Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua

Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua

Alberto Caeiro
Escrito em 20-6-1929

Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua.
Ninguém anda mais depressa do que as pernas que tem.
Se onde quero estar é longe, não estou lá num momento.

Sim: existo dentro do meu corpo.
Não trago o sol nem a lua na algibeira.
Não quero conquistar mundos porque dormi mal,
Nem almoçar o mundo por causa do estômago.
Indiferente?
Não: filho da terra, que se der um salto, está em falso,
Um momento no ar que não é para nós,
E só contente quando os pés lhe batem outra vez na terra,
Traz! na realidade que não falta!

Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passe adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salte por cima da sombra.
Não; não tenho pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega —
Nem um centímetro mais longe.
Toco só aonde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E somos vadios do nosso corpo.
E estamos sempre fora dele porque estamos aqui.

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Como o diabo gosta, de Ernani Ssó

Como o diabo gosta, de Ernani Ssó
A capa da edição da Cosac Naify
A capa da edição da Cosac Naify

Como o diabo gosta é um livro delicioso. Ele já foi O diabo a quatro em 1985 e, radicalmente revisado e ampliado pelo autor, está sendo relançado neste ano em bela edição da Cosac Naify. Merece, e não apenas por estar completando 30 anos. O que talvez não mereça é minha participação de hoje à noite no lançamento da nova edição na Palavraria, batendo um papo com Ernani Ssó. Ainda bem que pretendo falar pouco. Porém, neste momento, peço desculpas ao Ernani, pois aqui no blog quem faz os solos sou eu.

Ernani realizou uma auto-entrevista a la Glenn Gould numa crônica chamada 50 tons de vermelho.  O título é chamativo, mas é redutor. Ali, ele começa dizendo que “os resenhistas, como todo mundo nos jornais, trabalham demais, leem os livros correndo, quando leem, e escrevem a toda, sem pensar direito”, o que justifica a entrevista. Ele tem toda a razão, principalmente na necessidade de pensar, tanto que hoje acordei e fiquei matutando sobre como escrever a respeito de um livro do qual gostara muito. O problema é que é mais fácil dizer o que ele não é. Mas vamos ao que ele é.

Numa manhã, Camilo Severo tenta inspirar-se para escrever um romance. Seus pensamentos são interrompidos por lembranças desordenadas. O livro é isso, uma série de capítulos fora da ordem cronológica, às vezes escritos na primeira pessoa, às vezes não, talvez inspirado por O Jogo da Amarelinha do Cortázar que Ernani tanto ama. O livro se passa em Porto Alegre, no triângulo obtuso formado pela cidades de Ermo, Sombrio e Turvo (SC) e um pouquinho mais longe, no Farol de Santa Marta (SC), provavelmente durante o final dos anos 70, quando aquela região estava sendo recém descoberta pelos turistas, principalmente gaúchos. Para lá se dirigiam hordas de bichos-grilos a fim de alugar as casas de pescadores. Lá, ficavam tomando banho de mar e de caneca, bebendo cerveja, consumindo drogas e trepando. Era bom, participei.

Por que é mais fácil dizer o que ele não é? Pelo fato de que Como o diabo gosta ser um livro enganador: ao leitor mais superficial pode parecer uma série de descrições do desbunde, da perda do autodomínio, da loucura e das muitíssimas relações sexuais mantidas pelo narrador. Realmente, o sexo é um tema importante de um livro que se pretende meio bandalho, só que não podemos esquecer que este se apoia mais na literatura do que no sexo. O texto é excelente. Tudo aparece em seu lugar e tem ritmo. Exatas, as palavras só poderiam estar onde estão. Isto é que torna o livro uma delícia e é sempre difícil elogiar um volume dotado de tamanho potencial de prazer e que não envolve grandes e claras teses. É um livro cujas melhores metáforas vêm da musicalidade e isto confunde.

E há o humor. Como o diabo gosta é um livro engraçadíssimo, mas não é um livro de humor. A história também revela a angústia do personagem principal, presente desde o elaborado e culto “tô nem aí” de Camilo, que é refletido no desespero de algumas cenas de sexo. A repetição de alguns fatos — descritos de forma inteiramente diversa no romance — não resulta num quadro divertido, mesmo que se ria deles. Isto parece ser muito bem controlado por Ernani, que espalha pistas que formam um quadro de uma época em que, ao lado da vida no desbunde, havia uma ditadura se desmanchando.

Recomendo muito.

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A Verdadeira Vida de Sebastian Knight, de Vladimir Nabokov

A Verdadeira Vida de Sebastian Knight, de Vladimir Nabokov

a_verdadeira_vida_de_sebastian_knightTalvez eu esteja ensaiando algo no estilo de Jep “não posso mais perder tempo fazendo coisas que não quero fazer” Gambardella. É verdade, estou velho demais para ficar revoluteando por aí. Claro que o melhor de mim acaba indo sempre para o trabalho, mas, se me organizasse, sei que poderia me livrar de alguns penduricalhos de anos e tornar minha rotina mais satisfatória. Deixando de lado a vida amorosa e os tais pingentes, minha prioridade, atualmente, é o retorno aos autores que mais amo e com os quais mais aprendi. E resolvi abordar novamente Vladimir Nabokov, indo diretamente àquele que é um de seus livros mais fundamentais: A Verdadeira Vida de Sebastian Knight (1941).

Sebastian Knight é o primeiro romance escrito em inglês por Nabokov (1899-1977). Conta-se que foi escrito em um banheiro parisiense, com o autor sentado em uma privada com a tampa fechada. Não haveria lugar melhor disponível. No livro, o narrador, V., pretende escrever a biografia de seu falecido meio-irmão, o obscuro e brilhante romancista russo, Sebastian (1899-1936). O nome Knight vem de sua mãe, de origem inglesa. Os dois irmãos, de pais diferentes, viveram afastados desde a juventude. Na busca por informações e do entendimento da vida do querido autor, ele analisa seus textos e vai atrás de conhecidos e de casos amorosos do irmão.

Nabokov é sempre muito enganador. Às vezes, chegamos a identificar culpa nesta obsessão de descobrir quem seria mesmo este irmão autor de livros tão intrigantes. Por que se encontraram em tão poucas oportunidades? Por que não se conheceram melhor?Outras vezes, parece que tudo é uma tentativa de colocar Knight em seu merecido Olimpo literário, pois a nova biografia refutaria outra, enganosa, escrita pelo ex-assistente de Knight, o Sr. Goodman, de nome A Tragédia de Sebastian Knight. Desprezando o autor, Goodman afirma que Knight estava muito distante da vida real e que, vivendo inteiramente em seu projeto literário, não seria um artista solitário, mas um artista cego ao mundo.

Em qualquer caso, uma sensação de falta percorre toda a narrativa. (Calma, não vou adiantar nada da trama). Só lhes digo que é particularmente interessante a parte final do livro, quando V. busca uma mulher com o qual o irmão teria sofrido uma desilusão amorosa após abandonar a esposa Claire. O livro torna-se poliestilístico ao adotar uma paródia de “livro de detetive”.

