Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): VI – A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, de Laurence Sterne

Obs.: não encontrei a capa de edição nacional para colocar ao lado…

Beethoven gostava de temas curtos e afirmativos. O crítico Otto Maria Carpeaux também, até demais. Beethoven repetia seus temas à exaustão, mas não enchia o saco. Carpeaux não os repete, mas larga aqui e ali juízos curtos, afirmativos e terríveis que às vezes me deixam louco. A literatura não prescinde de justificativas mais, digamos, alongadas. Eu gosto de Beethoven e de Carpeaux, só que o austríaco tem uma capacidade de me irritar que o alemão só utilizou n`A Batalha de Wellington e na Pastoral. Pobre do grande LAURENCE STERNE: na História da Literatura Ocidental, o maravilhoso amansa-burro de 2300 páginas de Carpeaux, ganhou a curta e grossa má vontade do mestre:

Não é romancista, e não compreendemos como seus contemporâneos puderam dar o nome de romance a esse aglomerado de conversas, digressões e anedotas, sem ação novelística, que é o Tristram Shandy.

Que equívoco! Fico curioso sobre o que diz Carpeaux sobre outro livro notável, também quase exclusivamente um aglomerado de conversas e digressões filosóficas: O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. Consulto e ele demonstra coerência, fazendo questão de chamar a obra-prima inacabada de romance-ensaio. OK. Romance-ensaio é mais que um aglomerado de conversas e digressões, porém Carpeaux sempre ensina muito e conta com minha INDULGÊNCIA.

Mas creio que Carpeaux, se se alongasse um pouco mais, não ousaria falar mal da espetacular prosa de Sterne. Seu principal romance (ou não), A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, é uma de minhas melhores lembranças literárias. Este livro extravagante, publicado em capítulos entre os anos de 1759-67, tem importantes admiradores. James Joyce, Luigi Pirandello, Samuel Beckett e MACHADO DE ASSIS, que o cita com conhecimento, foram alguns dos escritores que se declararam influenciados pelo irlandês Sterne, um pároco muito bem sucedido e amante de intermináveis digressões pontuadas de anedotas escabrosas e alusões cínicas. Agrada-me intensamente a forma como Sterne decepciona seus leitores ao não dar seguimento às ações que esboça, coisa que Roberto Bolaño se esmera em realizar (ou não).

A cena inicial nos conta sobre o nascimento de Tristram. Seu pai costumava fazer duas coisas no primeiro domingo do mês. A primeira era dar corda no relógio da sala; a segunda era cumprir seus deveres conjugais. Porém, num destes domingos, sua mãe, JÁ PENETRADA mas sem o menor interesse, pergunta repentinamente (a pontuação, sempre originalíssima, é puro Sterne):

– Por favor, meu caro, não te esqueceste de dar corda ao relógio? ————-Por D—–! gritou meu pai, lançando uma exclamação, mas cuidando ao mesmo tempo de moderar a voz. ——–Houve jamais mulher, desde a criação do mundo, que interrompesse um homem com pergunta assim tão tola?

Com a interrupção, o velho Shandy, desconcertado, descuidou-se de fazer outra coisa: o coitus interruptus. E é desta forma que nasce o HOMÚNCULO ou, para nós, o feto daquele que seria o protagonista da “ação”. A piada fez enorme sucesso e por anos não apenas as prostitutas da Inglaterra perguntaram a seus candidatos QUERES DAR CORDA EM MEU RELÓGIO?, como as senhoras de respeito deixaram de comprar relógios para suas casas com receio dos comentários que tal ato poderia provocar… Que os comprassem os maridos!

É também notável o momento em que Shandy desiste de narrar sua própria vida – o livro é escrito na primeira pessoa. Isto acontece lá pela página 80 de um livro de 600 páginas. Ele observa que gastou alguns meses escrevendo a respeito das primeiras horas de sua vida. Constata assim que demora muito mais para escrever do que para viver e que os acontecimentos narrados estão afastando-se mais rapidamente do que a narrativa avança… Impossível alcançar. Conclui que o melhor é parar de perseguir a si mesmo e conversar com os leitores. A vida de Tristram segue seu curso e Sterne, bem, Sterne sabe e declara-se consciente de que a literatura existe primeiro para SATISFAZER O AUTOR… Danem-se os leitores.

