Carlos Drummond de Andrade, que não era exatamente bobo, dizia que ler Machado de Assis era uma tentação permanente, quase como um vício a que tivesse de resistir. É meu caso. Cada vez que lançam uma nova edição eu tenho dificuldades para não comprar e reler. Imaginem se não comprei o Dom Casmurro da Carambaia — baratinho e lindo — a fim de ler o romance pela, sei lá, quinta vez?
Bem, não resisti a este volume de 487 páginas onde John Gledson faz uma ampla seleção dos contos do autor carioca que completa 180 anos de nascimento no próximo dia 21 de junho.
Eu já li estes contos de tudo quanto foi jeito. Nos livros originais, em coletâneas, imaginando-os como se fossem filmes, inventando novos finais, enfim, sempre considerei joias que devia lapidar e relapidar em minha memória. Eles são meus, fazem parte de mim. A seleção de Gledson — um inglês de Liverpool especializado em literatura brasileira — é enorme e muito bem feita.
Machado escreveu por volta de 200 contos, então esta coleção de 50 nos dá um panorama bem completo. Bom humor, ironia, pessimismo, realismo absoluto são os ingredientes principais, tudo isso dentro de uma prosa altamente sofisticada, original e elegante.
Os destaques são os de sempre: Missa do Galo, Pai contra mãe, Uns Braços, O Alienista, As Academias de Sião, A Cartomante, Um Apólogo, Evolução, Um Homem Célebre, Noite de Almirante, Uma Senhora, O Enfermeiro, são tantos contos extraordinários que, se entrar a analisar um deles, os outros ficariam ciumentos e me obrigariam a falar deles.
Aliás, escrevi ciúmes. Pois ciúmes, vaidades, traições, dinheiro, vaidade, pobreza, riqueza, tudo passa pelo contos tão brasileiros do gênio machadiano.
O que eu posso dizer? Leiam Machado! É nosso maior escritor e ainda é o que mais arranha nossa realidade. Os anos não passaram para Machado.
O Brasil sempre privilegiou o conto, mas os europeus nunca deram grande importância ao gênero. O Caderno de Cultura Babelia do jornal espanhol El País publicou uma notícia que fala sucintamente da recente valorização do conto naquele país, pedindo para que autores espanhóis citem seus contos favoritos da literatura não espanhola. Curiosamente, nenhum conto foi citado duas vezes. Depois, coloco uma relação de contos favoritos deste blogueiro.
Relatos universales que no hay que perderse
Escritores, editores y libreros que han participado en este especial sobre el renacer y la nueva valoración del cuento en España comparten con los lectores títulos de sus cuentos favoritos en español y otras lenguas.
— El llano en llamas, de Juan Rulfo, y Bartleby, el escribiente, de Herman Melville (Berta Marsé).
— Carta a una señorita en París, de Julio Cortázar, y La dama del perrito, de Antón Chéjov (Cristina Cerrada).
— La Resucitada, de Emilia Pardo Bazán, y El bailarín del abogado Kraykowsky, de Witold Gombrowicz (Cristina Fernández Cubas).
— El Aleph, de Jorge Luis Borges, y Una casa con buhardilla, de Antón Chéjov (Eloy Tizón).
— El espejo y la máscara, de Jorge Luis Borges; Una luz en la ventana, de Truman Capote, y Donde su fuego nunca se apaga, de May Sinclair (Fernando Iwasaki).
— Bienvenido, Bob, de Juan Carlos Onetti; El álbum, de Medardo Fraile; En medio como los jueves, de Antonio J. Desmonts; Alguien que me lleve, de Slawomir Mrozek; Los gemelos, de Fleur Jaeggy; La colección de silencios del doctor Murke, de Heinrich Böll, y Guy de Maupassant, de Isaak Babel (Hipólito G. Navarro).
— Un tigre de Bengala, de Víctor García Antón, y La revolución, de Slawomir Mrozek (José Luis Pereira).
— No oyes ladrar los perros, de Juan Rulfo; El veraneo, de Carmen Laforet; La corista, de Antón Chéjov, y Rikki-tikki-tavi, de Rudyard Kipling (José María Merino).
— Continuidad de los parques, de Julio Cortázar, y El nadador, de John Cheever (Juan Casamayor).
— El Sur, de Jorge Luis Borges; Parientes pobres del diablo, de Cristina Fernández Cubas; Tres rosas amarillas, de Raymond Carver, y La dama del perrito, de Antón Chéjov (Juan Cerezo).
— El infierno tan temido, de Juan Carlos Onetti, y Los muertos, de James Joyce (Juan Gabriel Vásquez).
— Las lealtades (de Largo Noviembre de Madrid), de Juan Eduardo Zúñiga, y El nadador, de John Cheever (Miguel Ángel Muñoz).
— Continuidad de los parques, de Julio Cortázar, y William Wilson, de Edgar Allan Poe (Patricia Estebán Erlés).
— Ojos inquietos, de Medardo Fraile; Noche cálida y sin viento, de Julio Ramón Ribeyro, y Míster Jones, de Truman Capote (Pedro Ugarte).
Minha relação saiu um pouco grande, apesar de ter sido escrita improvisadamente. Mas se pensasse mais, talvez não mudasse demais. Vamos a ela.
