Mais duas dos meus filhos no Dia da Criança

Estávamos no carro indo a algum lugar, a Bárbara na cadeirinha e o Bernardo já no banco, como se fosse crescido. Passávamos à beira do Guaíba. Paramos. Eu olho para trás a fim de ver como estavam eles. A Bárbara estende o pescoço para ver melhor a paisagem. Sem tirar os olhos da janela, ela faz uma cara de profunda admiração e diz:

— Que piscina gandi!

Eu lavava a louça e o Bernardo estava brincando no chão da cozinha com um caminhão de madeira que eu tinha dado pra ele — eu sempre tinha sonhado em ter um quando criança e nunca tive, confesso que tinha até ciúmes da coisa. O Bernardo pegava um limão, fechava ele dentro do caminhão e anunciava “Entlô!”. Pegava uma laranja e anunciava “Entlô”. Pegava uma maçã e dizia “Entlô”. Pegou um mamão e disse “Não entlô!”. Então eu ouvi algo como RAAAASCH e ele disse:

— Agola entlô!

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Já que é Dia da Criança, duas historinhas

Bernardo, hoje com 34 anos: ele devia ter uns 5 anos e tinha a cabeça lotada de documentários da Discovery Channel ou de outros canais assemelhados. Estávamos chegando na Escolinha dele e, logo em frente, na calçada, um grupo de trabalhadores do DMAE tinha aberto um enorme buraco na rua, fazendo algum conserto no esgoto. O Bernardo olha pra mim bem sério e pergunta:

— Pai, são arqueólogos?

Bárbara, hoje com 31 anos, entra correndo, toda feliz, em casa. Devia ter uns 2 anos e não se aguenta, tem que contar que viu um pássaro falando bem alto, repetindo as mesmas palavras. Pergunto-lhe qual era o pássaro que fazia algo tão incrível:

— Tu não conhece? É o pucabaio!

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Stravinsky & Vivaldi

Stravinsky não deixa de ter razão ao dizer que Vivaldi escreveu 507 vezes o mesmo concerto. A estrutura é repetitiva, muitos concertos seguem o molde do ritornello, onde um tema principal retorna periodicamente, intercalado por passagens virtuosísticas do solista. As harmonias são sempre familiares. Mas o Diabo está nos detalhes, né?, a genialidade de Vivaldi não está em reinventar-se a cada concerto, mas na criação melódica inesgotável e na capacidade de sempre criar coisas diferentes dentro de um mesmo formato.

Eu estou ouvindo todos os meus CDs. Espero viver para ouvi-los novamente a todos. São uns 4000. Pego-os fora de ordem, mas quer a sorte que eu tenha pegado muitos Vivaldi ultimamente. E ele tem crescido muito no meu conceito — o que vale só para mim, claro.

O homem Vivaldi sempre teve minha simpatia. Dizia sofrer terrivelmente de asma. Há controvérsias. Alguns inimigos o acusavam de fingir ser doente para não perder tempo preparando e conduzindo missas e dedicar-se apenas à música. Vivaldi afirmava que muitas vezes tinha que se retirar também de concertos em razão das frequentes crises. Mas, como poucos viam tais fatos acontecerem, ele acabou sendo denunciado pelo compositor Benedetto Marcello, seu inimigo, que chegou ao ponto de escrever um panfleto contra Vivaldi, alegando ser ele um fingido que não apenas não era doente como tinha amantes — o que realmente era um fato público. Toda Veneza sabia que ele não era nada adepto do voto de castidade. Novamente, em 1737, um sacerdote atacou-o pelo fato de não oficiar missas e por seu, digamos, estilo de vida.

Sim, ele tinha saúde suficiente para vários casos amorosos, um dos quais com uma de suas alunas mais famosas, o contralto Anna Giraud (ou Anna Girò). O caso era escandaloso e público. Anna foi a inspiradora de muitas de suas óperas e, dizem alguns biógrafos, motivo de grandes tormentos. Sabia-se que Vivaldi fazia tudo o que ela pedia, chegando a adaptar várias árias de óperas, escolhidas por ela, para sua voz. Ele também viajava com ela em turnês. Um querido!

