Stephen Bantu Biko, ou Steve Biko, nasceu em 18 de dezembro de 1946 e morreu em 12 de setembro de 1977, aos 30 anos, após ser preso e torturado. Ativista anti-apartheid da África do Sul na década de 1960 e 1970, Biko não faz somente parte da memória política da África do Sul, mas também da memória da cultura ocidental. O Movimento da Consciência Negra de Biko agregou para si o slogan Black is Beautiful, que nos Estados Unidos destinava-se a dissipar a noção de que as características físicas dos negros — como cor da pele, detalhes do rosto e cabelos — seriam feias. O movimento também incentivava homens e mulheres a pararem de esconder seus traços afros alisando o cabelo, clareando a pele, etc. Porém, na África do Sul, a luta análoga era outra, muito mais básica, e o Black is Beautiful de Biko significava algo como “você tem que olhar para si mesmo como um ser humano e aceitar a si mesmo como você é”.
A música brasileira homenageou o movimento norte-americano através da belíssima canção homônima dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, famosa na versão de Elis Regina.
O roqueiro inglês Peter Gabriel foi mais direto e escreveu Biko, verdadeiro hino cujas primeiras palavras são September ’77 / Port Elizabeth weather fine / It was business as usual / In police room 619.
Mas tais referências culturais são apenas ornamentos para a vida de um grande mobilizador da população negra sul-africana. As muitas organizações fundadas por Biko iam no caminho inverso das lições de inferioridade racial ministradas aos negros por ordem do governo da África do Sul. Ele desejava que os negros tivessem consciência de suas capacidades, que pudessem ocupar cargos destinados apenas aos negros, além do fim da educação limitada, pois muitas disciplinas simplesmente não podiam ser ministradas aos negros do país.
Em 18 de agosto de 1977, Biko foi preso em uma barreira policial e interrogado por oficiais da polícia. Esse interrogatório ocorreu na sala de polícia nº 619 do Edifício Sanlam em Port Elizabeth. O interrogatório durou 22 horas e incluiu tortura e espancamentos, resultando em coma. Ele sofreu graves ferimentos na cabeça e, após as torturas, foi acorrentado às grades de uma janela durante um dia inteiro.
Biko, a grande liderança e mobilizador da população negra.
Dias depois, em 11 de setembro de 1977, a polícia resolveu levá-lo, nu e algemado, para uma prisão com instalações hospitalares, mas ele morreu logo após chegar, em 12 de setembro. A polícia divulgou que sua morte foi resultado de uma prolongada greve de fome, mas a autópsia revelou múltiplas contusões e escoriações. Seu fim deveu-se a uma hemorragia cerebral. O jornalista Donald Woods, editor e amigo de Biko, e Helen Zille, mais tarde líder do partido político da Aliança Democrática, expuseram a verdade sobre sua morte.
A notícia espalhou-se rapidamente. O funeral foi assistido por mais de 10 mil pessoas, incluindo numerosos embaixadores e outros diplomatas da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. O mesmo Donald Woods fotografou seus ferimentos no necrotério. Woods foi mais tarde forçado ao exílio, passando a fazer campanha contra o apartheid na Inglaterra. Também foi autor do livro Biko, mais tarde transformado no filme Cry Freedom, de Richard Attenborough, com Denzel Washington no papel de Biko.
Em 1978, a Justiça sul-africana decidiu que não havia provas suficientes para acusar os oficiais de homicídio. Faltariam testemunhas. E, em outubro de 2003, o Ministério da Justiça Sul-Africano anunciou que os cinco policiais acusados de matar Biko não seriam processados também em razão de insuficiência de provas.
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Biko, fundador e unificador de diversas organizações
Steve Biko nasceu em Ginsberg, bairro de King Williams Town. O nome do bairro é o do dono da fábrica de velas instalada no local no início do século 20. Ginsberg não gostava que seus empregados fossem muito longe quando não estavam na fábrica. Então, conseguiu que a administração municipal mandasse construir em torno dela as primeiras casas do futuro bairro.
Foi em uma dessas casinhas que Steve Biko cresceu. Foi criado pela mãe Alice, cozinheira no hospital vizinho. Inteligente e com grande capacidade de liderança, Biko estudava medicina quando foi expulso da Universidade da Província de Natal, no ano de 1972, em razão de suas atividades políticas. No ano seguinte, foi “banido” pelo governo do apartheid. A punição era incrível: ele não estava autorizado a falar com mais do que uma pessoa de cada vez. Também não podia escrever publicamente ou falar com a imprensa. Esta também foi proibida de citar qualquer coisa que ele dissesse.
Steve Biko tinha grande preocupação com o desenvolvimento de uma consciência negra. Pensava que tal desenvolvimento teria duas fases: a primeira seria de “libertação psicológica” e a segunda de “libertação física”. A bibliografia aprecia fazer a ligação entre Biko e a não-violência de Gandhi e Martin Luther King, mas ele sempre entendeu que a libertação física só se daria fora das realidades políticas do apartheid. Ou seja, havia antes que derrubá-lo. Outro fato que costuma ficar oculto são suas posições políticas. “Racismo e capitalismo são faces da mesma moeda”, dizia.
Cartaz do BPC
Em 1972, Biko foi um dos fundadores da Black Peoples Convention (BPC). Trabalhava em projetos de melhorias sociais nos arredores de Durban. Com o tempo, o BPC acabou por reunir cerca de 70 diferentes grupos de consciência negra e associações como o South African Student’s Movement (SASM), que desempenhou um papel significativo na Revolta de Soweto de 1976, a National Association of Youth Organisations e a Black Workers Project que apoiaram os trabalhadores cujos sindicatos não foram reconhecidos sob o regime do apartheid. Biko foi eleito o primeiro presidente do BPC e, como recompensa, recebeu a citada expulsão da escola médica.
Sobrou-lhe trabalhar em tempo integral para o BCP. Mesmo banido pelo apartheid, Biko ajudou a criar Zimele Trust Fund, fundo de assistência financeira a presos políticos e a suas famílias. Steve Biko era considerado perigoso pela habilidade para organizar a população e porque procurava investir nas comunidades e inspirar a juventude negra do país.
As circunstâncias brutais da morte de Biko tornaram-no um mártir e um símbolo da resistência negra ao regime de apartheid. Logo após seu assassinato, o governo sul-sfricano proibiu que uma série de pessoas falassem — incluindo Donald Woods — e fechou várias organizações, especialmente os grupos da Consciência Negra associados a Biko. O Conselho de Segurança das Nações Unidas respondeu com um embargo de armas contra a África do Sul.
Representando este homem também interessado por artes, educação e desenvolvimento econômico, a família Biko recusou a ideia de construir um mausoléu. Um túmulo grandioso talvez o retirasse da companhia de camaradas enterrados, como ele, em modestos pedaços de terra.
Nelson Mandela disse a respeito de Biko: “Eles tiveram que matá-lo para prolongar a vida do apartheid“.
Não aguento mais ver essa merda de time jogando mal…
É óbvio que nós não fomos ao Equador para jogar bem, fomos especular e um ponto estaria de bom tamanho. Afinal, entramos com três zagueiros (Juan, Réver e Ernando) e três volantes (Freitas, Nilton e Aránguiz). Sobram dois laterais em crise técnica (Leo e Fabrício) e apenas duas esperanças de bom futebol (Alex e Sacha). Ou seja, era para marcar bem e jogar mal e foi o que fizemos, ao menos até a expulsão de Lastra, quando nos tornamos péssimos.
O Emelec achou um gol no primeiro tempo. Digo “achou”, porque tratou-se da única chance dos equatorianos e foi um lance bastante estranho, improvável mesmo. O jogo virou em 1 x 0 para o Emelec. No início do segundo tempo, o Emelec ficou com dez jogadores e o Inter logo empatou o jogo com Vitinho, que entrara no intervalo no lugar de Aránguiz. (Aliás, quando é que o chileno voltará da Copa do Mundo?). O incrível foi que, após o empate, começamos a tomar um baile dos dez remanescentes deles. Não conseguimos em momento nenhum ameaçar o gol de Dreer. Com onze em campo, o negócio era avançar sobre o adversário na base da troca de passes, mas como fazê-lo se não acertamos três passes consecutivos, Aguirre? E os laterais conseguiram o difícil milagre de errarem TODOS os cruzamentos. Acho que gostaram de ver o goleiro Dreer erguer os braços sozinho em sua pequena área para pegar cada um deles.
Uma coisa, Aguirre. Nosso próximo jogo na Libertadores 2015 será só no dia 16 de abril, em Santiago, contra a Universidade do Chile. Até lá, precisamos de um time mais compacto e com melhor toque de bola. É impossível continuar com esse futebol deficiente. Nossa defesa ontem foi novamente muito mal contra um time desfalcado. Não vamos longe desse jeito. Aliás, para bom entendedor, foi o que disseste ontem nas entrevistas pós-jogo. Vamos com os titulares no Gauchão ou seguirás preservando-os? Pensam que eles devam jogar e jogar. Estamos em março, o preparo físico já deve ter chegado e está na hora de eles demonstrarem a que vieram.
Gentileza gera gentileza. Antes do concerto, já num camarote lateral do Theatro São Pedro, fiz questão de abrir lugar na frente para uma pessoa que sentara atrás. Ele disse que não precisava coisa e tal, mas agradeceu e sentou. Ao final do concerto, dei-me conta de que tinha perdido minha caneta. Não é uma caneta valiosa do ponto de vista financeiro, mas fera um presente de meu pai, falecido em 1993. Como já tive recentemente roubado o relógio de bolso (de ouro) Omega de meu avô, de 1923, além de outras coisas que me foram afanadas, estava irritadíssimo com mais esta perda que me deixaria mais longe daquilo que foi minha nada nobre origem (mas minha). Chamando-me de idiota, retornei aos dois camarotes de onde assistira o concerto, vasculhei ambos e, na volta, quando passava novamente pelo saguão do teatro, lá estava a pessoa para qual abrira lugar. Ele estava me procurando com uma caneta na mão. Agradeci muito, mas esqueci de perguntar o nome daquele rapaz de camiseta azul.
O programa do concerto era bastante curioso, parte dele baseado em artes plásticas. Explico abaixo. O programa:
Hector Berlioz – Les Nuits d´eté, op. 7
Sergei Rachmaninoff – A Ilha dos Mortos, op. 29
M. Mussorgsky / M. Ravel – Quadros de Uma Exposição
Regente: Rodolfo Fischer
Solista: Denise de Freitas (mezzo-soprano)
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Les Nuits d’ été (As Noites de Verão), Op. 7, é um ciclo de canções de Hector Berlioz baseado em seis poemas de Théophile Gautier. Há diversos arranjos do próprio Berlioz para as peças. O original era para piano, claro. O título da coleção de música é uma homenagem ao título francês de Sonho de Uma Noite de Verão de Shakespeare. O mezzo-soprano Denise de Freitas tem voz e musicalidade espantosas. É uma baita cantora e foi um enorme prazer ouvi-la, mas seria ainda melhor se Berlioz não fosse o chato que é. As águas profundas e limpas trazidas por Denise não caíram bem na estagnação berliozana.
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Quinta versão de ‘A Ilha dos Mortos’, de Arnold Böcklin (1886)
Em 1906, tentando fugir da agitação política do czarismo agonizante, buscando um local onde pudesse compor com tranquilidade, Rachmaninoff mudou-se com todo o seu tamanho e mãos acromegálicas para a Alemanha. Foi para a bela Dresden. Lá, um editor sugeriu-lhe a composição de um poema sinfônico sobre o quadro A Ilha dos Mortos, de Böcklin (acima). Ele sabia que Rachmaninoff compunha quase sempre inspirando-se em um livro, um poema ou um quadro.
O pintor suíço Arnold Böcklin (1827-1901) teve uma vida marcada por perdas familiares, depressão e pobreza. Como era de se esperar, tantas desgraças criaram uma arte sombria e funérea. Em 1880, em Florença, uma sonhadora viúva encomendou-lhe um quadro que possuísse uma atmosfera de sonho. Então, Böcklin pintou-lhe sua obra mais famosa, a ultra soturna A Ilha dos Mortos.
Rachmaninoff vira uma reprodução do quadro, em preto e branco, no verão de 1907. Quando, no início de 1909, o editor Struve sugeriu-lhe uma composição inspirada em A Ilha dos Mortos, Rachmaninoff logo aceitou, pois aquela imagem o perseguia. Ao saber que uma das versões do quadro encontrava-se em Leipzig, a cem quilômetros de Dresden, ele foi conhecê-la. Mas… “Eu não me senti tocado pela cor da pintura. Se eu tivesse visto o original antes, talvez não tivesse composto A Ilha dos Mortos. Eu prefiro em preto e branco”. O estranho é que Hitler, Lênin, Freud, Dalí e Strindberg também amavam o quadro de Böcklin.
A versão em 50 tons de cinza, como gostava Rachmaninov
A coisa é sombria mesmo. E boa. Para meu gosto é a maior obra de Rachmaninov. Não há nada ali que chegue perto do romantismo melado que o autor tanto praticou. Quem conhece poderá ouvir na música fragmentos do tema gregoriano do Dies irae, que por séculos foi utilizado na Missa de Réquiem. O regente Fischer e a Ospa deram excelente interpretação à fantasmagórica obra, totalmente destituída de felicidade.
