Reli o super clássico Memórias póstumas de Brás Cubas, a obra que marcou uma mudança radical na produção de Machado de Assis. Na época, Machado tinha 41 anos — a história foi publicada em folhetim em 1880, tomando a forma de livro no ano seguinte — e ele era considerado um excelente escritor do romantismo. Pois então veio Brás Cubas veio para mudar e dar um salto de qualidade não somente dentro de sua obra como no panorama da literatura brasileira. Memórias Póstumas é o livro que faz a transição do romantismo para o realismo, incutindo audácia e graça, refinamento e pessimismo, sensualidade e humor (às vezes negro) em nossa literatura. Os críticos torceram o nariz e depois se curvaram ao novo estilo livre de Machado, fã confesso de Laurence Sterne.
Anos depois, ao escrever o prefácio de Helena, romance de sua fase romântica (1876), Machado comenta rapidamente sua revolução:
Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferente páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. E claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo.
Brás Cubas é narrado por um defunto e dedicado ao primeiro verme que roeu as frias carnes de seu cadáver e é a celebração do nada que foi a vida do personagem principal. Brás Cubas é um rentista canalha, uma daquelas pessoas que nasceram podendo fazer exatamente nada, para apenas ficar administrando a herança recebida do pai e tentando vagamente uma carreira na política. Boa-vida, ele representa maravilhosamente nossa elite endinheirada, fútil e amante de privilégios. Sua vida é basicamente a narração de seus amores, por onde vazam suas características pessoais.
Primeiro vem Marcela, uma bela cortesã que trata de obter ganho financeiro de Brás Cubas, fato que só cessa com a intervenção de papai, que o manda estudar em Coimbra, de onde ele volta formado em Direito. De seu curso, ele mesmo diz que colheu “de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação”. O resto foram festas. Quando volta, seu pai quer vê-lo casado e deputado… E aparece Eugênia, a flor da moita, uma coxa que se enamora dele, mas que não se deixa humilhar com a certa rejeição. Depois vem Vírgília, o grande amor de sua vida. Num episódio que demonstra que Virgília não é flor que se cheire, ela se casa com Lobo Neves. Depois, Brás e ela tornam-se amantes por longos anos. Vírgília toma as páginas do livro, porém ainda há Eulália, a flor do pântano.
Por onde passa, Brás não somente conta de forma sedutora sua vida medíocre, como faz observações bastante cínicas sobre a vida e a política nacionais. Um dos personagens muitas vezes admirados por Brás é seu cunhado Cotrim, uma figura abjeta que trafica escravos e ganha muito com isso. Ao mesmo tempo, Cotrim seria “ferozmente honrado”, um “filantropo dotado de sentimentos pios”, mas com um detalhe: mandava “com frequência escravos para o calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue”.
O texto é maravilhoso. Dividido em 160 capítulos curtos e ziguezagueantes, muitos deles meros exercícios de prosa, o livro é que há de sedutor e grudento. Machado não julga, não dá lições, apenas mostra e deixa seu crápula tagarelar, argumentando à vontade seus motivos e contando os acontecimentos. É uma leitura toda de viés, com o autor não deixando clara sua opinião certamente desfavorável sobre o “herói” do romance. Ao final, quando Brás diz “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”, respondemos no mesmo estilo dele: sorte nossa. Só que não adiantou muito, pois ainda estamos lotados de de Brás Cubas — e de todo gênero de privilegiados — em nosso amado Brasil.
Claro, trata-se de um clássico que merece o lugar-comum: Memórias Póstumas de Brás Cubas é incontornável!
Um Diário do Ano da Peste é uma leitura óbvia — uma releitura, no meu caso — neste período de pandemia, pois é um livro que nos dá uma perspectiva peculiar, uma visão do passado sobre nossa crise atual. Mas não é apenas isso: ele também tem sido por séculos fonte de admiração, com suas histórias “de uma Londres estranhamente alterada”, onde, durante 18 meses em 1665 e 1666, a cidade perdeu 100.000 pessoas — quase um quarto da sua população. García Márquez e Anthony Burgess eram grandes admiradores da obra que narra jornalisticamente, em um texto sem divisões por capítulos, uma distopia semelhante a que estamos vivendo hoje.
A primeira coisa que devemos dizer sobre Um Diário do Ano da Peste é que não é, estritamente falando, um registro in loco. O livro foi publicado em 1722, mais de 50 anos após os eventos que descreve. Quando a praga assolava Londres, Defoe tinha cerca de cinco anos. Mas o autor afirma que o livro é um relato contemporâneo genuíno — a página de rosto afirma que o livro consiste de “Observações e recordações dos acontecimentos mais extraordinários, sejam públicos ou privados, ocorridos em Londres durante a última grande epidemia em 1665. Escrito por um CIDADÃO que permaneceu o tempo todo em Londres. Nunca publicado antes” e credita o livro a HF, entendido como seu tio Henry Foe.
Mas voltemos a 1722 e pensemos que os escritores costumavam dar ares de realidade a tudo. Por exemplo, Defoe também afirmou que Robinson Crusoe foi escrito por um homem que realmente viveu em uma ilha deserta por 28 anos, e que seu livro sobre o célebre ladra Moll Flanders foi escrito “a partir de seus próprios memorandos”. Ele até coloca essa afirmação no enorme título, que vale a pena reler na íntegra: As aventuras e desventuras da famosa Moll Flanders, que nasceu na prisão de Newgate e que, ao longo de uma vida de contínuas peripécias, que durou três vintenas de anos, sem considerarmos sua infância, foi por doze anos prostituta, por doze anos ladra, casou-se cinco vezes (uma das quais com o próprio irmão), foi deportada por oito anos para a Virgínia e, enfim, enriqueceu, viveu honestamente e morreu como penitente. Escrito com base em suas próprias memórias.
Digo isso reconhecendo a extraordinária qualidade e o enorme significado literário e histórico de Um Diário do Ano da Peste. É possível, claro, que tenha sido baseado nos diários do tio de Defoe. É certo que o próprio Defoe pesquisou longa e detalhadamente sobre o assunto e que usou seu enorme talento para dar vida a ele. O livro está cheio de descrições vívidas da maneira como a praga se deslocou pelos diferentes bairros de Londres, as precauções tomadas para combatê-la e o progresso assustador das carroças carregadas de cadáveres acompanhadas por gritos de “tragam seus mortos”. Também há percepções notáveis sobre o comportamento humano sob a sombra de uma pandemia, sem mencionar os casos de mau comportamento e loucura, como o demonstrado por um cidadão chamado Solomon Eagle, que desfilou pelas ruas denunciando os pecados dos cidade, às vezes completamente nu. Os relatos de médicos, de charlatães vendedores de “remédios milagrosos”, de padres e padeiros são sensacionais.
O próprio Defoe também é um assunto intrigante. Além de escrever mais de 300 livros e folhetos sob quase 200 pseudônimos diferentes, ele viajou amplamente, administrou uma fábrica de azulejos e tijolos e encontrou tempo para participar da desastrosa rebelião de Monmouth que tentava derrubar James II. Foi rico e perdeu tudo várias vezes… Possuiu navios e uma propriedade rural, acabando várias vezes na prisão de devedores… Também foi preso por fingir argumentar, em sua sátira de 1702 The Shortest Way with Dissenters, que a melhor maneira de lidar com rebeldes religiosos era bani-los do país e matar seus pregadores. Houve gente que não entendeu a piada e a Câmara dos Comuns queimou o livro e mandou o autor para a prisão de Newgate por calúnia, enquanto seus amigos aproveitavam a oportunidade para divulgar mais seus panfletos.
Tudo isso ocorreu antes de ele realmente começar a escrever livros. Seu romance mais famoso, Robinson Crusoe, foi publicado em 1719 e Um Diário do Ano da Peste seguiu-o em 1722. Em seus últimos anos, ele também escreveu um grande livro de viagens sobre a Grã-Bretanha , o mencionado Moll Flanders e mais de uma dúzia de outros romances. Na época de sua morte, em 1731, ele estava novamente escondendo-se dos credores.
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Ao reler um Um Diário do Ano da Peste, os primeiros ecos de 2020 vêm na primeira página 1. O narrador nos diz que ele e seus vizinhos ouviram que a praga “voltara da Holanda”. Somos informados de que o governo recebeu avisos, mas não achou algo digno de preocupação. E os navios daquele país continuaram chegando.
