Um livro extraordinário. Manual da Faxineira (Cia. das Letras, 532 páginas) compila os melhores trabalhos da contista Lucia Berlin. São 43 contos com um humor que guarda certo parentesco com o de Raymond Carver, mas com melancolia e realismo próprios. Berlin faz milagres com o cotidiano, descobrindo momentos sublimes em lavanderias, em casas do meio oeste estadunidense ou da classe alta da Bay Area de San Francisco, em emergências hospitalares, entre operadoras de telefonia e mães em dificuldades, caroneiros, drogados e alcoolistas. Mas como esta brilhante escritora foi a princípio ignorada? Como puderam?
Lucia Berlin (1936-2004) trabalhou de maneira brilhante, mas esporádica, durante as décadas de 1960, 1970 e 1980. Suas histórias são inspiradas por uma infância em várias cidades da Califórnia, Novo México e Texas. Teve também uma glamourosa adolescência em Santiago do Chile, três casamentos, um problema grave com alcoolismo e quatro filhos. Para piorar, Lucia era uma moça alta que sofria de escoliose e usou um colete ortopédico de aço durante seus anos jovens. Depois, sóbria e escrevendo de forma constante na década de 1990, ela assumiu o cargo de escritora visitante na Universidade do Colorado (Boulder) em 1994 e logo foi promovida a professora associada. Em 2001, com problemas de saúde, ela se mudou para o sul da Califórnia para ficar perto de seus filhos. Morreu em 2004, em Marina del Rey. Tudo isso é muito importante porque, em suas histórias, há muito de sua biografia.
Como disse, os contos de Lucia Berlin não foram muito divulgados durante sua vida. Algumas coleções publicadas por pequenas editoras entre os anos 70 e 90 ganharam um pequeno e dedicado grupo de admiradores, como Saul Bellow. As 43 histórias reunidas em Manual da Faxineira são uma poderosa reivindicação por reconhecimento.
Realmente, Berlin pareceu ter o condão de encaixar muitas vidas em seus 68 anos. Criada nos remotos campos de mineração do Alasca e do centro-oeste, ela foi uma criança solitária e abusada no Texas dos tempos da 2ª Guerra; depois uma jovem rica e privilegiada em Santiago; uma boêmia que vivia em lofts nos anos 50, em Nova York; uma recepcionista em um pronto-socorro de emergências no centro de Oakland, nos anos 70. Quando tinha 32 anos, já se casara três vezes, tinha quatro filhos e lutava, ou não, contra o alcoolismo.
Sua vida agitada fornece assunto para suas histórias. Sua alegria também. Há sempre um fundo de bom humor em seus textos. Ela é dura e papo reto, mas a brutalidade é compensada pela compaixão à fragilidade humana e pela inteligência da narrativa. E o prazer de ler acaba sendo maior que a dor. Em Até mais, o casamento com um viciado em heroína é descrito como “tempos de intensa felicidade tecnicolor e tempos sórdidos e assustadores”. A solidão está presente em histórias ambientadas em hospitais, clínicas de desintoxicação, lares e prisões, porém, apesar do território frequentemente sombrio, a escrita de Berlin é caracterizada por um enorme apetite pela vida e de amor. Em Mordidas de tigre, uma história que detalha os horrores de uma clínica de aborto no México, é o calor e a diversão perversa do relacionamento entre a narradora e sua prima glamourosa que permanece em primeiro plano.
Como teve muitos empregos, Berlin é uma cronista aguda de instituições e do mundo do trabalho muitas vezes esquecido — em particular o trabalho de baixo prestígio e baixa remuneração de enfermarias, faxineiras e auxiliares. Em Quero ver você sorrindo, um personagem é descrito como possuindo uma curiosidade compassiva por todos, e o mesmo se aplicava claramente à autora. Algumas das histórias, como Caderno de notas do setor de emergência, 1977, têm abordagem jornalística, mas há sempre um olho no poético:
Se suas bolsas já não foram furtadas, as velhinhas parecem carregar nada a não ser a dentadura de baixo, um folheto com o horário do ônibus 51 uma caderneta de endereços e telefones em que não se acha um único sobrenome.
Berlin credita sua mãe por seus poderes de observação, escrevendo em Mamãe sobre como lembrava de suas piadas e de sua maneira de olhar, nunca perdendo nada.
Lembramos de suas piadas e do seu jeito de olhar, aquele olhar que nunca deixava escapar nada. Você nos deu isso. Essa capacidade de olhar.
Não a de ouvir, porém. Você nos dava talvez uns cinco minutos para te contar alguma coisa e depois dizia “Chega”.