Não somos informados sobre o nome ou o sobrenome do narrador. Mais tarde Nabokov escreveu que “V estaria para Victor.” Três interpretações têm sido propostas sobre a relação entre o narrador e biografado: que, como se esperaria, V e SK fossem pessoas efetivamente distintas; que SK inventou o personagem V em um de seus livros ou que V inventou SK, sendo a biografia pura ficção. No fundo, a verdade não nos interessa e todas as interpretações parecem possíveis. O que interessa e fica é a notável beleza de um romance de reconstrução incompleta, regida por um autor de texto e talento ímpares.

Um baita livro.

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A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa, ou Identidade Cultural, Sistema Métrico Decimal e Canudos

A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa, ou Identidade Cultural, Sistema Métrico Decimal e Canudos

a guerra do fim do mundoEu amo o mar, mas sou de origem e de alma um sujeito do sertão, que sei de vivência e não de notícia dos Euclides e Guimarães.

Adalberto de Queiróz

Pois eu só conheço o sertão de notícia, Beto, infelizmente só de notícia. A frase acima faz parte de um e-mail que meu amigo enviou-me anos atrás. Falávamos sobre férias, viagens e trabalho. Estava pensando em reler Os Sertões, mas ao notar que ainda não tinha lido o livro de Mario Vargas Llosa sobre Canudos — A Guerra do Fim do Mundo –, escolhi o peruano. O livro fora comprado em 21 de dezembro de 1981, conforme a anotação da primeira página. Nunca fora aberto.

A história de Canudos é riquíssima como documento humano e político. Os acontecimentos são regidos de um lado pelo fanatismo religioso e de outro pelos tortuosos caminhos da política brasileira. Os interessados no conflito são tantos que — guardadas as proporções — às vezes parece que estamos lidando com a Revolução Francesa. Há monarquistas que mudam seus apoios conforme os ventos, há o povo nordestino que tinha Antônio Conselheiro por santo, há os jagunços convertidos, há os republicanos que acabarão por realizar o massacre, há socialistas que viam na ação do Santo Conselheiro uma espécie de vanguarda intuitiva de suas idéias, etc. Ou seja, não é uma história simples e os interesses muitas vezes são acomodados de forma surpreendente.

Porém, o que desejavam os amotinados da terra santa de Canudos? Ora, livrar-se do Anticristo representado pela República e de seus “avanços”. O juramento que os novatos em Canudos faziam explica bem suas motivações:

Juro que não sou republicano, não aceito a expulsão do Imperador nem sua substituição pelo Anticristo. Não aceito o matrimônio civil, nem a separação da Igreja do Estado, nem o sistema métrico decimal. Não responderei às perguntas do censo. Nunca mais roubarei, nem fumarei, nem me embriagarei, nem apostarei, nem fornicarei por vício. E darei a vida por minha religião e o Bom Jesus.

Surpresos com a citação sobre o censo? Canudos era monarquista mas anti-escravatura. A ojeriza ao censo pode ser explicada da seguinte maneira: por que pretendia a República saber a raça e a cor das pessoas senão para, outra vez, escravizar os negros? E por que interessava-se ela pela religião da população, senão para identificar os crentes antes da matança? A rejeição ao sistema métrico decimal tinha motivações ainda mais disparatadas: é que as medidas inglesas eram, digamos, mais monarquistas… Digo-vos, meus caríssimos sete leitores: havia demência no ar. Ainda há hoje, não?

Além do completo massacre dos habitantes da vila de Canudos, houve enorme sacrifício de vidas no exército brasileiro, que não conseguia entender aquela guerra sem ética. Despreparado para ações de guerrilha, o Exército via os amotinados como um inimigo sinuoso, covarde, que se emboscava e desaparecia quando os “patriotas” tentavam encará-lo e que desconhecia as leis e os procedimentos da guerra. Além disto, os amotinados resistiam com inacreditável bravura, certos de que a morte lhes renderia o caminho dos céus. Os soldados, crentes em sua maioria, atacavam outros brasileiros que, paradoxalmente, cantavam hinos ao Senhor sob qualquer pretexto. Isto custou a todos muitas vidas, além de ódio mortal. O episódio Canudos pode ser dividido em 4 campanhas: a primeira e a segunda vencidas facilmente pelos amotinados — o que só fez com que se reforçassem e crescessem –, sendo a terceira foi uma guerra muito longa e tática à espera de reforços e a quarta o massacre no qual foram mortos TODOS os habitantes de Canudos.

O livro não é e nem se tornará um clássico com o de Euclides; é antes um romanção com dezenas de personagens e histórias que se desenvolvem ao mesmo tempo nas várias frentes: Canudos, Exército, jagunços, política e jornais baianos 1, 2 e 3, surpresa e raiva federal, etc. O livro se vale de quatro personagens principais: o monarquista Barão de Canabrava, o republicano Epaminondas Gonçalves, o jornalista míope e o anarquista escocês Galileu Gall. Não é por acaso que o intelectual da história seja um jornalista míope que teve seus óculos quebrados e que anda pela Vila de Canudos sem ver nada claramente.

Por que há tão poucas obras sobre Canudos, por que nosso cinema e a televisão não exploram mais o massacre? Lá foram mortas 25.000 pessoas! Será que Euclides da Cunha, com seu impecável estilo empolado e sua justa aura de fundador da sociologia brasileira, tornou-se intocável? Bobagem, Canudos não é dele. E por que há tantas recriações, abusadas ou não, de Machado de Assis e quase nada da grande história contada por Euclides? Trata-se de um equivocado respeito, de uma distância inexplicável de um fato que fala muito sobre nossa identidade cultural. Por que ignoramos Canudos? Sei lá. O que sei é que veio um peruano destituído deste respeito, fez pesquisas no local e enfrentou a complexa história em 560 páginas. Vale a pena ler, antes ou depois de Os Sertões.

nuestra identidad cultural el roto

Observações: (1) A charge acima, do El Roto, foi retirada do jornal El Pais e refere-se à Espanha. Deve ser a globalização… (2) Sugiro a leitura do livro no original em espanhol, mesmo para aqueles que têm pouca vivência com a língua. A tradução brasileira deste best-seller (na capa acima) é, digamos, média.

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A carta de suicídio de Virginia Woolf

A carta de suicídio de Virginia Woolf

Em 28 de Março de 1941, aos 57 anos, a escritora Virgínia Woolf vestiu um casaco, encheu os bolsos de pedras e afogou-se deliberadamente no Rio Ouse (Sussex, Reino Unido). Antes do ato suicida final, após um colapso nervoso, a escritora deixou uma breve carta para seu marido Leonard, que era o melhor conselheiro e editor de Virgínia.

Leornard e Virginia Woolf no Hyde Park

Eis a sentida carta de despedida que Virginia Woolf deixou ao marido (manuscrito e transcrição):

Virginia-Woolf-carta-de-suicidio

Meu Muito Querido:

Tenho a certeza de que estou novamente enlouquecendo: sinto que não posso suportar outro destes terríveis períodos. E desta vez não me restabelecerei. Estou a começar a ouvir vozes e não consigo concentrar-me. Por isso vou fazer o que me parece ser o melhor. Deste-me a maior felicidade possível. Foste em todos os sentidos tudo o que qualquer pessoa podia ser. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes até surgir esta terrível doença. Não consigo lutar mais contra ela, sei que estou destruindo a tua vida, que sem mim poderias trabalhar. E trabalharás, eu sei. Como vês, nem isto consigo escrever como deve ser. Não consigo ler. O que quero dizer é que te devo toda a felicidade da minha vida. Foste inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom. Quero dizer isso — e toda a gente o sabe. Se alguém me pudesse ter salvo, esse alguém terias sido tu. Perdi tudo, menos a certeza da tua bondade. Não posso continuar a estragar a tua vida. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.