Os paralelos para com nossa despreocupada reação inicial a um problema distante — a pandemia iniciou na China — são tão impressionantes que parece quase ridículo apontá-los. Depois, vire a página e leia o primeiro relatório das “contas semanais” mostrando o aumento de mortes em cada paróquia de Londres. Tais estatísticas são obsessivamente observadas pelo nosso narrador ao longo de seu relato. Os registros fornecem comentários sombrios sobre o terror da doença, assim como os números de mortes que agora recebemos todos os dias há semanas.
Então, descobrimos que esses registros podem não ser confiáveis. Os números das autoridades são sempre baixos. Que coincidência, há subnotificação! “Os números da peste apontavam 17, mas os enterros em St. Giles eram 53″.
Os paralelos continuam. O narrador observa que as medidas necessárias para conter o surto foram tomadas tarde demais. Em outras passagens, há descrições assustadoras do vazio das ruas, “pois quando as pessoas chegavam às ruas, elas as viam vazias, as casas e lojas fechadas, com uns poucos andando no meio da rua, um bem afastado do outro”. Não temos o hábito de pintar cruzes vermelhas nas portas das casas onde há infectados ou de colocar guardas do lado de fora para que as pessoas que contraíram a doença não possam escapar. Também não impusemos o período de isolamento de 40 dias, o que dá nome à “quarentena”. Mas hoje qualquer leitor reconhecerá o medo e a piedade com que o narrador fala das pessoas que têm a doença e podem transmiti-la, especialmente daquelas que o fazem sem querer:
Quero falar daqueles que receberam o contágio e o tiveram realmente em seu sangue, mas que não mostraram as conseqüências disso em seus semblantes: ou melhor, nem eles próprios eram sensíveis, pois muitos não são por vários dias. Sem saber, expiravam a morte sobre todos os lugares e sobre todos os que se aproximassem deles, Suas próprias roupas retinham a infecção e suas mãos infectavam as coisas que tocavam.
Uns expiravam e outros aspiravam a morte, outra coincidência! Não é de surpreender que todo mundo, na Londres de Defoe, esteja nervoso. Mas hoje sabemos que o contágio não vinha das pessoas: a culpa era de ratos e pulgas. Há poucas menções aos ratos cujas pulgas transmitiam a peste bubônica — mas há preocupações sobre animais domésticos. Defoe observa que um número prodigioso desses animais foi morto. Foram mortos 40 mil cães e 200 mil gatos…
Defoe também nos fala dos ricos que fogem para o interior e levam a morte — na verdade alguns ratos — com eles, observando como os pobres estiveram muito mais expostos à doença. Mais uma coincidência… Ele descreve como charlatões vendem curas falsas e de como pobres “até se envenenavam de antemão por medo do veneno da infecção”.
As correspondências são tão claras que parece estranho lembrar que Defoe estava descrevendo eventos de 355 anos atrás — e que Um Diário do Ano da Peste, publicado em 1722, nem sequer seja uma descrição em primeira mão. Mas nisso, pelo menos, há esperança. Ele escreve no final:
Terrível peste esteve em Londres no ano de sessenta e cinco cem mil almas levou consigo mesmo assim, estou vivo!
Espero que eu e você possamos dizer o mesmo no final da atual pandemia.
O Mestre e Margarida é um dos melhores livros que já li. Então, é natural que persiga outros livros de Bulgákov. Este Anotações de um jovem médico reúne trabalhos da juventude do escritor. Algumas das histórias foram publicadas numa revista de medicina — Bulgákov foi também médico — e falam da época em que ele foi mandado para ser o único médico numa gelada comunidade rural da Rússia.
Há um pouco do humor do escritor maduro, mas o que chama a atenção é o tremendo realismo e poder de observação presentes no texto. Além disso, o texto de Bulgákov nos envolve totalmente. Enviado para assumir um posto como clínico geral em um hospital isolado da civilização, ele é, à princípio, um médico 100% inseguro. O hospital é bem provido materialmente, mas o novo médico não sabe como utilizar boa parte do que tem… E ele lidera uma pequena equipe que conta com um enfermeiro-dentista e duas parteiras-obstetras, acostumados com a liderança de seu antecessor, um médico velho e experiente. Há momentos em que o jovem doutor volta até sua casa para dar uma olhada em seus livros de medicina… Mas ele começa a trabalhar adequadamente, a salvar vidas, sua fama se solidifica e ele passa a atender mais de 100 pacientes por dia. Está sempre exausto. Se você já exerceu um trabalho de grande responsabilidade irá sentir empatia pelo jovem. A ansiedade é muito bem descrita.
Os contos não têm uma ligação cronológica rígida e retratam os episódios mais notáveis da temporada glacial do jovem doutor. Da parte dele, há sincera preocupação pelos pacientes, que costumam ser muito desinformados, chegando um deles a receber comprimidos para tomar um por dia, mas que acaba tomando todos de uma vez porque com esse negócio de um por dia ele poderia esquecer de tomá-los.
O livro também traz o famoso relato Morfina, que narra a história do vício em morfina do Dr. Poliakov, um colega do protagonista de Anotações — que vai receber o nome de Dr. Bomgard. Poliakov substitui Bomgard no hospital isolado. Usando a morfina uma vez para amenizar uma dor física, ele percebe que esta também lhe amenizava os problemas pessoais e renovava sua capacidade de trabalho. A partir daí, já viram… O conto é muito realista e doloroso.
Morfina é também autobiográfico. Bulgákov foi viciado em morfina em sua juventude, e sua primeira esposa, Tatiana Lappa, foi de extrema importância para ajudá-lo a superar a dependência. Ela é considerada o modelo para a personagem Anna, de Morfina, do mesmo modo que a terceira esposa de Bulgákov, Elena, serviu de base para a Margarida de seu maior romance.
Mas há também o conto Eu matei, que traz a aventura de um médico forçado a servir o exército de Petliura, líder nacionalista ucraniano que colaborou com as tropas alemãs durante a Primeira Guerra Mundial, resistindo aos bolcheviques durante a Revolução de 1917.
Se digo mãe, digo Itália; se digo avó, digo ilha,
se digo bisavô, digo Galiza; se digo trisavó, digo França
um tetravô na Grécia outro em Damasco;
um perdido na Índia cigana outra nas ruas da Palestina,
se chegar aos décimos avós sou de todos os lugares,
venho de todas as origens, concebido em todas as religiões;
venho de um pirata e seguramente de uma puta,
de um marajá e de uma cortesã, uma geisha
e um traficante de sedas; uma amazona das estepes
e um boiardo; um vizir e uma poeta,
família de assaltantes nos idos dos avós doze,
marinheiros das austrálias, perdidos nos infernos
de ser gente do mundo e no mundo parental
chego depois de várias incidências
a esta Lisboa remodelada; na Mouraria um primo
outro no Quartier, uma prima no Magrebe
outra em Moscou e mais uma no Congo
e milhares no Brasil, o meu DNA é o mundo,
as minhas células do universo
sou um homem feito de mulheres em verso.
Nas minhas veias há um refugiado profundo
Afinal onde está o meu berço?
Apesar de reconhecer o que há de (muito) maniático neste livro. gostei muito de reler Franny & Zooey após algumas décadas. O romance é formado por poucas e detalhadíssimas cenas. Os dois personagens principais são os dois irmãos do título, nascidos na célebre família Glass, presente neste e em outros livros de Salinger. Há mais cinco irmãos, mas eles não são protagonistas aqui.
As cenas? Sem spoiler? Vamos lá. Na primeira, Franny começa a entrar em crise. Ela explica ao namorado Lane as razões que a levam a pensar que a religião é a única solução para seu crescente desencanto, tudo isso pontuado por crises de choro e incompreensão. Não é uma cena hilária e vamos nos acostumando com a notável profusão de detalhes que Salinger nos expõe. Depois vem a cena mais engraçada do livro. Zooey discute com mamãe Bessie sobre o fato de Franny não se alimentar, de estar estranha e sem rumo, à beira de um colapso. E finaliza com um enorme diálogo entre Franny e Zooey. As últimas páginas são realmente lindas.