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“A beleza salvará o mundo”? Pelamor, né, gente?

“A beleza salvará o mundo”? Pelamor, né, gente?

E essa frase de Dostoiévski: “A beleza salvará o mundo”? Pelamor, né, gente?

Vamos devagar com ela.

Em primeiro lugar, quem a disse foi o Príncipe Míshkin de “O Idiota”. Não foi dita por Dostoiévski, mas por um de seus personagens e isso faz toda a diferença. Míshkin é um ingênuo, um doente, um inadaptado à sociedade pragmática e corrupta que o cerca. E a beleza não salva ninguém no romance; pelo contrário, a história termina em tragédia.

Portanto, a frase não é um slogan otimista. É uma tese profundamente problematizada no romance. É mais uma pergunta angustiante do que uma resposta consoladora: “Como a beleza poderá salvar o mundo se ela é tão vulnerável?”. E não esqueçam que Míshkin associa essa “beleza” ao Cristo Morto de Holbein, um quadro que retrata Cristo de forma realista e sem qualquer aura de divindade.

Em resumo, a frase “a beleza salvará o mundo” pertence ao Príncipe Míshkin, mas seu verdadeiro significado só pode ser compreendido à luz da trágica história de “O Idiota”, onde ela é posta à prova e, aparentemente, falha.

Então, calma. Dostô não era tão bobinho.

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À margem do lago, de Naia Oliveira

À margem do lago, de Naia Oliveira

À margem do lago, de Naia Oliveira, é um pequeno livro de memórias, de afetos e resistência. Nascida nos anos 50 em Guaíba, do outro lado do lago que banha igualmente Porto Alegre, a autora nos convida a sentar à beira do tempo e escutar suas histórias que pulsam como uma coleção de instantâneos da vida, ou como “cristalizações do fugidio”, como dizia Erico sobre as fotografias. Naia transforma cada parágrafo em um pequeno caso — às vezes terno, às vezes duro — que revelam tanto a intimidade e os detalhes de uma infância à beira do lago quanto a intensidade de uma juventude vivida sob a sombra da ditadura militar. Lírico na simplicidade, forte na memória, é um testemunho delicado sobre viver, lembrar e não se calar. A prosa de Naia flui como as águas do Guaíba: calmas na superfície, mas carregadas de histórias no fundo.

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Diante da manta do soldado, de Lídia Jorge

Diante da manta do soldado, de Lídia Jorge

Os dois últimos livros de Lídia Jorge, este Diante da manta do soldado (2024) e Misericórdia (2022), ambos publicados recentemente no Brasil pela Autêntica, receberam tantos prêmios europeus que, para um leitor como eu, é impossível não voltar a atenção para esta autora portuguesa. E olha, como valeu a pena! Com uma prosa densa, profundamente poética, Lídia narra não apenas a relação de uma filha com seu pai, como nos dá um surpreendente relato de um país sob ditadura — com sua alta taxa de imigração por absoluta falta de perspectivas –, de sexualidades (bem) ativas e de uma família em desintegração. Pode-se dizer que o livro é um registro poético da memória pessoal e coletiva daquele Portugal.

O ponto de partida é um simples objeto: uma velha manta militar, testemunha de um passado familiar marcado pela Guerra Colonial da África. Mas neste livro não se fala em guerra, fala-se da vida familiar e suas traições. A narradora coloca-se literal e figurativamente “diante da manta” para interrogar o que significa herdar somente memórias. Ela desdobra e desfaz o objeto, fio a fio, revelando o que não é matéria de discussão, e sim os traumas silenciados e a complexa relação das pequenas histórias domésticas.