V.

via O Homem que sabia demasiado (adaptado)

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Mr. Gwyn, de Alessandro Baricco

Mr. Gwyn, de Alessandro Baricco

Mr. Gwyn Alessandro BariccoA Elena ganhou este livro de presente de aniversário, em 19 de maio de 2014. Quem lhe deu foram os conhecidos psicanalistas porto-alegrenses Lucia Serrano e Robson Pereira. Ela o leu há pouco tempo e mandou eu ler também. Ela tinha gostado muito e me fez uma curiosa observação. A Balada de Adam Henry, de Ian McEwan, que tinha lido logo antes, seria um livro onde as coisas que acontecem são completamente reais, mas as consequências e as impressões do leitor são surreais. Já em Mr. Gwyn acontecem coisas surreais, mas a sensação é de normalidade, de isso-deve-ser-assim. Não sei se fui feliz ao reproduzir as frases da Elena. O que digo é que o livro da Baricco é extraordinário. São 68 capítulos em 219 páginas da uma história surpreendente que inicia com Jasper Gwyn, um escritor de sucesso, publicando no The Guardian 52 motivos para abandonar a escrita.

Seu editor e melhor amigo desespera-se, mas afirma que Gwyn vai voltar a escrever. Na verdade (sem spoilers), o escritor está atrás de outra atividade que ainda não existe. Ou seja, sua Síndrome de Bartleby não é tão severa. Ele mais ou menos deixa de publicar. E começa a escrever retratos. A ser um copista de pessoas. O texto de Baricco é poético e intrigante. Mesmo que não haja um tremendo mistério a ser revelado, a história faz com que pulemos de um capítulo para outro para saber mais. Afinal, é necessário saber onde Gwyn quer chegar.

Hábil, Baricco dá reviravoltas na história, acelera e freia, entrega pistas erradas, sempre mantendo a poesia do relato. O livro pode ter várias interpretações, mas creio que a mais inconsistente é a que está na contracapa do volume (algo como “o escritor precisa desaparecer para se reencontrar”…) e uma das mais consistentes é que os escritos poéticos e metafóricos captam melhor a essência desta rarefeita nuvem de sonhos que é o ser humano. Infelizmente, não posso dar detalhes que estragariam a surpresas contidas na história.

Fico pensando na relação que o casal de psicanalistas presenteadores pode ter com a história, mas, para discorrer a respeito, também teria que entrar em detalhes indesejados por um futuro leitor. Afinal, o livro pode ser lido também como uma metáfora do entendimento dos personagens-pacientes. Porém, para mim, a obra é sobre o fazer literário.

Mr. Gwyn é entusiasmante. Tanto que desejo conhecer as outras obras traduzidas de Baricco.

P.S. final — Este romance teria vida difícil no Brasil. Se um escritor brasileiro escrevesse um romance passado em Londres, com personagens exclusivamente ingleses, sem referências ao torrão natal, seria considerado “colonizado”, antipatriota e outras besteiras. A crítica politicamente correta tentaria escorraçá-lo das letras nacionais.

P.S. 2 — Ignorem capa da edição brasileira. Fiquem com essas

Alessandro Baricco (1958)
Alessandro Baricco (1958)

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Lutando na Espanha, de George Orwell

Lutando na Espanha, de George Orwell

Lutando-na-Espanha-George-Orwell

O bom do livro do livro de Orwell não está na descrição da política espanhola de muitas siglas e tendências na época. O bom está no retrato sem maquiagem ou heroísmo da Guerra Civil e nas traições que as linhas tortuosas da política mundial perpetraram contra o governo eleito. Uma frente popular de esquerda tinha sido eleita em 1936 e havia uma reação golpista por parte dos fascistas de Franco. A frente era uma grande aliança de partidos e organizações de esquerda, incluindo anarquistas. A situação na Catalunha era única. As igrejas estavam ocupadas, os garçons não tratavam os clientes por señor porque ninguém era subserviente a ninguém e todos usavam roupas simples para não parecerem mais do que os outros.

Por não aceitar esta reação golpista por parte dos fascistas, Orwell foi lutar na Espanha. O caos imperava e as descrições do relacionamento entre os ingleses e os espanhóis são curiosas. O inglês Orwell sabia manejar uma arma e gostava de pontualidade, enquanto seus companheiros quase se matavam cada vez que limpavam um fuzil. Seus relógios eram meros adornos. Ele esperava disciplina e estratégia, mas só via simpatia, ignorância e fome em seus companheiros. Nada funcionava direito. As armas eram velhas e imprecisas, cuspiam balas para qualquer lado. A trincheira fascista ficava longe, inalcançável a qualquer tiro. As ameaças vinham por alto-falantes.

O livro, muitíssimo bem escrito, é cheio de méritos e informação. Há um olhar de estranheza e encanto de alguém que, pela primeira vez, vê os trabalhadores no poder. Depois, o desencanto é completo.

Semanas após chegar, Orwell foi ferido por um tiro e deixou a frente de batalha, retornando à Barcelona, onde a situação catalã já mudara. A burguesia tinha voltado à tona, assim como os tratamentos de senhoria. Na complexa política da época, o POUM que os trabalhistas ingleses como Orwell apoiavam, teve seus membros perseguidos e mortos pelos comunistas. Na fantasia dos devotos de Stalin, tornaram-se simples trotskistas ou espiões dos fascistas. Orwell e sua esposa conseguiram fugir para a França.

Stalin foi um dos responsáveis pela derrota republicana. Enfraquecida econômica e politicamente — com graves perseguições políticas internas ao pessoal de 17 –, não interessava taticamente à União Soviética que a unidade popular-republicana vencesse na Espanha. Agentes stalinistas assassinaram lideranças importantes da frente popular, fortalecendo indiretamente o fascismo franquista. Franco e o fascismo venceram. No horizonte soviético, estava o pacto de não-agressão assinado com Hitler em agosto de 1939.

Orwell era um homem de esquerda que viu o stalinismo trair a classe trabalhadora. O autor foi utilizadíssimo como anticomunista pela direita. Mal lido, Orwell passou a vida atacando o stalinismo em grandes livros, ao mesmo tempo que desmentia a imprensa, que apresenta Franco e as ditaduras de direita como fossem democracias. Quanto à Espanha, Franco permaneceu como ditador até sua morte em 1975 e Orwell só ganhou seu verdadeiro tamanho de excelente escritor há poucos anos.

George-orwell-BBC

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O Condenado (Brighton Rock), de Graham Greene

O Condenado (Brighton Rock), de Graham Greene

o-condenado-graham-greenePor favor, fujam desta antiga edição ao lado. Se este romance de Greene é uma obra-prima, a tradução e os inúmeros erros de digitação são espetaculares. Nos últimos anos, no Brasil, as traduções melhoraram muito. Esta, de Leonel Vallandro, é lá dos anos 50 e tem trechos difíceis de entender, seja hoje, seja na época em que foi lançada. Ademais, cadê a revisão? Espero que a nova edição da Globo, de 2003 e com uma bela capa, traga uma versão revisada.

