Você entende de futebol?, de Carlos Guimarães

Você entende de futebol?, de Carlos Guimarães

Em casa, eu vejo futebol com o som da TV desligado. Não suporto os clichês vazios da maioria dos comentaristas do esporte. Na verdade, não há grandes conhecedores entre os analistas de táticas de futebol e quem se preocupa — ou enxerga — a parte tática, fica muito decepcionado com o papo, ainda mais que sua paixão está envolvida.

Então, o mediador (ou tradutor) entre o que se vê e o que é comentado é bastante insatisfatório.

Mas há uma nova geração de jornalistas-conhecedores ou estudiosos. Infelizmente, estes ainda não chegaram às grandes redes.

Um deles, na minha opinião o melhor dentre os gaúchos, acaba de lançar seu segundo livro: “Você entende de futebol?”, com o substítulo “E outros ensaios sobre o jogo e a mídia”.

Seu nome é Carlos Guimarães e seus textos jamais ofenderão sua inteligência. Sim, ele é o herdeiro de Ruy Carlos Ostermann e Lauro Quadros.

E estará autografando o livro na próxima quinta-feira aqui na Bamboletras. Apareça aqui para pegar seu exemplar autografado e levar um papo com o Carlos. Talvez ele saiba quem vai ganhar a Copa…

Carlos Guimarães

A ilusão de um instante, de Eduardo Rodrigues

A ilusão de um instante, de Eduardo Rodrigues

Comecei a ler “A ilusão de um instante”, de Eduardo Rodrigues, durante um almoço. Estava sozinho e abri o livro para dar uma rápida olhada. Claro que gosto de jazz e bossa nova, claro que sei de muitas histórias de seus principais artistas, mas a coisa me pegou de tal jeito que não consegui mais largar o volume de 184 páginas.

O livro é uma série de 60 artigos nada óbvios e muito significativos. Boas histórias, algumas engraçadas, outras nem tanto, tudo filtrado por um conhecedor do gênero e em texto sempre fluido. Pois é, não deu pra largar.

Depois de ler o livro, repassando suas páginas, pude constatar o enorme volume de informação que o Eduardo Rodrigues gentilmente divide conosco. Sem desejar ser pernóstico, digo que lembrei da frase de Shakespeare: “Onde não há prazer, não há proveito”. Aqui há ambos, prazer e proveito. E um profundo amor à música.

Iniciando por Mingus e Chet Baker, visitando outros deuses com os quais você certamente já manteve contato auditivo, o livro é uma delícia. Temos Miles Davis e suas roupas, Diana Krall saltitando de pés descalços pelo camarim, Billie Holiday mastigando palavras, discos como Kind of Blue e outros mais desconhecidos, assim como seus artistas.

Como se não bastasse, Eduardo complementa a obra nos mostrando onde podemos ouvir toda a sensacional playlist daquilo que é citado, pois, se é bom de ler, é ótimo ouvir e conhecer aquilo que é descrito com graça e elegância.

Recomendo!

Eduardo Rodrigues

A solidão do amanhã, de Henrique Schneider

A solidão do amanhã, de Henrique Schneider

Este livro é um notável thriller com os dois pés na realidade brasileira dos anos 70. É realmente um livro para ser lido em uma sentada — ou duas, meu caso…

Fernando participava do movimento estudantil de resistência à ditadura civil-militar brasileira. Um dia, sua casa é invadida por milicos, com aquela truculência típica dos que podem tudo. Ele vai para a prisão, mas é logo libertado. Sabendo que pode ser novamente preso, ele e seus companheiros decidem que Fernando deve emigrar para o Uruguai, destino igualmente perigoso. Ele consegue que o pai de um amigo de infância o leve até Aceguá, próximo de Bagé, na fronteira seca entre os dois países. Este pai, Jorge Augusto, é, digamos, um funcionário púbico acima de qualquer suspeita. A viagem, dentro de uma incerta Variant, é o thriller, provocando enorme expectativa no leitor.

Mas não é somente a tensão pela tensão. A solidão do amanhã demonstra que a política está misturada a tudo, mesmo que Jorge Augusto evite o tema. Os excelentes diálogos do livro, seus vários narradores — indicados no início da cada capítulo — e a sólida construção dos personagens mais do que arranham a realidade, mostram pessoas vivas e o que é a vida e o medo durante uma ditadura. Um medo que perpassa tudo, desde a viagem até o futuro no país vizinho. E mesmo que se acredite na luta que se trava.

É claro que as pessoas que hoje pedem o retorno da ditadura jamais lerão esta obra de Henrique Schneider, mas deveriam. Para os que estão na outra trincheira, A solidão do amanhã é uma grande história — excepcionamente bem narrada — sobre uma época que deveria estar apenas nos livros de história. E nas histórias.

Henrique Schneider | Foto: Literatura RS

O fim do homem soviético, de Svetlana Aleksiévitch

O fim do homem soviético, de Svetlana Aleksiévitch

Nestes dias, falar em homem — mesmo que em sentido geral — talvez seja inadequado para o título de um livro narrado em sua maioria por mulheres, mas OK. Aleksiévitch é uma jornalista que se dedica a compilar entrevistas de pessoas, formando romances-corais. Os depoimentos de sucedem, sendo maravilhosamente tratados como literatura pela autora. O resultado aqui é de uma cacofonia viva e profundamente comovente de vozes russas para quem a era soviética era tão essencial quanto sua natureza.

O fim do homem soviético é um mosaico de vozes de todas as regiões da antiga União Soviética que revelam, através de longos e tortuosos monólogos, como era realmente viver sob o comunismo. Para uma nova geração de russos nascidos após a Segunda Guerra Mundial, a era de Mikhail Gorbachev, perestroika e glasnost, a tentativa de golpe, o colapso da União Soviética e as subsequentes crises econômicas sob Boris Yeltsin anunciavam uma sensação de liberdade, mas muitos russos ficaram desiludidos e zangados. O que o socialismo agora deveria significar para o antigo Homo sovieticus, agora pejorativamente chamado de sovok? (“lata de lixo”)? Em segmentos que ela chama de “Sobre o ruído das ruas e as conversas na cozinha”, Aleksiévitch transcreve esses monólogos e conversas gravadas em uma prosa sinuosa de fluxo de consciência. Pessoas de todas as idades delineiam eventos com perplexidade e fúria, terminando em um novo mundo assustador onde o capitalismo de repente era bom com o “dinheiro tornando-se sinônimo de liberdade”. Os suicídios que Alexievich narra são de cortar o coração, assim como o sentimento reiterado de “ingenuidade” do povo diante da decepção, a resistência do anti-semitismo, a guerra nas ex-repúblicas soviéticas, a fome e as terríveis condições de vida. A autora captura essas vozes formando um documento de valor inestimável. É literatura profundamente significativa como história.

Você pode abrir O fim do homem soviético em qualquer lugar. As histórias vêm de uma enxurrada de vozes: médicos, escritores, trabalhadores, ex-funcionários, soldados, vêm de todos. Fazendo poucas intervenções, a autora dá espaço a essas pessoas. Quando ela insere um comentário, está entre colchetes e muitas vezes são muito comoventes. Uma carga de catarse está em exibição. As pessoa realmente falam para Aleksiévitch.

A maioria das histórias são sobre as promessas das eras Gorbachev e Yeltsin. Em vez de tolerância e oportunidades, as pessoas foram apresentadas a uma forma brutal de capitalismo, que dividia as pessoas em vencedoras e perdedoras. Em vez de paz, após o desmembramento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1991 em estados independentes, ressurgiram ódios raciais cruéis. Este livro está cheio de saudade dos velhos tempos, por mais terríveis que possam ter sido. Parte do anseio é pela antiga vida intelectual da Rússia. “Os livros eram a vida para nós. Eles eram todo o nosso mundo. Agora tudo é o dinheiro”.