Tudo é desrespeito neste romance moderno com raízes no Quixote. Riso e melancolia brincam sob a batuta de Sterne. Como se não bastasse ser um excêntrico romance sobre quem escreve um romance, Tristram Shandy apresenta uma série de artifícios antes nunca vistos: uma página inteiramente pintada de preto, tentativas de desenhar graficamente a evolução do romance, alguns capítulos em branco (em que nada é escrito) e uma página também em branco, limpinha, para que o leitor desenhe sua amada.

Acima, Sterne nos brinda com o esquema gráfico da história do tio Toby…

Hoje, poucos lêem o descontrolado e desprogramado Tristram Shandy, mas os estragos causados por ele fez foram grandes: Joyce adorava seus jogos de palavras e trocadilhos ab-so-lu-ta-men-te malucos, Beckett — “Nada tenho a dizer, mas somente eu sei como fazê-lo” — deliciava-se com o fato de Sterne ter, por assim dizer, inviabilizado seu próprio romance e Machado de Assis aprendeu com ele a dialogar frequentemente com o leitor e a brincar com aqueles pequenos capítulos em que nada, mas nada mesmo, acontece. Aliás, há cenas de Memórias Póstumas de Brás Cubas que demonstram toda a admiração de Machado por Tristram.

Li este livro em 1985, na brilhante tradução de José Paulo Paes em edição da Nova Fronteira, depois reeditada pala Cia. das Letras e despeço-me com mais um trecho do Tristram Shandy. A pontuação é a do autor, claro:

O que é a vida de um homem! Pois não é um rolar daqui para lá?——–De infortúnio em infortúnio?—— Abotoar uma ca(u)sa de aflição!—–e desabotoar outra?

(…)

—Entrementes, tenho umas poucas coisas a fazer—uma coisa a nomear—uma coisa a lamentar—uma coisa a esperar, uma coisa a prometer, e uma coisa a ameaçar.—Tenho uma coisa a imaginar—uma coisa a declarar—uma coisa a esconder, e uma coisa por que rezar. ——A este capítulo chamarei, portanto, o capítulo das COISAS——e o capítulo a ele subsequente, isto é, o primeiro do volume seguinte, se eu viver o bastante, será o capítulo das SUÍÇAS, a fim de manter algum tipo de nexo entre as minhas obras.

A coisa que lamento é terem as coisas se apinhado de tal modo sobre mim que não consegui chegar àquela parte de minha obra a que visei durante todo o caminho com tamanha ansiedade, qual seja a parte das campanhas, e mais especialmente a dos amores do tio Toby; os acontecimentos e eles respeitantes são de natureza tão singular e de cunho tão cervantino que se eu conseguir transmitir a outro cérebro as impressões que as ocorrências suscitam por si sós em meu próprio cérebro—garanto que o livro abrirá caminho no mundo muito melhor do que nele abriu seu autor.—Oh Tristram! Tristram! poderá jamais acontecer, uma vez que seja—que o prestígio de que venhas a desfrutar como autor compense os muitos infortúnios que te afligiram como homem?—Festejarás o primeiro—quando tiveres perdido toda a sensação e lembrança dos outros!—

Não estranha eu estar tão inquieto por chegar a estes amores.—Eles são o acepipe mais refinado de toda a minha história! E quando eu chegar enfim a eles—asseguro-vos, boa gente,—(não me importam os estômagos delicados aos quais possa desgostar) que não serei nada cuidadoso na escolha das minha palavras;—a coisa que tenho a DECLARAR——–é que receio não poder chegar-lhes ao fim em apenas cinco minutos—e a coisa que ESPERO é que vossas referendas senhorias não se ofendam—se vos ofenderdes, podeis contar, minha boa gentry, que no próximo ano eu vos darei algo com que de fato vos ofenderdes—assim o faz minha querida Jenny—mas quem seja a minha Jenny—e qual a extremidade certa e a extremidade errada de uma mulher, essa é a coisa a ser ESCONDIDA—ser-vos-á contada dois capítulos após meu capítulo acerca das casas de botão—e em nenhum outro capítulo anterior.

E agora que chegastes ao fim destes quatro volumes—a coisa que tenho a PERGUNTAR é, como estão vossas cabeças? A minha dói horrivelmente—quanto às vossas saúdes, sei que estão bem melhores…

Estão mesmo, Laurence, ao menos a minha está.

 A descrição da morte de Yorick: uma página preta, de luto.