Aliás, Brighton Rock parece fadado a ter problemas. Após uma notável adaptação para o cinema com Rincão de Tormentas (1947), o romance recebeu uma segunda versão para o cinema, O Pior dos Pecados (2003), que é de absoluta ruindade.

Greene: só bebendo para aguentar tanta transposição ruim!
Greene: só bebendo para aguentar tanta transposição ruim!

Brighton Rock é a história patética de um adolescente que tenta tornar-se um mafioso — ou chefe de gangue — num mundo adulto. O livro é um curioso exemplar de multi-estilismo. É suspense, é filosófico-religioso, policial, tem crítica social, além de ser um violento drama psicológico.

Logo no início temos o assassinato de um homem logo após ter conhecido a prostituta Ida Arnold. Pinkie, o adolescente que o matou, resolve eliminar todos os vestígios do crime. Para tanto, terá que eliminar alguns comparsas e se forçará a casar com a garçonete Rose, também adolescente, a fim de calá-la.

Só que Ida — desinibida, inteligente e debochada — resolve investigar o caso da morte do novo amigo por conta própria, achando que deve isso a ele. OK, gente, sem spoilers.

A história serve perfeitamente a Greene. O suspense vai até o final — quem vencerá, Pinkie ou Ida? O catolicismo do autor está representado pelo jovem casal. Pinkie acredita apenas no inferno e crê estar condenado pela religião. Rose busca o céu e uma vida melhor, mas com um futuro chefe de gangue. A crítica social perpassa tudo, mas explode brilhantemente na figura do advogado de marginais Prewitt. O mesmo vale para o poderoso drama psicológico, principalmente o que envolve o casamento arranjado de Rose e Pinkie. Ele a detesta desde o primeiro minuto, ela se acha obrigada a amá-lo, mesmo que veja só desprezo em Pinkie.

Escrevi tudo isso rapidamente e não creio ter dado ideia da grandiosidade de Brighton Rock. Mas é da vida. Ah, o livro tem um final estarrecedor do ponto de vista humano, mas esplêndido do ponto de vista de solução ficcional. Indico o romance a meus sete leitores.

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Por um bife, de Jack London

Por um bife, de Jack London

por-um-bife_Jack_LondonJack London (1876-1916) foi “o escritor” de minha infância e juventude e também quem introduziu meus filhos no mundo dos livros. Caninos Brancos, O Chamado Selvagem, Antes de Adão e outros livros de London foram engolidos por nós com grande entusiasmo. Penso até que li O Chamado Selvagem em voz alta para minha filha. London era uma figura singular. Aventureiro e independente desde os 14 anos, o escritor cruzou os Estados Unidos de trem, navegou o mundo inteiro, foi vagabundo de rua, passou fome, trabalhou como correspondente de guerra, tornou-se socialista, foi preso, virou minerador, sucumbiu ao alcoolismo, mas, neste ínterim e sabe-se lá como, escreveu 50 livros, apesar de ter vivido apenas 40 anos.

Com surpresa, vi um livro de London que não conhecia na vitrine da Livraria do Globo da Getúlio Vargas. Adorei o nome da coletânea de histórias: Por um bife e outras histórias de boxeadores. É claro que tratei de lê-lo imediatamente. Já imaginava, são contos naturalistas de um autor de estupenda capacidade descritiva. É leitura fácil e fluente. O assunto central é sempre o boxe que, aliás, também era praticado pelo autor. Por um bife (1909) é excelente; narra a decadência de um velho boxeador que vê a inexorável evolução dos jovens que lhe tirarão o sustento. O mexicano (1911) é um duro relato de um chicano que lutava não pelo prazer do esporte mas por seus ideais. O benefício da dúvida (1910) trata de uma curiosa disputa judicial a respeito de uma briga de rua em que o agredido torna-se réu, tendo por fundo a corrupção de uma pequena cidade; tem final delicioso. O jogo (1905), relato trágico da inocência, é fraquinho. Já O bruto insondável (1911) é a melhor história, sendo um retrato da corrupção do boxe, com suas lutas compradas e apostas.

Não faz falta não ler, mas é, como sempre foi, boa diversão.

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Histórias da Terra e do Mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen

Histórias da Terra e do Mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen
A edição da Assírio & Alvim
A edição da Assírio & Alvim

Eu gosto da prosa dos poetas. Quando os poetas escrevem contos, romances e novelas, permanecem como poetas de uma forma diferente, talvez inadequada à narração e suas regras. Mas alguma coisa faz com que eu goste disso. As descrições têm trechos de tonalidade distinta e os ganchos de um tema a outro muitas vezes inexistem. É o caso de Sophia neste livro de contos. A brilhante poetisa conta — o verbo é este — cinco histórias simples. Destaque para A História da Gata Borralheira (ou Cinderela), onde Sophia faz uma interessante variação sobre o conto original; O Silêncio, dura parábola sobre a ditadura salazarista e Saga, uma belíssima e tocante história sobre os antepassados dinamarqueses da escritora portuguesa. É um livro de estilo clássico que conta suas histórias adultas como se fossem infantis. Eu curti.

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A Balada de Adam Henry, de Ian McEwan

A Balada de Adam Henry, de Ian McEwan

A-Balada-de-Adam-Henry-Ian-McEwanNo ano passado, eu e Elena estávamos em Londres e fomos duas vezes ao Templo da Música de Câmara da cidade — segundo alguns do mundo –, o Wigmore Hall. Na fila para retirar os ingressos previamente adquiridos na internet, notei que as pessoas estavam olhando muito discretamente para um ponto logo atrás de mim. E me virei para ver o que era. Era Ian McEwan. O curioso é que McEwan já citou o local em vários de seus livros e, em A Balada de Adam Henry, volta a fazê-lo com elegante ironia. É o local dos exigentes, dos caras que só criticam, dos chatos. É o meu lugar!

Vinho, Fiona esperava, poderia mitigar as faculdades críticas dos frequentadores assíduos do Wigmore Hall, escreve na página 178.

Uma significativa minoria (…) passava muitas noites por ano ouvindo música de câmara com grande concentração, as testas franzidas, no Wigmore Hall de Marylebone, na página 162.

Porém o caráter gonzo desta resenha está exagerado, não? Pois o livro não tem cenas no Wigmore Hall e a música é algo importante no livro, mas este sobreviveria sem ela. Com bastante menos brilhantismo, mas sobreviveria. Então vou permitir que o vírus da objetividade sem spoilers tome conta do texto.

Fiona Maye é uma respeitada juíza do Tribunal Superior inglês, especializada em direito de família. O sucesso profissional não esconde frustrações pessoais. Aliás, ele parece fundar-se nestas. Não é incomum que os casos de direito de família acabem famosos por motivos éticos ou por envolverem celebridades. Grandes fortunas, divórcios milionários, etc. E há os casos que envolvem religião. Então, um hospital decide fazer uma transfusão de sangue em um menino que é Testemunha de Jeová. Ele e a família não aceitam o procedimento por motivos religiosos. O hospital leva o caso à Justiça.