Um homem comenta: “Saímos de nossas cozinhas e fomos para as ruas, onde logo descobrimos que, afinal, não tínhamos nada – o tempo todo estávamos apenas conversando. Pessoas completamente novas apareceram, esses jovens de anéis de ouro e blazers magenta. Havia novas regras: se você tem dinheiro, você conta — sem dinheiro, você não conta. Quem se importa se você leu tudo de Hegel? ‘Humanidades’ começou a soar como uma doença.”

Aleksiévitch nos leva a muitas cozinhas que já foram a alma da vida dissidente russa. “Para nós, a cozinha não é apenas onde cozinhamos, é a sala de jantar, o quarto de hóspedes, o escritório”, diz a autora. As cozinhas são onde “podíamos criticar o governo e, o mais importante, não ter medo, porque na cozinha estávamos sempre entre amigos”. Hoje, a cozinha russa são muitas vezes lugares sem alma, cheios apenas de imitações de aparelhos de última geração. Menos conversa acontece. Menos comida sai de lá também.

Na introdução a este livro, Aleksiévitch escreve sobre seu método. “Não pergunto às pessoas sobre socialismo”, diz ela, “quero saber sobre amor, ciúme, infância, velhice. Música, danças, penteados. A miríade de detalhes de um modo de vida desaparecido.”

Recomendo.

Svetlana Aleksiévitch (1948)

Lucky Jim, de Kingsley Amis

Lucky Jim, de Kingsley Amis

Lucky Jim é um livro delicioso. Quando disse que o estava lendo, alguns amigos me disseram que o livro era pueril, descartável, o que me deixou verdadeiramente surpreso, pois o livro estava me parecendo um bom retrato do mundo acadêmico, onde — normalmente — um quer morder o calcanhar do outro. Obs.: Fui casado com uma acadêmica de certo renome e… É isso aí mesmo. As fofocas e as disputas descritas no livro me soaram pra lá de realistas.

Há outra coisa: eu gosto de humor, as boas piadas são uma das poucas alegrias desta vida, não? Christopher Hitchens, que não era exatamente uma besta e que conhecia bastante o ambiente acadêmico, considerava Lucky Jim o mais engraçado romance da segunda metade do século XX, o que não é pouca coisa. Mais do que uma sátira da vida interna universitária, Lucky Jim é um ataque às forças do tédio, quaisquer que sejam as formas que assumam, e um livro que mantém vivas as tradições de Fielding e Dickens.

Mas voltemos algumas casas. Lucky Jim é o livro de estreia de Kingsley Amis, lançado no já longínquo ano de 1954. É a história de Jim Dixon, um pobre professor de História Medieval no seu primeiro ano numa universidade do interior da Inglaterra. Amis nos conduz através de uma galeria de ingleses autenticamente chatos, excêntricos e neuróticos com quem Dixon deve lutar de uma forma ou de outra para manter seu confortável posto acadêmico e conquistar a mulher de seus sonhos.

Dixon está inquieto e sem qualquer noção do que quer fazer com sua vida e aparentemente sem capacidade de mudar sua direção ou expressar diretamente vontades. Sua principal preocupação é a de convencer o chefe de seu departamento, Ned Welch, a não demiti-lo — só que ele está tentando manter um emprego do qual não gosta. A certa altura, Dixon comenta com outro personagem, a propósito de sua disciplina: “Você não percebeu como nos especializamos no que mais odiamos?”. Bem…

Mesmo em sua vida pessoal, durante a maior parte do romance, Dixon é incapaz de assumir o comando. Sem realmente desejar, talvez por piedade, ele se envolve em um relacionamento com uma mulher, Margaret, que é severa adepta da chantagem emocional. É um relacionamento para o qual Amis nos diz que Dixon foi “atraído” ao invés de um que ele perseguiu. É desastroso. Margaret precipita brigas porque anseia por drama. Ela o acusa de ofensas que ele não comete. No passado, ela teria tentou ou não um suicídio  — Amis é intencionalmente ambíguo neste ponto –, mas a percepção de Dixon de Margaret como frágil o liga ainda mais a ela. Por outro lado, há Christine, a namorada do filho do professor Welch, uma jovem descrita por Amis de tal forma que me apaixonei por ela…

Dixon é claramente um peixe fora d’água. Seus colegas, especialmente Welch, celebram o passado e a alta cultura, enquanto Dixon não tem aprecia nenhum dos dois, apesar de seu trabalho como professor de história. Uma das partes centrais do romance se concentra em um “fim de semana artístico”, ao qual Dixon comparece na casa de Welch (para marcar alguns pontos para permanecer no emprego que abomina), onde os convidados cantam madrigais, interpretam uma peça antiga e ouvem um violinista amador. Dixon prefere o jazz às canções históricas e foge para beber cerveja em um pub durante o findi. Antes, Dixon, que não sabe ler música, fingiu entender tudinho de uma parte de tenor em um dos madrigais. Um desastre. Mais tarde, enquanto voltava cambaleando do pub para onde se esgueirava até tarde da noite durante aquele fim de semana, ele canta, com entusiasmo, uma balada country, apropriadamente, dada sua postura, sobre um acidente de trem.

Dixon faz tudo contra si, está se dirigindo velozmente para a ruína certa, perderá o emprego, nunca será capaz de se livrar de um relacionamento com Margaret — até porque estamos em um romance seriamente cômico –, mas tudo muda, apesar da palestra pública que, bêbado, dá a toda a comunidade universitária. No final do livro, fica claro que ele está pronto para uma vida melhor do que aquela que o futuro anunciava.

A comédia de Lucky Jim funciona bem demais, especialmente nas duas longas seções que se concentram em infortúnios que Dixon tem por causa da bebida: A do fim de semana artístico, quando ele adormece fumando e provoca um pequeno incêndio, e a segunda, que serve como clímax do romance, durante a palestra pública de Dixon, na qual ele sucumbe a um catálogo de erros que torna sua performance representativa dos medos de tantos nós que precisamos nos levantar e falar na frente de grupos de estranhos.

A frase final é linda: “O relinchar e o estalar do motor ao ser ligado foram ouvidos às suas costas, tornando-se mais e mais tênues à medida que, graças à distância, vieram a ser de todo substituídos por outros ruídos da cidade e por suas próprias vozes.” As palavras que fazem o final funcionar são as três últimas: “suas próprias vozes”. No meio da cidade lotada e agitada, Amis isolou Dixon e a mulher com quem ele está, deixou claro que o mundo de Dixon agora está separado do miserável que ele habitou por quase todo o romance.

Kingsley Amis à época do lançamento de Lucky Jim

A moça do internato, de Nadiêjda Khvoschínskaia

A moça do internato, de Nadiêjda Khvoschínskaia

Ah, os russos… Ah, os russos do século XIX…

Nadiêjda Khvoschínskaia é uma escritora russa desconhecida do século XIX. Sim, imaginem uma escritorA naquela sociedade! Ela foi romancista, poeta, crítica literária e tradutora. Em várias de suas publicações utilizou o nome dúbio de V. Krestovsky. Nascida 3 anos depois de Dostoiévski, e 4 antes de Tolstói, em 1824, era a mais velha de quatro filhos. Duas de suas irmãs mais novas, Sofia e Praskovia, também se tornaram escritoras. Este A moça do internato foi um estrondoso sucesso na época de seu lançamento, especialmente entre meninas e mulheres. O livro foi traduzido para o inglês ainda durante a vida de Khvoschínskaia.

