2666, de Roberto Bolaño (2ª Parte – La parte de Amalfitano)

Benno Von Archimboldi? Esqueçam. Seu nome nem é citado. A segunda é a parte mais curta de 2666 e se a violência e a morte são os panos de fundo do romance, esta é a parte em que a morte domina sozinha. Domina a primeira metade do capítulo, onde o professor de filosofia Amalfitano dedica-se a evocar sua ex-mulher Lola, uma bicho-grilo das mais radicais que o deixa sozinho com a filha Rosa em Barcelona para ir atrás, ir atrás e ir atrás — como tantos personagens de Bolaño — de um poeta, enquanto o melancólico Amalfitano instala-se com a filha na cidade de Santa Teresa, na fronteira do México com os EUA. E domina também a segunda metade, em que ficamos incomodados pelos sintomas de uma loucura que começa a insinuar-se em Amalfitano, o qual ouve vozes, comete pequenas esquisitices, preocupa-se com a segurança de Rosa numa cidade de repetidos assassinatos e sonha, sonha muito.

O personagem Oscar Amalfitano tem na decadência física sua dimensão trágica. A descrição que Bolaño realiza ao descrever rapidamente suas aulas e seus diálogos com a “voz” é comovente. Também o aparecimento de um livro do qual absolutamente não lembrava — O Testamento Geometrico, do galego Rafael Dieste — e seu entorno são narrados de forma inalcançável por autores menos capazes, a grande maioria. Inspirado por Marcel Duchamp, Amalfitano pendura o livro no varal de sua casa, de forma que este possa aprender sobre a vida cotidiana de Santa Teresa e proteger sua filha, tudo isso dentro de uma série de livres associações que funcionam espetacularmente neste capítulo que é finalizado por mais um sonho. Aposto que a história de Amalfitano e de seu destino serão deixados assim mesmo, no máximo ele reaparecerá como personagem secundária. Afinal, estamos lendo Bolaño e cabe a nós dar continuidade ou nexo à superfetação de ficções.

E aqui está o final de A parte de Amalfitano (trad. portuguesa de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, copiada daqui e “tropicalizada” (ho, ho, ho) por este abusivo resenhista:

… Amalfitano sonhou que via aparecer num pátio de mármore cor-de-rosa o último filósofo comunista do século XX. Falava em russo. Ou melhor dizendo: cantava uma canção em russo enquanto o seu corpanzil se deslocava, fazendo esses, até um conjunto de majólicas (azulejos pintados) listadas de vermelho intenso que sobressaía no plano regular do pátio como uma espécie de cratera ou latrina. (…) Quando o último filósofo do comunismo estava finalmente chegando à cratera ou à latrina, Amalfitano descobria estupefato que se tratava nem mais nem menos de Boris Yeltsin. É este o último filósofo do comunismo? Em que espécie de louco me estou a transformar se sou capaz de sonhar tais disparates? O sonho, contudo, estava em paz com o espírito de Amalfitano. Não era um pesadelo. Além disso, proporcionava-lhe uma espécie de bem-estar leve como uma pluma. Então Boris Yeltsin olhava para Amalfitano com curiosidade, como se fosse Amalfitano a irromper no seu sonho e não ele no sonho de Amalfitano. E lhe dizia: escuta as minhas palavras com atenção, camarada. Vou te explicar qual é a terceira perna da mesa humana. Eu vou te explicar. E depois me deixa em paz. A vida é procura e oferta, ou oferta e procura, tudo se limita a isso, mas assim não se pode viver. É necessária uma terceira perna para que a mesa não caia nas lixeiras da História, que por sua vez está permanentemente a se desmoronar nas lixeiras do vazio. Por isso toma nota. A equação é esta: oferta + procura + magia. E o que é a magia? Magia é épica e também é sexo, e bruma dionísiaca e jogo. E depois Yeltsin sentava-se na cratera ou latrina, mostrava a Amalfitano os dedos que lhe faltavam e falava da sua infância e dos Urais e da Sibéria e de um tigre branco que errava pelos infinitos espaços nevados. Seguidamente tirava uma garrafa de vodka da bolso e dizia:

— Acho que é hora de beber um copinho.