A narradora tem um pai que deixou Portugal quando ela ainda estava na barriga da mãe. O patriarca da família manda outro filho (o obediente) casar com a moça grávida. Ele seria o pai da criança, que logo descobre ser filha de outro. Não, não estamos numa novela mexicana, esqueça — a coisa aqui é de outro nível. Então, a narradora mergulha em uma jornada de resgate da memória e dos laços familiares, guiada por lembranças incertas, silêncios e saudade. Ela imagina receber a visita do pai, mas os únicos sinais enviados por ele chegam por cartas dos mais diversos lugares, sempre acompanhadas de lindos desenhos de aves exóticas. O final da trama ocorre em Buenos Aires e é totalmente inesperado, penso eu.

O livro tem 100 capítulos e 200 páginas de prosa clara, ritmada e lírica, dando voz tanto à intimidade quanto aos ecos da perda. Tudo começa lentamente, mas vai ganhando velocidade e termina com o leitor engolindo rapidamente as páginas. Diante da manta fala da persistência da memória, do eco das vidas partidas e da responsabilidade que carregamos diante do passado. A palavra e a poesia não alteram o passado, mas reparam um pouquinho o que a violência destruiu.

Recomendo muito!

Lídia Jorge (1946)

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Situação pré-GreNal

Situação pré-GreNal

— Os últimos dez Gre-Nais foram de:
5 vitórias do Inter
3 empates
2 vitórias dos nocivos

— Se o Inter vencer o Gre-Nal de domingo, a situação dos dez últimos jogos ficaria assim:
6 vitórias do Inter (166 vitórias na história do clássico)
3 empates (141)
1 vitória dos nocivos (141)

— Se der empate, a situação dos dez últimos jogos ficaria assim:
5 vitórias do Inter (165)
4 empates (142)
1 vitória dos nocivos (141)
Notem que os empates voltariam a ultrapassar as vitórias nocivas.

— Se o Grêmio vencer o Gre-Nal de domingo, a situação dos dez últimos jogos ficaria a mesma, pois seria descartada uma vitória do Tricolor:
5 vitórias do Inter (165)
3 empates (141)
2 vitórias dos nocivos (142)

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Atrás do balcão da Bamboletras (LXXIV)

Atrás do balcão da Bamboletras (LXXIV)

Eram umas 18h quando Eveline entrou correndo buscar um livro. O livro era Ellis Island, de Georges Perec. Ellis Island é uma ilha no porto de Nova Iorque, um símbolo da imigração para os Estados Unidos. Por lá chegaram mais de 12 milhões de imigrantes, inclusive a família Trump.

Mas o que interessa foi o diálogo que tivemos. Eu perguntei a Eveline:

— Quem era o joyceano, o teu pai ou a tua mãe?

— Não entendi. Por que joyceano?

— Porque teu nome é o título de um conto de Dublinenses de James Joyce e nunca tinha conhecido alguém com este nome.

— Não brinca! Tem um conto de Joyce chamado Eveline?

Fui até a estante e puxei o Dublinenses. Abri o celofane e comecei a procurar o conto. Demorei a encontrar. Enquanto isso contava como era a história de sua homônima no livro. Jurava que o conto estava lá pro final. Nada disso, estava quase no início. Mostrei-o a ela, que ficou bem feliz.

— Tu não vai acreditar. Eu estou dando o Ellis Island pra minha filha porque ela se chama Ellis e todo mundo diz que é por causa da Elis Regina e eu quero mostrar a ela — que agora está ficando maiorzinha — que o nome Ellis existe.

Olhei surpreso para ela, que completou:

— Mas agora acabo de descobrir algo que diz respeito ao meu nome!

Falei um pouco sobre o Dublinenses e, pô, ela levou dois livros fantásticos para casa. Ela saiu dizendo:

— Que coisa incrível. Eu não acredito…

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Eduardo Bueno conseguiu de novo

Eduardo Bueno, o Peninha, conseguiu novamente. Em vídeo primeiramente postado no Instagram, ele afirmou que era “terrível um ativista ser morto por ideias, exceto quando esta pessoa é Charlie Kirk”. Mais: ele disse que “foi bom para suas filhas”, o que fez com que a direita enlouquecesse de vez. O Brasil para Lerdos e outros canais similares do YouTube convulsionaram. Em outra faixa, a PUCRS cancelou um espetáculo que Peninha daria domingo.