Vou contar um pouco da boa história do livro, mas sem matar a futura leitura de vocês. É que é fundamental deixar claro que o empoderamento feminino é uma luta de séculos…

A heroína Liôlienka é uma menina de cerca de dezesseis anos. Ela nos é apresentada não por suas características físicas, mas por outras – tem boa memória, é inteligente, estudiosa e trabalhadora. Seus olhos não são bonitos, mas “claros e diretos”. E, de fato, Khvoschínskaia usa predominantemente anti-descrições das mulheres, opondo-as às definições típicas dos homens. O olhar da moça “não era coquete, não desafiava, não buscava uma conversa”. Ela conhece seu vizinho Veretítsin e eles conversam frequentemente através das grades que separam os jardins.

Veretítsin atua como uma espécie de professor alternativo para Liôlienka. Ele lhe revela a artificialidade de sua vida e coloca na cabeça da moça a ideia de liberdade, fazendo-a perceber o quão pouco ela tem: “Você é uma filha maravilhosa, obediente, gentil: você está apenas agindo de acordo com seu dever. Em vez disso, deveria viver para si mesma.” Na verdade, o vizinho está apenas entediado e brinca com a jovem. Ela é uma distração agradável. Quando ele lhe dá Romeu e Julieta para ler, o tom de seus pensamentos é boboca: “Bem, deixa ela se educar!”. Ela é uma brincadeira.

Mas para Liôlienka, suas palavras não são piadas. Ela percebe que nunca fez nada por si mesma. E passa aprender fora da escola. Percebe que sua educação consiste simplesmente em memorizar coisas, nunca em pensar por si mesma. Criadas com medo, as crianças de sua família conhecem apenas o caminho de ida e volta para a escola. Em casa, a mãe lhe diz para “costurar, costurar, cuidar dos irmãos e ler um livro só quando estiver cansada”. Só que ela começa a ver a hipocrisia de seus pais, a maneira como eles estão constantemente “se achando”, apesar de sua posição humilde e pobre. Ela reconhece que tem pouco poder para remediar isso. Excelente aluna, resolve ser reprovada nos exames escolares, como um ato de rebelião. Mas isso é tudo que pode fazer. Então, seus pais decidem que ela tem que casar.

A resposta é não. Bem, o vizinho, ao lhe dar Romeu e Julieta, abriu sua mente para um novo modo de existência, dominado pela paixão e interesse pessoal. A descrição da leitura de Liôlienka é cheia de alegria. E… o vizinho — incapaz de se libertar de seu próprio cinismo –, consegue libertar a moça de suas circunstâncias.

O capítulo final se passa oito anos após os eventos do resto da história. Somos levados ao Hermitage, em São Petersburgo. Khvoschínskaia nos dá uma visão panorâmica das pessoas que estão no museu – senhoras e homens sérios. E logo somos levados não a uma “dama”, mas a uma “artista mulher”. Claro que se trata de Liôlienka. Lá ela reconhece o ex-vizinho entre os visitantes e o convida para conversar em sua casa. Muita coisa mudou. Ela não é mais Liôlienka (um diminutivo), mas Elena. Quando Veretítsin se oferece para carregar suas coisas de artista, ela se recusa. Quando eles caminham nas margens do Neva, não há mais uma cerca que os separa.

Khvoschínskaia não toma partido. A adolescente certamente cresceu – e isso é uma coisa boa – mas o ponto final do livro projeta uma vida mais desafiadora para a maturidade. A continuação da história, infelizmente, não foi escrita. E é bonito isso.

Recomendo.

Nadiêjda Khvoschínskaia (1824-1889)

Um Outro Futebol, de Roberto Jardim

Um Outro Futebol, de Roberto Jardim

A importância do futebol no Brasil não se reflete em nossa literatura. Há alguns grandes livros, mas o volume de publicações é infinitamente menor do que o espaço que o futebol ocupa na vida, na cabeça e nas conversas dos brasileiros, para não falar nos vastos espaços concedidos ao esporte nos veículos de comunicação. Então, quando é lançado um livro que faz uma minuciosa intersecção entre o esporte e a vida aqui fora — refiro-me à política, ao racismo, às ditaduras, à homofobia e ao futebol feminino, coisas que a imprensa, digamos, “não gosta muito de falar” — temos que saudá-lo.

A obra de Roberto Jardim cumpre brilhantemente o que promete. É realmente um outro futebol, uma outra abordagem. Temos 204 páginas de pequenos textos abordando fatos em sua imensa maioria desconhecidos do público futebolista. Eu mesmo, um viciado em futebol, ignorava a esmagadora maioria do que é (bem) narrado no livro. Há jogadores e técnicos que foram verdadeiros heróis e há tristes vítimas.

O que fica claro é que a intersecção que citei é bem maior do que se imagina. E todos os que pensam que o futebol não se mistura com política — que é o que diz fazer a Fifa, um dois vilões do livro –, minha nossa, não há nada que os defenda. O futebol é uma grande repositório de metáforas e conhecimento e, como tal, vive não apenas dentro das quatro linhas ou dos estádios.

Times de refugiados, times e jogadores insultados, mulheres proibidas de jogar futebol, lutas pela democracia em diversos países, farsas, homofobia, está tudo no livro de Jardim. Há muitos casos que deveriam ser conhecidos. Se tivéssemos mais futebol em nossa ficção, vários deveriam servir de inspiração a autores, tais suas forças. Por exemplo, o caso do jogador inglês Justin Fashanu — que li na fila para votar — me tocou profundamente pela absoluta falta de saída para um jogador que sai do armário. O bombardeio que ele sofreu foi implacável e deu no que deu. Outro exemplo, você sabia que o futebol feminino foi proibido no Brasil por Getúlio Vargas em 1941 e só permitido em 1979? Sim, o preconceito gerou 38 anos de proibição.

Confessadamente inspirado em Futebol ao Sol e à Sombra, de Eduardo Galeano, Um Outro Futebol é um grande livro que recebeu texto introdutório de Xico Sá e orelha de Sérgio Rodrigues.

Recomendo!

Obs.: o livro terá lançamento no próximo sábado (15 de outubro), às 16h30, na Bamboletras, com a presença de Luís Augusto Fischer, Leo Oliveira e de vocês!

Roberto Jardim

Derrubar Árvores: Uma Irritação, de Thomas Bernhard

Derrubar Árvores: Uma Irritação, de Thomas Bernhard

Um livro extraordinário. Ao lado de Extinção, creio que este é o melhor livro de Thomas Bernhard. (Não que os outros sejam muito inferiores). Sentado por grande parte do tempo numa poltrona, o narrador comenta uma festa noturna vienense para a qual foi convidado e que foi mais ou menos a contragosto. Naquele dia, uma amiga dele e dos anfitriões tinha morrido, era o dia de seu enterro, mas os Auersbergers — ela é cantora, ele é um “compositor na tradição de Webern” — já tinham organizam um jantar artístico cujo convidado de honra era um famoso ator. Durante o dia, eles vão ao enterro, mas depois acabam na tal festa. Lá, todos parecem estar se divertindo, mas o narrador está absolutamente entediado. O ator demora a chegar — estava fazendo o papel de Ekdal em O Pato Selvagem, de Ibsen — e o pessoal vai ficando cada vez mais bêbado.