Resumindo, a coisa parece bem teatral. Temos três atos descritos minuciosamente. Primeiro ato: Franny sem rumo e próxima a um colapso. Segundo: mãe pressiona Zooey a conversar com Franny após este ler carta de Buddy, um dos irmãos mais velhos. Terceiro: Zooey intervém a seu modo.
Eu já conhecia este drama de família e sua curiosa intensidade me prendeu novamente. A implacável luta intelectual de Zooey com Franny é exaustiva, dentro de um conflito familiar altamente realista. E não cansa discutir? Nossa, cansa muito! O relacionamento irônico, carinhoso, mas também intolerante de Zooey com sua mãe ajuda a fazer deste livro uma joia. Eles discutem no banheiro, com Zooey absurdamente preso na banheira que esfria, debatendo com uma mãe cansada através da cortina de chuveiro. Esta cena é um bálsamo para todas as banalidades que abundam na literatura.
Talvez seja surpreendente que Franny & Zooey tenha se tornado um sucesso instantâneo. O apanhador no campo de centeio pode ser o livro mais famoso de Salinger, mas Franny & Zooey não está abaixo. Frenético e intransigente, este livro pode até irritar você, mas uma coisa é certa, ele não o deixará indiferente.
Salinger disse que este romance é um “tipo de filme caseiro em prosa”. Sim, é verdade. Só que também é um excelente trabalho de artesanato. Sabem? No início do livro, certa vivacidade fazia com eu me surpreendesse com o fato de Franny estar sendo foco de tanta atenção. E me perguntava se era possível dizer que ela sofria efetivamente. Mas à medida que as coisas progridem na segunda história, cresce a preocupação de ela estar no mesmo caminho suicida que seu irmão Seymour.
Os diálogos sinuosos revelam bastante de Franny mas também de seu irmão. Ambos têm ânsia por um runo. Quando vemos Zooey suando, sentado em silêncio por 20 minutos no quarto abandonado do irmão perdido, sabemos que ele sofre tanto quanto a pobre Franny. O livro é um retrato terno e compreensivo que certamente reflete muito de Salinger. O que torna tudo mais triste.
Franny & Zooey é uma rara e valiosa obra de arte e empatia.
O ótimo A vida invisível de Eurídice Gusmão é o mais brasileiro dos livros. Ou é um retrato tão fiel, mas tão fiel da condição feminina no Brasil nos anos 40 e 50, que boa parte das posturas e ações foram identificadas por mim como sendo das gerações passadas de minha família. Se a ação do livro se passa nos anos 40, eu nasci em 1957 e convivi muito com a família de Cruz Alta (RS) de minha mãe. E, meu jesus cristinho, a sociedade cruz-altense dos anos 60 era a do Rio de 20 anos antes. Havia a mulher decente, a fofoqueira, a que era obrigada a trabalhar (coitada), a puta, todas elas com algo em comum, a infelicidade.
Ou era igual em todo o mundo, tanto que o livro já foi multitraduzido, tendo versões em inglês, francês, alemão, etc.
Este livro de Martha Batalha é de 2016 e cumpriu um longo trajeto. Não obteve editora no Brasil, sendo aceito ANTES em outras línguas. Acabou na maior editora brasileira, virou filme e agora faz crescente sucesso, após a autora ter sido finalista do Jabuti por com seu segundo livro, Nunca houve um castelo.
Este livro conta a história de Eurídice, uma mulher dotada de boa dose de inteligência que poderia ter sido o que quisesse, mas que acabou como dona de casa. Tudo o que ela planejava fazer de forma independente acabava em um não do pai, da mãe ou do marido. E ela tenta tocando flauta, escrevendo um livro de receitas, iniciando uma carreira como costureira, lendo e escrevendo, tudo. A resposta de quem manda nela é sempre um não.
Ela tem uma irmã muito bonita chamada Guida, que também sofre, mas em outro âmbito.
Martha Batalha escreve com mão segura e algo ousada ao fazer com que outras histórias subitamente se atravessem na narrativa. Essas interrupções são tão longas que a gente pensa, como se lesse o Manuscrito de Saragoça, de Jan Potocki: será que ela voltará à história que estava contando antes? Mas todas estas histórias que surgem servem para mostrar a vida sofrida de outras mulheres e para dar potência à história de Eurídice.
Então, A vida invisível de Eurídice Gusmão fala sobre vidas de mulheres submetidas a um machismo sistêmico. O marido de Eurídice, por exemplo, é um bom homem que chega a um alto cargo no Banco do Brasil. só que ele acha que a mulher deve ficar em casa tratando dos filhos e das refeições, já que traz dinheiro mais do que suficiente. E, protegendo e “melhorando” a vida de sua família, ele diz não às novidades da mulher. Para a sociedade da época, parece o homem ideal, só que não… Deste modo, sendo “bom, cuidadoso e correto”, ele impõe à Eurídice uma rotina desesperadora, que destrói sua felicidade, criatividade e brilhantismo.
Restou-lhe o silêncio de uma atividade muito conhecida.
Não pensem em um livro feminista que grita, pensem em um bem delicado e muito, muito forte e convincente.
Eu era leitor de Sérgio Andrade Sant’Anna, depois tomei-me amigo dele no Facebook — dialogamos alegre e gentilmente algumas vezes, falamos de seus livros e de como ele era fisicamente muito parecido com outro grande amigo meu — e sua morte me afeta muito. Foi-se um grande escritor, vítima do coronavírus. João Gilberto, Srta. Simpson, Simulacros, Manfredo Rangel e A Tragédia Brasileira são livros que guardo no ventrículo esquerdo, que é onde o coração bate mais forte. Dias atrás, ele escreveu sobre a grande escuridão. Ele tinha receio que ela estivesse chegando. Puxa vida, Sérgio, não precisava ter acertado, né? Homem íntegro, combateu a ditadura militar e tinha todas as ironias do mundo para nossa atual tragédia.
Foi -se e é mais uma tristeza a marcar esses dias.
Judas é o último romance de Amós Oz (1939-2018), publicado em 2014, aos 75 anos de idade do escritor. Sem dúvida, é um belo ponto final para a grande obra de Oz. Trata-se de uma indiscutível obra prima. É um livro que nasceu clássico, mas não pense em algo acadêmico, pense em algo rebelde. Oz ousa muito em Judas. Ele reinventa a história do homem do qual se diz ter beijado e traído Jesus e questiona a criação do estado de Israel. Só isso. Sem artifícios exagerados ou grandes invenções, apenas empurrando as peças para ali adiante ou para o lado, Oz reconstrói a história do cristianismo e de seu povo. A leitura de Judas é um sereno convite para a livre reflexão. Mas sabem o que eu acho? Há duas histórias contadas paralelamente e a melhor é a outra.
A outra história, a de dentro de casa, é a do trio formado por Shmuel Asch, um jovem, reflexivo e quase desistente estudante universitário; por Guershom Wald, um velho professor inválido que é cuidado às noites por Shmuel; e por Atalia Abravanel, nora de Wald. Os três moram na mesma casa, que é de Atalia. Após desistir (temporariamente?) da universidade, Shmuel serve de interlocutor para Wald entre às 17 e às 22h, já que o velho gosta de tagarelar e tagarelar de forma inteligente e contumaz. Atalia é a nora viúva, pois seu marido, filho de Wald, morreu na guerra. É lá, em uma casa de pedra que cheira à mofo, que são discutidas algumas das grandes questões políticas e religiosas da região.
Não pensem em um livro onde as teses políticas competem com os personagens e a fabulação, pense num livro onde a situação dos personagens diz tanto sobre as teses que tudo se confunde. Alívio! Judas não tem um texto que descamba para a filosofia ou a política, tem um texto onde as situações falam tanto quanto as teses.
Shmuel, um estudante ateu de judaísmo, foi contratado por Atalia para conversar com o velho, dar-lhe alguns remédios e alimentá-lo no horário que citamos. No resto do tempo, ele pode fazer o que quiser. Então, ele dorme, passeia e pensa na tese de pós-graduação que talvez jamais escreva, pois está sem dinheiro e desanimado. Mas talvez o que mais faça é o que fizeram seus antecessores no cargo: apaixona-se pela misteriosa e bela Atalia, uma mulher amarga que não quer nada com homens — além de, eventualmente, seu instrumental.