Obs.: A Livraria Cultura (link acima, na coluna do meio) tem 2666 na edição espanhola da Anagrama. Pelo que é, custa bem baratinho, R$ 71,34. Afinal, veio de um país onde as edições são enormes. A propósito, lançado em 26 de setembro em Portugal, 2666 já vendeu 23.000 exemplares. Pobre Brasil-sil-sil…

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Una novelita lumpen, de Roberto Bolaño (crítica publicada no El Pais do último sábado)

No hay un Bolaño menor

Por JORDI GRACIA

 

Esta novela breve nació como un encargo y el resultado fue valioso, como sucede con tantos otros encargos que felizmente la industria editorial hace a los autores de los que se fía (o en los que confía). Quizá por eso Herralde ha decidido rescatar este relato de Roberto Bolaño, escrito por encargo de Claudio López de Lamadrid para una colección de Mondadori en 2002 (lo ha contado por escrito el propio Herralde). Transcurre en Roma pero podría transcurrir en las quimbambas mientras hubiera casas grandes y pisos pequeños, comercios de alquiler de vídeos y personajes con biografías complicadas o infinitamente sosas. La de la protagonista es anodina y amputada, peluquera de poco futuro, amante mecánica y urgente de un par de tipos que viven azarosamente en su propia casa, huérfana de edad indefinida pero ya crecida, y a cargo de un hermano desorientado y más joven que ella.

El cuadro es simple y muy poco prometedor: lo que sucede es todo mate. No hay melodrama ni hay autocompasión ni fantasías redentoras más allá de la mera ilusión de mejorar de vida. Pero hay una gran habilidad en dotar de una irresistible inocencia a la protagonista que narra una breve etapa de su vida y donde vibra sin notarse la inteligencia sentimental del mejor Bolaño. Algunos somos más decididamente partidarios del Bolaño comedido y sutil -el de esta novela breve o el de Estrella distante– que del Bolaño arrebatado por la ambición y la desmesura de Los detectives salvajes o de 2666. En las más extensas demasiadas veces acude la pregunta de para qué, y en ésta cada línea tiene un para qué inequívoco, fatal. Quizá precisamente porque el propio Bolaño no debió tomársela demasiado en serio.

Está el mejor Bolaño sin desatarse: el de la piedad difusa y sin huellas visibles, el de la amargura de las vidas malsanas sin culpa, el de las frustraciones veladas pero invencibles, y el de la vitalidad psicológica suficiente como para trazar personajes de escasa complejidad cuyo papel sin embargo desemboca en relatos complejos. Todo es fácil y directo en Una novelita lumpen y sin embargo la novela trata de la infelicidad y de las recompensas falsas dentro de la infelicidad, de la valentía para cambiar de rumbo y de la lucidez súbita sobre el rumbo real de la vida de cada cual: un pedazo de realismo inteligente sin sermón.

(Una novelita lumpen, Anagrama, Barcelona, 2009, 151 páginas. 15 euros.)

Mais um artigo encontrado e enviado por Helen Osório. Obrigado!

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2666, de Roberto Bolaño (1ª Parte – La parte de los críticos)

A primeira parte de 2666 é dedicada às peregrinações dos críticos Jean-Claude Pelletier (francês), Manuel Espinoza (espanhol), Liz Norton (inglesa) e Piero Morini (italiano) em busca do famoso escritor desaparecido de nome impossível: Benno von Archimboldi. Há um culto em torno de Archimboldi, eterno candidato ao Nobel e autor reconhecido mundialmente por especialistas, diferentemente da Cesárea Tinajero de Os Detetives Selvagens. Ele seria uma espécie de Thomas Pynchon alemão, um autor sem fotos, sem biografia e muito estudado. Sabe-se que é muito alto, tendo deixado rastros de sua existência aqui e ali.