Uma abordagem pessoal ao Abecedário de Pound

Durante a adolescência, apaixonei-me tão perdidamente pela literatura, que tinha certeza de que o único destino possível para mim era o de tornar-me escritor. Era capaz de ler livros diariamente por mais de 6 horas. Na época não confessaria isto nem sob tortura, mas minha dedicação era uma meticulosa preparação para o futuro. Queria abordar o maior número possível de obras e fazia-o de maneira sistemática, a fim de alargar pouco a pouco meus conhecimentos. Minha família preocupava-se discretamente com aquele filho maluco que só queria saber de livros, mas como eu era manso, minha situação não lhes assustava muito. Kafka dizia que, fora da literatura, pouca coisa o interessava; a mim também, naquele tempo. Depois, muita coisa mudou, mas fiquemos em Pound.

Nunca me interessei muito por poesia, dedico-lhe um tempo ínfimo se comparado àquele que dou a prosa. Fiquei feliz quando soube que Dostoiévski, Balzac, Bellow, Thomas Mann e outros eram assim também. Porém, no âmbito daquela minha preparação para o futuro, li um ensaísta-poeta que foi fundamental para meu entendimento de literatura. Ele havia caído em desgraça nos meios universitários dos anos 70. Vivíamos sob ditadura militar, todos os intelectuais respeitados eram de esquerda; mas, apesar disto tudo, eu precisava conhecer Ezra Pound, um dos escritores que deram apoio ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial.

Seu ABC da Literatura (Cultrix, 1973), traduzido por Augusto de Campos e José Paulo Paes, foi adquirido e lido por mim em agosto de 1976. É um pequeno livro, escrito quase em forma de panfleto, onde Pound prova, através de teoria simples e de muitos exemplos, que a poesia é tanto melhor quanto mais significados contiver. O ABC comprova que a melhor poesia é a mais saturada de significados e nos explica sobre a sabedoria da língua alemã, onde dichten (condensar) é o verbo alemão correspondente ao substantivo Dichtung, que significa “poesia”. “Grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”, escreve Pound. Após curtas explicações teóricas, Pound nos demonstra suas teses com excertos. Estes tomam metade do livro e são a prova cabal de que sua teoria foi criada sobre fatos literários, não sobre fatos imaginados.

Ezra Pound (1885-1972)

Os prosadores também tiraram vantagem da condensação. Alguns, além de utilizarem uma linguagem limpa, quase livre de adjetivações – como Kafka e Borges, por exemplo – se utilizam de situações que falam. Isto é, os personagens são colocados em determinadas situações que auxiliam a narrativa ou a contradizem. Este é mais um elemento a condensar significados, pois acrescenta mais informação àquela que nos chega através dos meios tradicionais: texto e diálogos. Este seria o máximo de condensação em prosa, pois além da linguagem enxuta e multi-significante tomada da poesia, há todo um contexto apoiando a narrativa. Também o cinema, a partir da nouvelle vague, passou a “treinar” o público para este tipo de abordagem, na verdade tão antiga quanto Shakespeare.

Condensar não é tão fácil quanto parece. “A incompetência se revela no uso de palavras demasiadas”, diz Pound. Parece fácil eliminar as excrescências de nossos textos, mas como fazer para que os significados se multipliquem? Pound não nos deixa à deriva e também investiga os modos através dos quais as palavras podem ser carregadas de significado.

Porém, a teoria de Pound tem limites. Se alguém censurasse Dostoiévski, Bernhard ou Stendhal pela incrível profusão de repetições e detalhes que seus livros contêm, poderia ser chamado tranqüilamente de doido. Nestes casos, as minúcias criam o ambiente da ação ou servem para caracterizar o pensamento de alguns personagens. Dostoiévski escreveu no plano de Crime e Castigo: encher a narrativa de detalhes e repetições! O mesmo vale para o ultra-verboso e barroco Saramago. Nestes autores, o excesso trabalha a favor da trama. Que bom que seja assim! Se a boa literatura fosse apenas aquela que melhor adere a cânones pré-definidos, tornar-se-ia uma simples competição entre virtuoses e morreríamos de tédio. É excelente que os bons autores insistam em agir como aquelas cozinheiras talentosas e corajosas que mudam as receitas durante a preparação dos pratos. Agindo assim, acabam por cometer tanto erros lamentáveis como gloriosos acertos.

Ou seja, sei lá. Cada um faz do seu jeito.