Contos estrangeiros:
— A Viagem, de Luigi Pirandello;
— O Velho Cavaleiro Andante, de Isak Dinesen (Karen Blixen);
— Ponha-se no meu lugar, de Raymond Carver;
— A Fera na Selva, de Henry James;
— Bartleby, o Escrivão, de Herman Melville;
— A Enfermaria Nº 6, de Anton Tchékhov;
— Queridinha (ou O Coração de Okenka), de Anton Tchékhov;
— A Corista, de Anton Tchékhov;
— A Dama do Cachorrinho, de Anton Tchékhov;
— Olhos Mortos de Sono, de Anton Tchékhov;
— Os Sonhadores, de Isak Dinesen (Karen Blixen);
— A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói;
— Uma Alma Simples, de Gustave Flaubert;
— As Jóias, de Guy de Maupassant;
— Os Mortos, de James Joyce;
— O Licenciado Vidriera, de Miguel de Cervantes;
— O Artista da Fome, de Franz Kafka;
— A Colônia Penal, de Franz Kafka;
— A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe;
— Berenice, de Edgar Allan Poe;
— William Wilson, de Edgar Allan Poe;
— O Primeiro Amor, de Ivan Turguênev;
— Três Cachimbos, de Ilya Ehrenburg;
— A Loteria da Babilônia, de Jorge Luis Borges;
— A procura de Averróis, de Jorge Luis Borges;
— O jardins dos caminhos que se bifurcam, de Jorge Luis Borges;
— Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, de Jorge Luis Borges.
Contos brasileiros:
— Missa do Galo, de Machado de Assis;
— Uns Braços, de Machado de Assis;
— Noite de Almirante, de Machado de Assis;
— Um Homem Célebre, de Machado de Assis;
— A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa;
— Meu tio, o Iauaretê, de Guimarães Rosa;
— A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa;
— O Duelo, de Guimarães Rosa;
— Guapear com Frangos, de Sérgio Faraco;
— O Voo da Garça-pequena, de Sergio Faraco;
— Corvos na Chuva, de Ernani Ssó;
— Contrabandista, de João Simões Lopes Neto;
— Baleia, de Graciliano Ramos (não é um conto, mas pode funcionar como tal);
— O homem que sabia javanês, de Lima Barreto;
— O Vitral, de Osman Lins;
— O Afogado, de Rubem Braga;
— Venha Ver o Pôr do Sol, de Lygia Fagundes Telles;
— Feliz Aniversário, de Clarice Lispector;
— Uma Galinha, de Clarice Lispector;
— O Japonês dos Olhos Redondos, de Zulmira Ribeiro Tavares.
Cada qual sabe amar a seu modo; o modo, pouco importa; o essencial é que saiba amar.
Machado de Assis, em Missa do Galo
Anteontem, me senti como o Nogueira da Missa do Galo, o que não entendeu D. Conceição.
Eu esperava a Elena chegar enquanto uma mulher roçava-se em seu amigo ou amante ou marido, olhando para mim. Sempre olhando para mim. Na hora, achei que fosse algo casual — vocês sabem, estou a anos-luz de ser um Paul Newman ou Alain Delon, além disso, estou perto dos sessenta, isto é, sou feio e sem atrativos –, mas quando voltava meus olhos para lá, ela me olhava.
Impossível dizer que seja envergonhado, mas também não sou cara-de-pau. Minha possível vergonha fica sob o Homo Faber que sou e aquilo que posso chamar de Homo Ludens, alguém sempre pronto a se divertir. Esta criança interior ri, avacalha e satiriza muito. De certa forma, ela me protege.
E comecei a ficar irônico. Eu dava um tempo, mas quando passava meus olhos pela cena, estava sendo observado. E aguardava… Era um local absolutamente público, aberto, na rua. Cada um se excita a seu modo, talvez dissesse Machado. Há parafilias para todos os gostos. O exibicionista tem a fantasia de que o observador ficará sexualmente excitado, o que só aumenta sua própria excitação. Então, eu era um reles apoio. Como não se divertir, ainda mais que estava esperando, sem fazer nada?
Elena chegou toda linda e feliz. Sempre fico surpreso com sua alegria ao me ver.
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O conto Missa do Galo é uma das obra-primas de Machado. As histórias de Machado costumam ser assim: ele conta o que ocorreu trinta anos. A Missa também é um conto retrospectivo. Maduro, o narrador Nogueira relata um acontecimento do passado. Menino do interior, quando tinha 17 anos, Nogueira morava na casa do escrivão Meneses. Estava ali, no Rio de Janeiro, para estudar. Naquele ano, já de férias, prolongou sua estada na Corte a fim de assistir à Missa do Galo. O escrivão Meneses, mesmo casado com dona Conceição — uma santa, segundo o narrador — mantinha um caso extraconjugal. Todos sabiam disso, inclusive sua esposa. Uma vez por semana, dizia que iria a um teatro ou outro lugar e ia encontrar-se com a amante. A noite de Natal foi uma dessas ocasiões e Conceição devia estar especialmente ofendida.
E a santa provavelmente pensou que a saída do marido propiciaria condições para que ela própria tivesse uma aventura. Assim, ao que tudo indica — pois como sempre Machado não afirma nada — premedita um encontro com o jovem. Lendo na sala, o jovem Nogueira aguarda o horário da Missa e ela chega, procurando ser envolvente. E ele não capta as intenções de Conceição. Suas roupas, seus gestos, suas atitudes, seu andar, suas frases ambíguas são de sedução. Mas, vocês sabem, há o momento da sedução. Quando este passa, o reaquecimento é complicado. E tudo esfria, só reaquecendo inutilmente na memória de Nogueira, muito tempo depois.
Sim, não tem muito a ver com a situação que vivenciei, só o fato de eu ter ficado sem entender nada.
“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta.”
Pode-se entender, se nem mesmo o narrador entende?