A paixão por Archimboldi faz com que os críticos fiquem amigos, formem uma espécie de confraria logo atacada por outras e acabem todos amando a inglesa Liz Norton, às vezes em dupla. As histórias de Bolaño vão novamente saindo umas das outras de forma absolutamente hipnotizante. É difícil largar o livro. Em dado momento parte dos críticos resolvem seguir uma pista mais do que tênue e partem para procurá-lo em Santa Teresa, na fronteira do México com os EUA, onde sabemos que ocorrerão os crimes contra mulheres. Um grande livro, um livro genial? Sim, não tenho motivos para duvidar. Porém La parte de los críticos não é um romance completo e creio que os herdeiros de Bolaño têm razão em não editá-lo separadamente. É uma fantástica abertura de romance. Ponto.

Bolaños volta a fazer arte nas belíssimas trocas de foco narrativo. O final de La parte de los críticos é pura música com suas recapitulações resumidas. O efeito poético dos encontros de Espinoza com Rebeca, entremeadas das conversas noturnas com Pelletier e pela narrativa de Liz Norton de sua viagem à Turim é arrasadora. Ronaldo Bressane chamou inteligentemente a prosa de Bolaño de fluxo de onisciência. É a melhor defnição que li até agora para um narrador que se mascara por detrás de inúmeros personagens com uma única e muito perceptível voz. Bolaño não esconde-se, mas filtra.

Agora, farei uma pequena interrupção para ler o último livro de Carol Bensimon e depois retorno ao 2666, mas exatamente à La Parte de Amalfitano, onde já sei que os 4 críticos vão apenas e simplesmente sumir, para voltar daqui a centenas de páginas.

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Noite de autógrafos e mais

Sexta-feira, Marcos Nunes deixou este conto nos comentários deste blog. Eu não estou dizendo que aqui os comentários são habitualmente melhores do que o post?

Noite de autógrafos

Olhava para todos que entravam na livraria, ele ali, sentado numa cadeira estofada velha, posto atrás de uma mesa, tendo à sua direita dezenas de exemplares de seu último livro, cujo lançamento se dava naquela noite, mas parece que não, ou pela divulgação ruim, ou pelo desinteresse dos leitores pelo volume, ou ainda pelo próprio e quase anônimo autor.

Pagara pela edição, pequena, enviara algumas cartas, convencera alguns amigos a comparecer, contava com algumas presenças, mas as poucas que vieram foram rapidamente embora, sob um constrangimento às vezes desalmado, ora piedoso, mas o comentário mais regular era “Será que ele não desistirá nunca?”

Seu segundo romance, depois de um primeiro volume de poemas e outro de contos. Alguns elogios, principalmente aos contos, alguns do volume, não todos. O primeiro romance não teve êxito, ele mesmo reconheceu. Mas apostava tudo nesse segundo, escrito com vagar, revisto dezenas de vezes, corrigido, reduzido ao mínimo, escrita seca, com um mínimo indispensável de adjetivos, trama complexa, densa. Um amigo escreve um prefácio super elogioso, e o investimento desta vez valeria a pena.

Assim pensava antes dessa noite. Depois de algumas vendas, mais ninguém. Pudera, não servia-se nem cafezinho neste lançamento! Pela livraria circulam pouquíssimas pessoas. Entre elas, percebe um sujeito pequeno, pele um pouco morena, cabelos encaracolados vastos, castanhos com fios brancos, óculos redondos sobre sobrancelhas grossas entre um nariz algo grande e caído sobre os lábios murchos. Parecia um estudante daqueles eternos, que freqüentam os bancos escolares à fuga das responsabilidades da vida adulta. Teria vindo para o lançamento e encontrava-se perdido, sem entender que o escritor era ele, tão óbvio, sentado atrás de uma mesa antiquada, repleta de volumes novos, ainda cheirando a tinta?