Shmuel fala muito de Judas Iscariotes. Ele acredita que Judas, na verdade, não traiu Jesus, mas foi seu discípulo mais leal. O velho fala sobre seu sogro, um certo Shaltiel Abravanel, pai de Atalia, famoso traidor na época de sua expulsão do Executivo sionista em 1947, por se opor à criação do Estado de Israel. Abravanel acreditava que judeus e palestinos poderiam viver juntos sem fronteiras. Foi considerado também traidor. O velho e o menino conversam sobre as ideias desses dois mortos, mas acima de tudo sobre suas condições de supostos traidores. Quem decide quem é traidor e por quê? Esse é o verdadeiro tema do romance. Oz conhece bem o tema, já que também teve problemas com o nada tolerante fundamentalismo judaico.
Enquanto isso, desenvolve-se o amor sem chances do jovem Shmuel pela bela, atraente e desiludida Atalia, que tem 45 anos, o dobro da idade dele.
Judas é um romance que lida com a questão da traição. Por que Judas teria traído Jesus em troca de 30 moedas de prata? Não é verdade que Judas honrou seu mestre mais do que todos os outros discípulos e só queria provar que Jesus era todo-poderoso e poderia salvar a si mesmo da cruz? A resposta toca o cerne da relação entre judeus e cristãos e tem importância não apenas teológica, mas também política. A descrição da crucificação de Jesus da perspectiva de Judas é uma das passagens mais impressionantes do livro. Mas há mais, há o processo de introdução de Shmuel no cotidiano da casa, também lindamente descrito.
É magistral a forma como Oz consegue evocar a Jerusalém de 1959 e 1960. Na atmosfera densa e cinza, fica claro desde o início que também a história de amor que surge entre Atalia e o (ex-)estudante de Teologia está condenada ao fracasso. Nas conversas, nas perdas e nas esperanças dos três moradores da casa refletem-se todas as turbulências históricas não apenas das últimas décadas, mas dos últimos 2 mil anos.
Certo dia, um grande amigo me disse que as obras-primas literárias sempre giram sobre estes três temas — o amor, a morte e a existência (ou não) de Deus. Judas é um livro que fala de todos estes temas.
O Rádio-Leitura de hoje [apresentado pelo ótimo jornalista Pedro Palaoro] traz o livreiro Milton Ribeiro, da Bamboletras, uma das mais tradicionais livrarias de rua de Porto Alegre. Ele comenta sobre a reinvenção do comércio nesses tempos de pandemia e reflete sobre os ensinamentos que o período de isolamento social podem trazer.
O livreiro também dá dicas de leituras e compartilha conosco um trecho de uma das grandes escritoras portuguesas contemporâneas.
Faz quase dez anos que Guy Roland não sabe quem é. Após uma crise de amnésia, não lembra nem de seu nome, nem do que fazia, nem do que aconteceu com ele. Nos últimos tempos, ele trabalhava em um escritório auxiliando um detetive. Mas, após ver fechado o local em razão da aposentadoria do dono, sai em busca de pessoas que possam lhe ajudar a dizer quem, afinal, é (ou foi). Uma trama policial? Não, a busca da identidade.
Modiano se utiliza de algumas características da literatura e do film noir, só que os usa para contar uma história entre o charme a a filosofia. O charme: Guy está sempre entrando em ambientes noir — ruas mal-iluminadas, bares enfumaçados, apartamentos velhos e sujos. A filosofia: Guy demonstra o valor da memória, da perda e a necessidade de pertencimento do indivíduo. Durante a busca, as perguntas a si mesmo são:”Esse sou mesmo eu?”, “Teria eu essa vida?”, “Teria eu morado aqui?”, “O que essa pessoa significava para mim?”, “Por que esse nome não me desperta nada?”, “Essa música deveria me remeter a algo?”.
O livro é melancólico, cheio de belas cenas com ligações entediantes entre elas.
Em 2014, Patrick Modiano recebeu o Prêmio Nobel de literatura “pela arte da memória com a qual ele evocou os destinos humanos mais inacessíveis e descobriu o mundo da vida da ocupação”. OK. Com a aprovação do prêmio, parecia que seria um bom momento para ele estourar, o que não aconteceu. Compreensível. É o cara é o arquétipo de certo gênero de vencedores de Nobel: o chato de grandes temas.
Voltando. O livro começa portentosamente com a frase: “Não sou nada”. Como disse, é somente depois que seu chefe se aposenta que ele é libertado do trabalho para finalmente assumir a tarefa de buscar saber quem é. Naturalmente, isso envolve uma investigação. A princípio, Guy é levado a acreditar, erroneamente, que ele pode ser um homem chamado Freddie Howard de Luz. No entanto, com o tempo, sua pesquisa o leva a acreditar que seu nome verdadeiro seja Jimmy Pedro Stern, e ele que nasceu na Grécia. Mas algumas evidências indicam que seu nome e identidade reais possam de um certo Pedro McEvoy, nascido na República Dominicana. Se ele é Stern, desapareceu em 1940. Se ele é McEvoy, ele deixou a França antes da guerra.
Em sua busca para descobrir quem é, Guy trabalha por intuição, premonição, suposição e imaginação onírica. Ele constantemente faz hipóteses sobre os motivos e o comportamento das pessoas. Os detalhes díspares que descobre servem como o fio de Ariadne que ele espera que o leve a si mesmo. Mas mesmo quando sente que está fazendo algum progresso, reconhece: “Fragmentos, fragmentos vieram à tona como resultado de minhas pesquisas … Mas então é isso que uma vida significa… É realmente minha vida que estou rastreando? Ou de outra pessoa na qual eu me infiltrei de alguma forma?”.
Finalmente, sua investigação o leva a concluir que ele e uma mulher, Denise, provavelmente foram vítimas de uma cilada enquanto atravessavam a fronteira franco-suíça no inverno, durante os últimos dias da guerra. Denise desapareceu. E ele também pode ter desaparecido. O trauma de ser enganado e deixado nas montanhas para morrer de frio pode ter sido, ele decide, o choque que produziu sua amnésia. O paradeiro de Denise permanece desconhecido, mas, graças ao trabalho de Guy, ela agora tem um nome e uma história. No final, o ex-Guy está fisicamente presente, mas apesar de seus esforços, ele continua sendo uma pessoa desaparecida, sem nome ou história verificável. Ele pode ser Jimmy Pedro Stern ou Pedro McEvoy. Ou ele pode ser nenhum dos dois. Ou pode ser que, como ele diz no começo do romance, que ele não seja nada.
Gerárd de Cortanze é um biógrafo de Frida Kahlo. Quando este livro, cujo título original é Los amantes de Coyoacán, foi lançado, ele disse ter feito um enorme trabalho de pesquisa, tornando-se uma espécie de Sherlock Holmes da relação entre Frida Kahlo e Leon Trótski, rastreando todos os números e provas, comparando dados e informações. E completou dizendo que tudo o que “afirmo e escrevo é justo e verdadeiro. A imprensa da época, testemunhos, os diários íntimos, as memórias, usei tudo para contar essa história.”
Ele denomina a obra de romance, mas a parte romanceada serviu apenas para corrigir dúvidas que os documentos deixaram vagos e para preencher e ligar cenas.
Trótski chegou ao México após oito anos de exílio. Ele era perseguido tanto por Stálin como pelos fascistas. Foi ao país a convite do pintor Diego Rivera, na casa de quem se hospedou. Ao chegar com a esposa Natalia, foi recebido pela mulher de Rivera, Frida. Trotski jamais tivera contato com uma mulher assim — inteligente, saltitante, sorridente e, principalmente, livre. A paixão foi imediata. A bissexual Frida logo atacou, atraindo-o para sua cama na Casa Azul, onde vivia desde a infância. O marido de Frida, Diego Rivera, tinha vários casos, um deles com a cunhada, Cristina. Para se vingar, Frida passou a encontrar Trótski no apartamento da irmã. Por fim, separou-se de Diego.
O livro humaniza duas importantes figuras históricas que costumavam trocar bilhetinhos de amor dentro de livros. Frida, sempre corajosa. Leon, apaixonado, mas sem nenhuma intenção de abandonar a esposa. O casal também podia se disfarçar para fugir dos seguranças em cenas nada engrandecedoras. Trótski diz que com Frida viveu seu grande amor. Feliz, Frida produz muito naquele período de paixão. Achei muito divertidas as cenas com o ultra chato surrealista André Breton.