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A primeira edição de Quandros de uma Exposição
Quadros de uma Exposição é uma suíte para piano por Modest Mussorgsky. Viktor Hartmann, arquiteto e pintor, grande amigo de Mussorgsky, havia falecido recentemente, aos 39 anos de idade, nos idos de 1873. No ano seguinte, aconteceu uma exposição de seus quadros numa galeria de São Petersburgo. Após visitá-la, o compositor resolveu prestar uma homenagem ao amigo. Escolheu dez dentre os quadros expostos e compôs uma música para cada um deles. Uniu-os através de um tema comum (o “Promenade”). Era o passeio, a caminhada do flâneur de um quadro a outro. (Importante: os quadros de Hartmann foram perdidos). As melodias são mega nacionalistas e o estilo de piano é inovador em sua austeridade sartoriana.
Tudo isso era muito estranho, pois estávamos numa época em que o piano era instrumento de brilho virtuosístico. Deste modo, a suíte foi deixada de lado por um bom tempo. Mas Claude Debussy era admirador de Mussorgsky e estudou bastante esta suíte. E Ravel fez mais e melhor.
No verão de 1922, atendendo a um pedido de Serge Koussevitzky, Ravel orquestrou a peça. E salvou Mussorgsky do limbo eterno. Só que Ravel fez tudo do seu jeito. Com sua incrível habilidade de arranjador, soube extrair intenso colorido da obra, dentro do espírito dos temas.
Para deixar a obra ainda mais célebre, no ano de 1971, o grupo de rock progressivo Emerson, Lake and Palmer, gravou ao vivo uma versão rock da suíte. Mostrei esta versão hoje para a Elena, que ficou muito surpresa…
A interpretação da Ospa teve bons momentos, como os solos de trompete de Elieser Ribeiro. Mas o fraseado e sofisticação de Elieser não foram acompanhados pelo restante da orquestra, que respondiam em estilo bem mais simples. Contrariamente ao Rach, Fischer nos ofereceu uma versão indulgente, opaca e descuidada da obra. Uma música tão vivaz apresentada daquela forma?
O concerto valeu, e muito, pelo Rachmaninov. É incrível que eu diga isso — costumo detestar Rach! –, mas foi o que achei. O resto foi ornamento pobre, só que saí de lá satisfeito com a música e com minha caneta.
Meu amigo Carlos, um paulista que nunca tinha visitado Porto Alegre, veio trabalhar aqui por alguns dias. Foi difícil conciliar nossos horários. Porém, lá por quinta-feira, ele me telefonou para dizer que passaria também o fim-de-semana na cidade e que desejava combinar um encontro em que eu teria de explicar-lhe umas coisinhas sobre a cidade. Marcamos para conversar na sexta-feira à noite, no Bar do Beto lotado, em meio ao maior barulho.
— Milton, me diz porque eu andei por todo o lado desta cidade e não vi o rio. Esta porra é um porto ou não?
— Olha, comecemos do começo, bem do começo. Parece que não somos banhados por um rio e sim por uma lagoa.
— ?!
— Pois é, na minha época de estudante, diziam que o Guaíba era um estuário, que é um tipo de foz mais larga que o normal. Mas agora virou lagoa… É que aqui deságuam vários rios que vão dar na Lagoa dos Patos…
— Não entendi nada, mas me diz porque eu não vi o rio.
— Não o procuraste direito.
— Mas eu andei pelo centro, pelo tal Mercado Público que devia estar na frente do porto e não vi nada.
— É que houve uma enchente em 1941 que inundou o centro da cidade, então construíram um enorme muro para evitar uma nova enchente, só que ela nunca ocorreu e, bem, ficamos com uma muralha que nos impede de ver do rio. Para vê-lo tem que entrar por uns portões. Dá para ver o muro do Mercado Público.
— Acho que vi. Mas como é que foi inundar a cidade se a água vai para uma lagoa que deságua no mar?
— Não sei, talvez os ventos tenham represado as águas por aqui.
— Pode ser. Mas você acha normal que construam um muro bem na frente daquele que seria potencialmente o cartão postal da cidade?
— Não, é totalmente anormal. Temos uma relação difícil com o rio.
— Lagoa.
— Sim, lagoa. Tens que ir mais longe para vê-lo, ou vê-la, desculpe.
— E o porto?
— Fica escondido atrás do muro.
— E por que o estádio Beira-rio tem este nome se fica ao lado de uma lagoa?
— Não sei. Provavelmente por ignorância e porque todo mundo chama o Guaíba de rio.
— E por que a rua principal do centro chama-se Rua da Praia, se não tem praia?
— É que havia antes, mas aí poluíram tanto que hoje só dá para olhar. É “imprópria para banhos”.
— Olhar? Com o muro na frente?
— É, já disse, é difícil de olhar, tem que caminhar um pouco.
— E as pessoas tinham que contornar o muro para tomar banho?
— Antes do muro não, né? Só depois. Mas no final da Rua da Praia não há muro.
— Ah.
— E por que todo mundo chama de Rua da Praia se o nome é Rua dos Andradas?
— Antigamente, há uns 50 anos, era Rua da Praia.
— Mas ninguém diz Andradas?
— Não, ninguém. Sabes que o nome da Av. Beira-rio é Av. Edvaldo Pereira Paiva?
— É?
— E que a Rua da Ladeira chama-se Gen. Câmara?
— Hum… Subi a ladeira. Há boas livrarias ali.
— E que o Estádio Olímpico, do Grêmio, tinha este nome devido aos Jogos Olímpicos de Porto Alegre?
— Que nunca aconteceram!
(risadas)
— E o rio, a lagoa, é bonitinha?
— Sim, muito. Tem um desenho de ilhas bem aqui na frente que é muito interessante.
— Só que não se vê.
— Sim, só se vê o desenho delas do alto de alguns edifícios..
— Vocês são uns neuróticos.
Naquele momento, passou uma morena equipada com um rosto e sorriso lindos. Meu amigo quedou-se mesmerizado.
— De onde saiu esta maravilha, Milton? Me explica isto! Estou estupefato. A beleza doeu fundo em mim. A beleza dói quando é excessiva. É injusto. É injusto para quem apenas vê sem tocá-la.
Ficou alguns segundos em recuperação.
— E as mulheres, como são?
Em 2011, foi feito um painel fotográfico de 45 metros de largura mostrando a vista que as pessoas teriam caso o muro não estivesse lá
Dia desses, tomei uma mijada por escrever posts tão pessoais quanto este. Levei bastante a sério a advertência — em geral, costumo receber bem as críticas — porque vinha de um querido amigo, mas não vou permitir mais autocensura.
No meu blog, eu me coleciono, para o bem e para o mal. Como isso aqui é uma especie de retrato meu, não consigo levá-lo tão a sério. Publico o que me dá na veneta, sendo às vezes muito pessoal. Ou seja, os posts de foro íntimo seguirão. E a vida já está difícil, o gênero confessional já foi a regra deste blog. Os posts em que falava sobre meu umbigo já foram muito mais numerosos e vão continuar aqui e ali. Acho que já convivo com demasiada autocensura. Sabem onde há autocensura? Vou tentar explicar abaixo.
Como um dos editores do Sul21, não me sinto mais com toda aquela liberdade do passado. Não posso tirar sarro de forma escrachada de alguém que vamos entrevistar um dia, por exemplo. Os repórteres reclamariam de mim: Pô, Milton, o cara estava de má vontade por tua causa. Os assuntos políticos também ficaram mais raros, claro, pois há alguns assuntos que evito. Por exemplo, sabem que eu paguei R$ 11.257,00 para a Mônica Leal em 2014, por conta de uma publicação e de um juiz de direita? Isso intimida e gera mais autocensura. Tive de pagar porque era a única forma abrir o inventário de minha mãe. Só não pedi ressarcimento pelo Catarse porque uma amiga me prometeu fazer voltar cada centavo a meu bolso quando vencer outra ação.
Não gostaria de agregar mais autocensura e deixo para meu amigo dois poemas nos quais pensei enquanto escrevia.
Um de Drummond (os primeiros versos de Mundo Grande):
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo, por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
E outro de Chico Buarque (esse uma óbvia vingança por ter sido ameaçado de não poder falar de meu amor por Elena). É o final de Juca::
Juca ficou desapontado
Declarou ao delegado
Não saber se amor é crime
Ou se samba é pecado
Em legítima defesa
Batucou assim na mesa
O delegado é bamba
Na delegacia
Mas nunca fez samba
Nunca viu Maria [leia-se Elena].
Na engenharia, tive um professor que ria assim. Nós, seus alunos, chamavam-no de “risadinha que me f…”
Isso não diminui a notável coleção de erros do PT, porém, se os protestos eram contra a corrupção, por que só vi cartazes contra o PT? E o PP, o PMDB, o PSDB? E o religioso Eduardo Cunha, e Renan Calheiros, presidentes da Câmara e do Senado? E os outros? E, bem, falar em intervenção militar, reclamar de bolivarismo, por favor… Aí já é muita tolice.
Dilma não foi nada inteligente ao ser votada pela esquerda para depois tentar governar com a direita. Desagradou todo mundo que não encara o PT como seu time de futebol. Perdeu seus formadores de opinião e, agora, as ruas.
O resultado é que doravante vamos ter que nos ver com a massa cheirosa. E ainda temos a bancada religiosa no poder. Boa parte deste pessoal de amarelo tem ideias muito primárias e esses evangélicos… Não vou conseguir lhes contar que grande merda de ano será 2015.
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Falei em futebol ali? Pois é. Segunda é dia de futebol neste blog. Como o Gauchão só interessa mesmo na fase final e olhe lá, vamos tratar de um enorme buraco, um rombo recorde.
Meus sete leitores sabem que eu detesto Giovanni Luigi Calvário (seu nome completo) tanto quanto o Roberto Siegmann. Discordo da forma como Luigi pensa, age, fala, caminha, do jeito que ele escova os dentes. Um líder sem ideias tende a cercar-se de outros incompetentes e foi o que ele fez por quatro anos. O organograma parecia uma árvore de incapazes. Quase deixei de pagar a mensalidade do clube quando Luigi se reelegeu sem ir para o pátio. Aquele mês, em mais de duas décadas, foi a única vez em que atrasei o pagamento. Mas pago e, por isso, posso falar.
Daqui alguns dias, Luigi vai entregar o balanço do ano passado. Já se sabe que o déficit será de R$ 49 milhões. Isso só no ano passado. Um resultado verdadeiramente vermelho. O Inter gastava os tubos em contratações, contratos longos e trocas de técnicos, enquanto o futebol era uma verdadeira piada em campo. Tentativa e erro, tentativa e erro, sem uso do cérebro e da observação, sem um projeto.
Claro que isso chegará ao futebol. Os efeitos da administração Luigi durarão anos. Espero que não se tornem nossa Arena.
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O Gauchão segue como se espera. No início de março, com a dupla igualada ao restante dos times no quesito preparo físico, sua qualidade aparece e até o time de reservas do Inter vai a Pelotas e bate o Brasil. É muita diferença, não é um campeonato entre iguais. É Grêmio x Inter, só. Esses regionais…
Há cem anos – em 1914, dia 26 de agosto –, nascia Julio Cortázar. Eu poderia seguir assim por páginas, mas sei que o velho cronópio não tinha paciência com a burocracia, daí que pensei em comemorar a data redonda de um modo não muito redondo, às vezes me deixando levar por digressões entusiasmadas. Mais, como o texto foi escrito faz um certo tempo e retomado várias vezes, contém acréscimos em forma de ps, o que, em minha opinião, deixou tudo mais vivo, ou desleixado se você quiser.
Gabriel García Márquez disse que “Os ídolos infundem respeito, admiração, carinho e grandes invejas, claro. Cortázar inspirava todos esses sentimentos como muito poucos escritores, mas além disso inspirava outro menos frequente: a devoção”. Aí está: devoção. Mas por quê? Que diabos Cortázar tem que desperta devoção em tantos leitores? Eu mesmo, um leitor bastante crítico, até maledicente segundo os maledicentes, continuo devoto. Por quê? O texto a seguir é, entre outras coisas, uma tentativa de resposta a essa perguntinha.
Um tal Julio ou amores literários
“A melhor qualidade de meus antepassados é a de estarem mortos; espero modesta mas orgulhosamente o momento de herdá-la. Tenho amigos que não deixarão de me fazer uma estátua em que me representarão de bruços no ato de chegar a um charco com rãzinhas autênticas. Botando uma moeda numa ranhura, me verão cuspir na água, e as rãzinhas se agitarão alvoroçadas e coaxarão durante um minuto e meio, tempo suficiente para que a estátua perca todo o interesse.”
Julio Cortázar, Rayuela.
Grandes escritores há muitos, mas amados são poucos, não? Faça as contas: quantos você ama? Admiração e simpatia não valem. Falo de amor a sério, tipo Romeu e Julieta, Dante e Beatriz, Jane Calamidade e Wild Bill Hickok, por aí.