COMENTÁRIO EXPOSTO AO MILTON E AOS SEUS LEITORES (por Paulo José Miranda)

Bom, pensei demoradamente antes de escrever este comentário: pensei um minuto. Para mim, um minuto é muito para pensar, quando se trata da minha vida e não de filosofia, de poesia, de literatura ou de arte. Aí, sim, demoro-me a pensar. Julgo que a vida não foi feita pra pensar. Na vida age-se. Talvez por isso tenha vivido em tantas e tão estranhas partes deste mundo. Ao ponto de a minha casa ser a internet. Não é certo encontrarem-me em outro lugar. Por isso agradeço tudo quanto posso ao Senhor Tim Berners-Lee pela sua infinita generosidade, ao inventar ao WEB e não ter registado direitos, isto é, ter feito da WEB um espaço gratuito. Assim, devido a esse senhor, hoje todos me podem encontrar em meu e-mail e sites. De tal modo é assim que, aquando do meu projecto America-is, o senhor e fotógrafo Francisco Huguenin Uhlfelder anunciou os membros envolvidos no projecto e as suas localizações deste modo: A em Munique, B em Itália, C em Nova Iorque, D em Lisboa e E(u) num http://etc. Tudo isto por causa de não pensar mais de um minuto em relação à minha vida, aos acontecimentos da minha vida.

Depois desta explicação acerca do meu minuto, passo ao que verdadeiramente aqui me trouxe: o post do Milton. Não me parece que este post seja melhor do que alguns outros, mas é seguramente pertinente por várias razões: 1) apresenta um cânone poético-literário que se propõe, depois, não a destruir, mas a relativizar; invoca, sem medo, a filiação política de Pound, assumindo que isso nada interfere no seu juízo de gosto, pois se não gosta dos poemas é por razões estéticas, que não impedem de apreciar ao limite o seu ABC; por fim, mas não por último, mostra a angústia de um homem à beira de ser escritor (estamos sempre à beira quando o mundo não nos reconhece). Ninguém é escritor na sua rua, embora possa ser na gaveta. Contrariamente ao Milton, li muito pouco durante a minha infância e durante a minha adolescência. Li, mas li pouco. Nem sequer alguma vez tive alguma vez a ideia exotérica de querer ser escritor. Quis ser músico! Músico como o nosso (meu e do Milton e de muitos outros) muito apreciado Thomas Bernhard. Mais tarde, falhado o objectivo músico (o talento dava pra ser um razoável executante e um pouco menos razoável compositor) quis ser filósofo. Filósofo depois de falhado o projecto de músico, como já tinha acontecido com alguns filósofos. Depois falhei também neste projecto, embora tenha sido um aluno bastante acima da média, o que daria pra ser um professor mediano na faculdade, nunca como os mestres que tive: António C. Caeiro, Mário Jorge Silva Carvalho, Nuno Ferro, Maria Filomena Molder, José Gil. A poesia surgiu nos intervalos da filosofia. Quando acabei filosofia editei um livro de poesia, A Voz Que Nos Trai, que acabou por ser premiado com o Prémio Teixeira de Pascoaes. Por causa de uma mulher comecei ou recomecei ou comecei, não sei, a escrever prosa. Esse primeiro livro Um Prego No Coração acabou por despertar a atenção do melhor poeta português vivo, que me teceu os maiores elogios e que, por causa disso, me levou á publicação de outros livros de prosa. O segundo, Natureza Morta, levou-me a arrebatar o primeiro Prémio José Saramago que, para além do prestígio me concedeu também cerca de 25 mil euros. A partir daqui aceitei que era escritor. Acabei por ser escritor por ter falhado em tudo o que me havia proposto anteriormente. E não foi sem resistência que um dia, ao olhar para o espelho, disse a mim mesmo: “é assim, pá, és escritor, aceita!” E aceitei. Hoje, volvidos 6 ou 7 anos, sei por que sou escritor e não sou poeta, contrariamente ao que alguns amigos julgam. Nós somos qualificados por uma profissão ou um mister quando grande parte do nosso tempo é passado aí. Ora, eu passo quase tempo nenhum na poesia, quase nada, apenas um pouco mais do que passo a pensar na minha vida. Quanto à literatura, passo quase a minha vida toda. Desde que aceitei aquilo que era, escritor, quase não faço mais nada senão pensar, pensar, pensar, pensar. Não penso em escrever. Penso e escrevo. Penso e escrevo. Penso e escrevo. E assim vai.