Como disse, o convidado de honra virá para a festa logo após sua performance. Enquanto está aguardando a chegada do ator, sentado numa poltrona, e mais tarde, quando o ator chega, à mesa de jantar, o narrador observa as pessoas à sua volta, revivendo as duas últimas décadas, suas ligações e laços com os vários convidados, e, particularmente, a sua relação com Joana, que foi enterrada mais cedo naquele dia. O narrador guarda um tremendo ódio a todos os presentes. Para sua alegria, o ator, após suportar algumas deselegâncias, começa uma discussão agressiva com uma das convidadas, uma escritora uma autointitulada “a Virginia Woolf de Viena” e feroz rival literário do narrador. Quando o ator ataca Billroth, o o narrador momentaneamente passa de depreciativo a simpático, tendo anteriormente condenado o ator do Burgtheater como insípido e egocêntrico.

Quem conhece Bernhard sabe. Sua postura costume se de ódio contra tudo e todos — contra Áustria, contra os repugnantes austríacos, contra os artistas do país, contra o repulsivo nacional-socialismo que lá resiste. Quem conhece sabe: seu estilo é hipnótico e fácil de ler. Tudo vem em apenas um parágrafo cheio de repetições, como uma música — Bernhard foi músico na juventude –, o que não nos deixa respirar. Tudo se precipita, sem pontos de parada. Lê-lo é uma experiência única.

Conheci-o através deste livro lá nos anos 90, após ler uma entrevista onde ele detonava — com extrema inteligência — ninguém menos do que outro Thomas, o Mann. O título era Árvores Abatidas. E quem achar tudo muito exagerado, não conhece o mundinho musical de Porto Alegre… A gente ri bastante com Bernhard e com o citado mundinho, mas ele é sério, muito sério. Aqui, como lá, os tubarões de laguinho atacam e mordem mesmo.

Não pensem que contei o história toda. Negativo! Tudo está nos detalhes. A fofocalhada de alto (e baixo) nível nos deixa presos a Derrubar árvores.

Recomendo demais!

Thomas Bernhard com sorvete (1984)

Outono, de Karl Ove Knausgård

Outono, de Karl Ove Knausgård

Outono é uma bela coleção de sessenta e poucos pequenos textos que ficam entre o banal e, muitas vezes, o absolutamente imprevisível. São crônicas de até 3 páginas, onde o autor faz uma desintoxicação da enorme série Minha Luta. Após seis romances longos que levaram a introspecção ao limite, Outono parece olhar para fora e não para dentro. Knausgård certa vez afirmou que precisava de pelo menos 300 páginas para afirmar até mesmo a verdade mais simples, mas este livro, paradoxalmente, é formado de curtas observações – pequenos ensaios, cada um com não mais de três páginas, cada um considerando um único objeto ou fenômeno.

Em vez de falar de si — e ainda assim falando –, Knausgård nos mergulha num mundo material de maçãs, víboras, latas, rostos… Ele narra e filosofa enquanto esvazia a máquina de lavar louça, ferve macarrão ou penteia piolhos do cabelo de uma das filhas. Uma crônica é desencadeada quando uma de suas crianças perde mais um dente e simplesmente o entrega a ele. Knausgård fica com o dente na mão se perguntando porque paramos de nos maravilhar com os dentes perdidos, porque paramos de nos maravilhar com o mundo. E esta se torna a preocupação central do livro: restaurar nosso sentimento de admiração, tornar o mundo novamente estranho e cheio de magia.

Simone Weil escreveu que “a atenção, levada ao mais alto grau, é o mesmo que uma oração” – e aqui é assim. Dentes, chicletes, tudo se torna nobre, quase sagrado, sob o olhar paciente e admirador de Knausgård. O mundo parece repintado.

A maioria dos textos parte de onde o corpo termina e o mundo começa. Knausgård reflete sobre os botões de nossas roupas — uma das mais antigas invenções humanas. As moscas mexem com sua imaginação porque são cobertas de papilas gustativas: “Quando tudo que elas tocam também é provado, deve parecer ainda menos claro para elas o que são elas e o que é o mundo”.

Em uma cena, a filha de Knausgård vomita em cima dele no metrô. O que seria repugnante se a filha fosse de outra pessoa, aqui não é: “O fedor encheu minhas narinas, e o vômito pingava lentamente da minha jaqueta, mas não era nojento nem desconfortável, pelo contrário. A razão era simples: eu a amava, e a força desse amor não permite que nada fique em seu caminho, nem o feio, nem o desagradável, nem o repugnante, nem o horrível.”  Decididamente, este não é o mundo de Minha Luta, com seu pai ogro, suas ansiedades sobre a masculinidade, sua obsessão com o massacre de 2011 na ilha de Utoya, na Noruega, quando um nacionalista de extrema direita assassinou 69 pessoas.

É estranho ler um Knausgård tão seguro. O livro tem bom gosto e limites apropriados, inclusive quando fala entusiasticamente sobre sexo oral. Ele se recusa a se perder nas sombras. Eu, Milton, esperava a coragem de Minha Luta e sua falta de vontade de contornar “o feio e o desagradável”, seu senso  dos perigos e da imprevisibilidade da vida. Mas, em Outono, Knausgård nos mantém na praia olhando o mar. E as conchas que ele nos dá para admirar são intrincadas, absorventes e belas.

Karl Ove Knausgård (1968)

Fora deste mundo, de Graham Swift

Fora deste mundo, de Graham Swift

Este é um livro lançado em 1989 pela Companhia das Letras e hoje apenas encontrável em sebos. Foi onde busquei o exemplar que li. Fora deste mundo é uma tentativa altamente inteligente de Graham Swift na criação de um romance íntimo que também leva em conta a história do século XX. Convenientemente, o personagem principal, Harry Beech, é um ex-fotógrafo de guerra, e seu pai, além de veterano da Primeira Guerra Mundial, é o dono de uma fábrica de armas. Assim, a maioria dos principais conflitos do citado século é observada e a cena crucial de uma confissão entre pai e filho ocorre enquanto eles assistem, ne televisão, o pouso de Neil Armstrong na lua.

Enquanto isso, a filha de Harry, Sophie, com quem ele sempre teve pouco contato — ela foi criada pelo avô –, está deitada em um sofá no Brooklyn, desabafando sua hostilidade em relação ao pai e reclamando das falhas de seu próprio casamento com seu analista, Dr. Klein. Harry e Sophie, pai e filha, são os principais narradores do romance.

Trechos da saga familiar vão aparecendo — infidelidades, coisas jamais ditas em voz alta, perversidades, etc. –, trazidas com sutileza descritiva. Então, por que não funciona? Por que não nos envolve? Há bons momentos, mas é só isso. Talvez seja porque a história oscile como um pêndulo entre os pontos de vista de Harry e Sophie, e nenhum deles seja um bom narrador. Sophie às vezes se transforma em uma caricatura. Sua relação com seu analista parece tirada de um manual de comportamento típico de analisada. Também seus desejos sexuais e rebeldias poderiam ser um pouco melhor exploradas. Tudo parece meio falso ou fingimento.

A voz de Harry é mais crível: mas como ele é o veículo para a investigação de Swift sobre questões morais e históricas, recebemos muitas meias frases espasmódicas e perguntas sem respostas. E ele não chega a ser interessante.

Desta forma, fiz um esforço para ler o livro até o final — aliás, o final é ótimo e quase salva o livro.

Só que a tarefa que Swift se impôs foi enorme. A incorporação de algo vasto e aleatório — a História, nada mais, nada menos –, dentro de um romance íntimo e razoavelmente organizado, não deu muito certo. A contradição é apresentada pelo próprio Harry quando ele diz que cada imagem conta uma história. E ele completa: mas suponha que não conte uma história? Suponha que mostre apenas um fato aleatório? Suponha que mostre o ponto em que a história se desfaz? O ponto em que a narrativa fica muda?