Você ama Dostoievski? Ama Flaubert? Certamente há quem ame, como Mario Vargas Llosa a Flaubert e Robert Arlt a Dostoievski, mas você, mas multidões? Eu sou permissivo em matéria de literatura. Demais, quem sabe. Tenho paixões, casos, flertes: Julio Cortázar, Mario Quintana, Jorge Luis Borges, Stendhal, Gogol, Turguenev, Tchecov, Rabelais, Cervantes, Melville, Stevenson, Graham Greene, John le Carré, Georges Simenon, Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Sérgio Faraco, Ivan Lessa, Luis Fernando Verissimo, Rex Stout, Erle Stanley Gardner, Edgar Allan Poe, Dickens, J. D. Salinger, Philip K. Dick, Brian W. Aldiss, Stanislaw Lem, Raymond Chandler, Ross Macdonald, Sófocles, Henry Miller, Campos de Carvalho, Irmãos Grimm, Kafka, T. S. Eliot, Drummond, Rubem Braga, Ítalo Svevo, Anne Tyler – eu poderia continuar por páginas e assim mesmo esquecer alguns. Olha aí, tinha me esquecido de Nabokov, como é que pode?
Se alguém estranhar na mesma lista nomes como Borges e Stout, Melville e Gardner, meus mais sentidos pêsames. Isto aqui não é um concurso de seriedade. Isto é uma festa. Falo de amor ou de puro prazer. Também falo de inquietações, mas vamos deixar para os bustos de bronze a pose de intelectual preocupado com o grave destino deste vale de lágrimas.
Se na hora de subir na arca Noé reclamasse do excesso de bagagem? Se eu pudesse levar apenas um autor? Acho que escolheria Cortázar. Cheio de remorsos eu escolheria Cortázar. Sei que minha escolha será apoiada por muitos com grande algazarra. Com Cortázar sim pode-se falar de multidões. Por quê? Não acho que tudo o que ele escreveu seja divino, maravilhoso, pelo contrário, mas continuo fiel, mesmo com Borges tomando a dianteira todo santo dia, mesmo que hoje eu mal suporte algumas coisas que me encantaram na adolescência, como certa partes de Los premios, por exemplo. Isso apenas complica a pergunta, não?
Tenho uns palpites. Quer dizer, eu pensava que tinha, porque há meses tento escrever estas notas e em poucas frases acabo enrolado nos meus próprios argumentos. Quando consigo ser legível, não passo disso – falta cor e brilho ao meu texto. O pobre parece um anúncio de néon desligado: informa mas e daí? O mais sensato seria desistir, só que aí me sinto injusto: Cortázar faz parte da minha biografia, não posso, não devo nem quero silenciar.
O jeito talvez seja ir lembrando algumas leituras.
Primeiro Round
Foi amor à primeira leitura. Uma colega de aula, a jornalista Heloísa Golbspan, me emprestou Los premios. Que susto! Então era possível escrever assim? Adolescente sem a mínima graça, ainda não tinha metido na cabeça ser humorista, mas era freguês de caderno (H) de Mario Quintana e fazia plantão na banca de jornal, toda semana, à espera do Pasquim. O diabo é que agora encontrava o humor e a irreverência num romance. Eu não era um ignorante total, conhecia Oscar Wilde, Mark Twain, o Machado de Assis de O alienista e o García Márquez de Cem anos de solidão, mas faltava a eles alguma coisa. Por mais que eu me divertisse, por mais que eu me encantasse, não poderia dizer: estão falando comigo, diretamente comigo, como a um camarada ali no bar da esquina – sem solenidade, sem impostura. Se você não é sensível a isso, sinto muito, meu nego, mas nunca me convide pra um chope.
Fiquei louco com a intimidade que sentia com os personagens. Mal tinha começado o livro, me vi sentado com Lopez no London bebendo uma Quilmes Cristal não muito gelada. Era isso. Até a temperatura da cerveja era real. Como esse tal Cortázar conseguia isso? Como conseguia que eu aceitasse tão prontamente o seu jogo? Por que eu me sentia participante desse jogo? Por que logo eu me esquecia de que era um jogo?
Na certa o humor influi. Não uma série de tiradas, de gracinhas, que podem perturbar, mas um jeitinho, o astral de algo que está como quem não quer nada entre as palavras e vai se infiltrando em nosso sangue e logo rola manso em nossas veias como os primeiros goles de um bom tinto. Isso modifica nossa disposição para com a – suspiro – vida. Não é que a gente se torne indulgente, é que há uma espécie de desdramatização, ou a supressão daquele ar de peste que liquida com tantas ficções, porque Los premios tem muitos momentos dramáticos. Cortázar anota ridículos e infâmias dos seus personagens sem tremer a mão, mas há, sei lá, compaixão e ternura – ele nos diz as piores coisas sobre nós mesmos sem que haja aí uma ânsia de extermínio da humanidade.
Outra coisa: o mimetismo. Parece uma besteira, mas só quem tentou sabe como é difícil. Cortázar se cola nos personagens: o que está escrito é o que eles pensam, sentem e veem. Mais: o texto não nos informa sobre uma ação, tenta ser essa ação – isso nos puxa para dentro do livro. O autor é um intermediário invisível entre o que é dito e nós, leitores.
Releio os dois últimos parágrafos com cansaço. Explicam um pouco, mas não o que importa, o estado de graça efervescente em que o livro me deixou. Cortázar uma vez disse: “Essa biblioteca me deu milhares e milhares de horas de felicidade. Quando escrevo sou feliz e penso que posso dar um pouco de felicidade aos leitores. E quando digo felicidade não estou dizendo felicidade beata: pode ser exaltação, amor, raiva, digamos: potenciação”.
Estamos ficando quentes. Você, não sei, mas eu realmente me senti feliz, o que acabou sendo um problema. Depois de provar o gostinho da felicidade, a maioria dos autores se tornou muito chata, muito mais chata do que já me parecia. Na certa isso acontece com outras pessoas em relação a outros escritores e na certa, como eu, sentem que tiveram uma sorte danada, que de algum modo foram salvas. Salvas, entende-se, de passar o resto da vida à procura da ponta do próprio nariz.
Foto: Alberto Jonquieres
PS: Outro dado nada desprezível: Cortázar procurava evitar os truques sempre, ou criava novos. É preciso muita cancha ou muitas releituras para se saber como foi que ele escreveu, principalmente os contos. Mas alguns desses contos me resistem até hoje. Parece que sempre existiram, como pedras, árvores, rios. Parece que apenas usaram Cortázar para se revelar. Eu ao menos não consigo pensar no mundo sem “La casa tomada”, “Después del almuerzo”, “Circe” ou “Las fases de Severo”. O próprio Cortázar repetia não ter mérito pelos contos, não ser responsável por eles, que era o primeiro a se surpreender com o que saía da máquina.
PS2: Pensando em contos como “Las fases de Severo”, “Circe”, “Después del almuerzo”, “Cefalea”, “Las puertas del cielo”, “Cartas a mamá”, “El perseguidor”, “Los venenos”, “La puerta condenada”, “Las Ménades”, “Final de juego”, “Intrucciones para John Howeell, “Todos los fuegos el fuego”, “El otro cielo”, “Los pasos en las huellas”, “Manuscrito hallado en un bolsillo”, “Verano”, “La noche de Mantequilla”, “Tango de vuelta”, “Fin de etapa”, “Satarsa”, “La escuela de noche”, “Pesadillas”, “Silvia”, “Siestas” e “Ciao, Verona” me pergunto: Cortázar é mesmo um autor só pra adolescentes? Deve ser. Tenho visto muitos adolescentes com quarenta ou cinquenta anos ou mais. Na verdade, tenho visto até alguns vovôs ainda em plena adolescência.
Outra coisa: muitos críticos dizem que lá pelas tantas Cortázar começou a se repetir, que contos como “Noche boca arriba” e “Todos los fuegos el fuego” ou “La puerta condenada” e “Cartas de mamá” são a mesma história contada do mesmo jeito. Nos primeiros, a mistura de tempos e lugares distantes. Nos outros dois, o horror despontando no final de uma situação cotidiana. Sim, e daí? São os mesmos problemas vividos por pessoas diferentes, daí o clima e as emoções serem outros. O próprio ritmo, que é fundamental em Cortázar, uma espécie de dança em que mete o leitor, também é diferente. Mas mesmo que nem clima, emoções e ritmo fossem diferentes, por que todo esse nariz torcido? Qual escritor não se repete? A rigor, pra não se repetir, o cara tem que escrever apenas um livro. Ninguém troca suas obsessões como quem troca de camisa ou cueca. Sem falar que, se vamos ver direito, temos uma tendência a usar camisas e cuecas do mesmo tipo.
PS3: Muitos meses depois, mas com Cortázar me acontece isso, retomo a conversa como se não houvesse interrupção nenhuma. Em Conversaciones con Cortázar, de Ernesto González Bermejo (Edhasa, 1978), há um trecho revelador:
Bermejo: “Las fases de Severo” talvez seja o conto mais inquietante de Octaedro, e o mais desconcertante”.
Cortázar: “Inquieta a mim mesmo. É como aquele continho de Bestiário, ‘La casa tomada’. Um dia me perguntei por que entre todos os meus contos esse inquieta muito mais do que os outros e agora acho que tenho a explicação: esse conto é a escrita exata de um pesadelo que tive.
“Sonhei o conto – com a diferença de que não havia ali esse casal de irmãos; eu estava sozinho –, o típico pesadelo onde você começa a ter medo de algo inominável, que nunca chega a saber o que é porque o terror é tão grande que você acorda antes da revelação.
“Nesse caso se tratava de uns ruídos confusos que me obrigavam a me atirar contra as portas, a fechá-las e a ir retrocedendo enquanto os ruídos continuavam avançando e algo tomava a casa.
“É curioso como lembro: era pleno verão em minha casa de Villa del Parque, em Buenos Aires; acordei banhado em suor, desesperado, frente a essa coisa abominável, e fui diretamente para a máquina e em três horas o conto estava escrito. É a passagem direta do sonho para a escrita.
“E então acho que o interesse que as pessoas têm por esse conto tem que ver não apenas com o prazer literário que possa lhe produzir, mas com algo que toca suas próprias experiências profundas. O que dizíamos de Jung e o inconsciente coletivo.
“‘Las fases de Severo’ nasceu de uma espécie de alucinação visual. Um dia eu estava lendo ou escutando música – não lembro bem – e num certo momento me apareceu mentalmente um rosto humano totalmente coberto de mariposas, de traças.
“Me produziu uma sensação de horror aquele rosto prateado, móvel, recoberto de milhares de animais, como certas máscaras astecas ou equatorianas.
“Foi tudo o que vi e, de repente, senti que o conto estava aí, que isso fazia parte de uma série de rituais. Mas isso não bastava para fazer um conto. Severo é uma espécie de profeta, de xamã que naquele clima de velório – onde parece que o estão velando – prediz os destinos, anuncia a ordem em que os presentes vão morrer. É uma coisa inventada no momento em que vi todo o conto, porque se me limitasse a descrever as fases, isso não teria sido um conto”.
É isso, me parece: somos presas do fascínio da literatura de Cortázar porque ela lida com nossas experiências mais profundas, porque essas experiências passam direto, ou quase, do sonho para o papel. A carga de emoção é avassaladora. Só depois, só muito depois, a razão ensaia alguma reação. Eu ao menos leio Cortázar como uma criança ouvindo contos de fadas, ou o botocudo ouvindo os mitos da tribo.
Parece um dado menor, mas não é, não: se apenas descrevesse as fases, não haveria conto. Se apenas descrevesse as fases, teríamos jornalismo. Sentimos as fases se formando sob nossos olhos – há a surpresa, o mistério do instante. Sentimos intimamente que o próprio Cortázar não sabia aonde aquilo ia dar nem o que exatamente significava. Ele pressentiu alguma coisa e está atrás, tocando de ouvido.
Segundo Round
Para rebater Los premios, a Heloísa – gracias, Helô – me emprestou Final de juego. Em seguida fui correndo comprar Bestiario. Desde o começo os contos de Cortázar me deram a impressão de alguém que acorda com uma aranha andando pela cara e que tenta se livrar dela com um tapa, imagem usada pelo autor em algum lugar. Sinto em cada linha a tensão, o desespero do gesto – o gesto é quase sempre inútil para o personagem, mas o personagem não renuncia a ele, nem se lamenta. Romantismo? Talvez também se possa chamar isso de saúde.
A gente sabe que cada conto (ou pelo menos os melhores) era uma aranha que Cortázar tirava de cima de si mesmo. Ao contrário de muitos, não morria abraçado com a aranha. Porque, se uma literatura cheia de aranhas não me leva a um exorcismo qualquer, nem parece admitir que essas aranhas tenham um avesso ou nem deem um segundo de folga, me sinto num jogo de cartas marcadas. Sou prisioneiro e o autor, uma espécie de carrasco. Deve-se notar que o carrasco também é um prisioneiro: ao escrever, o autor vive a aventura que eu, leitor, vivo em seguida. No fundo o carrasco é mais prisioneiro, porque o autor não conseguiu deixar de escrever, não teve opção, enquanto que eu posso muito bem ler umas linhas e atirar o livro pela janela e escolher outro.
Pra mim a leitura de um bom conto de Cortázar sempre foi a revelação da aranha sobre meu rosto com o consequente tapa. O tapa é que faz a diferença. Cortázar uma vez disse que, se não tivesse escrito Rayuela, talvez tivesse se atirado no Sena. Em Rayuela Horácio Oliveira enfrenta o diabo a quatro e no fim se mata, ou enlouquece, ou afunda na mediocridade, ou espera pacientemente recuperar o fôlego antes de tentar de novo. Seja qual for o final preferido pelo leitor, Oliveira se dá mal. Mas Cortázar se salvou através dele e nós, leitores, de uma certa forma também. Não afundamos num maelström de aranhas.
