com um simpático cão, meio grande e preto. Não era um viralatão bonito, mas havia muita vida e esperteza naquele corpo. Acho que ele teve a sensibilidade de ver que eu fiquei com pena dele. E entrei de volta para a livraria.
Quando fomos fechar, às 19h, o Bruno me chamou. Queria perguntar o que deveria fazer com aquele cachorro na nossa porta. Ele estava em pé, bem sedutor, abanando o rabo pra nós. Bruno perguntou se eu queria ficar com ele. Respondi que temos o exclusivista Vassily Kandinsky, o gato da Elena, que entraria em crise com a companhia. (Ele não suporta outros gatos e eu sou mal e mal aceito).
— OK, então ele é meu.
E o Bruno chamou o cachorro, que o acompanhou até seu apartamento, sem coleira, a umas 6 quadras da livraria. Depois me mandou fotos do cachorro comendo e bebendo água. Ficou muito feliz e passou a chamá-lo pelo nome ultrachique de Besançon.
Viraram uma dupla. Digno de seu nome, Besançon mostrou-se muito educado. Jamais fez xixi em casa, por exemplo. Só que, na ausência do Bruno, pulava a janela do apartamento de primeiro andar e fazia passeios pela marquise. Óbvio que achava que aquilo era uma parte divertida do apê. Afinal, dava para ver as pessoas lá embaixo indo e vindo.
Um dia, o Bruno estava voltando do almoço quando viu um monte de gente na frente de seu prédio. Iam chamar os bombeiros porque um louco tinha deixado um cachorro na marquise. Impossível que o cão sozinho tivesse chegado ali. E o Bruno viu o Besançon todo feliz com o show. Latia e balançava o rabo, totalmente realizado com o sucesso alcançado.
Então o Bruno gritou:
— Já pra casa, Besançon!
O cachorro levou um susto e pulou pelo vãozinho da janela que ele mesmo tinha conseguido abrir com o focinho. Alívio geral.