A Balada de Adam Henry (The Children Act, 196 páginas, Cia das Letras) é um McEwan mais ligeiro e descansado, mas não pobre. É uma novela polifônica na medida certa que discute importantes problemas pessoais, sociais e religiosos. Não é tão redondo e não está no nível de Reparação, Amsterdam ou Sábado, mas também não é o mau livro de que alguns falam, normalmente levados por faniquitos religiosos. Acontece que McEwan permitiu-se alguns alongamentos normalmente não prescritos à boa literatura. Ele força a barra em algumas cenas e emite mais opiniões do que o habitual. É um trabalho tão pessoal que é tímido ao analisar o mundo do judiciário, mas nada inofensivo ao tratar do que realmente deseja: a criação de cenas inusitadas, a exploração de uma crise conjugal e a exposição da lógica das igrejas. Isso ele faz com a acidez e brilhantismo. O resto foi tratado com livre espírito de divertissement e algum uso de clichês, o que foi mal recebido por certo sectarismo literário que só aceita coisas perfeitinhas, adita que é dos gritos de bravo.

Ah, excelente tradução de Jorio Dauster.

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A festa da insignificância, de Milan Kundera

a festa da insignificanciaO veterano Milan Kundera voltou à ficção no ano passado, aos 85 anos, com este bom A festa da insignificância (Companhia das Letras, 136 páginas). O tema lembra um pouco o filme de Paolo Sorrentino A Grande Beleza.

O romance gira em torno de quatro amigos parisienses que vivem em Paris, sem grandes objetivos ou ambições. Eles passeiam pelos jardins de Luxemburgo, mentem um para o outro, reinventam passados, se encontram numa festa, constatam que as novas gerações já se esqueceram de quem era Stalin, perguntam-se o que está por trás de uma sociedade que, em vez dos seios, bundas ou das pernas, coloca o umbigo no centro do erotismo — pois as calças caíram e as camisetas subiram, revelando o buraquinho que só Eva não teria…

Kundera brinca entre Paris e a União Soviética de Stálin, propondo um paralelo entre as duas épocas. Assim, o romance fala sobre o medo e o pior da civilização. Porém, fala de forma curiosamente divertida e sem ilusões ou expectativas. Livro curtinho e despretensioso, revelador de que o velho não perdeu a mão.

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Um Coração de Cachorro e outras novelas, de Mikhail Bulgákov

Um Coração de Cachorro e outras novelas, de Mikhail Bulgákov

um-coracao-de-cachorro-e-outras-novelas-mikhail-a-bulgakovFormado pelas novelas As Aventuras de Tchítchikov, Diabolíada, Os Ovos Fatais e Um Coração de Cachorro, e com excelente tradução de Homero Freitas de Andrade, este volume da Edusp é uma verdadeira joia que reflete a literatura satírica dos primeiros tempos da União Soviética — e que depois foi morta por Gorki e pelo medonho realismo socialista. Aliás, Bulgákov, em sua “Carta ao Governo”, reclamou do que hoje é sabido por todos: “toda a sátira autêntica é absolutamente inadmissível na União Soviética”. A URSS era um regime que apenas admitia uma verdade única e inabalável e nenhuma “verdade” deste gênero resiste ao riso, principalmente ao riso inteligente e cheio de curvas e dúvidas como o criado pelo gênio de Bulgákov.

As quatro novelas deste livro formam um crescendo de virtuosismo arrebatador.

Pessoalmente, a leitura de As Aventuras de Tchítchikov teve pouca validade. Afinal, faz 40 anos que li Almas Mortas, de Gógol, e Bulgákov utiliza os personagens do romance como se fossem velhos conhecidos nossos. É claro que, como confirma a Elena, todo russo tem o livro de Gógol tão na memória quanto nós temos os principais contos e os cinco últimos romances de Machado. Mas eu mal lembrava de Tchítchikov…

Mas tudo mudou com a aceleradíssima e louca Diabolíada. Filha literária dos filmes pastelão dos anos 20, a novela está repleta de perseguições e transformações fantásticas com a finalidade de caracterizar a enorme máquina burocrática soviética. Pessoas deixam de existir, pagamentos são feitos através de caixas de fósforos que não funcionam em vez de dinheiro, todos passam fome e os pequenos chefes são verdadeiros diabos transformistas que antecipam a obra-prima de Bulgákov O Mestre e Margarida.

Os Ovos Fatais (1924) e Um Coração de Cachorro (1925) são novelas irmãs e das melhores coisas que já passaram frente a minhas retinas tão fatigadas. (Obrigado, Drummond). São duas longas e esplêndidas sátiras de ficção científica. Os Ovos Fatais tem uma longa introdução séria, com alguns curtos episódios cômicos, mas depois tudo se descontrola, virando um enorme vaudeville. Um vaudeville de terror, uma coisa realmente original. Já Um Coração é uma sátira de cabo a rabo e suas variações de foco narrativo — que são passadas de um para outro personagem e para o autor, depois que um cachorro abre a narrativa na primeira pessoa do singular –, valeria um estudo.

As duas novelas brincam de tal forma com o modus operandi da Revolução Bolchevique, fazendo tantas observações que se revelariam exatas décadas depois, que não surpreendem suas proibições na época. O que surpreende é o fato de Bulgákov escrever cartas e mais cartas para Stálin pedindo para sair do país, recebendo em troca telefonemas gentis do georgiano em várias madrugadas. Pelo visto, o chefe gostava do humor de Bulgákov, mas o queria apenas para si. O escritor faleceu em sua casa.

Mikhail Bulgákov
Mikhail Bulgákov

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A palavra "loser"

A palavra "loser"

loserSempre me irritei com a palavra loser, de uso cada vez mais corrente no Brasil. Um dia, será escrita como luzer. Uma vez, perguntado porque seus melhores personagens frequentemente acabavam mal, Mario Benedetti respondeu: “É porque ocorre assim; na maioria das vezes as pessoas boas escolhem perder e perdem”. Serão eles os losers? Se um homem bate na mulher é um loser… E a mulher, o que é? Ou seja, não há precisão vocabular. Prefiro chamar o homem de psicopata, violento, bêbado, brutal ou criminoso do que chamá-lo de loser. E será o agressor um perdedor em outro contexto? Detesto a expressão e desconfio de quem a utiliza.

A tradução de loser não é “fracassado”. É perdedor mesmo. Faço minhas as palavras do Paulo Briguet que transcrevo aqui:

Segundo as dublagens da Herbert Richers, a tradução de loser é “perdedor”. Um tradutor mais experiente diria que é “fracassado”. Em minha modesta condição de monoglota, discordo. “Fracassado” é um conceito por demais latino. “Perdedor” está mais adequado à origem (e à tosquice) da expressão.

Engraçado: o pessoal que adora falar dos EUA é o mesmo que usa termos anglo-saxônicos como loser. Na opinião da claque esquerdista, Bush, o capitalismo e o cristianismo são três faces do mesmo capeta. E quem ousa discutir o anátema é… loser. Paradoxo linguístico!

Ora, na opinião deste humílimo cronista, loser é coisa de filme adolescente americano, no mesmo nível de “a garota mais popular do colégio” e “quem será meu par no baile de formatura?”.

O humílimo está coberto de razão.

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Notinha sobre a literatura de Georges Simenon

Notinha sobre a literatura de Georges Simenon

simenon2Georges Simenon vendeu aproximadamente 500 milhões de volumes de suas novelas e romances. Trata-se de um excepcional caso de sucesso popular e de crítica. Durante toda a sua vida, os leitores e editores pediram-lhe um grande romance através do qual o autor pudesse ser apresentado. A resposta era sempre a mesma:

– Minha grande obra é o mosaico formado por meus pequenos romances.