Mas houve mais, houve a invenção, houve o senso lúdico e não fui capaz de passar o fio de uma navalha entre eles. Claro que eu acho que deve ter de tudo um pouco, mas Cortázar me converteu à invenção para sempre. Acho que a realidade é um bicho muito arisco. Não se deixa nem apontar com o dedo, muito menos pegar. É preciso grande astúcia e paciência para surpreendê-lo um instante antes que fuja de novo. Parece que quanto mais a gente o persegue, mais o danado do bicho escapa e mais zomba de nós. A invenção, por aparentar fazer pouco caso do bicho, por aparentar estar se afastando dele, acaba burlando suas defesas, sem falar no que existiu em nós mesmos trabalhando a seu favor. É, se você inventa e é fiel à invenção, à sua lógica interna, suas opiniões sobre a Vida, sobre a Existência, sobre tantas coisas que se diz em maiúscula, têm menos chances de interferir e estragar a festa. Quando se inventa, o inconsciente, esse outro bicho arisco, acaba mostrando o focinho ou deixando a ponta do rabo de fora.
Depois, a invenção quase sempre é mais plástica. O que um jornalista poderia nos dar sobre um homem botando um blusão? Se for inteligente, é capaz de intuir algumas coisas sobre o homem, mas acho duvidoso ainda que essa reportagem, no caso de ultrapassar a mera correção, consiga chegar à beleza. Cortázar nos deu “No se culpe a nadie”, em Final de juego, conto que é um verdadeiro bailado de suspense e terror.
Mas veja, Cortázar não transformou uma situação cotidiana numa aventura mortal. Ele arrancou dela uma aventura mortal. Ele descobriu nela a aventura que estava latente – porque, estamos cansados de saber, não se inventa a partir do nada. Quem não lembra de se embaraçar com um blusão quando era criança? Aquela sensação de ficar meio amarrado, meio sufocado. O conto é essa sensação levada ao limite. Se Cortázar fosse realista, se dissesse que a gente sentiu isso, a coisa morria aí mesmo, podia ser um parágrafo não muito interessante numa outra história. Não. Ele nos faz reviver a sensação. O conto deu forma à sensação, como nos sonhos. A razão, as palavras vêm depois. Mas você pode muito bem passar sem elas. Algo em você, algo no fundo do seu sangue, já entendeu, já foi tocado. Ítalo Calvino, ao comentar esse conto, disse que se sentia surrado, fisicamente. Acho muito boa essa observação, não sei se porque senti a mesma coisa. A melhor parte do “sentido” desse conto é essa surra. Difícil explicar isso pra profe botar na ficha de leitura. Fica mais fácil a gente cavar com a pá da psicanálise ou encolher os ombros: ah, os fundos falsos da realidade.
Outro detalhe, talvez ligado a isso: os melhores contos de Cortázar me deixam a sensação de serem objetos, coisas entalhadas. Simenon é que dizia que escrevia assim, como um artesão trabalhando um pedaço de madeira. Cortázar tem um pequeno texto em que mostra como se veste uma sombra. Texto poético, erótico, mas podia muito bem ser uma metáfora da escrita, não? Com as palavras e o tato certos você pode vestir uma sombra mal entrevista entre outras. Se você a vestir direitinho, ela pode parecer sólida e tridimensional.
Quanto ao senso lúdico, nem sei por onde começar. Sabe-se, uma criança que não brinca é uma criança doente. O brinquedo é um espaço que a criança abre na realidade para instalar a própria realidade num modelo mais flexível e aí poder explorá-la, aí poder se expor. Mas e nós, marmanjos? Se alguns brinquedos já caducaram para nós, outros nos aguardam, basta termos preservadas essa disposição infantil de explorador e a capacidade de encarar a realidade não como um bloco de granito mas como uma massa de modelar.
A literatura é como o brinquedo, ou é um brinquedo, a criação de um território onde a gente ensaia outros gestos, onde busca um sentido. Mas Cortázar me pegou na hora em que o vi levando o brinquedo para dentro do brinquedo. Isso dobra as possibilidades de prazer de um livro e dobra a liberdade de movimentos do escritor, coisas que vão repercutir no leitor, se é que dois mais dois é quatro.
Terceiro Round
Não li, tomei um porre de Rayuela. Por vinte anos eu o esperava sem saber que o esperava e sem saber que preparava meu fígado apenas para ele. Foi de uma violência e de uma maravilha difícil de explicar e mais difícil ainda de engolir. Levei quase outros vinte anos e outros dez ou quinze autores para fazer um quatro razoavelmente equilibrado. Reli mais outros livros, sim, mas uma coisa é certa: tudo o que me aconteceu depois em literatura foi para me defender de Rayuela. A defesa começou a ficar interessante na hora em que passei a usar contra Rayuela as armas que a própria Rayuela me deu.
Já se disse que é um livro que agrada aos jovens. Só pode. Trata-se de uma busca – e uma busca nada sóbria. Cada página se levanta como um galo de briga contra tudo quanto é certeza, contra o que um crítico e Cortázar chamaram de status quo literário. Como eles, acho que é uma crítica imperfeita, quer dizer, o galo apanha em muitos momentos, mas veja a sangueira e o andar trôpego do vencedor. O mero sucesso de Rayuela é um sinal claro de que há algo de podre no reino das belas letras, detalhe que jamais entrará na cabeça dos Josué Montello ou Nélida Piñon desta vida, ou daquela gente que caiu de quatro com os malabarismos técnicos de Cortázar e pensa que isso é o melhor Cortázar, que isso é Cortázar.
Mas antes da crítica, muito antes na verdade, o que me encantou na época e continua me encantando agora é a atmosfera, o uso da linguagem (a luta contra os lugares-comuns, incluindo ainda os narrativos e psicológicos) e a fluência espantosa de Cortázar. Num mundo ideal, nenhum escritor seria considerado como tal se não fosse fluente, porém, contudo, todavia, as coisas sendo como são, vemos as livrarias cheias de autores que precisam de papel pautado pra escrever e deixam à mostra a bengala que usam entre uma palavra e outra. Notei, sem estranhar, que vários autores que insistem que Cortázar é um autor pra adolescentes, que eles mesmos se deslumbraram na adolescência e depois caíram si, quando ficaram adultos, fazem parte dessa turma da bengala e do papel pautado. Eles podiam se conformar com a mediocridade de um modo mais digno, me parece.
Não custava nada a Cortázar pegar Rayuela e fazer cortes, amarrar pontas, preencher vazios. Provavelmente teríamos um livro perfeito, mais um livro perfeito, mas não teríamos Rayuela. Cortázar se propõe uma espécie de esponja monstruosa que tenta absorver tudo, mesmo o que não pode ou não deve. Temos o romance e sua cozinha, o serviço sujo, confundindo assim um pouco leitura e escrita, o que exige maior participação do leitor, o que o torna quase um cúmplice, como virou moda dizer. Nas palavras de Cortázar, ou do personagem Morelli, Rayuela é o romance em gestação, autor e leitor vivendo-o juntos, no mesmo instante.
Isso tudo parece ligado ao improviso, que Cortázar amava no jazz e tentou transplantar para o papel. Mas não se pense que para Cortázar improviso era encher páginas de qualquer coisa que lhe passava pela cabeça e deixar por isso mesmo. O poder de associação e o senso de ritmo do homem são miraculosos, e treinados uma vida inteira. Logo nas primeiras palavras, nos grandes momentos, o texto acerta o passo, entra numa cadência e segue, nos levando juntos. Cortázar disse através de Morelli que “escrevo dentro desse ritmo, escrevo por ele, movido por ele e não por isso que chamam de pensamento e que faz a prosa, literária ou não (…). Esse balanço, esse swing em que a matéria confusa vai se formando, é para mim a única certeza de sua necessidade, porque apenas cessa compreendo que já não tenho nada que dizer. E é também a única recompensa de meu trabalho: sentir que o que escrevi é como as costas de um gato sob a carícia, com faíscas e um arquear-se cadenciado”.
Para isso é preciso uma entrega e uma vigilância totais. Qualquer interferência, qualquer cochilo, pronto, perde-se o fio das associações, perde-se o pulso do ritmo. Depois ainda tem que Cortázar revisava de forma implacável os seus textos – como disse Borges, nele cada palavra foi escolhida. Quer dizer, aquele ar de desleixo é apenas isso, ar. Como Juan, o herói de 62, Cortázar gostava de contar as coisas com uma espécie de desorganização artística, o que ajuda a disfarçar o esqueleto que sustenta a narrativa.
Por falar em ritmo, Cortázar era fanático por música. Inúmeras vezes disse que era um músico frustrado, que teria sido mais feliz na música do que na literatura. Pois é. Mas lendo-o, eu me pergunto: se ele não era, quem é músico, então?!
Cortázar é sempre movimentado, não tem nada de canção de ninar. Lemos longos trechos, onde não acontece grande coisa, de modo inflamado, como criança acompanhando o mocinho a toda no seu cavalo alazão, dando vinte tiros com seu revólver de seis. Isso é importante na medida em que muitos romances atulhados do que se chama ação se mostram intragáveis como ofícios burocráticos.
Rayuela ainda me deu o modo como Horácio Oliveira lida com as palavras, como já falei de passagem. Lembro direitinho de quando lia a cena final do primeiro capítulo, Oliveira às voltas com o cubo de açúcar no restaurante. O cubo caiu no chão e rolou, em vez de ficar parado “por razões paralelepípedas óbvias”. Não ri – não ri de pura surpresa. Eu acabava de descobrir um negócio chamado linguagem.
Foi uma sarna. Quanto mais eu me coçava, mais vontade tinha de me coçar. De tanto me coçar, com os anos comecei a achar que em grande parte do que escreveu Cortázar não se livrou das palavras: o fato de viver falando na traição delas, de surrá-las em público não demonstra como estavam ligados? Há momentos em que ele não nos deixa esquecê-las. Claro que as palavras são um prato cheio para o humor, mas não sei se não preferia um Cortázar menos luxuoso, menos exuberante às vezes. Balanço entre o autor que aponta para as palavras e o que as deseja invisíveis, como se fosse possível o leitor nem se dar conta de que lê.
Hoje, quando releio algum trecho de Rayuela, me dou conta de que continuo amando várias cenas, mas vejo com tristeza que outras parecem ter se esgotado. Quanto aos contos, bem, os que eu gostava mais são justo os que gosto cada vez mais. Talvez porque agora os compreenda melhor, porque agora sei das manhas e mesmo assim eles resistem.
Quarto Round
A lua de mel continuou febril: Todos los fuegos el fuego, Las armas secretas, Historias de cronópios y de famas, La vuelta al día en ochenta mundos, Último round, 62 – Modelo para armar e Octaedro. Eu não era mais um leitor, era um crente. Esses livros me pareciam e me parecem mais interessantes do que outros mais bem acabados, ou profundos. Talvez eu aceite suas fraquezas porque, além do charme avassalador, Cortázar se arrisca sempre, não engorda sobre território conquistado. A literatura de Cortázar é de combate permanente, linha a linha, muitas vezes contra si mesma e contra a literatura em geral, talvez sem razão às vezes, mas e daí? Essa atitude de busca, de invenção contra a rotina, de luta mesmo quando a sabe perdida de saída, me toca e então torço, me orgulho e agradeço. Quero ser assim quando crescer. Como se vê, com Cortázar – como com todos os que realmente valem a pena – não se trata apenas de literatura, mas de visão de mundo, de postura frente a essa baderna que chamam de realidade.
Aí vieram os anos de cão.
Estava tentado a deixar pra lá, não por covardia e sim por cansaço de ver que nas discussões em que entram a política e a religião as pessoas ouvem apenas o que querem muito mais do que nas outras. Mas é aquilo, se a gente cala… Como Cortázar é um autor cheio de babados formais, manadas de oligofrênicos evadidos das faculdades de Letras, na calada da noite, cometeram todo tipo de atentado ao pudor. A política naturalmente atraiu novas manadas, pitorescas como as outras, mas bem mais sinistras.
Eu poderia citar uma porção de ataques a Cortázar, ataques que vão da canalhice ao absurdo, sem faltarem os chiliques do mais deslavado nacionalismo. Seria divertido e instrutivo, só que agora me interessam principalmente duas coisas, a literatura e o militante Cortázar. Como minhas informações sobre o militante não são muito profundas, fico num ponto que me parece chave, abrindo aspas para um pequeno texto de Cortázar que saiu em Último round, chamado “No te dejes”:
“É óbvio que tratarão de comprar todo poeta ou narrador de ideologia socialista cuja literatura influa no panorama de seu tempo; não é menos óbvio que do escritor, e só dele, dependerá que isso não aconteça.
“Em troca, será mais difícil e penoso para ele evitar que seus correligionários e leitores (nem sempre uns são os outros) o submetam a toda gama de extorsões sentimentais e políticas para forçá-lo amavelmente a se meter cada vez mais nas formas públicas e espetaculares do ‘compromisso’. Chegará um dia em que, mais do que livros, lhe reclamarão discursos, conferências, assinaturas, cartas abertas, polêmicas, idas a congressos, política.
“E assim esse justo, delicado equilíbrio que permite seguir criando uma obra com ar nas asas, sem se transformar num monstro sagrado, o prócer que exibem nas feiras da história cotidiana, se torna o combate mais duro que o poeta ou narrador terá de livrar para que seu compromisso continue se cumprindo ali onde tem sua razão de ser, ali onde brota sua folhagem.