Em Portugal temos uma expressão antiga que é: De Espanha nem bons ventos, nem bons casamentos. Poderia aplicar a mesma expressão a Pound. Nunca consegui apreciar-lhe os versos, nem a sua inteligência literária. E asseguro que não se trata de preconceito político, pois tal como o Milton também não misturo alhos com bugalhos, embora isto seja uma discussão enorme. Por outro lado, estou bastante longe de ser um intelectual de esquerda. Não há razões políticas a atrapalharem-me o juízo estético, pronto! Serei a última pessoa a pôr em causa o talento poético ou qualquer outro de Pound. Mas não é pra mim. Quanto à sua teoria, é tão ridícula quanto as teorias que orientavam Eça de Queirós quando escrevia os seus romances. As teorias eram ridículas, mas o talento de Eça, não. Eça é um escritor excelente, um escritor que aprecio imenso. Mas não as suas teorias, não aquilo em que literariamente ele acreditava. Provavelmente passa-se o mesmo com Pound, mas eu não sou permeável. Milton expõe sucinta e eficazmente a teoria do senhor Pound, no seu post, mas depois relativiza a sua verdade. O problema, para mim, é que a verdade não é relativizável, se me permitem o neologismo. À primeira leitura, parece que o Milton quer ficar bem com Deus e com o Diabo, com Pound e com Bernhard. Quem já leu Extinção, de Bernhard, sabe que isso não é sequer possível de ser pensado. Nesse livro, a páginas tantas, lá pras trezentas e muitas, pelo menos na minha edição inglesa, ele expõe, através do narrador, a sua teoria literária. Qual a grande diferença? Primeiro porque ela é teoria dentro de um livro de ficção, isto é, não pode ser lida independentemente desse facto. Não se trata de um ensaio, ou sequer de um artigo, trata-se de algo maior: o coração de Bernhard. E o coração do autor é exposto, mostrado em duas linhas: exagero e repetição. Mais: exagero de repetição. Podemos viver uma vida, ou várias, amando Pound e, depois, outras vidas amando Bernhard, mas não podemos amá-los em simultâneo. Peço desculpa a todos, mas não se pode gostar do Grémio e do Inter! Sei, a arte não é futebol. Pois não, pois não, mesmo. É muito mais vital. Jogamos a nossa vida nela. Eu, pelo menos, jogo a minha vida nela. Assim, amar um cânone e desprezar outro é muito mais vital para mim do que amar o Tremendo FC Porto e desprezar o Benfica. Quero que o Benfica perca todos os jogos, apenas isso. Mas quero muito menos ao cânone de Pound: quero que ele se escafede todo; quero que o cânone do senhor Pound não veja sequer a luz do dia; quero que morra (não a sua poesia, mas a sua teoria). Por outro lado, julgo que Milton não está a defender o “convívio” entre teorias irreconciliáveis. Milton está a dizer que não “reconhece” nenhum cânone. E isto, sim, é perigoso. Não há um escritor que seja que não escreva por causa de um cânone, ainda que o modifique, claro. Mas quem é que pode modificar uma receita (para usar o exemplo dado pelo Milton) senão quem sabe cozinhar, quem seguiu, até à modificação da receita, um determinado cânone? Suspeito que só se pode escrever bem contra Deus, contra a ciência, contra a vida, contra si mesmo. E para estarmos contra, temos que estar, erradamente ou não, certos de que há um caminho melhor do que todos os outros. Só assim Bernhard pôde escrever tão bem como escreveu.

Sou leitor assíduo das crónicas do Milton. Algumas são excelsas. Algumas são maçadoras. Mas todas são bem escritas. Se não julgasse assim, não o tinha convidado para fazer parte do Cidades Crónicas. Mas, para ser melhor ainda, aconselho-lhe, se posso, se ele me permite, que se assuma literariamente. Apetece-me dizer-lhe: “Milton, pá, escreve como se tivesses a dizer mal do Grémio!” E dizer mal do Grémio (que eu prefiro ao Inter) não implica não dizer bem. Pois acaba-se por dizer bem nem que seja desses tomatinhos de conserva do Inter. Eu, que nunca quis ser escritor, e que acabei por ser; foi o que restou pra eu ser, estou convicto de que é daqui que vem a força da minha escrita: escrever contra o que não foi a minha vida, isto, contra todos os meus falhanços, escrever contra mim. Eu sou eu mesmo o meu Benfica. Quero ouvir o Milton dizer: “Eu sou eu mesmo o meu Grémio.”