Grosso modo, podemos dividir sua obra em duas partes: os romances policiais com ou sem o célebre detetive Maigret e os duros romances psicológicos que lhe valeram o apelido “Balzac de Liége”, recebido de ninguém menos que André Gide. A popularidade destes livros não deixa de impressionar, pois são escritos em tom menor, são nada solares, sendo antes cheios de personagens deprimentes e deprimidos. Com suas ações quase sempre em cidades pequenas, Simenon envolve-nos numa triste realidade provinciana, onde o mal comanda.

O método de produção de Simenon é curioso. Ele escrevia seis ou sete romances ou novelas por ano, mas elas não lhe saiam continuamente e sim como espasmos. A história era inventada em 30 ou 40 dias em sua imaginação. Era o período de não escrever, de caça à história, quando ele passeava, ia a bares e convivia com as pessoas. Então, ele avisava aos familiares que trabalhar e todos sabiam o que aconteceria – ele sumiria em seu escritório por algo entre 10 e 20 dias. Nestes períodos, ninguém deveria falar com ele e a ordem era apenas alimentá-lo. Se um fato externo o interrompesse, abandonava o trabalho.

De certa forma, tal concentração está presente em seus trabalhos. As narrativas, a forma de envolver o leitor são via de regra impecáveis. A modernidade não está num trabalho de linguagem ou em tramas complexas ou contrapontísticas, está no fato de que o autor se exime dos princípios morais, apresentando tramas simples onde as atitudes são descritas de forma distante, muitas vezes cruel. Não há Deus nem julgamento, há sucessão de fatos que são jogados ao leitor no momento exato e que fazem excelente literatura.

Acabo de ler O Burgomestre de Furnes, um extraordinário estudo sobre o embrutecimento, o ódio e a avareza. Joris Terlink é o burgomestre que comanda a população, a economia e os conselheiros do povoado. Todos o temem e ele é consultado para tudo. Sua vida pessoal está associada a diversas tragédias, recentes e antigas: uma filha doente mental que é mantida presa em seu quarto sob o argumento de que não haveria um lugar melhor para ela, o câncer da mulher, os vários filhos fora do casamento – o quais são ignorados por Terlink – e a própria gestão de Furnes, cuja falta de solidariedade produz um suicídio no início da história. Há algo menos sedutor? Terlink é um monstro absoluto, circundado de idiotas que têm dificuldade de viver sem ele, mas a segurança com que Simenon leva sua narrativa não é menos monstruosa e sem compaixão.

Além do Burgomestre, os maiores romances desta face de Simenon provavelmente são Sangue na Neve, O homem que via o trem passar, O gato e Em caso de desgraça. Todos podem ser encontrados bem baratinho por aí. Saíram também em pockets.

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Divórcio, de Ricardo Lísias

Divórcio, de Ricardo Lísias

capa  Ricardo Lisias Divorcio.inddÉ óbvio que, até pela situação passada no ano passado, eu leria este livro. E começo dizendo que a traumática separação do personagem Ricardo Lísias — sim, Lísias é o nome do personagem de Lísias — foi fichinha perto da separação de Milton Ribeiro.

Divórcio é a história de uma separação com todos ingredientes que fazem parte deste tipo de situação: choque, ressentimento, ódio, divisão de bens, vinganças, recuperação. Tudo isto é catalisado por um narrador original e seguro, na primeira pessoa, que cria um texto grudento, apesar de cheio de quebras e opções. A sinceridade e a exposição do personagem Lísias só surpreende se pensarmos que Divórcio é um romance autobiográfico, fato negado pelo autor, inclusive para mim, pessoalmente.

Grosso modo, o romance alterna quatro tempos. O momento presente, a história do casamento, a preparação de Lisias para correr a São Silvestre — única fonte de prazer e o meio escolhido para o retorno à realidade e à vida — e a infância do Lísias personagem. Os jornalistas, profissão da ex-mulher, recebem muitas e justificadas críticas. Há uma coleção de frases antológicas de ódio no livro, mas se eu coloco aqui vão pensar que a coisa tem endereço. Então, vou colocá-las num contexto mais tranquilo. Num PHES fora da curva, por exemplo.

Indico, claro. Trata-se de um belo texto visceral.

(Curiosidade: fiquei contrariado com algumas metáforas utilizadas e, ao comentá-las com a Elena, fui convencido de que eram perfeitas. O problema é que eu sofro de outra maneira).

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A polêmica em torno do “terrível” Airton Ortiz

A polêmica em torno do “terrível” Airton Ortiz

livro do sargentinhoNão sou amigo de Airton Ortiz. Conheci-o fazendo uma longa entrevista com ele e, mesmo que não ponha a mão no fogo por ninguém, digo-lhes o que penso: olha, ele deve ter apoiado a ditadura militar tanto quanto eu. Se meus 57 anos servem para alguma coisa, uma delas é conversar com uma pessoa por uma hora e saber mais ou menos quem ela é.

Mas, além da intuição, há fatos. Sua ex-editora, a Tchê, publicou todos os comunas escreventes no Rio Grande do Sul dos anos 80, em especial os ligados ao PRC e ao PCB. Por exemplo, ele publicou obras do futuro ex-governador Tarso Genro e do professor Otto Alcides Ohlweiler.

Só que, na mesma época, a Tchê de Ortiz publicou um livro do então sargento Marco Pollo Giordani, chamado Brasil Sempre. O homem era — ou é, pois ainda vive — um ex-integrante do DOI-CODI e o livro uma resposta ao Brasil Nunca Mais. A tese do livro é de um espetacular absurdo: o autor diz que não houve tortura no País durante o regime militar. A justificativa de Ortiz para publicar o livro é crível: ele me disse que a “obra” disponibilizava uma série de documentos secretos do exército que nós da esquerda queríamos colocar a mão e que só se ele fosse muito louco sonegaria aquelas informações.

Visto do ponto de vista de nossa contemporaneidade, a atitude de Ortiz realmente parece estranha. Mas não guarda nadíssimo em comum com, por exemplo, a Editora Revisão de Siegfried Ellwanger. Ontem, entrei no sebo Nova Roma aqui da Gen. Câmara e dei de cara com o livro do sargento. Olha são, mais de setecentas páginas lotadas de documentos e fotografias. Passei uma boa meia hora examinando o volume. Todo o pessoal da luta armada que era do conhecimento dos milicos está catalogada ali, além de uma série de fotos e documentos sobre aquilo que o autor denomina de Contra-Revolução de 1964. Dilma está lá, claro. Pensando retrospectivamente, acho que, na posição do Ortiz, também publicaria o livro em função de seu ineditismo. Isto na época, porque se é hoje aquilo é puro lixo direitista, nos anos 80 era informação desconhecida permeada por um texto repugnante.

Dizer que Ortiz publicou um livro que defende os torturadores é rigorosamente verdadeiro e descontextualizado. A fogueira das vaidades literárias pegou pesado contra ele. Juremir Machado da Silva levantou o assunto no Correio e Alfredo Aquino chutou na Zero Hora, dizendo que a Câmara Rio-Grandense do Livro “profere um insulto aos que foram agredidos com torturas, aos que foram assassinados e feridos pela ditadura militar”. OK, são opiniões. Ou inimizades.