“Amarga e necessária moral: Não se deixe comprar, garoto, mas tampouco vender”.
É, Cortázar não se deixou comprar, quando isso seria facílimo, mas – amarga e necessária observação – se deixou vender. Esteve em todas as feiras, com artigos, discursos, conferências, polêmicas. Até arriscou a pele algumas vezes em territórios quentes. Apoiou Fidel Castro sem reservas. Pôs toda a sua fama a serviço da publicidade cubana, depois nicaraguense. Segundo Saúl Yurkiévich, no suplemento de El País, “nunca deixou de ser escritor. Mas nos últimos anos escrever implicava literalmente se esconder do mundo, necessitando uma energia e uma vontade enormes que nem sempre encontrava. Dava escapadas, se refugiava em ilhas”. Agora, Cortázar não apenas entrou na roda-viva política, como passou a depreciar muito do que tinha escrito, dizendo por exemplo que os primeiros livros não problematizavam nada além da própria literatura, enfim, que eram livros do tempo da arte pela arte.
Sempre vi a expressão arte pela arte usada de modo pejorativo. Por quê? Se arte, para ser arte mesmo, precisa ir fundo no homem, jamais será uma coisa gratuita, feita de nada em pleno ar para admiradores de nada que vivem no ar. Um poema de amor é engajado, me parece, já que até o último mendigo ou o mais feroz revolucionário tem seus probleminhas amorosos. Se você acha que assuntos como a fome e a tortura têm primazia, escreva você mesmo. Para outros pode ser a solidão, a alegria, o sexo, o sonho, o brinquedo, sei lá. Mais: não se anda atrás dos temas, os temas é que vêm até a gente. Não é possível controlar o processo criativo na base da força de vontade, ou é, mas o resultado não vale um dólar furado. Limitar os temas que devem ser abordados, ou limitar os ângulos de abordagem desses temas, é o que foi dito: limitar. Qualquer pessoa, por mais imbecil que seja, é um bicho muito complexo para caber nos esquemas de crentes de qualquer espécie. Arte pela arte pode ser uma legenda pejorativa para gente que pensa que a arte é um adorno, um mero enfeite, ou deseja que ela funcione como um decreto governamental ou uma forma de assistência do tipo Exército da Salvação. Mas pode também ser a determinação do artista em ser fiel à arte, ao que a arte supõe de compromisso, quer dizer, ser profunda, tentar pegar o homem inteiro, da fome ao sonho mais delirante, não ser apenas um manual de sociologia ou economia, ou uma campanha publicitária de determinada causa, por mais justa que a causa possa ser.
Foto: fysm-149.wp.trincoll.edu
Me perdoem o discurso, mas é que me tira do sério ver gente dizendo que o melhor de Cortázar está em Alguien que anda por ahí e Queremos tanto a Glenda (publicado aqui como Orientação dos Gatos). Penso que é exatamente o contrário. O pior da ficção de Cortázar está nesses livros. Em Queremos tanto a Glenda há uns bons contos, mas falta o brilho, aquela força que arrasta tudo pela frente. Bons contos? Talvez contos corretos, com uma exceção, uma senhora exceção: “Tango de vuelta”. Com uma história mínima, e sem esforço aparente, Cortázar dá um baile em muito joyceano de plantão em matéria de como se escreve um monólogo. Por falar nisso, as oficinas de literatura deviam dar cursos sobre a técnica de monólogo de Cortázar. Coisa simples, de uns cinco anos, três vezes por semana.
Essa falta de brilho tinha sido pior em Alguien que anda por ahí, também com uma exceção, o último conto, “La noche de Mantequilla”, onde temos a implacável descrição da execução de um militante pelos próprios companheiros durante uma luta de boxe, espécie de reedição melhorada de “Los amigos”, de Final de juego. Acho que se pode falar de outra exceção ainda: “Las caras de la medalla”. Um conto de amor angustiante, muito discreto e estranho dentro da obra de Cortázar, que só pode ser compreendido inteiramente ao se ler “Ciao, Verona” (um belo conto, por sinal), que foi publicado postumamente em Papeles inesperados. No conto “Alguién que anda por ahí” Cortázar dá um show de carpintaria literária, mas isso basta? Um bom conto não é algo mais do que um texto impecável? Em “Apocalipsis de Solentiname” Cortázar parte para a denúncia política. Muito bem, este Cortázar pode ser uma pessoa melhor do que a que escreveu “La casa tomada”, o mais famoso conto dos tempos da “arte pela arte”, agora, cá pra nós, como escritor é um arremedo desse Cortázar anterior.
Veja, “La casa tomada” vai mais fundo do que a denúncia de “Apocalipsis” porque “Apocalipsis” se esgota na comprovação da denúncia, quando sobre “La casa” você pode escrever um tratado. “Apocalipsis” só permite uma leitura. “La casa” quase tantas quantas forem seus leitores. Para se ter uma ideia, houve quem viu nela “a angustiosa sensação de invasão que o ‘cabecita negra’ (o povão peronista) provoca na classe média”. Não é uma piada minha, não, para reforçar meus argumentos – embora eu goste de humor grotesco –, nem uma tentativa de fazer um conto mais fantástico do que os que Cortázar produziu. Isso foi dito por um tal Juan José Sabreli em Buenos Aires – Vida cotidiana y alienación.
Foto: federasur.org_.br
Um texto que permite uma única leitura é um texto raso, mecânico, numa palavra: morto. A maleabilidade de “La casa tomada” – como a palavra do profeta, é tudo para todos, como diria Borges, que Alá o proteja para sempre – aproxima o conto da própria realidade, do que ela tem de inquietante e misterioso, de ambíguo. Isso é vivo – e nada que é vivo é inofensivo, nada que é vivo nos deixa indiferentes. Através do pesadelo dos irmãos de “La casa tomada” sei mais sobre as pessoas, sobre o que há de sombra nelas, o que me deixa mais armado para compreender o que há de sombra em mim mesmo. Com “Apocalipsis” eu não tenho nada além da informação que eu teria em qualquer página de jornal.
Penso que Cortázar só acertou o passo entre sua vocação de contista fantástico com seu interesse pela política, alcançando a velha e mortal eficácia dos melhores momentos, no último livro de contos, Deshoras, com “Pesadelos”, “Satarsa” e “La escuela de noche”. Aqui a gente até agradece seu interesse pela política, porque isso ampliou o território de sua literatura, ou quem sabe do conto fantástico, que em termos de política quase nunca ultrapassou a sátira, não? Aqui a gente sente assombro por um talento que sobreviveu a uma máquina de moer carne que trabalhou incessantemente por mais de duas décadas.
PS: Quando reclamaram de sua militância política, invocando os altos destinos da literatura, já que a relegara a um segundo plano, ele disse que pouco ligava pros altos destinos da literatura, que pra ele uma ação ética valia qualquer livro que pudesse escrever. Pode parecer um peitaço da vaidade, não? Uma bela enrustida, não? Mas ele publicou Libro de Manuel sabendo que, literariamente, o livro deixava a desejar, mesmo que tenha inúmeras páginas de dar água na boca. Publicou por motivos pedagógicos — note-se, em benefício da esquerda, não da direita, e nenhuma delas parece ter entendido patavina, a julgar pelas resenhas. E não ganhou um tostão com ele. A grana foi toda pra oposição a Pinochet. Entre parênteses: admiro essa banana a uma carreira literária, mas sou egoísta, preferiria mais livros de Cortázar. O que ele escrevia, só ele escrevia. Já sua contribuição política, em termos práticos, foi mínima e poderia ser dada por quase qualquer pessoa. Mas ele tinha esperanças e era um bom sujeito, ao contrário de mim.
Quinto Round
Em algum ponto de Rayuela se discute o momento certo de parar. Fala-se de Armstrong e Picasso.
“Agora os dois estão feito uns porcos. Pensar que os médicos inventam curas de rejuvenescimento… Vão continuar nos fodendo outros vinte anos, vai ver.
“– Nós não – disse Etienne. – Nós já demos um tiro neles no momento certo, e tomara que me acertem quando chegar minha hora.
“– A hora certa. Não pede nada, cara – disse Oliveira, bocejando. – Mas é isso, já demos o tiro de misericórdia neles. Com uma rosa em vez de uma bala, digamos. O que continua é costume e papel carbono (…).”
Com Alguien que anda por ahí e Queremos tanto a Glenda me senti traído: Cortázar estava na fase papel carbono e não tinha se dado conta. Não é fácil, como nota Oliveira, mas eu estava mal acostumado com tanta lucidez e ironia. Levei um bom tempo para digerir o sapo.
A notícia da morte de Cortázar me pegou como a notícia da morte de um tio distante. Morria o Cortázar de Alguien que anda por ahí, não o das Armas secretas, digamos. É horrível dizer, mas esse morto não me fazia muita falta. Tempos depois li Un tal Lucas, um bom livro, me parece, mas meio rarefeito, meio como se tivesse sido escrito por um discípulo aplicado de Cortázar. O próximo, Deshoras, veio realmente fora de hora. Na época, não consegui o original e a tradução brasileira tardou mais do que devia. Deshoras fechou minha boca. Cortázar não estava velho, não estava acabado coisa nenhuma. Apenas tinha estado fora de órbita uns tempos. Mas continuo achando que devia ter posto no lixo os maus contos, tenho a mesma sensação do grupo do conto “Queremos tanto a Glenda”, o desejo de corrigir as imperfeições do nosso amor nem que seja apelando para o assassinato.
Minha última leitura, Los autonautas de la cosmopista, foi uma tristeza. A ideia da viagem me parece bela. Apenas a ideia já deixa entrever o que foi Cortázar, esse homem com jeito de menino travesso brincando de gente grande que brinca de ser menino travesso. Mas é isso, uma bela ideia muitos podem ter. O que fez a diferença foi que Cortázar a executou. Mais: executou-a em péssimas condições, ele e a mulher à beira da morte. A gente sente isso em cada linha. O livro parece escrito porque Cortázar e Carol resolveram escrever, porque precisavam escrever como se não escrever fosse admitir a derrota. Não há alegria, não há entusiasmo, não há prazer nas palavras. Até as tentativas de humor não têm graça nenhuma. Admiro a atitude dos autores, esse compromisso com o brinquedo, o compromisso de brincar com toda a seriedade até o fim, de não desobedecer as regras.Mas o livro é penoso. Não consegui terminá-lo e não consigo afastar a imagem de Cortázar nos últimos meses de vida, doente, sozinho, acabando de escrever a última linha e pensando: aí está, Carol. Posso vê-lo juntando a página ao resto do manuscrito e depois o queimando lentamente.
PS: Muitos anos depois dos Autonautas, li Papeles inesperados e Clases de literatura – Berkeley, 1980. Em Papeles, como já mencionei, há “Ciao, Verona”, um conto excepcional. Apenas ele vale o preço do livro. Em Clases, destaco o capítulo sobre o que Cortázar entendia por música na literatura. Melhor eu recolher os adjetivos, pra não parecer boboca. Aí se entende por que a atmosfera e a fluência de um texto podem ser mais poderosas que o dito conteúdo, o tema explícito, a mera informação, como elas fazem parte do sentido do texto, um sentido mais profundo e misterioso. Talvez seja por elas que é tão prazeroso reler histórias que sabemos de cor. Como ouvir música, não?
Último Round
Não preciso reler os rounds anteriores para saber que falhei. Tudo o que disse talvez explique por que Cortázar é um bom escritor, ou o que pra mim faz um bom escritor, mas não explica por que eu e muitos leitores temos amor por ele, por que seus textos são dos que despertam afeto.
Pablo Neruda descreveu uma doença pavorosa que ataca as pessoas que nunca leram Cortázar. É isso. Se você não leu Leon Tolstoi, por exemplo, o que acontece? Sim, trata-se de uma grave lacuna intelectual, mas e daí? Eu guardava Guerra e paz para o caso de ser preso um dia*. Cortázar pode não ter a metade da importância de Tolstoi, mas se você não o leu a gente pensa na hora: coitado. É como nunca ter visto o mar ou provado o sabor do vinho. Exagero conscientemente. É que para quem ama Cortázar é assim, algo vital.
Quase no fim, após anos de exílio, esteve na Argentina. Como sempre sem se anunciar, praticamente clandestino. Uma tarde, numa esquina no centro de Buenos Aires, foi reconhecido por uma multidão que vinha em passeata. Na mesma hora mudaram as palavras de ordem. Em coro, a multidão gritou esta frase, intraduzível sem perder a graça:
– Bienvenido, carajo!
As pessoas, antes de continuar a passeata, compraram todos os livros que encontraram numa banca próxima. Cortázar autografou até livros de outros autores.
Me pergunto: que país, que escritor produziria essa cena? Me pergunto: ela vale ou não vale mais que um Nobel? Mas ainda houve uma melhor.
Um pouco antes de morrer, Cortázar estava em Barcelona, andando à noite pelo Bairro Gótico. Havia uma garota, americana, bonita, que tocava violão e cantava meio como Joan Baez. Um grupo de jovens estava ao redor, ouvindo. Cortázar parou, meio afastado, nas sombras. Dali a pouco, um jovem de uns vinte anos se aproximou dele com um bolo na mão e disse: “Julio, pegue um pedaço”. Ele pegou, comeu e disse: “Muito obrigado por ter vindo e me dado o bolo”. O rapaz: “Olhe, eu lhe dei tão pouco comparado com o que você me deu”. Cortázar: “Não diga isso, não diga isso”. Então se abraçaram e o rapaz foi embora.