Eu vi alguns vídeos de Kirk e achei que é um burro perigoso. Mais um. Ele ia às universidades distribuir gadgets do MAGA para os alunos e desafiar os que não concordavam com ele. Ele estava na turnê “Prove Me Wrong”, onde ficava numa tendinha respondendo a todos com seu “brilhantismo” de trumpista. Fui assistir algumas de suas respostas e, nossa, daquele jeito é fácil ter razão. A Palestina não existe. O porte de armas foi autorizado pelo fundadores da “América” (está em nossa constituição de “País livre”). Quando a coisa complicava era porque Deus quis, quer e vai querer assim. Quando o aluno insistia numa resposta mais consistente, ele fazia pouco dele com o microfone na mão.

Kirk também queria execuções públicas de criminosos transmitidas pela TV e defendia que o cérebro das mulheres negras era o mais incapaz…

Era um ser rastejante e perigoso. Um sujeito daqueles que dá vontade de encher de porrada. Há muitos assim, né? Não precisamos procurar muito.

Voltando ao Peninha, é claro que a PUCRS não poderia manter o show. É uma universidade e não há como aceitar um cara que está sendo contestado por aprovar um ato bárbaro de justiça feita pelas próprias mãos.

A vitória tem de ser política, mesmo que seja difícil suportar alguns argumentos e pessoas. Eu mesmo não aguento mais expor conceitos fundamentais, mas não há outro jeito.

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Os melhores filmes de Ingmar Bergman na minha opinião de hoje

Os melhores filmes de Ingmar Bergman na minha opinião de hoje

Os melhores filmes de Ingmar Bergman, segundo este devoto:

1. O Sétimo Selo
2. Persona
3. Gritos e Sussurros
4. Morangos Silvestres
5. Fanny e Alexander
6. Sarabanda
7. Cenas de um Casamento
8. O Silêncio
9. Sonata de Outono
10. O Ovo da Serpente
11. O Rosto
12. Sorrisos de uma Noite de Amor
13. A Fonte da Donzela
14. Face a Face
15. Prisão
16. Monika e o Desejo

E o que dizer do roteiro de Infiel, obra-prima dirigida por Liv Ullmann?

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Sobre a questão levantada pela Prof. Aurora Bernardini

Sobre a questão levantada pela Prof. Aurora Bernardini

Vou falar de leve na polêmica levantada por Aurora Bernardini. Ela disse que Itamar, Ernaux e Ferrante podem ser interessantes, mas não são literatura.

No final dos anos 70, fui um péssimo aluno da Engenharia da Ufrgs, mas fiz todas as 4 cadeiras de Cálculo. Alguns teoremas que estudei eram muito bonitos. Havia uma beleza profunda e singular neles. A beleza em um teorema não é visual nem emocional, mas sim intelectual e estrutural. Os matemáticos frequentemente descrevem teoremas como “belos”, e essa qualidade geralmente emerge de uma combinação de fatores: simplicidade e economia (são elegantes e dizem muito, como a boa poesia), profundidade e SURPRESA, generalidade e clareza.

Nos teoremas, há a beleza da ideia pura, da lógica perfeita e da verdade inevitável. Compará-lo à literatura não é diminuir nenhum dos dois, mas sim elevá-los. Ambos são talvez as mais altas expressões da criatividade e do intelecto humano: a literatura explora a condição humana com toda a sua complexidade emocional e ambiguidade, enquanto a matemática explora a arquitetura lógica do universo com precisão e clareza absolutas.

Acho que respondi à Prof. Aurora.

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Uma linda declaração de amor escrita por Virginia Woolf

Uma linda declaração de amor escrita por Virginia Woolf

“Fico deitada & penso na minha adorada fera, que me torna mais feliz a cada dia & instante de minha vida do que jamais pensei ser possível. Não há dúvida de que estou terrivelmente apaixonada por você. Ponho-me a pensar no que estará fazendo, & tenho que parar porque começo a querer muito beijar você.”