Um tipo esquisito. Fuçava um livro e outro, lendo, lendo… Sorriu e pronunciou alto o nome “Carver!” quando se deparou com o volume recém-lançado. Malditos norte-americanos! Escrevem qualquer coisinha e vendem aos milhares, milhões! E o que são afinal Fritzgerald, Hemingway, Faulkner? Bah, evocadores da barbárie! Voltou a olhar o cara, mas ele não estava no mesmo lugar. Reencontrou-o, mas sem qualquer livro na mão. Prestou atenção: sob as vestes largas, havia coisa ali. Tomara que seja pego, o salafrário. Ladrãozinho de meia tigela, e ainda por cima com um péssimo gosto.

Cansou de esperar. Pegou um volume dos seus, sobre a mesa, e o pôs entre as páginas do jornal do dia, que carregava consigo por conter um aviso do lançamento. Uma pequena nota. Foi andando devagar, tentando representar o papel de um freqüentador qualquer da livraria. Terá o ordinário notado na sua presença anterior à mesa? Sabe-se lá. Mas chegou perto dele, sorrindo com simpatia mas mantendo um ar de conspirador. O outro também sorriu para ele, mas com um ríctus de dor. Sofrerá alguma doença? Estará de ressaca? Será que ele não comeu hoje? Chama-o com um olhar, e o outro se aproxima com naturalidade, enquanto ele age da forma mais suspeita possível. Quando estão bem juntos, o escritor passa para o outro o jornal e, dentro dele, um exemplar de seu livro.

— Vai, leva. É novo. Lançado hoje. Coisa boa.

Com a maior pachorra do mundo, o outro saca o livro do meio do jornal, folheia, lê o prefácio em poucos segundos, fazendo uma vista d’olhos, devolve o volume para o escritor e guarda consigo o exemplar do diário.

— Me gusta robar libros, fala com extrema simpatia o leitor, certamente lotado de exemplares surrupiados sob suas roupas (deve ter livro até na bunda, pensou o escritor).

– Me encanta se alguien se arriesgar a robar un libro mio, respondeu o escritor.

Mais uma vez o outro sorriu, e se foi. Cara esquisito, nem brasileiro é. Desgraçado. Prefere o idiota do Carver, o idiota do…, o idiota do…, inventivava, ficando possesso, quando notou que não estava mais com o próprio livro na mão. Grandessíssimo filho de uma puta, pensou consigo mesmo, mas se deu conta que não, falara a frase, e bem alto. Continuou então no mesmo tom, sorrindo às escâncaras. Grandessíssimo filho de uma puta, grande cara! Que ao menos o desgraçado leia o que me roubou – foi com essa frase que terminou sua explicação ao dono da livraria sobre a razão daquele sonoro escândalo. Lágrimas nos olhos de tanto rir, não sei.

Aos amigos, tudo.

-=-=-=-=-=-

No dia anterior, Cassionei Petry publicara aqui trecho de uma entrevista de Roberto Bolaño:

R. Me gusta robar libros. Aunque ya no puedo robar, sería bastante vergonzoso ser atrapado, pero cuando era inédito, robé muchísimos. Pero muchos, muchos… Una vez con un amigo –que también era un buen robador de libros- hicimos una apuesta en la Avenida Corrientes, cuando había muchas librerías (creo que todavía hay bastantes): fuimos a Corrientes y Callao y nos pusimos uno de cada lado de Corrientes, y la idea era llegar hasta Cerrito habiéndonos robado por orden los siete tomos del En busca del tiempo perdido de Marcel Proust en librerías sucesivas.

P. ¿Lo lograron?

R. Sí, yo lo logré. Él no. Él creo que robó cuatro, tres, no llegó. […] De todas maneras, me doy cuenta de que perdí el don. Lo más extraño de cuando robaba libros es que yo sentía, físicamente, una especie de aura que me hacía invisible, y que efectivamente era así, porque he salido de librerías con libros de este porte (indica con sus brazos un tamaño enorme), así, al hombro, y no me veían. Era una cosa que tal vez, la gente me miraba y decía “no, no puede ser que se lo esté llevando de una manera tan evidente”… Pero ahora ya no lo siento más. […] Uno de los momentos más gratificantes fue ver a una persona robándose un libro mío cuando yo estaba en una Feria del Libro y que viniese a que yo se lo firmase. Cuando se lo firmé le dije “te agradezco mucho que te hayas robado este libro”, pero también le dije “está todo bien, genial”. Me encantó. Me encantó que alguien se arriesgara a robar un libro mío.