* Como a cana demorava, acabei lendo. Mas pulei horrores. Não sei se o releria mesmo preso.
Meu filho Bernardo tem razão quando diz que eu rejuvenesci dez anos. Achei que, para acompanhá-la, não havia outro jeito senão fazer isso.
Não que eu seja tão mais velho, é que deu vontade de ser mais jovem. Só isso. Dizem que ela também ficou mais moça. Faço planos para, daqui uns dias, invadirmos a puberdade.
Elena Romanov em concerto da Ospa em Pelotas. A música fica muito mais bonita com ela | Foto: Eduardo Beleske
Ontem, tivemos teu primeiro teste bem-sucedido, Aguirre. Não morro de amores pelo 3-5-2, mas é indiscutível que a melhora não foi causada apenas pela numerologia. O problema não era que os jogadores estivessem hostis aos números 4-5-1 ou 4-2-3-1. É que ontem houve maior harmonia e sincronismo entre os setores, é que ontem o centroavante não ficou isolado. Sasha esteve próximo de Lisandro López e diria que eles foram os melhores da partida. Com a proximidade, os erros de passe diminuíram e isso é fundamental. Sabemos que o time que tem a bola corre menos do que aquele que tem que marcar porque a perde a cada momento. Dá trabalho (e lesões musculares) fazer diminuir o tamanho do campo para o adversário.
Espero que tu pares com testes como aquele com Ernando na lateral direita — com Winck no banco — e Alan Ruschel como volante — com Bertotto no banco. Por algum motivo, as improvisações não costumam dar certo no Brasil. Se o Ernando decidiu que é zagueiro, ele já vai entrar de má vontade como lateral, louco para voltar aos braços da mamãe que o gerou zagueiro. Só um cataclismo muda uma coisa dessas. Lembre-se de que só a mãe do Jorge Henrique o fez polivalente…
Acho que vamos desse jeito aí contra o Emelec. Aliás, jogamos contra o Aimoré ensaiando para a Libertadores, senão duvido que tu colocasses 3 zagueiros e dois volantes em campo. Será uma pena se Nilmar não jogar no Equador. Uma pena que Lisandro também não possa jogar. Porque precisaremos de rapidez e Vitinho tem jogado mais para si do que para a equipe.
Em outra faixa, mas ainda nos números, digo que os alemães estão de namoro com o número sete. Alemanha 7 x 1 Brasil, Bayern 7 x 0 Barcelona, Bayern 7 x 1 Roma e, ontem, Bayern 7 x 0 Shaktar Donetsk. Para nos encontrarmos com eles, só numa final de Mundial… Melhor assim.
O concerto começou muito bem. Na plateia do Theatro São Pedro, duas mulheres me pediram para que lhes tirasse uma foto. Tirei bem mais de uma. Elas estavam felizes, ornamentadas pelo velho edifício e pelos músicos que se preparavam para o concerto no palco. Ao verem o resultado, voltaram para falar comigo. Estavam encantadas. Disseram que eu lhes dera a coisa mais bonita que elas tinham. Fiquei comovido. A noite prometia.
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Mas começo por um fato de antes do concerto: a entrevista que o Diretor Artístico da Ospa concedeu recentemente à ZH. Não entendi porque Evandro Matté irá convidar apenas nomes inéditos para reger a orquestra nos próximos meses. Ele disse que deseja “oxigenar a lista dos maestros convidados e dos solistas”, evitando aqueles que tenham se apresentado com a orquestra nos últimos três anos. Tento interpretar e não consigo entender porque Lavard, Rauss, Teraoka, Volkman, Nakata, Hahm, Levin ou Vigil não possam retornar em futuro próximo. São excelentes regentes que fizeram bons trabalhos. A opção pelo novo, nestes casos, não me parece a melhor.
Pior: é um crime que gaúchos que estão se consagrando no exterior — como Lavard Skou-Larsen, que acaba de arrasar com a Royal Flemish Philharmonic, de Antuérpia, e Tobias Volkman, que fez o mesmo na semana passada com a Sinfônica de Brandemburgo — não possam ser reconvidados. É gente talentosa, nascida aqui, com parentes na cidade, que conquista o mundo, mas que não pode mostrar-se em sua cidade. (OK, sei que o Tobias é de NH ou de São Leo).
Isso é tanto mais ilógico quando se pensa que o concurso da Ospa parecia beneficiar os locais…
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Yang Liu atingiu o coração do Secretário Victor Hugo
O programa de ontem:
Jean Sibelius – Finlândia, op.26 Camille Saint-Saëns – Concerto para violino nº 3 em Si menor, op.61 Maurice Ravel – Pavana para uma Princesa Defunta Nikolai Rimsky-Korsakov – Capricho espanhol, op. 34
Regente: Evandro Matté
Solista: Yang Liu, violinista
Sibelius completa 150 anos de nascimento neste ano. Nada mais natural que a Ospa iniciasse sua temporada com ele. Finlândia é um poema sinfônico escrito em 1899 e revisado no ano seguinte. Foi composto como um protesto contra a crescente censura do Império Russo. Era comum, na época, trocar o nome da obra nos concertos com a finalidade de iludir a censura russa. Isso adquiriu ares de piada. Os títulos com os quais a peça foi mascarada foram muitos: um deles foi Sentimentos Felizes ao Amanhecer da Primavera Finlandesa. A peça traz melodias crescentes e agitadas, evocando a luta nacional do povo finlandês. À medida que vai chegando ao final, a melodia serena do hino da Finlândia é ouvida. O careca alcoolista foi bem representado pela Ospa, mas senti saudades da execução redonda que Nicolas Rauss criou com a mesma Ospa no Colégio Anchieta, se não me engano.
Bá, eu estava com fome. Enquanto isso, pensava que Camille Saint-Saëns fora um sujeito feliz. Foi organista, pianista, caricaturista, cientista amador, apaixonado por matemática e astronomia, comediante amador, folhetinista, crítico, viajante e arqueólogo. Também gostava de viajar. Movido por impulsos súbitos, fazia excursões repentinas às partes mais distantes do planeta. Visitou a Espanha, as Canárias, o Sri Lanka (Ceilão), a Vietnã (Cochinchina), o Egito, e esteve várias vezes na América. Deu concertos em lugares exóticos como o Rio de Janeiro e São Paulo em 1899. A morte pegou-o numa cama de hotel em Argel.
O Concerto n° 3 para Violino e Orquestra foi escrito em 1880 especialmente para o célebre Pablo de Sarasate, para quem Saint-Saëns já havia escrito seu Primeiro Concerto. O primeiro movimento me pareceu de execução tediosa. Quando terminou esta parte da música, o governador Sartori e o Secretário de Cultura Victor Hugo prorromperam em aplausos, no que foram seguidos por boa parte da plateia. Sorridente, o Secretário batia delicadamente no próprio peito, como se tivesse sido atingido no coração. Bem, deixa pra lá, o governador certamente não sabe que não se aplaude entre os movimentos. Yang Liu e o regente Matté ficaram duros, esperando o entusiasmo arrefecer.
Tenho para mim que Sartori, que fala em parcelar os salários do funcionalismo público estadual, resolver parcelar o Concerto para Violino. Se ele insistir nesta ideia de pagar aos poucos, sugiro que a Ospa toque seus concertos também de forma parcelada.
Mas o fato é que o Concerto de Saint-Saëns melhora a partir do segundo movimento. E Yang Liu deu-nos uma magnífica interpretação do movimento central e do final. Saint-Saëns tem outros concertos cujos movimentos finais são superiores ao inicial. Mereceria revisão.
O intervalo foi penoso com a fome apertando. O melhor momento foi quando a Elena saiu do palco e veio me fazer um carinho. Minha vizinha de cadeira disse: “Como a sua esposa é linda!”. Ninguém duvida.
A impressionista Pavane pour une infante defunte (Pavana para uma Princesa Defunta) foi composta em 1900, quando Ravel tinha vinte e cinco anos. Devido à origem basca, Ravel tinha uma predileção especial pela música espanhola. A pavana é uma tradicional e lenta dança espanhola, que gozou de popularidade entre os séculos XVI e XVII. A peça foi escrita em 1899 para piano, durante os estudos do compositor no Conservatório de Paris. Ele a orquestrou em 1910. Segundo ele, ela não evoca nenhum momento histórico. É apenas a dança de uma jovem princesa imaginária na corte espanhola. Também, segundo o compositor, a música não deve levar o ouvinte a pensamentos funéreos. Ravel afirmou que o motivo do título da peça era porque gostava do som da combinação das palavras “infante défunte”… É uma música levada pelos sopros e o trompista viking Alexandre Ostrovski esteve nostálgico e parisiense como devia.
O esparramado Capricho Espanhol, Op . 34, foi composto em 1887 por Nikolai Rimsky-Korsakov. Como título demonstra, é baseado em melodias espanholas. Dã. O título original russo é ainda mais claro: Capricho sobre temas espanhóis. Como Rimsky-Korsakov era oficial da marinha russa, costumava viajar um bocado — ainda mais do que Saint-Saëns. Entre 1862 e 1865, o cara revirou o mundo. Na Espanha, passou algumas semanas em Cádiz, fascinado pela cultura e pelas mulheres locais (isso é invenção minha). Assim como Sheherazade, a peça tem um importante e belo solo de violino. Aliás, o Capricho foi inicialmente concebido como uma fantasia para violino e orquestra.
Em alguns momentos do Capricho, as cordas da Ospa foram cada uma para um lado para reunir-se novamente ali na esquina. Mas nada de assustar. Há muitos solos na obra. Augusto Maurer (clarinete), Omar Aguirre (primeiro violino), Paulo Calloni (corne inglês), o viking (trompa), Artur Elias (flauta) e Wenceslau Moreyra (violoncelo) estiveram muito bem. Talvez apenas o solo de Aguirre merecesse uma cintura mais solta. Mas a alegria e luminosidade de peça de Korsakov estavam lá. Acho que Evandro Matté estava tão feliz com o bom final do concerto que se esqueceu de pedir para Artur Elias erguer-se a fim de receber seus aplausos. Estou certo?
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Adendo: sou totalmente favorável à nomeação dos concursados da Ospa. Reclamei muito do Concurso realizado no ano passado, mas, já que este foi válido, penso que as vagas devam ser preenchidas o mais rapidamente possível. Aliás, de minha perspectiva pessoal, o concurso teve momentos que se inscreveram entre os mais patéticos de minha vida, como aquele em que um membro da Associação de Funcionários da orquestra ligou para o Sul21dizendo que eu estava atacando a Ospa, a Secretaria de Cultura e, consequentemente, atrapalhando a reeleição de Tarso Genro. Muita loucura, né? Imagina se eu, com meu pequeno blog, tenho o poder de intervir numa eleição para o Governo do Estado. Ao final, o cara pedia a retirada dos posts e minha cabeça. Algo me diz que fui chamado de psolento…
Gosto e preciso de meu emprego. E não tenho estabilidade. Minha chefe ouviu tudo aquilo, me chamou e disse que tinha mais o que fazer do que ouvir aquele tipo de coisas. Eu que desse um jeito de o cara não telefonar mais. Não fiz nada, mas o cidadão não voltou a ligar. Foi uma ação maldosa e inexplicável, inspirada, pirada e repirada sei lá por quem ou o quê.
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Milton Ribeiro foi ao concerto às suas próprias expensas.
Sou um cara insistente. Quando pego um livro ruim, tento ir até o fim. Sempre fiz isso. Gostaria de contrair imediatamente a Síndrome de Gambardella, personagem principal do filme A Grande Beleza. Ele dizia: “Tenho 65 anos, não posso mais perder tempo fazendo coisas que eu não quero fazer”. Pois ler sem vontade, ler achando ruim, é penoso. A gente lê e o pensamento sai por aí. A gente lê e lembra do Facebook. A gente lê e pensa na agenda, nos pagamentos. Quando avançamos duas ou três páginas, damo-nos conta de que nada se fixou na nossa mente e temos que voltar. É frustrante e burro. Chego a pensar se os 57 anos não estão queimando todos os neurônios, ou ano ao menos os destinados à leitura.
Eu estava às voltas com um traste desses até domingo. Então, ontem, olhei para minha hoje diminuta biblioteca e decidi pegar um dos confirmados. Escolhi um romance de Graham Greene, daqueles antigos. Tratava-se de uma tradução do célebre Brighton Rock — O Condenado, no Brasil. E simplesmente grudei no livro. A narrativa é elegante e inteligente. Pinkie, líder de uma gangue adolescente, quer tronar-se um mafioso na cidade inglesa de Brighton. Ele decide casar com a ingênua garçonete Rose a fim de comprar o silêncio dela sobre um assassinato que cometera. Mas há mais pessoas que sabem do fato.
Greene dividia seus livros entre os “sérios” e os “de entretenimento”. Jamais imaginaria, mas ele classificou Brighton Rock no segundo grupo. Toda aquela discussão sobre apenas acreditar no Diabo e no Inferno, caso de Pinkie, enquanto Rose também crê em Deus e no Paraíso e Ida, a perseguidora, na justiça terrena e no prazer… Tudo isso é entretenimento? Só para Greene e só em 1938. Hoje, Brighton Rock seria coisa muito séria.