Voltando ao Ortiz. Ele é um homem tranquilo que, quando falou sobre Porto Alegre, trouxe naturalmente à conversa exemplos positivos de Havana — ele escreveu um livro premiado sobre a cidade. É um sujeito que fala de como são enriquecedoras as viagens e o conhecimento da diversidade, de como a gente deve aprender sobre outras culturas, que chega a um país e aprende 300 palavras básicas a fim de ser bem aceito, que fala com admiração dos aspectos culturais da Índia, do Nepal e de regiões da África. Que diz que as viagens pulverizam o preconceito.

E esse cara é pró-repressão e milicos? Tá bom, vão nessa.

Obs.: Sobre as capas na imagem que abre o post. É a primeira edição da Tchê nos anos 80 e a segunda, custeada pelo próprio autor, recém lançada.

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Porcarias, de Marie Darrieussecq

Porcarias, de Marie Darrieussecq
A capa de Porcarias
A capa de Porcarias

No original francês, é Truismes; em Portugal, é Estranhos Perfumes; em inglês, Pig Tales; e no Brasil recebeu o bom título de Porcarias.

Porcarias, livro de Marie Darrieussecq que ganhei de presente de minha filha, é apresentado como uma parábola. Parábola é uma “narração alegórica na qual o conjunto de elementos evoca, por comparação, outras realidades de ordem superior”.

Um pouco mais nojento do que seus modelos clássicos — A Metamorfose, de Kafka, e A Revolução dos Bichos, de Orwell –, Porcarias é uma narrativa fluida e grudenta como poucas.

Sem entrar em detalhes, o livro conta a história de uma vendedora de perfumes que se deixa levar um tanto passivamente pela vida e que acaba por deixar que seus instintos primitivos a dominem, fazendo com que vá se transformando lenta e literalmente numa porca. O final é fantástico e triunfante: o que era crise deixou de ser, pois agora ela é uma porca completa.

O que o livro tem de sensacional é a narrativa crua e eficiente da solidão, da não-aceitação, da angústia e da inadaptação de alguém que vai perdendo a auto-estima até resolver que o estilo de vida da selva é o mais mais adequado para si. Dizendo isso fica clara a parábola, mas há mais. Porcarias é um bonito e cômico ataque tanto ao politicamente correto como ao culto da vida sã e dos corpos sarados.

Lá em 1997, a Folha de São Paulo entrevistou Marie Darrieussecq. É muito interessante.

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A mulher que virou leitoa

Por Maria Ignez Mena Barreto

A história de uma vendedora de perfumes que se transforma em leitoa é o grande acontecimento literário do ano na França. “Truismes” (Truísmos) é o primeiro romance de Marie Darrieussecq, 27, nascida em Bayonne, País Basco, ex-aluna de uma das instituições acadêmicas mais prestigiosas da França, a École Normale Supérieure, e professora da Universidade de Lille.

Com 204 mil exemplares vendidos na França, “Truismes” seduz o meio editorial internacional: os direitos já foram vendidos para os Estados Unidos (New Press), Alemanha (Hanser), Itália (Guanda), entre outros. No Brasil, será lançado no próximo mês pela Companhia das Letras.

Para coroar o êxito, o diretor Jean-Luc Godard já adquiriu os direitos de adaptação para o cinema e deve escrever o roteiro a quatro mãos com a jovem autora.

Com um título que brinca com a consonância de “true” (verdade, em inglês) e “truie” (leitoa, em francês), “Truismes” conta a história de uma vendedora que, para enriquecer seu patrão, dá aos clientes um tratamento especial em discretas cabines clandestinas. Sob o efeito dos cosméticos que ela recebe em agradecimento a cada balanço, seu corpo começa a sofrer uma lenta modificação: ela percebe seu peso aumentar, sua carne se tornar firme e rosa, seus pêlos endurecerem. A carreira de vendedora-modelo degringola com o surgimento de sintomas menos compatíveis com o comércio sexual: comportamentos alimentares estranhos, atitudes corporais tão inconvenientes quanto um cio suíno incontrolável e caprichoso. Oscilando entre sua aparência suína e humana, a heroína passa por guerras, epidemias, vai parar em um asilo de loucos e dali escapa para se meter num imbroglio de políticos fascistas.

Para falar sobre o romance e o trabalho de adaptação para o cinema, no qual trabalha com Godard, Darrieussecq recebeu a Folha em seu apartamento em Paris.

*

Folha – “Truismes” é seu primeiro romance publicado, mas não o primeiro que você escreve…

Marie Darrieussecq – Eu escrevo desde os seis anos, sempre escrevi histórias. Aos seis anos, evidentemente, eu escrevia contos, coisas assim. Com 15, comecei a querer fazer coisas mais elaboradas. “Truismes” é o sexto romance que termino, no qual eu pus um ponto final. Os outros são exercícios, não estão suficientemente maduros para a publicação. “Truismes” é o primeiro que atinge este nível.

Folha – Mas você já recebeu um prêmio literário…

Darrieussecq – Sim, um prêmio por uma novela, quando eu tinha 19 anos, o Prix du Jeune Écrivain (Prêmio do Jovem Escritor). Este prêmio me deu uma certa legitimidade, foi a partir daí que eu comecei a dizer que eu escrevia. Antes, eu não ousava, acho extremamente pretensioso escrever.

Folha – E um belo dia você enviou um manuscrito a um editor…

Darrieussecq – Foi formidável. Fui aceita por quatro editores. Com um primeiro livro, isso acontece uma vez em mil.

Folha – E por que você escolheu a P.O.L., a editora menor e menos conhecida do grande público?

Darrieussecq – Porque, para mim, ela encarna um espírito de independência que não encontro, necessariamente, nos outros editores. O trabalho dela é muito singular, ela edita as coisas de que gosta antes de se perguntar se o livro vai ser vendido ou não. E isto me agrada. Além disto, P.O.L. era a de menor estrutura, eu logo tive um bom contato humano com as pessoas que trabalham lá.

Folha – É verdade que você escreveu “Truismes” em três semanas?

Darrieussecq – Sim, é verdade. Sempre que escrevo, acontece a mesma coisa. Eu tenho uma ideia, que me vem de não sei onde, e começo a sonhar com ela. Eu comecei a sonhar com essa história de uma mulher que se transformava em leitoa. Eu não sabia absolutamente aonde essa história ia me levar, que significado ela tinha. Sonhei com esta ideia durante três meses. Depois, vieram as greves de dezembro de 1995 na França. A confusão em que Paris se transformou não me incomodava em nada, ao contrário. Eu fiquei completamente eufórica, passeando pelas ruas, indo de manifestação em manifestação, numa atmosfera excitante, inimaginável. Logo depois das greves, me veio a voz do personagem, e, quando tenho a voz, tenho tudo, a forma do livro, o estilo. A partir do momento em que encontrei o registro dessa voz, eu me lancei. A redação propriamente dita levou, de fato, seis semanas. Mas, antes, teve esse período de pelo menos três meses de maturação.

Folha – Você não tinha, então, um projeto, uma ideia clara sobre o que ia escrever?

Darrieussecq – Sabia que ia seguir uma transformação. Que haveria uma série de sintomas que eu deveria descrever. Eu não sabia exatamente quais, eles foram surgindo à medida em que fui escrevendo. E sabia que a história terminaria em uma floresta. Era tudo o que sabia. O resto foi aventura. Eu me colocava em uma situação e me perguntava: como ela vai sair dessa? o que eu faria em seu lugar? Esse, aliás, é, para mim, o prazer de escrever. Eu morro de tédio se souber com antecedência o que vai acontecer.