Virginia Woolf, em um de seus diários.

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Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino

Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino

Acho que foi a Telma Scherer quem chamou este livro de “aula”. Ela tem razão. Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino, é ideal para quem quer refletir sobre o romance como experiência escrita e lida. O livro é de 1979 e literalmente me deixou perplexo quando o li no século XX. Para minha nenhuma surpresa, logo tornou‑se um dos marcos da literatura pós‑moderna. É um romance sobre o ato de ler (e de escrever) um romance. “Você está prestes a começar a ler o novo romance de Italo Calvino…”. Já nessa primeira frase, o leitor é chamado a ser personagem de sua própria leitura — isso sem os apelos fáceis ao sobrenatural. A magia do texto nos chama. Se um viajante é absolutamente metaficcional, ou seja, faz-nos lembrar frequentemente — muitas vezes de forma irônica – de que estamos diante de uma obra de ficção. (E, não obstante, esta fato, sempre nos embrenhamos nas histórias e queremos saber mais).

A narrativa é dividida em 22 capítulos. Os ímpares são escritos em segunda pessoa (“você, Leitor”) e descrevem a tentativa do leitor de seguir sua leitura, que começa com um romance intitulado como o próprio livro. Os outros capítulos, os pares, são primeiros capítulos de outros romances que são interrompidos. Há diversos gêneros — realismo mágico, detetive, ficção científica, romance psicológico, amor –, sempre em fragmentos cortados abruptamente por uma “razão editorial” ou conspiração. Sim, é lúdico, mas totalmente decepcionante para quem quer mergulhar num fluxo ficcional contínuo. É um curioso livro sobre a estrutura e os mecanismos dos romances.

Assim, Se um viajante se desdobra em dez narrativas distintas — nenhuma delas concluída –, ao mesmo tempo avança o enredo central dos capítulos ímpares: a busca do Leitor (e da Leitora, Ludmilla) por um texto completo, assim como a busca do Leitor por Ludmilla.

Calvino explora o que chamou de “romances interrompidos”, operando por cortes sucessivos, mais ou menos o que Bolaño faz de forma menos explícita. Cada fragmento introduz um novo universo, cria uma expectativa, mas… Tchau. Essa frustração força o leitor real (sim, a gente) a se sair do conforto e da atenção de uma leitura linear. É um romance que propõe que “você” é o protagonista, fazendo com que o Leitor “real” (sim, a gente) seja confrontado com o Leitor do romance, num emaranhado de camadas. Calvino mistura leitores, narradores, autores e traduções apócrifas, questionando quem — ou o que — decide que a leitura terminou. Em cartas, Calvino confirmou que se reconhecia influenciado por Nabokov e Barthes, o que tornaria o romance também um ensaio sobre o romance.

Mas por que tudo isso é tão legal? Por que devemos nos submeter a este romance cheio de cortes? Porque nos mata — metaforicamente — como leitores. Porque nos corta o desejo. Porque é cômico ser maltratado e aqui nós não estamos falando em ser maltratado por um mau livro, mas por um muito bom. Porque os abismos narrativos não esvaziam o romance, mas tornam-se livros que ainda podem ser escritos. Porque pensa o fazer literário. Porque o monte de distrações, erros de impressão outros mistérios que cortam a fluidez, mostram que ler é viajar, mas também é se conhecer e se reconhecer. Porque é estilisticamente elegante e sutil. Porque Calvino está sempre bem humorado — é um gozador.

Se um viajante numa noite de inverno não é apenas inovador, é um convite à reflexão sobre o desejo que move a leitura. Não entrega histórias fechadas — oferece os cortes que tememos em cada bom livro. Autores falsificam, enganam. Leitores colaboram — a obra exige que você entenda que o livro só existe quando alguém se dispõe a lê-lo com atenção.