Bem contextualizado, o romance mostra não somente um caso amoroso, mas como o marxismo era visto e combatido na época. Quase todos os intelectuais eram comunistas cindidos entre os campos stalinista e trotskista.
No final do ano passado, A Barata foi o livro da hora na Inglaterra. Ou foi o livro do desespero de McEwan com uma irreflexão coletiva, o Brexit. Claro que a pandemia deixou o livro na poeira. Ou não. Na cena mais inacreditável da novela (102 páginas), o primeiro-ministro inglês, a ex-barata Jim Sams, ouve sua análoga alemã (Angela Merkel?) perguntar:
— Por que o senhor está fazendo isso? Por que, com que objetivo está despedaçando sua nação? Por que está impondo essas exigências a seus melhores amigos e fingindo que são seus inimigos? Por quê?
E a resposta, meio constrangida, é:
— Porque sim.
A Barata começa como um inverso de A Metamorfose, começa com uma barata que se vê transformada em homem. Este é Jim Sams, barata que encarna no primeiro-ministro britânico. Depois de adaptar-se ao novo corpo, Jim leva a sério seu papel e sai-se muito bem na luta para implementar uma política econômica baseada em uma ideia ridícula, o “reversalismo”. Essa coisa faz com que o fluxo de dinheiro seja invertido. Por exemplo, o reversalismo faz com que as pessoas paguem para trabalhar e ganhem dinheiro ao consumir. Isso entusiasma as massas mais tolas. Jim sabe que é puro populismo e que é ruim para todos, mas trata de levar em frente a ideia, para felicidade do presidente dos EUA, um cara grosso que ama o Twitter.
O livro fala de populismo, linchamentos pela imprensa, anseios nativistas, amor a si mesmo e à terra e sangue, ignorância às mudanças climáticas, etc.
A ideia é boa e muito calcada na realidade, o que talvez torne o livro datado. Mas não o chamaria de panfletário em razão da alta qualidade da prosa de McEwan.
Bom mesmo é o posfácio, onde McEwan deixa claro seu horror e sobra pra todo mundo, até para o Brasil. É lá que está a chave para o entendimento da novela: está no parágrafo que começa assim: “O populismo, desconhecendo sua própria ignorância…”.
Mais um bonito livro da finada CosacNaify. Este é de 2012 e seus dois pequenos volumes vinham enrolados numa imensa folha de um jornal de São Petersburgo de 1836. Era realmente uma obra de arte (veja foto ao final da resenha para entender como os dois pequenos volumes vinham acondicionados). Um dos volumes era o muito cronístico Notas de São Petersburgo de 1836 e o outro — um pouco maior e bonito — era Avenida Niévski.
Avenida Niévski conta o cotidiano desta que é a rua principal de São Petersburgo e aparentemente um dos grandes amores de Gógol. O que é retratado no conto é cotidiano da rua, com seus horários, características, casas comerciais, governamentais e praças, para depois focar-se em dois personagens.
O primeiro é o jovem pintor Piskarióv. Ele vê uma linda mulher caminhando pela avenida e a segue. Ele nota que ela incentiva sua aproximação e fica louco de amor. Mas ambos, em vez de chegarem a uma casa respeitável onde a donzela mora com os pais, vão dar num puteiro chique. Só que o encanto da moça não abandona Piskarióv. Sob o efeito do ópio, ele a imagina virtuosa e vai procurá-la. Paramos por aqui.
O segundo é o tenente Pirogóv, um oficial russo também fisgado pela beleza de uma moça, que descobre ser casada com um artesão alemão. Mesmo assim, ele — extremamente confiante e vaidoso — vai atrás. E, novamente, paramos por aqui.
A fim de nos dar a impressão de estarmos passeando pela Niévski, as páginas do volume são divididas pela metade, em duas partes. A de cima com as letras normais e a de baixo com letras de cabeça para baixo. Assim:
Então, lendo a parte de cima, a gente vai toda a rua por uma calçada, chegamos ao final, viramos o livro e voltamos pela outra calçada, se me entendem. Tudo isso acompanhado de desenhos da própria avenida. Como eu disse, este livro é um objeto de arte.
O outro volume, Notas de Petersburgo de 1836 é um retrato comparativo da vida cultural de Moscou e São Petersburgo da época, com grande foco no teatro. É bastante interessante. São cidades muito diferentes. Em gostos, nas ocupações, divertimento, posturas, vaidades…
Leitores de todo o país estão recomendando livros, enquanto editores, escritores, livrarias e bibliotecas tentam manter a alegria na vida das pessoas
Massimo Carlotto — no The Guardian (tradução minha)
A neve cai nos telhados. O silêncio é sinistro. Apenas alguns dias atrás, este campo montanhoso na fronteira com a Áustria estava cheio de turistas. Agora está quase deserto. Suas estações de esqui, hotéis e restaurantes estão fechados. Geralmente atravessamos a fronteira para fazer compras e encher nossos tanques com gasolina que custa menos e é de melhor qualidade, mas agora a alfândega austríaca recebeu ordem de fechar. Não é mais possível passar. Não moro neste vale, mas tenho uma casa aqui para onde fujo quando preciso de paz para me concentrar na escrita — geralmente quando estou atrasada para o prazo de um romance e meu editor está começando a se preocupar. Mas agora eu prefiro ficar aqui. Não apenas porque o contato com outras pessoas é mínimo, mas porque eu quero assistir o que está acontecendo da distância certa. O coronavírus está mudando a imaginação coletiva dos italianos e nós, escritores, devemos estar em condições de registrá-lo. Eu assisto Pádua, minha cidade, via webcam. As belas praças estão desertas. Finalmente, as pessoas estão aceitando a gravidade da situação.
O bloqueio é absolutamente necessário: o sistema nacional de saúde não consegue acomodar o grande número de pacientes em terapia intensiva. A Itália está pagando o preço por cortes. Felizmente, porém, o governo teve a coragem de tomar medidas drásticas em um país que está culturalmente acostumado a interpretar regras com certa elasticidade. Parte da população, confinada em suas casas, está exalando sua ansiedade e frustração nas mídias sociais e houve incidentes como assaltos no supermercado. Mas celebridades e estrelas do esporte se uniram em uma campanha de divulgação chamada #IStayAtHome. A mensagem deles é insistente: não saia de casa.
O establishment cultural se mobilizou contra o medo: escritores, músicos, artistas, mas também editoras, livrarias e bibliotecas públicas. Todos se empenham em tornar este lar forçado menos triste e difícil.
O fechamento das livrarias foi um golpe para o mercado editorial, que está sendo mantido pelas vendas on-line, mas os leitores tomaram a iniciativa, desenvolvendo maravilhosas listas de leitura boca a boca, destacando clássicos esquecidos e autores de pequenas editoras. Houve uma ênfase em romances que se passam em momentos difíceis da história, de A Peste, de Albert Camus, e Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago.
O bloqueio deve se tornar uma ocasião para reflexão coletiva, não apenas sobre nossos próprios medos, mas também sobre grandes temas sociais, como a solidão — um dos grandes problemas, que o vírus tornou ainda mais doloroso. Solidão não faz diferença de idade ou classe social; aqueles que sofrem com isso precisam de apoio concreto e consistente, mantido ao longo do tempo. O tempo do vírus é uma página na história da Itália; está sendo escrito por muitos, com tragédias e uma miríade de exemplos práticos de solidariedade.
Quando Adam e Evelyn inicia, estamos em 1989 em algum lugar da Alemanha Oriental. Adam é um cara de uns 30 anos que ganha a vida como alfaiate. Muito bom em seu ofício, deixa deslumbrantes mulheres comuns. É considerado por elas um artista e isso lhe traz uma satisfação tranquila. Vive satisfeito.
Sua namorada, Evelyn, tem aspirações mais vagas e acaba de demitir-se do local onde era garçonete. Eles talvez estejam apaixonados, mas Evelyn pega Adam literalmente sem calças, aceitando agradecimentos excessivos de uma cliente. Ela faz as malas e some.
A sonhada viagem de férias do casal ao paradisíaco lago Ballaton, na Hungria, cai por terra, mas eles acabam empreendendo a jornada ao país vizinho separadamente. Evelyn pega carona no Passat vermelho de um amigo da Alemanha Ocidental, enquanto Adam os segue em seu velho carro. A empreitada acaba tomando dimensões maiores quando as fronteiras da Hungria se abrem para o Ocidente e o muro de Berlim cai. Ingo Schulze cria aqui uma bonita história de amor encenada nos últimos suspiros da República Democrática Alemã e acompanha a entrada traumática deste casal em crise num mundo totalmente novo.