E Swift não permite que o fluxo e o caos dos eventos históricos impeçam a busca do romancista por padrões, coincidências, ironias. E vida não tem sentido, nem os acontecimentos históricos separados por local e cronologia. Por que procurar padrões? Mas acho que a gente não pode deixar de aplaudir a ambição deste romance. O que lhe falta é uma estrutura que reflita de alguma forma a pura confusão dos eventos com os quais tenta lidar. Fora deste mundo se perde na forma. Ela não dialoga bem com o tema.

Graham Swift (1949)

Planícies, de Federico Falco

Planícies, de Federico Falco

Desnecessário dizer que a literatura argentina costuma surpreender. Pois este livro não é diferente. Federico, o protagonista de Planícies, aluga uma casa em “uma daquelas pequenas cidades que nunca se tornaram”. Pior, ele vai para um sítio sem graça e inóspito. Mas é o local escolhido por Federico para digerir o fim doloroso de um amor. Após sete anos, o namorado Ciro foi embora e Federico pensa que, é claro, ninguém vai amá-lo novamente.

E vai para seu sítio alugado a fim de tentar se alimentar apenas de seu jardim — o que também não é fácil. Ele planta, repensa sua infância, tenta poucos contatos com Ciro e luta contra as intempéries da região. Suas descrições daquilo que planta são lindas e sempre interessantes. Contribui muito para isso o excelente trabalho do tradutor Sérgio Karam. Mas não pensem que é apenas um romance de luto. Não, o luto aparece aqui e ali de forma muito fragmentada, fazendo com que nós às vezes esqueçamos dele, tal a forma com que Federico envolve-se com o ambiente e sua sobrevivência. E há as lembranças felizes. Todo este arcabouço torna o livro é comovente ao esconder dor, angústia e solidão sob um duro cotidiano. O tempo, as estações, os meses, o horizonte, as chuvas, a seca, os encontros rápidos com os vizinhos, tudo para fugir do desespero de ficar próximo daquilo que se foi para sempre. É um livro muito belo, estranho e sutil sobre um homem que cultiva um jardim, lembra e escreve. Quando menos se espera, surge um lirismo muito delicado e particular.

Recomendo!

Federico Falco (1977)

La hermana menor, de Mariana Enriquez

La hermana menor, de Mariana Enriquez

La hermana menor é um tremendo livro. Seu subtítulo é Un retrato de Silvina Ocampo e, obviamente, trata-se exatamente disso, de uma biografia. E esta é contada com extremo virtuosismo pela grande escritora e ficcionista Mariana Enriquez, que também é jornalista das boas, sendo subeditora do ótimo Página/12. A propósito, é claro que Silvina é o grande modelo literário de Enriquez. Aqui, ela alterna narrativa, entrevistas e citações de outros trabalhos sobre Ocampo, tornando a leitura do livro realmente vertiginosa. Suas aspas e os trechos das entrevistas jamais parecem excessivos, tudo contribuindo para a faceta de Silvina descrita em cada capítulo (e estes têm títulos memoráveis). As facetas são muitas: a tímida, a original, a sarcástica, a que se compraz com o absurdo ou o nojento (às vezes, com o sofrimento alheio), a endinheirada, a que sofre traições por parte do marido Bioy Casares, a que trai, a amiga de Borges, a péssima cozinheira, a muito excêntrica, a medrosa, a paranóica, a grandíssima contista e poeta.

Tudo inicia com a menina Silvina encarapitada sobre uma árvore esperando os mendigos. Sim! E é da infância que parece vir a maioria de suas histórias, com crianças cruéis, crianças assassinas, crianças suicidas, crianças maltratadas, crianças incendiárias, crianças perversas, crianças que não querem crescer, crianças que nascem velhas, meninas bruxas, meninas videntes. Seu primeiro livro de contos, Viaje olvidado (1937), traz uma infância deformada e recriada. Sua irmã mais velha, a autoritária e quase inimiga Victoria, diz que este livro é um similacro do que foi a infância de Silvina, seria a “aparição de uma pessoa disfarçada de si mesma”. O último, publicado postumamente em 2006, é uma autobiografia infantil. Não há época que a fascine mais, não há tempo que lhe interesse tanto.

A primeira coisa que pensamos é que a criança Silvina poderia dialogar muito bem com as crianças que habitam as histórias de horror de Mariana Enríquez… Mas deixemos isto de lado. Enríquez escreve seu retrato deixando que a própria escritora conte a história, com sua própria voz. E simultaneamente, com grande precisão, disseca e escolhe citações entre montes de testemunhos, biografias, estudos críticos, entrevistas, cartas, para reconstruir uma vida marcada pelo estranhamento, criadora de uma obra selvagem, escrita numa época em que Silvina não encontrou o lugar que desejava, pois nos anos 50 aos 70 havia que ser realista e político… Só nossa época trouxe luz para Silvina Ocampo.

Enriquez iguala as vozes autorizadas de escritores e críticos com outras, como a do homem que engraxava os sapatos de Bioy Casares ou o dono do armazém que vendia coisas para ela. É uma heterogênea biografia-coral que funciona maravilhosamente.

A princípio, Silvina ficou obscurecida pela fama de Bioy Casares e Jorge Luis Borges. O trio jantou  junto por anos e anos. Reza a lenda que a maioria absoluta dos jantares consumidos por Borges em toda sua vida aconteceram na casa dos Bioy. Ou seja, eles se encontravam praticamente todas as noites para comer a mesma comida ruim, e isto não é uma metáfora. Hoje, Silvina Ocampo ressurgiu e está mais próxima do lugar que merece. Enriquez não cita, mas é claro que Silvina — irmã menor de seis irmãs — é sua irmã literária mais velha, sendo a autora da biografia a menor. Ou a mais nova.

Importante: A editora Relicário está traduzindo a obra para o português e o livro deve ser lançado ainda em 2022. 

Mariana Enriquez (1973)

O Gueto Interior, de Santiago Amigorena

O Gueto Interior, de Santiago Amigorena

Este é o primeiro livro da editora Todavia que não me agrada. Como li muitos, isto é um elogio à editora.

Início dos anos 40. Vicente Rosenberg é um judeu polonês que vive em Buenos Aires. Ele emigrara sozinho da Polônia em 1928. Sempre pretendeu chamar seus familiares para junto de si, mas, com o tempo, acabou por esquecer da ideia e jamais foi buscá-los. Algumas cartas trocadas por ano bastavam. Na Argentina, está adaptado, vive bem, é dono de uma loja de móveis, está casado e tem filhos. Frequenta os cafés, come empanadas, fala espanhol. Enfim, sente-se em casa. Não pratica a religião de seus antepassados. Mas deixou sua mãe e família em Varsóvia. E lá estão os nazistas pretendendo eliminar os judeus na chamada “solução final”.

Quando da invasão da Polônia, Vicente passa a receber cartas cada vez mais espaçadas e desesperadas de sua mãe, com descrições do gueto de Varsóvia, onde seus parentes e sua mãe estão confinados, passando fome. Logo os nazistas começam a matar os judeus em câmaras de gás. Na verdade, O Gueto Interior conta a história real do avô do autor, que teve sua mãe presa no gueto de Varsóvia. O livro demonstra que se livrar do horror pode se tornar outra sentença, menor, mas também terrível. O sentimento de culpa de Vicente torna-o um homem silencioso e deprimido. As cartas, claro, param de chegar. Então, Vicente se fecha, tornando-se um bêbado viciado em pôquer, que dorme até tarde e deixa de lado mulher e filhos.