Não sei mais o que escrever sobre um livro tão fácil de ler e tão difícil. Estou comentando um romance sobre a leitura, que faz pensar que ler é resistir ao fim, é recusar o fechamento. Por isso, e por ser esteticamente sedutor, é que é tão difícil de resenhar…

P.S. — Curiosamente, nunca vi este livro ser analisado em Oficinas de Literatura. Mas isso é outro tema…

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O Presidente, de Georges Simenon

O Presidente, de Georges Simenon

O Presidente está catalogado como um dos “romances sérios” de Georges Simenon. Os do detetive Maigret estariam no escaninho dos não-sérios. E, com efeito, trata-se de um livro ambicioso, um exercício plenamente justificado e bem sucedido.

Em um chalé na Normandia, um homem idoso observa o mar e a passagem do tempo. Ele é Augustin Bouville, ex-presidente do Conselho de Ministros da França (um cargo equivalente ao de primeiro-ministro). Ele foi uma das figuras mais poderosas da França, aquele sujeito que é uma espécie de reserva moral do país, que é sempre consultado e entrevistado durante as crises e tal. Aos 82 anos, debilitado por uma saúde já frágil, blindado por serviçais e enfermeiras, ele remói suas lembranças enquanto acompanha pelo rádio uma grave crise política que ameaça a República. Está perfeitamente lúcido. O contraste entre a grandeza do passado e a fragilidade do presente é o pano de fundo para um mergulho na natureza do poder e na irrelevância final.

É um romance político, mas é principalmente um estudo psicológico muito íntimo sobre o esvaziamento que sucede o poder. Simenon, conhecido por sua prosa econômica, direta e atmosférica, abandona aqui qualquer resquício de suspense policial para se concentrar na mente de quem já comandou uma nação e agora mal comanda seu próprio corpo.

A narrativa alterna-se entre o presente claustrofóbico de Bouville — seus rituais, sua dependência da enfermeira, sua visão embaçada — e as memórias de suas manobras políticas. Não é herói nem vilão, é um pragmático. Relembra as traições, os acordos nos bastidores. A pergunta que Simenon sugere e não faz é: tudo isso valeu a pena? O que sobra de um homem quando o poder o abandona?

A crise do rádio serve como um espelho cruel. Ele vê seus sucessores, outrora seus subordinados, repetindo os mesmos jogos, cometendo os mesmos erros, enquanto ele, que pensa poder contribuir, está reduzido a um espectro irrelevante. O poder foi apenas um empréstimo temporário.

A caracterização do Presidente é uma perfeição. Simenon explora com precisão a vaidade bem escondida, o tédio e a lucidez de um homem no fim da linha. Claro, o livro é uma reflexão desencantada sobre a política. Sugere que os mecanismos são cíclicos e que os homens que os operam são, no fundo, intercambiáveis e vulneráveis. O som do mar, o clima cinzento da Normandia e a quietude da casa refletem o estado interior do protagonista.

É um livro introspectivo para quem aprecia histórias que exploram as complexidades morais e a condição humana. Não tem grande ação nem enredo movimentado. O Presidente é um dos romances mais sérios e ambiciosos de Simenon. É um livro triste e profundamente inteligente.

Recomendo, mas só tem em sebos.

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Os cagões das letras

Fico feliz cada vez que leio um escritor se manifestando politicamente. Compreendo a necessidade de receber a grana das feiras que ocorrem em várias cidades e que são fundamentais para a sobrevivência, sei que os secretários “de cultura” são em maioria bolsonaristas ou evangélicos, mas saúdo a coragem dos poucos que vão de encontro à vulgaridade da extrema direita — para dizer o mínimo. Hoje li alguns falando sobre o início do julgamento, mas a maioria fica quieta com medinho, fazendo gracinhas com platitudes.

Gente, quem lê livros não é bolsonarista. Por exemplo, aqui na Livraria Bamboletras, até hoje, ninguém se identificou como tal.