Estou admirando cada vez mais Diego Aguirre. Como centroavante.
Ontem, tive dificuldades em acompanhar aquele nosso jogo, Aguirre. É que no canal ao lado havia a Copa Davis. Jogavam Brasil x Argentina em Buenos Aires. João Souza, o Feijão, enfrentava Leonardo Mayer. Foi uma guerra: 6h42 de um jogo épico, o mais longo jogo de simples da história da Copa Davis. E João Souza, o Feijão, acabou derrotado pelo argentino Leonardo Mayer: 7/6(4), 7/6(5), 5/7, 5/7 e 15/13. (Agora, a disputa está em 2 x 2, mas Bellucci deve perder hoje). Enquanto isso, nosso time se arrastava em campo, jogando mal e com uma escalação incompreensível.
Ernando jogava como lateral direito — Cláudio Winck assistia-o do banco. Alan Ruschel entrou como volante — Bertotto assistia-o do banco. Em meio a tantas improvisações, Aguirre, o bom Alisson Farias estreava, assim como Lisandro López. Sou contra tua demissão, acho que é impossível montar um time em dois meses, mas esses teus testes não parecem ter uma direção. Na boa, é muita loucura saindo da tua cabeça. Melhor assistir ao tênis. Depois, quis ouvir os comentários. O pessoal falava na ruindade de nossa defesa. Achei que o gol do Juventude tinha sido tão escandaloso do ponto de vista de posicionamento quanto os do Emelec. Não, tinha sido uma falha puramente individual e ridícula de nosso goleiro Muriel. Olhei os lances do jogo. Vi Paulão falhando num gol mal anulado. Nenhuma novidade.
Aguirre, trabalhe mais e com mais bom senso. Professor Pardal só existiu um e nem sempre dava certo.
Marcel Van Hattem (PP-RS) declarou-se surpreso com a presença de companheiros de partido na lista (Foto retirada de seu material de campanha a deputado estadual em 2014)
O Partido Progressista do Rio Grande do Sul – PP/RS, emitiu a seguinte nota no dia 23 de fevereiro:
Acompanhamos com muito entusiasmo e esperança a Operação Lava-Jato e esperamos que ela alcance políticos, servidores e empresários corruptos e tolerantes com a corrupção. Que ela sirva de exemplo de que o crime não compensa e de que a impunidade comece a ficar no passado.
Que coincidência! Eu também acompanho com entusiasmo e esperança!
Ontem foi liberada a lista dos políticos contra os quais a Procuradoria-Geral da República recomendou abertura de inquérito por possível envolvimento no esquema de corrupção investigado pela Operação Lava Jato. O deputado Luiz Carlos Heinze (PP-RS), aquele mesmo que disse que “quilombolas, índios, gays e lésbicas são tudo o que não presta”, está na lista de suspeitos.
Aliás, o PP-RS emplacou 6 deputados gaúchos — a bancada federal inteira! — na lista e 32 de um total nacional de 47. O RS é o líder por estado. Nossos representantes são José Otávio Germano, Luiz Carlos Heinze, Jerônimo Goergen, José Afonso Hamm, Renato Mölling e Vilson Covatti, este ex-deputado..
O partido dos saudosos da ditadura militar costuma ser muito votado pelos gaúchos. O gaúcho, o povo mais politizado do país, volta a demonstrar como está antenado com as tendências e permanece elegendo e reelegendo “progressistas”.
~ Intermezzo ~
O dicionário on line da língua portuguesa ensina:
Progressista
s.m. e s.f. Pessoa que defende o progresso social e político.
Política. Indivíduo não conservador, do campo da esquerda.
(risos)
~ Fim do intermezzo ~
Os nomes da lista ainda não são nem réus nem culpados, estarão apenas sendo investigados. Vou assistir de camarote as atuações deles e de alguns outros “progressistas” como, por exemplo, Ana Amélia Lemos. Fui fazer uma consultinha inicial ao Facebook. A senadora dos gaúchos se disse chocada. O agitado Marcel Van Hattem declarou-se surpreso e Mônica Leal mudou sua foto de perfil.
O escritor paulistano Ricardo Lísias (1975) vem construindo uma sólida carreira literária. Estreou em 1999 com um romance, Cobertor de Estrelas; figurou na lista da Granta como um dos mais promissores escritores brasileiros; foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2010. O justo reconhecimento literário é contrabalançado pela dualidade amor e ódio, gerada pelas posições assumidas pelo autor.
Apesar da fala mansa, Ricardo gosta de comprar uma boa briga. Ganhou a cena em 2013 com a publicação de Divórcio, sem dúvida um dos livros brasileiros mais debatidos dos últimos tempos. Aqueles que achavam que encontrariam um relato que alimentaria taras voyeurísticas perderam a viagem. O livro faz duras críticas aos mecanismos da grande imprensa, com a sua indústria de fofocas, o uso indiscriminado do off, as tentativas de intimidar os descontentes e a criação de celebridades vazias.
No papo que segue, gravado em Porto Alegre quando de sua passagem pela PUCRS para ministrar um curso sobre escrita criativa, Ricardo fala de literatura, de política e da imprensa cultural. Sem papas na língua.
“Isso é uma coisa engraçada. As pessoas me acusam de não representá-las em seus anseios políticos. Ora, eu não sei quem eles são! Por que estão decepcionados?” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21: O romance Divórcio foi um raro sucesso comercial brasileiro, não?
Lísias: Minha editora tem uma contagem online e há mais de 1000 textos de mais de um parágrafo falando sobre Divórcio. Mesmo a grande imprensa, que fez algumas besteiras, deu espaço ao livro. Eu sabia que teria repercussão, mas não imaginei que seria tanta. Há duas semanas, o livro foi citado num programa de TV, o Saia Justa. Os caras têm uma audiência espantosa. A atriz Maria Ribeiro, participante do programa, recomendou o livro. Três minutos depois de ela ter falado, eu já estava recebendo mensagens no celular. No sábado daquela semana, já não havia nenhum exemplar em São Paulo. Fui às livrarias e perguntei sobre Divórcio. A resposta era de que tinham falado dele na TV e que tinham vendido tudo. O alcance desses caras é espantoso.
Sul21: Isso nos faz pensar que se nossa TV tivesse bons programas sobre literatura, como há na Europa, a divulgação da literatura no Brasil seria muito diferente?
Lísias: Ah, certamente ajudaria nas vendas. Maria Ribeiro completou a obra escrevendo o mesmo no Twitter. Disse que não conseguiu largar o livro antes de terminar. E acabou. Simples assim. Essa frase fez esgotar o livro. O resultado é que vão fazer mais uma edição.
Sul21: Indo na direção de tua formação, Beatriz Resende afirmou em uma mesa redonda com o Alcir Pécora que pode sair um escritor de qualquer curso universitário, menos de uma Faculdade de Letras.
Lísias: Fiz graduação em Letras na Unicamp porque gostava de ler. Usei a Faculdade para ler os clássicos. Quando fui fazer mestrado, ainda achava que ia seguir a carreira acadêmica. Continuei estudando, mas no doutorado entrei numa espécie de crise de representatividade. Eu achei que não deveria ser professor de literatura, porque as minhas opções como ficcionista não batiam com qualquer currículo de Letras. Falando no que disse a Beatriz, acho que a origem do autor não interessa, temos que atentar para seu texto. Talvez a fala dela deva ser interpretada mais como uma crítica mais aos cursos de letras do que a seus alunos. Acho que no passado a coisa era mesmo muito ruim. Hoje em dia as Faculdades de Letras tratam a literatura contemporânea com maior leveza e interesse. Para mim, a Faculdade foi bastante importante.
Sul21: Tu te vês mais como escritor ou como professor?
Lísias: Eu dou aula numa Faculdade pequena. Dou aula de Língua Portuguesa, de gramática. Normalmente, só falo em literatura como convidado, na condição de ficcionista. Quem me ouve falar para efeitos de currículo, não me ouve falar em literatura. Quem me ouve falar sobre literatura está lá porque quer. Neste caso, estou inteiramente livre para falar sobre minhas opções literárias, sobre meu projeto literário. O professor e o escritor são dois fatos paralelos.
“Não vou lá tomar chá na Academia, não, ainda mais na companhia do Sarney” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21: E que autores são de tua preferência?
Lísias: São os do alto modernismo, tanto o europeu quanto o brasileiro. Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Joyce, Kafka, Proust, os bons.
Sul21: Eu acompanho tuas postagens no Facebook…
Lísias: Cuidado, muitas vezes eu estou bêbado.
Sul21: Ah, nós também. Ficamos no mesmo patamar. (risos) O que chama a atenção é que quando tu elogias obras, estas são sempre do modernismo. Tu citaste Os Últimos Dias da Humanidade do Kraus, Ulysses de Joyce. São raras as menções à literatura contemporânea, outro dia citaste o Vladímir Sorókin, um cara contemporâneo que flerta com a vanguarda. Quais os contemporâneos que estás lendo?
Lísias: Eu curto muito a literatura marginal. Em São Paulo este movimento é muito forte. Alguns autores são excelentes, discutindo questões prementes e atraentes. Também gosto da Elvira Vigna. Na literatura marginal há muita gente boa que não está ligada às grandes editoras. Eles fazem algo muito cru. O líder é o Ferrez, um bom escritor. Eles falam na violência urbana sem a mediação da classe média. Gosto de outros autores como o Cristóvão Tezza, por exemplo.
Sul21: Na semana passada, foi publicado que tu és um futuro candidato à Academia Brasileira de Letras, junto com outros autores ditos novos. O que achas? Que cadeira tu gostarias de ocupar lá?
Lísias: (risos) Não quero saber dum negócio desses, pô. Ninguém me perguntou nada. Eu chego no hotel ontem, aqui em Porto Alegre e vejo que sou candidato junto, por exemplo, com uma autora de que gosto, que é a Vanessa Bárbara. Tu achas que eu me preocupei? Não quero saber disso, eu quero viver. Não vou lá tomar chá, não, ainda mais na companhia do Sarney. Além disso, candidato no Brasil morre…
“Se um autor chorar num evento no Brasil, a plateia chora junto e pode virar fenômeno. Se você fizer o mesmo na Argentina, a plateia vai se retirar dizendo que o cara é um chorão” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21: Em vários momentos da tua obra trabalhas com o narrador em primeira pessoa. Como trabalhas com os riscos de confundir o autor Ricardo Lísias com o personagem, às vezes também chamado Ricardo Lísias?
Lísias: O Ricardo Lísias é um personagem ficcional como qualquer outro. A primeira pessoa do singular ou o personagem Lísias não desficcionalizam o romance. O meu romance Divórcio foi tomado inicialmente pela boataria. Isso foi gerado por alguns contos anteriores que escrevi sobre o tema do divórcio. Pessoalmente, eu também vinha de um processo de divórcio traumático. Em São Paulo, houve a expectativa de que eu escreveria um livro sobre o meu divórcio, a fim de lavar roupa suja. A imprensa pensava isso. Mas o que veio foi um livro de ficção, não o que as pessoas esperavam. O grupo mais intelectualizado, a maioria, logo percebeu, mas outro grupo não aceitou que o livro não alimentasse a boataria. Então, incorreram em erros ginasiais de leitura. Um deles foi especialmente ridículo. Eu sou corredor, já corri inclusive a São Silvestre. E há um personagem que está se divorciando e que, para sobreviver, adota a corrida de rua. Muita gente achou que eu, por ser corredor, estava colocando minha experiência no personagem. Não era bem isso. O treinamento de três meses que o personagem fez para correr a São Silvestre – e que está explicitado no texto — era um completo absurdo, uma coisa que devia revelar a completa ignorância dele sobre o assunto. Era um desvario completo. Mas muitos desses leitores pensaram que aquilo era uma espécie de método para correr a São Silvestre. Um professor de Educação Física daria risada daquilo. Duas revistas de corrida, surpreendentemente, resenharam o livro. Elas não caíram no conto do treinamento. Os de literatura, sim. O treinamento dele é o de um cara transtornado. Este é um dos exemplos de erros causados pela falta de informação. Desficcionalizar pode gerar monstros. E o pior é que não adianta eu negar. Um grupo da imprensa segue afirmando que é autobiográfico. Eles querem que seja. Nada do que eu faça ou diga ou negue adianta.
Sul21: Aconteceu também com O Céu dos Suicidas, não?
Lísias: Tanto Divórcio quanto O Céu dos Suicidas têm pontos de partida em experiências pessoais e traumáticas. O problema é que isso não significa que o livro é de não-ficção. O Céu dos Suicidas parte do caso de um amigo muito próximo que cometeu suicídio. Porém, no meio do livro, o personagem Ricardo Lísias é sequestrado pelo Hamas. É claro que só pode ser invenção! Divórcio também é ficcional. Acho que esta desficcionalização tem o objetivo de despolitizar o livro, de aliviar as críticas que há no livro sobre o trabalho da imprensa. É um erro tornar tudo pessoal. Minha crítica não é generalizada, é a alguns setores da imprensa, é uma crítica específica. Por exemplo, ontem, li sobre o rapaz que ganhou esta medalha de matemática (Artur Ávila, ganhador da Medalha Fields). Fui tentar saber o que ele fazia, qual era seu trabalho na área. Pois entrevistaram o orientador de sua tese, mas nada do que ele fazia foi explicado. Era só pedir para um professor de matemática escrever 30 linhas explicativas… mas não foi feito isso.