O livro fez enorme sucesso na França — a história é ótima –, mas acho que faltou autor. Amigorena repete-se muitas vezes e a opção pelo silêncio, por parte de Vicente, é acompanhada pelo autor a alguma distância. Conhecemos seu sonho recorrente e ficamos sabendo de suas atitudes externas, mas acompanhamos pouco seus pensamentos. Parece que estamos no cinema — sem as imagens, o som e o desempenho dos atores — e não lendo um livro.  Se virar filme, vou ver.

Que bela cabeleira, Santi!

A boa sorte, de Rosa Montero

A boa sorte, de Rosa Montero

Após os notáveis A ridícula ideia de nunca mais te ver, A louca da casa e Nós, mulheres, Rosa Montero reaparece com seu novo romance A Boa Sorte. É seu primeiro romance em que o personagem principal não é uma mulher. Mas isso talvez seja falso, porque quem ilumina e altera as feições da história para um discreto sorriso é uma personagem feminina.

Sem dar grandes spoilers: o romance começa em um trem para Mágala. Porém Pablo Hernando, em vez de continuar sua viagem até esta cidade, onde deveria dar uma palestra, desembarca antes, decidindo ficar em uma pequena cidade de La Mancha. É um viajante bastante estranho. Pela janela, ele vê uma pequena e feia cidadezinha quase abandonada e dá um jeito de voltar a ela. Sim, Pozonegro não era seu destino, seu destino era Málaga. A estranheza vai se acentuar. Assim que ele desce, à noite, resolve comprar um dos apartamentos que ficam em frente aos trilhos. O vendedor fica muito surpreso, pois Pablo Hernando, quer comprá-lo imediatamente, em dinheiro, sem visitar o imóvel, tipo agora ou nunca. Como o apartamento era uma ruína complicada de vender, seu dono consegue trazer o moço do cartório em plena noite para apressar coisas que poderiam ser melhor formalizadas durante o dia seguinte. E o negócio é fechado, com Pablo tomando posse do apartamento logo depois de chegar, sem malas.

Nós, leitores, ficamos sem saber de muita coisa. Quem é Pablo Hernando? A polícia está atrás dele? Por que Pozonegro? E por que um lugar onde ele não conhece ninguém? E então Raluca, uma mulher de origem romena, funcionária do supermercado local, entra em cena. Ela é sua vizinha e tenta integrá-lo à comunidade. Ela o ajuda a comprar as coisas de que precisava para sobreviver: um colchão, roupas, comida… E até consegue um emprego para ele no supermercado, sem saber que aquele maluco é um famoso arquiteto.

Se Raluca é o Bem, o Mal é representado pelo filho de Pablo, com quem nosso herói perdeu o contato e que, bem, deixemos em aberto porque aqui temos um item fundamental para a (grande) tensão da história.

Os dois polos do romance são Raluca e Marcos, o filho. Pablo parece não entender nenhum dos dois. Nem a luz dela, nem as sombras dele. A autora comanda com raro virtuosismo um mecanismo de intriga bem grudento, revelando aos poucos quem é Pablo, suas mentiras, seus medos e culpas.

Raluca também tem um passado nada tranquilo, mas é alguém que é capaz de irradiar felicidade por onde anda e que, mesmo morando num fim de mundo perigoso, é capaz de dizer que “tem uma vida incrível”. Quando falo em mundo perigoso, quero dizer que A Boa Sorte mostra a violência de muitas formas: de pais contra os filhos, contra os animais, contra quem é diferente, contra quem tem alguma coisa que se quer. Porque em Pozonegro há criminosos, líderes de gangues neonazistas e vizinhos extorsionários, mas, felizmente, lá também há quem se considere sortudo como Raluca.

Claro que uma escritora do nível de Montero não aponta soluções para o Mal, apenas mostra que devemos conviver com ele. A descida pessoal de Pablo Hernando ao inferno é muito bem descrita. Há medo, angústia, culpa, desejo e também amor, generosidade e inocência E uma boa notícia que não nos aliena, muito pelo contrário: nos faz querer viver e respirar.

Em A Boa Sorte, Montero realiza um belo romance, mesmo que se possa reclamar do estereótipo do homem rico e angustiado que se relaciona com uma moça pobre e sem instrução. Sim, é um livro otimista pero no mucho, onde, de certa forma, o Bem vence (ou contorna) o Mal. Não chega a ser proibido ser ao mesmo tempo feliz em ficção, certo?

Recomendo!

Que sorte! É que eu sempre tive muita sorte, sabe? E felizmente tenho essa sorte, porque, se não, com a vida que tive, não sei o que teria acontecido comigo.

Os Mortos, de James Joyce

Os Mortos, de James Joyce

Este volume é uma coletânea de dois contos de James Joyce — Os Mortos e Arábias, ambos de Dublinenses — e do capítulo final de Ulysses, o monólogo de Molly Bloom. Comprei o livro em razão do monólogo — queria relê-lo, mas não queria carregar o pesado Ulysses completo por aí — só que também gostei muito de revisitar os dois contos, que são perfeitos em sua melancolia.

Os Mortos é ​​o último conto da coleção Dublinenses de 1914. É de longe a história mais longa da coleção, quase longa o suficiente para ser descrita como uma novela. A história lida com temas de amor e perda, além de levantar questões sobre a natureza da identidade irlandesa.

Arábias conta a paixão de um menino pela irmã de seu amigo. Narrado em primeira pessoa, o leitor mergulha na vida monótona da North Richmond Street, que parece ser iluminada apenas pela imaginação das crianças que, apesar da crescente escuridão do inverno, insistem em brincar “até que seus corpos brilhassem”. Esses meninos estão à beira da consciência sexual e, impressionados com o mistério de outro sexo, estão famintos por conhecimento.

Difícil imaginar duas histórias que sejam mais bem escritas. E estão dentro de um formato rigorosamente clássico.

Já o Monólogo de Molly Bloom traz o Joyce revolucionário de Ulysses. Aqui, temos mais uma torrente do que um fluxo de consciência. É um texto implacável e sem pontuação. No final do gigantesco romance experimental de 1921 de James Joyce, depois que seu herói finalizou suas andanças e voltou para casa, sua esposa, Molly, dá a última palavra. Ou melhor, dá muitas, muitas palavras. “Sim” é o primeira delas e também a última: “e sim eu disse sim eu quero Sim” – uma frase tão famosa que você pode conhecê-la mesmo que não seja familiarizado com o livro.

Molly Bloom é a esposa de Leopold Bloom, o personagem central do livro. Ela nasceu em Gibraltar em 1870, filha de um oficial militar irlandês e um gibraltino de ascendência espanhola. Em Dublin, onde o romance se passa, Molly é uma conhecida cantora de ópera. Molly e Leopold tem um casamento já sem sexo, mas Molly ainda está em seu auge sexual e dormiu com muitos homens — fato de que seu marido está bem ciente.

O solilóquio de Molly começa depois que Leopold se acomoda na cama, murmurando algo sobre ovos. Na cama, deitada ao lado do marido, Molly não consegue dormir. Sua mente começa a vagar dos ovos de Leopold para os eventos do dia anterior (16 de junho de 1904) e para memórias mais distantes. O solilóquio, de aproximadamente 22.000 palavras, consiste em oito “frases” extremamente longas. Os pensamentos de Molly vão da saúde de Leopold para a lembrança de suas tentativas bastante lamentáveis ​​de infidelidade e para as memórias de suas próprias aventuras sexuais muito mais gratificantes. Naquele mesmo dia, ela estava com seu amante mais recente, Blazes Boylan, um empresário de shows, para o que seu marido sabia não ser uma reunião de negócios. Molly descreve seus encontros sexuais em detalhes. (Suas palavras, especialmente as referências a funções excretoras e sexuais, encheram páginas de relatórios da censura de diversos países na primeira metade do século XX).