O que Adam empreende não é bem uma perseguição, porque ele não é nada agressivo nem insistente, apenas fica por ali pois a quer de volta e a negativa dela não é assim tão definitiva.
Na Hungria, eles estão indo para uma reconstrução bastante espetacular.
Durante a colorida viagem, ambos atraem amigos — ou admiradores. Evelyn inicia amizade com um cara chamado Michael (o dono do Passat), um sujeito esperto que Adam odeia. Michael quer Evelyn, que falsamente protesta que nada poderia estar mais longe da verdade. E há uma garota chamada Katja que faz amizade com Adam.
Ambos viajam carregados de coisas como mapas, passaportes de um país em extinção e, curiosamente, uma tartaruga. Eles se esforçam para obter os documentos para entrar na Hungria, mas esses documentos não são necessários. “Eles abriram a fronteira, algumas centenas de pessoas correram para lá e foram embora”, diz Katja. Aliás, Katja já arriscou a vida tentando atravessar o Danúbio a nado, só que aqui estamos quase no terreno da comédia romântica, então não há nada trágico na tentativa. A verdade é que ninguém sabe qual fronteira é melhor atravessar ou para onde ir. Só Adam quer voltar, os outros aspiram a doce vida ocidental.
Enquanto isso, Adam e Evelyn entram em intermináveis sessões de discussão. Quem é mais infiel? Mais sério? Mais divertido? Mais atrativo? Eles ficam em pousadas e com amigos aqui e ali. Lá pelo meio do livro notamos que eles realmente não querem ir para casa, nem têm mais certeza de onde fica sua verdadeira casa.
Adam voltará a ter uma carreira satisfatória? De que serve um alfaiate no Ocidente?
A história é ótima, com muitos diálogos. Porém, por detrás do ritmo alegre se encontram vidas sem rumo. É clara a intenção de Schulze de nos mostrar que Adam e Evelyn são como Adão e Eva de um novo mundo. Ele até encontra uma Bíblia num quarto de hotel e lê para ela a cena da maçã, da serpente, de Deus, etc. Ela fica pasma de como um adulto pode acreditar naquela baboseira, mas Schulze usa e abusa da história como metáfora.
Bom e despretensioso livro.
(Dizem que a obra-prima do autor é Vidas Novas, que também foi publicado pela defunta CosacNaify).
Eu adoro os pequenos livros de Alessandro Baricco. Três vezes ao amanhecer (Alfaguara, R$ 39,90) pode ser lido em uma sentada (ou deitada) e é entusiasmante, de deixar feliz mesmo. São três histórias que ocorrem ao amanhecer, claro. A primeira é sobre um homem solitário que conversa com uma mulher no saguão de um hotel, ela o convence a fazer certas coisas. A segunda é a respeito de um porteiro idoso que tenta persuadir uma adolescente muito louca a abandonar o namorado violento. E a terceira é a linda história de uma policial de meia-idade que decide levar um menino órfão até a casa do homem que ama e que não vê há anos.
As histórias são habilmente entrelaçadas, os diálogos são rápidos, com alternância entre os discursos direto e indireto. São descritos três fatos onde os personagens dão de cara com a possibilidade de alterar o rumo de suas vidas ao amanhecer.
Três vezes ao amanhecer era um livro imaginário, criado em outro romance de Baricco, Mr. Gwyn. Perto do final de Gwyn, há uma discussão sobre um livro intitulado Three Times at Dawn, atribuído a Akash Narayan. Como a nota inicial sugere, Three Times at Dawn é o trabalho que o escritor ficcional Jasper Gwyn achou mais difícil de abandonar…
Três vezes ao amanhecer foi escrito por Baricco aparentemente após Mr. Gwyn, mas não há maiores ligações os ou continuidade entre os dois livros. São obras independentes.
Como escrevi no início, o livro é formado por três episódios separados, mas eles são conectados por intervalos de tempo bastante longos. Cada parte centraliza-se em um encontro entre uma figura masculina e feminina. Outras figuras também aparecem, mas são incidentais. Um dos personagens está de alguma forma fugindo, às vezes sem ser encorajado, outras vezes sendo trazido à segurança.
O primeiro encontro acontece no saguão de um hotel, com uma mulher entrando ali nas primeiras horas da madrugada e encontrando apenas um homem sentado, esperando a hora de sair para uma importante reunião de negócios. Ela parece ter se divertido um pouco demais à noite e puxa conversa, encontrando uma série de desculpas para mantê-lo ali. É um episódio que tem uma conclusão muito inesperada, com o encontro adquirindo uma natureza muito diferente daquela que fomos levados a acreditar. A primeira história fica um pouco mais explicada no episódio seguinte, que ocorre muitos anos antes e que começa com outro encontro no lobby do hotel nas primeiras horas do dia.
Não são exatamente os “retratos” que se poderiam esperar que Gwyn tenha escrito… “Você teria se esforçado para descobrir a história, vendo-a”, observa Baricco enquanto um dupla de personagens caminha nas primeiras horas da manhã. Sempre inteligente e sutil, Baricco nos apresenta os detalhes certos para que as peças se encaixem, aqui e lá adiante.
O Massacre de Babi Yar foi um enorme fuzilamento em massa conduzido pelos nazistas, durante a ocupação de Kiev na Segunda Guerra Mundial. A parte mais sangrenta do episódio aconteceu entre 29 e 30 de setembro de 1941, quando foram fuziladas 34 mil pessoas em 36 horas. Babi Yar é uma ravina existente em Kiev.
Em 28 de setembro, um aviso foi afixado nos postes e muros de Kiev, dirigido aos judeus:
Ordena-se a todos os judeus residentes de Kiev e suas vizinhanças que compareçam na esquina das ruas Melnyk e Dokterivsky, às 8 horas da manhã de segunda-feira, 29 de setembro de 1941 portando documentos, dinheiro, roupas de baixo, etc. Aqueles que não comparecerem serão fuzilados. Aqueles que entrarem nas casas evacuadas por judeus e roubarem pertences destas casas serão fuzilados.
Os judeus levados à ravina esperavam ser embarcados em trens. A multidão e a confusão de homens, mulheres e crianças era grande o bastante para que ninguém tomasse conhecimento do que estava para acontecer. Levados para a ravina, todos passavam por um corredor de soldados em grupos de dez e fuzilados. Ao escutarem o som das metralhadoras que matava o grupo logo à frente, não tinham mais como escapar.
Babi Yar, de Anatoly Kuznetsov, é um tremendo romance e documento autobiográfico em que o autor narra suas experiências naquela Kiev. Fica claríssimo contra quem foi e quem ganhou a Guerra. No total, em Babi Yar foram mortas 200 mil pessoas, com esmagadora maioria de judeus. Kuznetsov abre sua obra-prima com o famoso poema de Evgeny Evtushenko — também chamado Babi Yar e que foi musicado por Shostakovich — e que não foi nada apreciado pelos fascistas. Nem pelos soviéticos.
Kuznetsov começou a escrever suas memórias de guerra aos 14 anos, em um caderno. Ao longo do tempo, seguiu trabalhando nele, acrescentando novos documentos e testemunhos.
O romance foi publicado com cortes — feitos pela censura soviética — pela primeira vez em 1966, na revista literária mensal Yunost. Os editores reduziram o livro em um quarto do tamanho original e introduziram material adicional politicamente mais adequado.
Em 1969, Kuznetsov partiu para o exílio — foi para o Reino Unido — e conseguiu contrabandear filmes fotográficos de 35 mm, contendo o manuscrito completo. O livro foi publicado no Ocidente em 1970 sob o pseudônimo de A. Anatoli. Naquela edição, a versão soviética editada foi colocada em fonte normal, o conteúdo cortado pelos editores em negrito e o material recém-adicionado entre parênteses. Uma loucura. No prefácio à edição da editora Posev , com sede em Nova York , Kuznetsov escreveu:
“No verão de 1969, escapei da URSS com filmes fotográficos, incluindo filmes contendo o texto completo de Babi Yar. Publico-o agora como meu primeiro livro livre de toda censura política, e estou pedindo que você considere esta edição de Babi Yar como o único texto autêntico. Ele contém o texto publicado originalmente, tudo o que foi expurgado pelos censores e o que escrevi após a publicação, incluindo o polimento estilístico final”.