São histórias que capturam o mundo quase invisível ao nosso redor, revelando o banal e o pungente. Em Mijito, uma enfermeira fala sobre as crianças doentes sob seus cuidados. A maioria das crianças não pode chorar. Há apenas lágrimas rolando e este horrível rangido do mundo, como um portão enferrujado, ao fundo.
O estilo de Berlin é direto. Mijito é de verossimilhança quase insuportável. Você pode ser enganado ao pensar que está lendo cartas de uma amiga quando ela fala em frases como “Eu sei, romantizo tudo”. Mas esse estilo coloquial é traído por brutais falas e mudanças súbitas que deixam claro que essas são histórias minuciosamente elaboradas. O narrador de Mamãe passa o tempo todo conversando, finalmente convencendo sua irmã moribunda de que a mãe insensível e bêbada merecia alguma compaixão, antes de revelar na última linha: Eu… eu não tenho compaixão.
A mesma mãe e irmã (Sally) aparecem em muitas histórias, e a natureza parcialmente autobiográfica da coleção faz desta uma experiência de leitura em densas camadas. Personagens e cenários se repetem, e certos períodos são vistos através de filtros diferentes, com o elenco principal e seus relacionamentos entrando e saindo de foco.
Em Voltando para casa, a história final, Berlin observa os hábitos dos corvos de sua varanda:
…mas o que me incomoda é que eu só reparei neles por acidente. O que mais será que deixei passar? Quantas vezes na minha vida eu estive, por assim dizer, na varanda dos fundos, e não na varanda da frente? O que será que me disseram que eu não ouvi? Que amor poderia ter existido que eu não senti?
Ponto de Vista, Mijito e Incontrolável são contos inesquecíveis. Dos melhores que li até hoje. Berlin sofreu muito, mas seu poder de observação e arrebatador virtuosismo literário farão dela um clássico, se o mundo não acabar nos próximos anos.
Com informações do The Guardian.
Luiz Ruffato escreveu:
Raros são os autores que conseguem construir uma obra homogênea, em que nós, leitores, não temos que descer de altíssimos picos para percorrer vales profundos. Mais raro ainda encontrar um autor que, sendo unicamente contista, não perca a mão e ofereça, em meio a jóias, algumas bijuterias. Por isso, é surpreendente esse livro. São 43 contos – dos 76 que a Autora escreveu entre ao longo de sua curta vida – e todos eles, sem uma única exceção, são ótimos. O mais interessante é que, no caso, é impossível separar a biografia da Autora de seus textos ficcionais. Até porque eles são declaradamente autobiográficos, ou, como ela mesma afirma: “Eu exagero muito e misturo ficção com realidade, mas nunca chego de fato a mentir” (p. 410). Quase sempre a história gira em torno de uma narradora, mãe de quatro filhos, que tem sérios problemas com bebida, e uma irmã que agoniza no México, padecendo com um câncer terminal. Os nomes dos personagens podem variar, eventualmente, mas eles são sempre reconhecíveis. E isso dá um caráter peculiar ao livro, pois é como se estivéssemos desdobrando episódios de uma biografia, preenchendo lacunas de uma vida: a infância de uma menina com sérios problemas na coluna (escoliose) em regiões mineradoras dos Estados Unidos ou no Chile, acompanhado o pai, geólogo, e a mãe, alcoólatra, e a vida adulta entre a Califórnia (Oakland), Texas (El Paso) e Novo México (Albuquerque) e a Cidade do México, em estranhas aventuras imersas em álcool e culpa. Embora haja diversas histórias sobre alcoólatras e drogados, a Autora não glamuriza esse universo (como fazem certos autores que romantizam essa tragédia), e sim mostra como todos são afetados pelo vício, uns mais outros menos, mas sem qualquer moralismo – apenas exibindo vidas que, em algum momento, descarrilharam e tombaram… Interessante também é ver estampadas nestas páginas personagens pouco presentes na literatura estadunidense – os párias do capitalismo, índios miseráveis, mexicanos ignorados, negros pobres, todos empurrados para o submundo, de onde a Autora os resgata, restituindo-lhes a dignidade, e de maneira admirável. O cerne de suas reflexões poderia ser sintetizada em suas próprias palavras: “Medo, pobreza, alcoolismo e solidão são doenças terminais” (p. 119). Para tentar elucidar essa questão – “(…) é a morte que eu não entendo” (p. 327) – que o leitor deve mergulhar em cada página e deixar-se impregnar de cada palavra. O resultado, pode ter certeza, é magnífico.
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