Abraço forte ao Milton e aos seus leitores,
Paulo José Miranda

O mais confuso (e engraçado) dos grandes romances

Beethoven gostava de temas curtos e afirmativos. O crítico Otto Maria Carpeaux também, até demais. Beethoven repetia seus temas à exaustão, mas não enchia o saco. Carpeaux não os repete, mas larga aqui e ali juízos curtos, afirmativos e terríveis que às vezes me deixam louco. A literatura não prescinde de justificativas mais, digamos, alongadas. Eu adoro Beethoven e Carpeaux, só que o austríaco tem uma capacidade de me irritar que o alemão só utilizou n`A Batalha de Wellington e na Pastoral. Pobre do grande LAURENCE STERNE: na História da Literatura Ocidental, o maravilhoso amansa-burro de 2300 páginas de Carpeaux, ganhou a curta e grossa má vontade do mestre:

Não é romancista, e não compreendemos como seus contemporâneos puderam dar o nome de romance a esse aglomerado de conversas, digressões e anedotas, sem ação novelística, que é o Tristram Shandy.

Que equívoco! Fico curioso sobre o que diz Carpeaux sobre outro livro que também é quase exclusivamente um aglomerado de conversas e digressões filosóficas: O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. Consulto e ele demonstra coerência, fazendo questão de chamá-lo de romance-ensaio. OK. Romance-ensaio é mais que um aglomerado de conversas e digressões, porém Carpeaux sempre ensina muito e conta com minha INDULGÊNCIA.

Mas creio que Carpeaux não ousaria falar mal da espetacular prosa de Sterne, meu assunto de hoje. Seu principal romance (ou não), A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, é uma de minhas melhores lembranças literárias. Este livro extravagante, publicado em capítulos entre os anos de 1759-67, tem importantes admiradores. James Joyce, Luigi Pirandello, Samuel Beckett e – notem bem – MACHADO DE ASSIS, que o cita com conhecimento, foram alguns dos escritores que se declararam influenciados pelo irlandês Sterne, um pároco muito bem sucedido e amante de intermináveis digressões pontuadas de anedotas escabrosas e alusões cínicas. Agrada-me intensamente a forma como Sterne decepciona seus leitores ao não dar seguimento às ações que esboça, coisa que Roberto Bolaño se esmera em realizar (ou não).

A cena inicial do romance nos conta sobre o nascimento de Tristram. Seu pai costumava fazer duas coisas no primeiro domingo do mês. A primeira era dar corda no relógio da sala; a segunda era cumprir seus deveres conjugais. Porém, num destes domingos, sua mãe, JÁ PENETRADA mas sem o menor interesse, pergunta repentinamente (a pontuação, sempre originalíssima, é puro Sterne):

– Por favor, meu caro, não te esqueceste de dar corda ao relógio? ————-Por D—–! gritou meu pai, lançando uma exclamação, mas cuidando ao mesmo tempo de moderar a voz. ——–Houve jamais mulher, desde a criação do mundo, que interrompesse um homem com pergunta assim tão tola?

Com a interrupção, o velho Shandy, desconcertado, descuida-se de outra: a do coitus interruptus; e é desta forma que nasce o HOMÚNCULO ou, para nós, o feto daquele que seria o protagonista da “ação”. A piada fez enorme sucesso e por anos não apenas as prostitutas da Inglaterra perguntaram a seus candidatos QUERES DAR CORDA EM MEU RELÓGIO? como as senhoras de respeito deixaram de comprar relógios para suas casas com receio dos comentários que isso poderia provocar… Que os comprassem os maridos!

É notável o momento em que Shandy desiste de narrar sua própria vida – o livro é escrito na primeira pessoa. Isto acontece lá pela página 80 de um livro de 600 páginas. Ele observa que já passou alguns meses descrevendo as primeiras horas de sua vida. Constata assim que demora muito para escrever do que para viver e que os acontecimentos narrados estão afastando-se mais rapidamente do que a narrativa avança… Impossível alcançar-se. Conclui que o melhor é parar de perseguir-se e conversar com os leitores. A vida de Tristram que siga seu curso e Sterne, bem, Sterne sabe e declara-se consciente de que a literatura existe primeiro para SATISFAZER O AUTOR… Danem-se os leitores.