Sul21: Já que exploras bastante o problema do “off”, o que dizer do caso Genoíno?
Lísias: Sim. Li ontem que “pessoas muito próximas ligadas a José Genoíno” afirmaram isso e aquilo. Bem, ele estava preso. Então, tais pessoas são ou o José Dirceu, ou outro companheiro de cela, a mulher, a filha ou os carcereiros. Bem, quem foi? Essa informação é importante. Se o Dirceu traiu o Genoíno para ajudar um grande jornal é fundamental informar. Ou será apenas uma construção do jornalista? Isso é um descalabro que acontece diariamente nos grandes jornais. São “fontes”, “pessoas”, etc. E, juridicamente, o jornalista não precisa dizer a origem, pode ocultar a fonte. Ou seja, o cara pode destruir a vida de uma pessoa sem dizer a fonte. E fonte anônima tem todo dia no jornal. Divórcio fala nisso.
“Na verdade, eu trabalho com traumas. Me interessa muito como o trauma é desconsiderado pela sociedade” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21: Tu tens algumas diferenças com a imprensa…
Sul21: A leitura que alguns grupos da imprensa fizeram do meu livro Divórcio confirmam a crítica que o livro faz a eles. O que eu não esperava era que as pessoas fossem cair como patos nas minhas esparrelas. Ingenuidade minha? Talvez… No romance O Céu dos Suicidas, Ricardo Lísias foi campeão Pan-americano de xadrez aos 13 anos. Eu nunca fui campeão de nada, sou um jogador canhestro. A leitura é tão primária que basta você digitar no Google o nome do adversário de Ricardo para notar que tudo aquilo é ficção, mas teve gente que disse que bastava me conhecer para ter certeza que eu fora um ex-campeão de xadrez. Meu adversário é um enxadrista que existe e é muito velho, muito mais do que eu. Depois, com o tempo, o livro cercou-se de um aparato crítico que afastou o besteirol.
Sul21: Tens algum caso pessoal de declarações tuas que foram alteradas?
Lísias: Sim, dei uma entrevista e apareceu uma palavra que eu não tinha dito. Era algo significativo. A entrevista fora por e-mail e apareceu uma palavra que eu não dissera. Falei com o entrevistador. Ele me respondeu que eu deveria entender, que o trabalho no jornal era precário, com horário de entrega, que às vezes dava confusão, etc. Eu insisti na reclamação, disse que muitos profissionais trabalhavam sob pressão e que eu não poderia aceitar como justificativa a precariedade do trabalho do jornalista. A resposta foi de que eu estava atacando a imprensa brasileira, que eu queria calar o trabalho do jornalista… Aí eu respondi que estava bem, OK. Subsiste, em São Paulo, a fama de que eu sou meio mau caráter, já escreveram que eu teria copiado um diário de outra pessoa, etc. Porém, em ficção, jamais retratei uma pessoa viva e nem fui processado. O que escrevo é contra um determinado grupo político que é elite paulistana. Não são pessoas isoladas. Escrevo às vezes contra aquela gente que vive em Paris estando em São Paulo.
Sul21: Tu estavas numa Feira Literária na Argentina e disseste que lá tudo era diferente.
Lísias: Sim, lá a relação com a literatura é totalmente diferente. Por exemplo, se um autor chorar num evento no Brasil, a plateia chora junto e pode virar fenômeno. Se você fizer o mesmo na Argentina, a plateia vai se retirar dizendo que o cara é um chorão. Lá, o pessoal quer discutir e argumentar. Aliás, meus livros são muito bem recebidos na Argentina. Mas é bom dizer que não tenho ressentimento nenhum da forma como são recebidos em lugar nenhum.
Sul21: Tu tens predileção por personagens obsessivos, não?
Lísias: Sim, acho que esta é uma questão contemporânea. Na verdade, eu trabalho com traumas. Me interessa muito como o trauma é desconsiderado pela sociedade. Por exemplo, eu conversei com um segurança do metrô de São Paulo, e perguntei sobre o que eles fariam se um cara sentasse num banco do metrô e chorasse a tarde inteira. A resposta foi a seguinte: se ele não incomodar ninguém e não quebrar nada, se não atacar o patrimônio, a gente não faz nada. Ou seja, ninguém vai lá perguntar se ele precisa de alguma coisa. O desarranjo psíquico está naturalizado.
Sul21: Tu tens um discurso político forte. Discutiste as manifestações de junho, a Copa, etc. Já tiveste leitores que admiravam tua literatura e que manifestaram decepção a respeito de tuas posições mais à esquerda. Ou seja, as pessoas não desejam saber das posições políticas.
Lísias: Isso é uma coisa engraçada. As pessoas me acusam de não representá-las em seus anseios políticos. Ora, eu não sei quem eles são! Por que estão decepcionados? Isso é causado por dois motivos: as pessoas leem os livros e sentem-se próximas a mim, então se aproximam… E discordam. Também há aqueles que me escrevem coisas que só diriam para seu psicanalista. Acham que estão me repassando material para romances. Há dificuldade de aceitação, no Brasil, do aspecto ideológico da arte. A arte, aqui, ainda é recebida pelo ponto de vista do afeto, da emoção. Não é o que ocorre na Argentina, por exemplo, que tem uma relação mais madura com o fenômeno. Lá, a politização é imediata.
“Se você for convidado por uma Secretaria de Cultura do PSDB e se declara eleitor do PSOL, você deixará de ser convidado. Então, grandes autores brasileiros são hoje chapa branca” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21: No passado, Graciliano e Jorge Amado foram do PCB, Erico, que foi um moderado, enfrentava a ditadura militar, os intelectuais tomavam posições e isto era normal. Hoje, o leitor pede que o autor seja inodoro, há uma certa, por assim dizer, esterilização do autor.
Lísias: Isso é de hoje! É um fenômeno atual. As artes, no Brasil, estão crescendo muito e se profissionalizando. Então, os autores passaram a viver de eventos, de suas participações em eventos. Não há mal nenhum nisso. Porém, quando você se posiciona, acaba por decepcionar 50% e fecha mercado para si mesmo. Se você for convidado por uma Secretaria de Cultura do PSDB e se declara eleitor do PSOL, você deixará de ser convidado. Então, grandes autores brasileiros são hoje chapa branca. O mesmo vale para concursos literários. Há alguns sérios, outros não. Então é melhor ficar em silêncio. A cultura da boquinha não é geral, mas existe. Há uma preocupação em manter boas relações. Na época do Graciliano não havia eventos.
Sul21: Tu e a Vanessa Bárbara foram muito participativos durante as manifestações de junho.
Lísias: Sim, e acho que ela foi mais aguerrida do que eu. Fomos para a rua e escrevemos a respeito.
Sul21: O João Ubaldo dizia que não tinha muitos amigos escritores e que não gostava de falar em literatura. Perguntaram para ele “quando tu encontras um escritor, vocês falam sobre o quê?”. E ele respondeu, “de dinheiro!”. Tu curtes o papo literário?
Lísias: Não, tenho poucos amigos escritores, mas não tenho problemas de falar sobre literatura para um público atento. Gosto da troca de ideias em um evento especializado, apesar de meu círculo mais próximo ser extraliterário. Vou, em média, a um evento por mês. Não tenho preconceito, mas seleciono.
Sul21: E agora?
Lísias: O próximo livro é uma coletânea de contos e depois virá um romance sobre o mundo das artes plásticas. Elas estão envolvidas com uma quantidade de dinheiro que até Deus duvida.
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Publicações de Ricardo Lísias:
· 1999 – Cobertor de estrelas (Rocco)
· 2001 – Capuz (Hedra)
· 2004 – Dos nervos (Hedra)
· 2005 – Duas praças (Globo)
· 2007 – Anna O. e outras novelas (Globo)
· 2009 – O livro dos mandarins (Alfaguara)
· 2012 – O céu dos suicidas (Alfaguara)
· 2013 – Divórcio (Alfaguara)
Nilmar abriu o placar e, ufa!, voltou a jogar bem.
Aguirre, meu caro. O Inter jogou muito mal e isso deixou sensacional a partida de ontem contra o Emelec de Guaiaquil, maior cidade do Equador. Foi um jogo raro, de duas viradas, Inter 1 a 0, Emelec 2 a 1, Inter 3 a 2, com sofrimento no final. Houve boas novidades: Nilmar jogou bem; Alex entrou no lugar de D`Alessandro e comandou o time, além de marcar um belo gol; Alisson praticou um milagre. Mas foi só. Na parte individual, Fabrício foi uma larga avenida sem sinaleiras, Sasha afogou-se na marcação, Vitinho queria jogar sozinho, o genial Dale arranjou uma lesão muscular após pifar Nilmar e Réver, o mesmo que fez o salvador gol da vitória, foi uma piada na defesa.
Aliás, Diego, a defesa do Inter foi efetivamente o problema do jogo. Com dois volantes fixos, todos acharam, inclusive tu, que os problemas defensivos seriam minimizados. De forma nenhuma! A bagunça, a lentidão e certa arrogância de quem se sabe um bom time, deixaram livres os bons e entrosados equatorianos. Se não fosse Alisson… Outra coisa, Diego, nosso time está morrendo no segundo tempo. Ontem, não apenas se via o cansaço em quem está jogando só uma vez por semana como se apareceram cãibras em Nilmar e Nilton, assim como lesões musculares em quem não jogou, casos de Aránguiz e Anderson. Ou seja, está na hora de tu levares um papo com a preparação física.
No mais, tivemos sorte pelo fato de nossas falhas não terem resultado em mais gols do Emelec e competência nas defesas de Alisson e nos golaços de Nilmar (com esplêndido passe de D`Alessandro) e Alex (com esplêndido passe de Nilmar). Sobre a sorte de Réver, minha nossa. O cara estava péssimo e salvou o time com um chute difícil de acertar.
Nosso próximo jogo na Libertadores será contra o mesmo Emelec no Equador. Se fizermos o mesmo gênero de atuação, perderemos feio. O time do Emelec marca no campo inteiro, impede a saída fácil de bola do adversário e vai nos sufocar se não estivermos num nível melhor. Além disso, é rápido e tem bom toque de bola. Muito cuidado. Uma derrota lá e os fantasmas retornam.
Esse time tem que jogar para se entrosar mais, Aguirre. É muita gente nova e cada um tenta se comunicar numa língua diferente, à exceção de Vitinho, que não fala com ninguém.
Alguém disse que a corrupção é como uma caixa de lenços de papel, tu puxas um e o próximo já está ali, se atirando para fora. É verdade, é descobrir a coisa e seguir o caminho do dinheiro. Tal caminho não deve ser tão complicado assim, a menos que haja um HSBC ajudando a fazer sumir a grana na Suíça. Aliás, a lista de brasileiros no HSBC será tão legal de ler quanto a do procurador Rodrigo Janot, onde dizem estar os presidentes da Câmara Federal e do Senado, Eduardo Cunha e Renan Calheiros.
As palavras em tom menor de Cunha — “Ninguém me comunicou de nada” –, sem nenhum arroubo de líder religioso, são estranhas. Ele deve estar na lista, sim.
Mas disso meus sete leitores sabem. É que eu vim trabalhar pensando nas listas de Janot e do HSBC.
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Porém, ontem à noite, preocupei-me com outro tipo de sacanagem. Tenho visto o método utilizado por algumas pessoas para atacarem outras no Facebook. É simples. Digamos que eu queira me vingar de alguém, então vou lá e digo para meus amigos: “O fulano X disse que eu sou ruim assim. Vocês acham que ele tem razão?”. Há uma variação mais covarde que não diz quem é X. Então, os amigos procuram e acusam.
Acho de última categoria atacar alguém através da solidariedade dos amigos. É como esconder-se atrás da barra da saia de mamãe. É como chamar o irmão mais velho. Na idade adulta, é demonstração de covardia. É como gozar com o pau dos outros. Já sofri isso três vezes e detesto ver acontecer. Ontem, vi de novo, mas a vítima não era eu. Já fui vítima três vezes deste gênero de baixaria.
Reli os comentários do segundo ataque que recebi. À noite, comentei com amigos, pois, seis meses depois, a coisa é para rir em torno de uma mesa. Fui acusado de ser uma pessoa cruel por ter escrito, neste blog, sete palavras que não eram dirigidas a ninguém, mas cujo conteúdo serviu a “meu facefriend“, sabe-se lá como. Arranjei um desafeto. Como resposta a minhas palavras, este descreveu sua fantasia, esclareceu a crueldade cometida e mandou seus amigos comentarem, sem dizer meu nome. No meio, é claro, alguém falou em mim em tornei o monstro que o autor planejara. Claro que quem mantém aqueles comentários é o responsável por eles e pode ser processado, mas quem tem saco para isso? Eu não.
O bom do Facebook é sua transitoriedade, seu caráter de palimpsesto, ou seja, seu caráter de ser “aquilo que se raspa para escrever de novo”. Uma semana depois, a acusação poderá ser encontrada através de muitos cliques. Melhor esquecer mesmo.
E ontem, vi um desses ataques. Um sujeito deixou um recado do tipo “olha só o que ele fez, olha só como ele é”. Ui.
O que isto tem a ver com a corrupção dos primeiros parágrafos? Além da baixaria, nada.