O romance começa da seguinte forma:
Tudo neste livro é verdadeiro. Quando contei episódios dessa história para pessoas diferentes, todos disseram que eu tinha que escrever o livro. A palavra ‘documento’ na legenda deste romance significa que forneci apenas fatos e documentos reais sem o menor trabalho de inventar como as coisas poderiam ou deveriam ter acontecido.
Kuznetsov descreve suas próprias experiências, complementando-as com documentos e testemunhos de sobreviventes. A tragédia de Babi Yar é mostrada no contexto da ocupação alemã de Kiev desde os primeiros dias de setembro de 1941 até novembro de 1943.
É também sobre o fato curioso de que um garoto de 14 anos pudesse aparecer em qualquer lugar sem que os adultos — soldados alemães — se importassem especialmente. Por acidente, então, vi o que os outros não tinham permissão para ver. E por acidente, ele sobrevivi à ocupação e vivi para escrever sobre ela.
O capítulo “Quantas vezes eu deveria ter sido baleado” lista 20 razões pelas quais os fascistas deveriam ter atirado nele de acordo com ordens emitidas pelos ocupantes nazistas. Quando fala sobre sua própria família, o autor não se esquiva de criticar o regime soviético.
Uma das partes mais citadas do romance é a história de Dina Pronicheva, atriz do Kiev Puppet Theatre. Ela foi uma das ordenadas a marchar para o barranco. Foi baleada. Gravemente ferida, ela se fingiu de morte sobre uma pilha de cadáveres e, finalmente, conseguiu fugir. Ela foi um dos poucos sobreviventes do massacre. Mais tarde, ela contou sua história a Kuznetsov.
O livro é notavelmente bem escrito. Kuznetsov não usa grandes frases e a indignação é até controlada. As formas de sobrevivência, as formas que a fome pode ter em contraste com um inimigo bem fornido são descritas com riqueza de detalhes.
Lembrei de Bolsonaro e de Guedes neste trecho:
O romance termina com um aviso:
Deixe-me enfatizar novamente que não contei nada excepcional, mas apenas coisas comuns que faziam parte de um sistema; coisas que aconteceram ontem, historicamente falando, quando as pessoas eram exatamente como são hoje.
Só, por favor, não confundam Kuznetsov com Soljenítsin. O primeiro é muito mais escritor. E não é doido varrido.
P.S. — Li na edição portuguesa da Livros do Brasil. Há uma edição brasileira da Civilização Brasileira, publicada em 1969. Acho que ambas as edições são as censuradas pelos soviéticos.
O anjo do avesso (120 páginas) é um bom livro de estreia do carioca Marcos Vasconcelos. O volume alterna contos e crônicas, apresentando rara coerência temática. É uma delícia de livro, daqueles para ser devorado em uma sentada (ou deitada), apesar dos temas. Minha preferência foram para os contos Chinoca, Uma dose de gim e O açougueiro. Sim, todos tratam da morte de diferentes modos. Chinoca é uma engraçadíssima história gauchesca — o autor tem alguma admiração por esta nossa unidade federativa periférica e defunta –, Uma dose trata da emigração e é efetivamente triste e bem contado, enquanto O açougueiro tem original e sanguinolenta poesia. Apenas um dos contos foi absolutamente incompreensível para mim, um desconhecedor de Harry Potter que boiou feio para depois imergir definitivamente em A morte de Lord Voldemort.
Se os três temas fundamentais da boa ficção são o amor, o silêncio de Deus e a morte, Marcos dedica-se aqui à morte. A própria epígrafe do livro já dá a letra:
Começando do fim
ao invés do começo
a Morte é um anjo
do avesso
Mas não pensem em uma atmosfera bergmaniana ou sufocante, e sim numa abordagem mais leve daquilo que seria a Indesejada das gentes.
Este é um livro inacreditavelmente agradável, coloquial, fluido, sedutor, inteligente, perfeito. Trata-se de uma série de entrevistas realizadas por Jean-Philippe de Tonnac com o escritor, filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo italiano Umberto Eco (1932-2016) e o escritor, roteirista, diretor, ator e bibliófilo francês Jean-Claude Carrière (1931). O assunto é datado, afinal, em 2009, alguns pensavam que o livro poderia acabar, trocado pelo e-book, kindle, pdf, essas coisas. Nossa, como é bom ler duas inteligências, cultas e bem-humoradas conversando livremente, pois Tonnac apenas os provoca e eles vão adiante no melhor dos papos.
A conversa ultrapassa em muito a questão dos “e-books X livros físicos” para adentrar na própria história do livro em dezenas de deliciosas histórias e casos. Mesmo quando, na primeira parte, a dupla discute tecnologia, é muito interessante, pois eles falam da pouca durabilidade dos novos suportes.
Em suma, é um livro de surpreendente vivacidade que lida com o futuro da escrita e da leitura. Curiosamente, o destaque fica para a oralidade dos monstros Carrière e Eco. Ela é muito mais elegante do que muitos dos chamados textos “escritos”. Do papiro ao arquivo eletrônico, eles falam sobre a jornada de 5000 anos do livro. O título é um aviso e, como tal, devemos considerar esse texto como uma homenagem à cultura e ao espírito, um verdadeiro antídoto para o desencanto literário.
Os autores também falam da superioridade do livro sobre o computador, que depende da presença de eletricidade, não pode ser lida em uma banheira ou em vários outros locais. Acrescente-se que o computador também está sujeito a alterações na tecnologia que constantemente nos obrigam a atualizações, ou então a manter nossos dispositivos antigos sob pena de não poder mais ler a mídia na qual salvamos nossos dados. É o paradoxo dos supostos suportes “duráveis”, mas na realidade mais perecíveis que os impressos, uma vez que sua tecnologia não deixa de evoluir e se renovar. Bem, surpreendentemente ainda podemos ler um texto impresso há cinco séculos atrás…
É claro que esse é apenas um dos temas abordados pelos dois autores. Há longas digressões sobre a estupidez, a vaidade, a internet, a censura, a filtragem do tempo sobre as obras, a percepção do que nos é útil dentre as informações que recebemos, etc.
A parte que mais me interessou foi “Todos os livros que não lemos”. Nesta capítulo, eles abordam o tema das coleções de livros — ambos são respeitados bibliófilos e imensas bibliotecas –, da compra compulsiva, dos muitos livros que todos temos em nossas bibliotecas e que, é claro, jamais leremos.
Não posso resistir a copiar um trecho do livro:
À pessoa que entra na sua casa pela primeira vez, descobre sua imponente biblioteca e não acha nada melhor para lhe perguntar a não ser: “Você leu todos?”, conheço várias maneiras de responder. Um amigo respondia: “Mais, cavalheiro, muito mais”.
Quanto a mim, tenho duas respostas. A primeiro é: “Não. Esses livros são apenas os que devo ler semana que vem. Os que eu já li estão na universidade”. A segunda resposta é: “Não li nenhum desses livros. Senão, por que guardaria?”.
Recomento fortemente, especialmente para nós, os amantes de livros.
Ah, lembram daquela observação de Eco sobre a internet? Na verdade, ela é assim:
Podemos insistir nos progressos da cultura, que são manifestos e tocam categorias sociais que eram tradicionalmente excluídas deles. Mas ao mesmo tempo temos a desvantagem da burrice. Não é porque os camponeses de outrora se calavam que eram burros. Ser culto não significa necessariamente ser inteligente. Não. Mas hoje todas as pessoas querem se fazer ouvir e, fatalmente, em certos casos fazem ouvir apenas sua simples burrice. Então digamos que era uma burrice que antigamente não se expunha, não se dava a conhecer, ao passo que, em nossos dias, vitupera.
II — As circunstâncias em que foi escrito O Mestre e Margarida
Bulgákov escreveu O Mestre e Margarida sem a menor perspectiva de publicação. Escreveu para a gaveta. Os motivos eram óbvios — o romance era uma sátira à União Soviética produzido durante a época stalinista –, mas os detalhes são surpreendentes.