A mente de Molly também volta para sua infância em Gibraltar, ou avança para sua preparação para as músicas que ela cantará em uma próxima turnê. Quando ela finalmente adormece, seus últimos pensamentos voltam-se para seu primeiro encontro com Leopold, e no momento em que ela soube que estava apaixonada por ele.

Em uma carta de 1921, Joyce disse: “A última palavra (humana, humana demais) é deixada para Penélope”. descrita como “a palavra feminina” e que ele disse desejar indicar “aquiescência, abandono, relaxamento, o fim de toda resistência”.

Apocalipse, por favor, de Felipe Parucci

Apocalipse, por favor, de Felipe Parucci

Um baita livro, uma tremenda novela gráfica! Dei risadas pânicas por todo o tempo de leitura.

O tal meteoro está chegando e vai destruir o planeta. O que fazer? O livro se foca em quatro personagens principais. Arthur Miró é bem perturbado, trata-se de um esquizofrênico surtado que tem premonições com o fim do mundo. Tem também medo de mulher, feições de lobo — mas só apanha, só apanha — e toma o tarja preta Birutil. Só que… tem razão, afinal o fim está próximo. Há também o casal Anabela e Jorge. Ela tem transtorno de pânico causado por múltiplos problemas, passados e recentes. Não sai de casa, sofre de intensa ansiedade. Já Jorge é um cabeça de vento desempregado que vive da pensão de Anabela. E temos o presidente do país, Jesus Correia, um hilariante político corrupto que está se lixando para tudo que não seja sua grana.

O livro narra alternadamente estas quatro histórias que têm pontos de intersecção e alta tensão, pois o meteoro, repito, está vindo. São 280 páginas, dá tempo para muitas piadas e para desenvolver bem os personagens, assim como para descrever a situação de um mundo que talvez mereça mesmo acabar.

Apocalipse, por favor (Lote 42, R$ 85) foi lançado originalmente em 2015, mas se tornou muito mais atual tendo por cenário a situação de loucura absoluta de nosso país dirigido por um perturbado mental — talvez não louco, mas com certeza estúpido — e que deveria tomar várias pílulas diárias de Birutil.

O livro é engraçadíssimo. Trocadilho é uma coisa difícil de fazer, muitas vezes são considerados de mau gosto, mas os de Felipe são ótimos. O desenho é lindo, pura arte, o que faz a gente escolher entre apenas olhar ou seguir lendo. É para ser devorado. Empolga e vale cada centavo.

Felipe Parucci

Galina, de Galina Vishnevskaya

Galina, de Galina Vishnevskaya

Eu já tinha adiantado a vocês, meus sete leitores, de que estava lendo uma obra-prima. Bem aqui, ó! Mas agora vamos a algo mais organizado sobre o livro. Galina Vishnevskaya (1926 – 2012) foi um soprano russa colocada em posição fundamental dentro da arte soviética. Ela foi casada com o grande violoncelista Mstislav Rostropovich e ambos eram amigos de gente como Dmitri Shostakovich e Aleksandr Soljenitsin. Foi a maior cantora de sua época e foi usada como propaganda do país no mundo inteiro. Só que não apenas isso. Era uma pessoa que não apenas tinha uma voz monumental e cantava notavelmente, ela tinha um enorme potencial como escritora. Seu texto é extremamente belo ao narrar fatos de sua juventude, aprendizado, ascensão e carreira. Eu realmente não sei como este livro — que foi traduzido em quase todas as línguas — não possui uma edição em português.

Não pense que você encontrará aqui um furibundo discurso anti-soviético como os de Soljenitsin, Quando Galina, começou a discordar, ela o faz com argumentos e fatos. Então, aqui você encontrará coisa muito melhor, você encontrará humanidade e vida, vindas de uma artista que começou recebendo mil honrarias — Legião de Honra, Artista do Povo da URSS, Ordem de Lenin, Oficial de Artes e Letras — até se ver praticamente impedida de trabalhar na URSS, assim como seu marido. Ela, a prima donna absoluta do Bolshoi, conta a história de sua vida no século XX tendo por cenário o cerco de Leningrado, o aparecimento do realismo socialista de Jdanov, as turbulências stalinistas e pós-Stalin, curiosidades várias sobre muita gente famosa — não esquecer de Benjamin Britten –, além de insights históricos e pessoais muito significativos, que é o que faz este livro ser tão fantástico. É um livro sobre arte e vida, ou sobre a vida artística de alguém que sabe narrar como poucos.

E Galina tem um incrível bom humor e o talento para contar piadas. Elas estão longe de serem maioria no livro, mas quando aparecem… As brigas hilariantes com Rostropovich… Há capítulos lindos, como o de sua relação com os pais, e de suas aulas de canto com Vera Nikolayevna Garina e o final.

Quando comecei a ler o livro não consegui mais largar. Galina Vishnevskaya não era apenas uma grande cantora de ópera, mas uma contadora de histórias cativante. Suas descrições da amarga pobreza de sua infância e depois das atrocidades testemunhadas durante a Segunda Guerra Mundial quando ela era adolescente, apenas aumentam o horror e aumentam a descrença e a admiração por ela ter sobrevivido, tanto física quanto moralmente.

Olha, vale muito a pena correr atrás deste livro. É difícil de encontrar, mas se você procurar encontra em espanhol ou inglês. Desculpem, mas é uma absoluta obrigação a leitura deste livro por qualquer pessoa ler e ter em sua biblioteca — especialmente se estiver ligada às artes e/ou política de qualquer forma.

Galina Vishnevskaya

A Livraria, de Penelope Fitzgerald

A Livraria, de Penelope Fitzgerald

Para mim, uma decepção. Este é um livro sobre uma livraria, só que não fala em livros, fala da dificuldade de estabelecer uma empresa do gênero em uma pequena cidade costeira na Inglaterra. Talvez o problema seja eu, talvez tenha errado ao esperar outra coisa.

A viúva de meia-idade Florence Green tem energia de sobra e decide abrir a única livraria de Hardborough. Porém, Florence passa e enfrentar certa oposição a seu projeto. A influente “dona da cidade” Violet Gamart tinha outros planos para a centenária casa que Florence escolheu para a livraria e deseja que ela se mude. Ou suma de uma vez. Ela faz de Florence sua inimiga.  Num ambiente de inveja e pequenas maldades, o romance narra a luta de Florence.

Na superfície, A Livraria é apenas isso — uma história sobre a vida em uma pitoresca vila à beira-mar, mas também é algo completamente diferente. Embora haja aqueles toques da vida pitoresca e aconchegante da vila inglesa, em sua essência, o livro é principalmente sobre o rancor e o rancor que sobe à superfície da vila quando Florence Green, uma viúva que acaba de se mudar para Hardborough, decide abrir uma livraria. Enquanto no final da década de 1950, tal abertura poderia ter sido vista como um acontecimento para a pequena vila, logo se torna óbvio que não é o caso. Muitos veem Florence como tendo ultrapassado os limites sociais ao comprar um prédio que era procurado para outros fins e esse fato resulta em muito sofrimento para essa viúva de bom coração.

Com algo de um conto melancólico, A Livraria é, em última análise, mais do que sobre apenas uma livraria. É uma história sobre moral, sobre como tratamos os outros, sobre a vida em uma pequena vila e as questões e complexidades que surgem. 

Ah, a revisão da Bertrand Brasil não atrapalha a leitura do livro, mas há vários erros pelo caminho.