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Sou eu, segundo o Óscar Fuchs

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4 poemas para o Dr. Milton Cardoso Ribeiro (1927-1993), meu pai

4 poemas para o Dr. Milton Cardoso Ribeiro (1927-1993), meu pai

MEU PAI
Ferreira Gullar

meu pai foi ao Rio
se tratar de um câncer
(que o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem

quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele examinou
o estojo com o nome
da loja, dobrou a nota,
guardou-a no bolso
e falou: quero ver agora
qual é o sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro

DISTINÇÃO
Carlos Drummond de Andrade

O Pai se escreve sempre
com P grande, em letras
de respeito e de tremor,
se é Pai da gente.
E Mãe, com M grande.

O Pai é imenso.
A Mãe, pouco menor.
Com ela, sim, me entendo
bem melhor: Mãe é
muito mais fácil
de enganar.

(Razão, eu sei,
de mais aberto amor.)

IMPRESSIONISTA
Adélia Prado

Uma ocasião, meu pai
pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos
numa casa, como ele mesmo
dizia, constantemente
amanhecendo.

NA HORA DE PÔR A MESA, ÉRAMOS CINCO
José Luís Peixoto

na hora de pôr a mesa,
éramos cinco: o meu pai,
a minha mãe, as minhas
irmãs e eu. depois,
a minha irmã mais velha
casou-se. depois,
a minha irmã mais nova
casou-se. depois,
o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa,
somos cinco, menos
a minha irmã mais velha
que está na casa dela,
menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela,
menos o meu pai, menos
a minha mãe viúva.
cada um deles é um lugar
vazio nesta mesa
onde como sozinho.
mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa,
seremos sempre cinco.
enquanto um de nós
estiver vivo, seremos
sempre cinco.

Na foto, ele, minha irmã Iracema Gonçalves, eu e minha mãe. Éramos quatro.,

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Infinita, de Camila Maccari

Infinita, de Camila Maccari

Numa de suas entrevistas, sempre interessantes, Ingmar Bergman disse que às vezes obrigava seus personagens a fazerem coisas que ele mesmo não queria fazer. Esta é a impressão que tive ao terminar a leitura do ótimo Infinita, de Camila Maccari. Mas vou adiante sem spoilers, tá?

A personagem principal deste excelente romance decide que — atendendo a sugestões — precisa mesmo de um tempo para si. Sai cansada do trabalho e vai tomar uma cerveja num bar. O que seria relaxante acaba numa cena de triste comicidade. A cadeira onde está sentada quebra devido ao alto peso da usuária, que cai estatelada no chão. Ela levanta, tentando manter a dignidade, mas imaginando a qualidade de cena que protagonizou. O fato atinge algo essencial nela: o tamanho de seu corpo, exatamente aquilo que deveria passar despercebido. Este é o estopim de uma série de decisões que acontecem misturadas a memórias de fracassos pessoais, sucesso profissional, violências. É um corpo que, não adianta, sempre entrará no espaço social de forma inversamente proporcional a seu tamanho. Tanto maior, quanto mais exíguo.

Depois disso, a protagonista sem nome faz um levantamento emocional da gordofobia, do julgamento das pessoas, dos regimes que a levaram a perder e recuperar metade de seu peso, da falta do direito de existir — fato que ela até parece admitir, pois trabalha com eficiência e como uma condenada para que os colegas a amem e não vejam sua gordura… A narrativa vem em duas camadas: a primeira é a do quase gentil narrador onisciente, em terceira pessoa, e outra em itálico, muito mais acusatória e que trata a mulher por “você”. Claro que esta é uma voz interna, muito mais terrível.

Maccari é minuciosa. Detalha cuidadosamente os sentimentos para mostrar como tudo aquilo é cansativo.  Até as pessoas que a amam estão de olho. A voz em itálico responde às acusações gritando pai, se não fosse por isso, eu seria perfeita. Seu corpo é tema público, seja pelo emagrecimento (elogios), seja pelo aumento (silêncio, exame). Ainda sobre os pais: “Quando surgia cada vez mais gorda na frente deles, era como se o rosto dos dois se transformasse em um espelho e a única maneira de fugir de sua imagem refletida era não se colocando diante dela”.