Imaginem: o escritor era cristão ortodoxo. Isto numa época em que a religião era proibida. A URSS era um estado ateu. A perseguição aos religiosos começou em 1917 e a eliminação em massa começou em 18. O ápice foi entre 1937 e 38, enquanto Bulgákov escrevia o romance. Em 37, foram presos 136.900 padres e funcionários de igrejas. Destes, 85.300 foram simplesmente executados. Em 38, foram presos 28.300 e executados 21.500. Espero que estes números deixem claro quão impossível era falar do assunto Religião naquela época.
Stálin tinha real interesse por arte, costumando ir regularmente a concertos, óperas e peças de teatro. Ele pessoalmente assistiu, reprovou e fez proibir uma ópera de Shostakovich, por exemplo. Nos anos 20, ele assistiu quinze vezes — não é exagero — à peça Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov. Simplesmente adorou e ia aos camarins cumprimentar os atores a cada sessão que ia. Esteve presente também na estreia, quando a cortina foi erguida nove vezes a fim de que os atores fossem aplaudidos. Stálin também costumava telefonar de madrugada para assessores e outras pessoas quaisquer com quem tivesse assuntos a tratar. Sofria de insônia e, com sua fama, é claro que assustava quem recebia as ligações. Telefonou uma vez para Bulgákov após este lhe enviar quase uma centena de cartas pedindo permissão para emigrar. Bulgákov reclamava que era um dramaturgo conhecido no exterior, mas que na URSS estava fadado à miséria, à rua e à ruína. A lenda diz que foram várias ligações de Stálin, mas uma aconteceu com certeza.
O conteúdo geral desta ligação é bem conhecido. Bulgákov ficou com medo e teve receio de insistir quando Stálin disse que preferia que ele permanecesse na URSS. O líder prometeu-lhe um emprego em um teatro, o que acabou acontecendo. Assim, ele encontrou trabalho no Teatro da Juventude do Trabalho de Moscou (TRAM), e depois no Teatro de Arte de Moscou. Sim, trabalhou com Stanislavski. Neste século, o dramaturgo espanhol Juan Mayorga escreveu uma peça que começa com o famoso telefonema de Stálin para Bulgákov, chamada Cartas de Amor para Stálin.
Anos depois da conhecida ligação, Bulgákov tentou se tornar um escritor “soviético”, dentro dos padrões do realismo socialista. Em 1939, ele começou a trabalhar em uma peça laudatória ao líder. Mas Stálin, ao ler os esboços, parece não ter ficado satisfeito e, sem falar com o autor, indiretamente proibiu Bulgákov de terminá-la, não permitindo o acesso do escritor e de sua esposa aos arquivos em Batumi, cidade georgeana onde Stálin iniciou sua vida política. A peça era cheia de clichês socialistas, nada era vivo. E o Secretário-Geral sabia como Bulgákov podia escrever.
Bulgákov morreu em 1940 e sua maior obra, O Mestre e Margarida, veio a público somente em 1966-67. Ou seja, ela permaneceu desconhecida de seus contemporâneos. Mas ele já tinha publicado peças de teatro e outras obras em prosa, como as extraordinárias novelas Os Ovos Fatais e Um Coração de Cachorro. Sua arte é de absoluto virtuosismo. Se o campo onde se sente melhor é o da sátira corrosiva, ele também sabia descrever classicamente cenários bíblicos, como fez em partes de O Mestre.
Mikhail Bulgákov (1891-1940) nasceu em Kiev, na Ucrânia, que era então parte do Império Russo. Ele foi o primeiro filho de Afanasiy Bulgákov, professor da Academia Teológica de Kiev. Seus avôs eram clérigos da Igreja Ortodoxa Russa. Em 1916, aos 25 anos, formou-se médico na Universidade de Kiev e depois, junto com seus irmãos, alistou-se no Exército Branco. No início da Primeira Guerra Mundial, como médico voluntário da Cruz Vermelha, foi imediatamente enviado para o front, onde foi gravemente ferido em duas ocasiões.
Após a Guerra Civil, com a derrota dos brancos e a ascensão do poder dos soviéticos, sua família emigrou para o exílio em Paris. Apesar de sua situação relativamente privilegiada durante os primeiros anos da Revolução, Bulgákov viu-se impedido de emigrar da Rússia devido a um insistente tifo. Nunca mais viu sua família.
As lesões da guerra tiveram graves efeitos sobre sua saúde. Para aliviar sua dor crônica, especialmente no abdômen, foi-lhe administrada morfina. Ficou viciado, e parou de injetá-la em 1918, aos 27 anos. O livro Morfina, publicado em 1926, atesta a situação do escritor durante esses anos. Em 1919, aos 28, ele decidiu trocar a medicina pela literatura.
Em 1932, aos 41 anos, Bulgákov casou-se pela terceira vez com Elena Shílovskaya, que seria a inspiração do personagem Margarida de sua novela mais famosa. Durante a última década de sua vida, Bulgákov trabalhou em O Mestre e Margarida, além de escrever peças, fazer revisões, traduções e dramatizações de romances. Alguns foram para o palco, outros não foram publicados e ainda outros foram destruídos. Bulgákov trabalhou no romance de 1928 a 1940, ano de sua morte.
Em 1931, irritado com a censura a uma de suas peças, queimou o manuscrito do romance, mas voltou a ele dias depois.
Para quem hoje lê Bulgákov, talvez o fato do escritor não apoiar o regime comunista seja apenas uma informação complementar. O que interessa é que ele foi o mais brilhante dos gozadores, dos zombeteiros. O autor ria da burocracia e dos governantes. E todos nós temos governantes, feliz ou infelizmente. Não obstante o amor do chefe Stálin, o escritor suportou grande assédio da NKVD, que chegou a procurá-lo em casa e prendeu-o em mais de uma ocasião. Em 1926, levaram todos os manuscritos encontrados em sua casa, esboços e diários. Devolveram 3 anos depois. Só sete décadas e 50 anos após a morte do escritor, quando da abertura dos arquivos da KGB, os documentos foram conhecidos. Não continham nada comprometedor.
Muitas evidências sobreviveram sobre a atitude do escritor em relação ao poder soviético na década de 1920. Entre eles há artigos na imprensa branca e materiais de interrogatórios. Porém, há um fato que comprova certa independência do escritor: os brancos o criticavam por ser pró-revolução e os revolucionários pelo motivo contrário. Para os comunistas, sua arte era um “brancovanguardismo” e ele seria um “reacionário social”; para os brancos, ele seria mais um vendido. É curiosa a posição onde Stálin colocou seu potencial inimigo Bulgákov, muitos dos escritores que não apoiaram a revolução foram presos, muitos foram mortos. Bulgákov não.
Bulgákov foi morrer de um problema renal em 1940, aos 48 anos.
Em vida, Bulgákov ficou conhecido principalmente pelas obras com as quais contribuiu para o Teatro de Arte de Moscou de Konstantín Stanislavski. Foram muitas comédias e adaptações de romances para o teatro, casos, por exemplo, de Dom Quixote e Almas Mortas. Bulgákov também escreveu uma comédia grotesca fazendo com que Ivan, o Terrível, aparecesse em Moscou na década de trinta. Um sucesso.
Em meados de 1920, Bulgákov conheceu os livros de Wells e, profundamente influenciado, escreveu várias histórias com elementos de ficção científica. Um exemplo é a extraordinária novela Um Coração de Cachorro, onde Bulgákov critica abertamente — e com impressionante cinismo e ironia — a primeira década do poder soviético. Outro é a hilariante Os Ovos Fatais.
Morfina merece menção especial. Trata-se do diário de um companheiro do protagonista, o médico Poliakov. É uma crônica da autodestruição. Ele escreve no início do livro: “Eu não posso louvar quem primeiro extraiu a morfina das cabeças das papoulas”. No mais, é uma história clínica escrita por um mestre. “Como viciado, eu declararia que o ser humano só pode funcionar normalmente após uma injeção de morfina, mas eu era médico”.
A novela satírica O Mestre e Margarida, sem chances ou tentativas de publicação durante sua vida e que foi publicada por sua esposa vinte e seis anos após a morte do escritor, certamente lhe garante a imortalidade literária. Por muitos anos, o livro só pôde ser obtido na União Soviética como samizdat, antes de sua aparição por capítulos na revista Moskva. É o grande romance do período soviético e contribuiu para criar várias expressões do dia a dia russo.