Como se não bastasse ser um excêntrico romance sobre quem escreve um romance, Tristram Shandy apresenta uma série de artifícios antes nunca vistos: uma página inteiramente pintada de preto, tentativas de desenhar graficamente a evolução do romance, alguns capítulos em branco (em que nada é escrito) e uma página também em branco, limpinha, para que o leitor desenhe sua amada.


Acima, Sterne nos brinda com o esquema gráfico da história do tio Toby…

Hoje, poucos leem o descontrolado e desprogramado romance Tristram Shandy, mas os estragos causados por ele fez foram grandes: Joyce adorava seus jogos de palavras e trocadilhos ab-so-lu-ta-men-te malucos, Beckett – “Nada tenho a dizer, mas somente eu sei como dizer isto” – deliciara-se com o fato de Sterne ter, por assim dizer, inviabilizado seu próprio romance e Machado de Assis aprendeu com ele a dialogar freqüentemente com o leitor e a brincar com aqueles pequenos capítulos em que nada, mas nada mesmo, acontece.

Li este livro em 1985, na brilhante tradução de José Paulo Paes e, por ter lido hoje alguns textos do textos do DOUGLAS CECONELLO — o qual ADORA pontuações de ESTRANHA MUSICALIDADE e de escrever em maiúsculas as PALAVRAS-CHAVE,  passei o dia pensando em Tristram e em Joyce. Coisas.

Despeço-me com mais um trecho do Tristram Shandy. A pontuação é a do autor, claro:

O que é a vida de um homem! Pois não é um rolar daqui para lá?——–De infortúnio em infortúnio?—— Abotoar uma ca(u)sa de aflição!—–e desabotoar outra?

(…)

—Entrementes, tenho umas poucas coisas a fazer—uma coisa a nomear—uma coisa a lamentar—uma coisa a esperar, uma coisa a prometer, e uma coisa a ameaçar.—Tenho uma coisa a imaginar—uma coisa a declarar—uma coisa a esconder, e uma coisa por que rezar. ——A este capítulo chamarei, portanto, o capítulo das COISAS——e o capítulo a ele subseqüente, isto é, o primeiro do volume seguinte, se eu viver o bastante, será o capítulo das SUÍÇAS, a fim de manter algum tipo de nexo entre as minhas obras.

A coisa que lamento é terem as coisas se apinhado de tal modo sobre mim que não consegui chegar àquela parte de minha obra a que visei durante todo o caminho com tamanha ansiedade, qual seja a parte das campanhas, e mais especialmente a dos amores do tio Toby; os acontecimentos e eles respeitantes são de natureza tão singular e de cunho tão cervantino que se eu conseguir transmitir a outro cérebro as impressões que as ocorrências suscitam por si sós em meu próprio cérebro—garanto que o livro abrirá caminho no mundo muito melhor do que nele abriu seu autor.—Oh Tristram! Tristram! poderá jamais acontecer, uma vez que seja—que o prestígio de que venhas a desfrutar como autor compense os muitos infortúnios que te afligiram como homem?—Festejarás o primeiro—quando tiveres perdido toda a sensação e lembrança dos outros!—

Não estranha eu estar tão inquieto por chegar a estes amores.—Eles são o acepipe mais refinado de toda a minha história! E quando eu chegar enfim a eles—asseguro-vos, boa gente,—(não me importam os estômagos delicados aos quais possa desgostar) que não serei nada cuidadoso na escolha das minha palavras;—a coisa que tenho a DECLARAR——–é que receio não poder chegar-lhes ao fim em apenas cinco minutos—e a coisa que ESPERO é que vossas referendas senhorias não se ofendam—se vos ofenderdes, podeis contar, minha boa gentry, que no próximo ano eu vos darei algo com que de fato vos ofenderdes—assim o faz minha querida Jenny—mas quem seja a minha Jenny—e qual a extremidade certa e a extremidade errada de uma mulher, essa é a coisa a ser ESCONDIDA—ser-vos-á contada dois capítulos após meu capítulo acerca das casas de botão—e em nenhum outro capítulo anterior.

E agora que chegastes ao fim destes quatro volumes—a coisa que tenho a PERGUNTAR é, como estão vossas cabeças? A minha dói horrivelmente—quanto às vossas saúdes, sei que estão bem melhores…

Estão mesmo, Laurence, ou ao menos hoje a minha está.


A descrição da morte de Yorick: uma página preta, de luto