Folha – “Truismes” é a história de um personagem singular ou um perfil da mulher contemporânea?

Darrieussecq – Não, “Truismes” é a história de uma mulher específica. Não cabe a mim interpretá-la, transformá-la em símbolo do que quer que seja. Eu proponho uma história, cabe ao leitor atribuir a ela um sentido. Eu recebo uma quantidade estupenda de cartas. Os leitores vêem no livro coisas que me surpreendem.

Folha – Por exemplo…

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Homenagem ao Clássico Desconhecido

Homenagem ao Clássico Desconhecido

Não, não pensei muito. Peguei a escada e procurei, a partir da letra A, os livros de que gosto muito e sobre os quais o mundo silencia. Encontrei vários. A “santa” tarefa de resgate de minhas obras-primas pessoais não me tomou muito tempo e é uma lista arbitrária que só vai de A a M, pois me apavorei com o número de livros sobre a mesa quando retirei da estante as folhas de papel A4 que formam a 19ª obra. Os de M a Z virão depois, sei lá quando. Meu critério é o descritério. Por exemplo, deixei de fora Hamsun, por considerá-lo “famoso demais” e incluí George Eliot. Vá entender. Alguns dos insuficientes textos explicativos que acompanham cada obra foram retirados de orelhas dos livros; outros, de obras sobre literatura; porém a maioria saiu perigosamente de minha cabeça.

Norberto Martini (10)

1. O Homem Amoroso, de Luiz Antonio Assis Brasil. Mercado Aberto, 1986, 118 p.: O elegante Assis Brasil, ex-violoncelista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, sai do sério ao compor de forma irônica e naturalista esta novela que descreve as vivências de um músico erudito gaúcho, durante o “milagre brasileiro” dos anos 70 e seu neo-ufanismo. Para encontrar, só em sebos.

2. Extinção, de Thomas Bernhard. Companhia das Letras, 2000, 476 p.: Bernhard talvez venha a tornar-se inevitavelmente um clássico, se já não o é. É um enorme romancista e dramaturgo austríaco que costuma despejar seu ódio contra a pequena burguesia e os intelectuais de seu país. Destaco a notável descrição de sua família, realizada em duzentas paginas, enquanto o narrador observa uma (apenas uma) foto que retrata, se não me engano, apenas duas ou três pessoas. Livro novo, fácil de achar.

3. Noturno do Chile, de Roberto Bolaño. Companhia das Letras, 2004, 118 p.: O narrador, testemunha do tempo que precede o assalto ao poder pelo general Pinochet e seus sequazes, repassa a sua vida num monólogo febril, reconstruindo dois momentos especiais da vida chilena – antes e depois do golpe. Este narrador, Lacroix, é um religioso ainda aferrado aos dogmas da Igreja, que não dispensa a sua batina surrada, usando-a como se fosse uma bandeira. Fácil de achar, assim como Os Detetives Selvagens.

4. Opiniones de un Payaso, de Heinrich Böll. Barral Editores, 1974, 244 p.: Hans Scheiner é um palhaço de circo que perde todos os seus bens durante o pós-guerra. Trata-se de um ateu muito propenso à melancolia e à monogamia. Mas seus problemas não terminam aí: sua mulher Maria o abandona por outro homem, um católico, com o qual se identifica. Por trás desta catástrofe emocional e material, pode-se ver um homem íntegro, que suporta sua queda com sarcasmo.Um grande livro. À venda na Internet por 16 Euros.

5. Fique Quieta, Por Favor, de Raymond Carver. Rocco, 1988, 240 p.: Grande contista americano homenageado por Robert Altman em Short Cuts . Este livro, assim como a coletânea Short Cuts, também da Rocco, é mais uma prova da boa influência de Tchékhov sobre a literatura atual. Vá ao sebo.

6. A História Maravilhosa de Peter Schlemihl, de Adelbert von Chamisso. Estação Liberdade, 1989, 111 p.: A história curiosíssima do homem que se vê marginalizado e perseguido após vender sua sombra ao Diabo. Até hoje a obra sofre todo o tipo de interpretações, mas o próprio autor nega a alegoria e critica aqueles que preocupam-se em saber o que significa a sombra. Este genial livrinho foi há pouco reeditado.

7. Uma Vida em Segredo, de Autran Dourado. Difel, 1977, 181 p.: Acanhada e deixando-se sempre levar pelas circunstâncias, a prima Biela é boazinha e vive conscientemente uma vida de renúncias. A comparação entre a prima Biela e a Felicité de Un Coeur Simple de Flaubert não obscurece a força da linguagem barroca do Autran Dourado em plena forma de 1964. Milhares de reedições.

8. Middlemarch, de George Eliot. Record, 1998, 877 p.: Desde Shakespeare e Jane Austen, ninguém criara personagens tão inesquecivelmente vivos. É o romance da vida frustrada de Dorothea, que casa-se com o pseudo-intelectual Causabon por um ideal de cultura e tenta desfazer seu casamento e refazer sua vida. O romance é um espetacular panorama das atividades e da moral de uma pequena cidade inglesa de 1830. Canta a tua aldeia e serás universal… George Eliot é o pseudônimo masculino de Mary Ann Evans. Só encontrável em sebos, parece-me.

9. Contos Completos, de Sergio Faraco. L&PM, 1995, 304 p.: Faraco é, disparado, o melhor contista vivo brasileiro e isto não é pouco. O livro foi reeditado no ano passado. Trata-se de um artesão tão econômico quanto rigoroso com as palavras. Sua capacidade de apresentar personagens com um grau de densidade psicológica inversamente proporcional à secura do ambiente, assim como sua maestria na invenção de enredos o tornam obrigatório. Recém relançado.

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Contos Exemplares, de Sophia de Mello Breyner Andresen

Contos Exemplares, de Sophia de Mello Breyner Andresen

contos exemplaresA prosa escrita por poetas é sempre um perigo. Eu acho. Mas a grandeza de Sophia passa por cima das limitações e de certa indireção presente na prosa dos poetas. Este livro é composto por sete contos finalizados em 1962. São histórias que misturam duas temáticas: a repressão política empreendida por Salazar e a profunda decepção da católica Sophia com o clero adesista de seu país. Mas não pensem em contos de ressentimento e denúncia, de modo algum. São contos sutis, de bom gosto e onde estão presentes aspectos místicos que não aparecem com tanta clareza na poetiza Sophia, a mulher do mar e da erudição clássica. O Jantar do Bispo e Homero são excelentes contos. Retrato de Mônica é um tantinho raivoso, mas excelente. Mas os melhores são os que citei primeiro.

O Jantar do Bispo é uma tragédia bem conhecida nossa. O Dono da Casa — assim chamado em todo o conto — é um grande proprietário rural está incomodado por um padre que ensina justiça social a sua congregação. O Bispo — chefe do tal padre e que poderia afastá-lo da cidade com um peteleco  — precisa reformar o teto da igreja. Farão a troca de favores? Já Homero é pura poesia que se perde no vento.

Todos as histórias vêm recheadas são de metáforas que escondem nas personagens muitas vezes Deus e do Diabo, o Bem e o Mal. Indico para os admiradores de Sophia.

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