A escrita está perfeitamente adequada ao tema. Sem grande poesia, a narradora fala sobre a gordofobia e sobre aquelas raras pessoas que não dão importância a seus processos e tentativas. Pouco a pouco, a narrativa torna-se mais cínica e feroz, o que é lindo de ler, pois este leitor não gosta da vida cor-de-rosa e sim da vida interessante… À moda Calligaris. O final do livro é extremamente elegante e simbólico.

Sem ilusões, Infinita não resolverá o problema de ninguém, mas fala de como os magros se apropriam e batem nos gordos. De como os “em forma” impedem o amor-próprio deles impingindo-lhes a rejeição e a autorrejeição. Claro que não é um livro confortável, mas há uma boa dose de consolo e reconhecimento nele. Calma, também não é uma aula de empatia, é uma narrativa realista e dura, que dá valor ao silêncio.

Recomendo.

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Bolsonaro (edição de colecionador)

Por MARILIZ PEREIRA JORGE

Ignóbil. Basculho. Baixo. Repugnante. Canalha. Deplorável. Mesquinho. Patife. Ordinário. Reles. Pulha. Sórdido. Torpe. Velhaco. Abominável. Detestável. Ralé. Biltre. Infame. Bandalho. Aberração. Calhorda.

Desprezível. Pífio. Ignorante. Vil. Ribaldo. Soez. Jagodes. Cafajeste. Bronco. Inculto. Escapista. Néscio. Estúpido. Rude. Verme. Desgraçado. Maldito. Jumento. Monstruoso. Sádico. Burro. Insensível.

Mentecapto. Demônio. Desalmado. Incapaz. Covarde. Crápula. Incompetente. Doentio. Sociopata. Peste. Idiota. Energúmeno. Reaça. Desequilibrado. Imoral. Rato. Mandrião. Beócio. Abjeto. Descarado. Pusilânime. Enxurro. Choldra. Gentalha. Labrusco. Desrespeitoso. Cruel. Facínora. Atroz. Maligno. Cafona.

Execrável. Infando. Nefando. Zé Ruela. Inclemente. Mau. Sicário. Viperino. Tirano. Impiedoso. Desumano. Malfeitor. Celerado. Estrupício. Chorume. Louco. Escroto. Lixo. Inútil. Escória. Ogro. Mitômano. Ególatra. Tosco. Verdugo. Mentiroso. Cavernícola. Asno. Babaca. Déspota. Autoritário. Morte. Opressor. Tapado. Mandão. Autocrata. Desnecessário. Safardana. Prepotente. Abusivo. Injusto. Reacionário. Fascista.

Cínico. Animal. Desaforado. Histrião. Grosseiro. Vulgar. Paspalho. Malandro. Inconveniente. Sujo. Sem-vergonha. Obsceno. Brega. Charlatão. Perverso. Monstro. Ditador. Embusteiro. Horrível. Desnaturado. Carrasco. Egocêntrico. Mariola. Salafrário. Imbecil. Lunático. Bufão. Garganta. Farofeiro. Farsante. Oportunista. Indefensável. Broxável. Carniceiro. Irresponsável. Excrementíssimo. Marginal. Praga.

Traiçoeiro. Criminoso. Terrorista. Asqueroso. Cu de boi. Podre. Capiroto. Embuste. Lazarento. Indecoroso. Desmoralizado. Imprudente. Maléfico. Parasita. Delinquente. Seboso. Coisa-ruim. Quadrilheiro. Arrombado. Mau-caráter. Frouxo. Fracassado. Ressentido. Obtuso. Brutamontes. Cavalgadura. Descortês.

Lorpa. Pateta. Cretino. Parvo. Pacóvio. Inapto. Desqualificado. Pequi roído. Genocida. Usurpador. Golpista. Fujão. Investigado. Inelegível. Conspirador. Interrogado. Trapaceiro. Arbitrário. Insurgente. Enganador. Indiciado. Monitorado.

Preso.

Mariliz Pereira Jorge
Jornalista e roteirista de TV

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Julie Christie

Julie Christie

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