Penelope Fitzgerald (1916-2000): conto melancólico

 

Sobre o Exílio, de Joseph Brodsky

Sobre o Exílio, de Joseph Brodsky

Sobre o Exílio não chega a ser um grande texto ou pelo menos é um texto muito de circunstância. Quando Joseph Brodsky tinha apenas 24 anos, foi acusado de parasitismo social. O julgamento foi antológico e Savelyeva, o juiz, ficou para a História.

— Qual é a sua profissão?

— Poeta.

— E qual é a sua ocupação permanente?

— Julgava que era uma ocupação permanente.

— Quem lhe deu autorização para ser poeta?

— Ninguém. E quem decidiu que eu pertencesse à raça humana?

Condenado a cinco anos de trabalhos forçados na tundra gelada de Norinskaya, uma variante da Sibéria, Brodsky foi para sempre impedido de “exercer uma profissão para a qual não tinha as qualificações necessárias”. A sentença correu mundo e o escândalo abreviou-lhe a pena.

O evento obrigou-o a deixar sua terra natal, Leningrado (ou a atual São Petersburgo), seus amigos e sua família. Ajudado por ninguém menos que W. H. Auden, Brodsky foi viver uma nova vida nos Estados Unidos. Apesar de sua juventude, antes de sua emigração, ele já estava se destacando como um talentoso poeta e artista. Foi reconhecido por ninguém menos que a grande Anna Akhmátova, que se tornou sua mentora antes da repentina expulsão. Nos Estados Unidos, ele alcançou enorme sucesso. Recebeu o Nobel de Literatura em 1987, em recompensa por uma prolífica carreira escrevendo poemas que hoje são considerados clássicos.

Um homem com bom gosto, especialmente literário, é menos suscetível aos encantos e amarras de qualquer versão da demagogia política. O ponto, aqui, não é que a virtude constitua uma garantia para a criação de uma obra de arte, mas sim que o mal, principalmente o mal político, é sempre um péssimo estilista. Quanto mais substancial é a experiência estética de um indivíduo, mais sólido é seu gosto, mais afiado é seu foco moral, portanto, mais livre ele é, mesmo que não seja necessariamente mais feliz.

Seus poemas e escritos falam do tédio do exílio e da tristeza pela ruptura entre sua antiga vida e a nova. Durante anos, ele permaneceu banido na Rússia — nunca retornou –, embora tenha permanecido muito amado por lá, com pessoas compartilhando seus escritos no circuito underground, com poemas sendo distribuídos em samizdat ou em cópias impressas e manuscritas à mão. Isso ainda era motivo de grande tristeza para Brodsky, que foi citado como tendo dito em uma entrevista à Paris Review : “Para um escritor, não ser publicado em sua língua materna é tão ruim quanto um final ruim.” Se, como disse Adorno (1903-1969), não poderia haver poesia após Auschwitz, para o escritor russo é impossível que o exilado consiga novamente sentir-se em casa.

Como não há leis que possam nos proteger de nós mesmos, nenhum código penal é capaz de prevenir um verdadeiro crime contra a literatura; apesar de podermos impedir ameaças materiais a ela — como a perseguição de escritores, atos de censura, a queima de livros –, não temos poder algum em relação à pior das violações: a de não ler livros. Por esse crime paga-se por toda a vida; quando o violador é uma nação, ela paga com sua história.

O livro é dividido em 3 ensaios — “A condição chamada exílio”, “’Uma face incomum’” e “Discurso de aceitação”.  O melhor, disparado, é o segundo, que é o discurso que Brodsky proferiu ao receber o Nobel. É aqui, com tema livre, que ele se esbalda e todas as citações que aqui coloco foram tiradas dele. O terceiro ensaio são quatro páginas bem simpáticas onde ele diz “OK gente, eu aceito o Nobel”

Não tenho dúvida de que, se houvéssemos escolhido nossos líderes tomando por base suas experiência de leitura, e não seus programas políticos, haveria bem menos sofrimento no mundo. Parece-me que o mestre em potencial de nossos destinos deveria ser inquirido, primeiramente, não em relação ao que ele imagina que deveria ser o curso de sua política externa, mas quanto às obras de Stendhal, Dickens, Dostoiévski.

Joseph Brodsky (1940-1996)

Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov

Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov

A primeira coisa que chama a atenção neste livro é sua original e brilhante diagramação. Tudo está muito claro e a leitura flui como poucas vezes em uma peça de teatro, pois é disso que se trata. A coisa foi tão bem bolada que nem precisamos ir aos rodapés. (Odeio rodapés). E eles são muito necessários, assim como toda a contextualização histórica e a cronologia preparada pelo excelente tradutor Irineu Franco Perpétuo.

Os Dias dos Turbin é uma peça de teatro de Mikhail Bulgákov baseada na história da Ucrânia durante a Revolução Bolchevique. A peça deriva de seu romance A Guarda Branca. Não adianta ler a peça se não soubermos, por exemplo, quem foi Petliura ou o Hétmã de toda a Ucrânia ou a participação da Alemanha no forrobodó. Isto está muito bem explicado na cronologia e nos comentários de Irineu. Fui atraído para ler Os Dias não somente por seu genial autor como por ter sido a peça de teatro preferida de Stálin, que a assistiu 16 vezes. Sua admiração por Bulgákov — um inimigo, um russo branco, um anti-bolchevique — fez com que ele salvasse a vida do escritor, dando-lhe um emprego no teatro enquanto todos os seus assessores políticos diziam que o tratamento adequado para Bulgákov era o Gulag. Se Stálin era um psicopata, também era um inteligente admirador das artes, o que o torna um ser menos imbecil do que, por exemplo, Bolsonaro. Stálin dizia que o drama sobre a família burguesa Turbin durante a guerra civil demonstrava que os bolcheviques eram invencíveis. Se quisermos, a leitura nos abre esta janela. Faz sentido.

Mas não pensem que a vida de Bulgákov foi aquele mar de rosas criado por Stálin. Ele apenas não foi morto nem condenado a trabalhos forçados. Tudo lhe foi proibido. “Estou na miséria, acossado, em completa solidão. Nos últimos sete anos, concluí dezessete obras de diferentes gêneros, e nenhuma delas foi publicada. Semelhante situação é impossível, e em nossa casa há trevas e uma completa falta de perspectiva”. Contudo, escondido, escrevendo para a gaveta, o escritor preparou sua obra-prima O Mestre e Margarida (1, 2, 3, 4 e 5), a qual foi publicada clandestinamente apenas em 1966, 26 anos após sua morte.

Em Os Dias dos Turbin, o confortável mundo tchekhovniano dos Turbin é esmagado pelo pecado da ignorância sobre o que estava acontecendo no império ao seu redor. Ou, melhor dizendo, pela crença de que ninguém tocaria em seus privilégios. Se eles não fossem ignorantes, teriam sido virados de cabeça para baixo de qualquer maneira, só que neste caso haveria menos graça. A genialidade da peça é sua honestidade impiedosa, não importa o lado. O mundo da traição e dos boatos têm sempre dois lados. É sempre inusitado vermos personagens com pouca maldade real, mas com falhas humanas — ganância, deslealdade, orgulho — que explodem aqui e ali. Os Dias do Turbin prenunciam O Mestre e Margarida. Em O Mestre e Margarida, Satanás pune Moscou e aqui há Vermelhos punindo Kiev. Bulgákov odiava os bolcheviques, mas deve ter notado que somente os pequenos atos de resistência interior eram possíveis contra eles.

Aqui temos duas histórias em que os governantes são varridos do poder. E há espaço para o humor de Bulgákov. A fuga dos brancos provavelmente será acompanhada de suas risadas, caro leitor. É o mundo de Bulgákov. Triste, implacável e engraçado.

Recomendo.

Mikhail Bulgákov (1891-1940)