(entrevista de Bolaño a Rodrigo Fresán)

Arturo Belano, seu alter-ego, no romance “Los detectives salvajes” também rouba livros. Se bem me lembro um outro escritor ensina a Belano esta arte.

Mais Bolaño, citado pelo mesmo Cassionei logo após o dia do aparecimento do conto de Marcos Nunes:

Los libros que más recuerdo son los que robé en México DF, entre los dieciséis y los diecinueve años. […] En México había una librería extraordinaria. Se llamaba Librería de Cristal y estaba en la Alameda. Sus paredes, incluso el techo, eran de vidrio. Vidrio y vigas de hierro. Examinada desde fuera, parecía imposible poder robar un libro allí. Sin embargo, la tentación de hacer la prueba pudo más que la prudencia y al cabo de un tiempo lo intenté. El primer libro que cayó en mis manos fue un pequeño tomo de Pierre Louis… […] Pero fue una novela la que me sacó y me volvió a meter en el infierno. Esta novela es La caída, de Camus […] Después de Camus todo cambió. Recuerdo el ejemplar: era un libro de letras muy grandes, como un primer abecedario, de pocas páginas, de tapas duras, con un dibujo horrendo en la portada, un libro difícil de sustraer y que no supe si ocultar bajo la axila o en la espalda, pues no se amoldaba a mi americana de estudiante cimarrero, y que al final saqué a vista y paciencia de todos los empleados de la Librería de Cristal, que es una de las mejores formas de robar y que había aprendido en un cuento de Edgar Allan Poe.”

P. ¿Ha robado algún libro que luego no le gustó?

R. Nunca. Lo bueno de robar libros (y no cajas fuertes) es que uno puede examinar con detenimiento su contenido antes de perpetrar el delito.

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Enrique Vila-Matas ironiza Paulo Coelho em documentário…

… a 1 minuto e 9 segundos…

… da terceira parte (3/6) de um excelente documentário sobre Roberto Bolaño.

Também aqui.

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Introdução à leitura de "2666", de Roberto Bolaño

Sim, eu não suportei a angústia. Quando fui a Montevideo, ele estava bem na entrada da Puro Verso. Abri o livro de 1125 páginas, vi que era de leitura confortável, com pontos de parada a cada duas ou três páginas; pensei que um livro daquele tamanho poderia ser mais um problema ortopédico do que literário para o leitor, mas que se repetiria na tradução brasileira. Ademais, para que serve o espanhol que conheço se recuasse ante o original de um escritor que amo? Comprei 2666 e voltei, não sei por quê, direto para o hotel. Abri o livro na primeira página e li a epígrafe:

Um oásis de horror em meio a um deserto de tédio.

CHARLES BAUDELAIRE

Oásis de horror… E, na página seguinte, a importante Nota Explicativa que traduzo a seguir da original:

Nota de los herederos del autor

Ante la posibilidad de una muerte próxima, Roberto dejó instrucciones de que su novela 2666 se publicara dividida en cinco libros que se corresponden con las cinco partes de la novela, especificando el orden y periocidad de las publicaciones (una por año) e incluso el precio a negociar con el editor. Con esta decisión, comunicada días antes de su muerte por el propio Roberto a Jorge Herralde, creía dejar solventado el futuro económico de sus hijos.

Después de su muerte y tras la lectura y estudio de la obra y del material de trabajo dejado por Roberto que lleva a cabo Ignacio Echevarría (amigo al que indicó como persona referente para solicitar consejo sobre sus asuntos literarios), surge otra consideración de orden menos práctico: el respeto al valor literario de la obra que hace que de forma conjunta con Jorge Herralde cambiemos la decisión de Roberto y que 2666 se publique en un solo volumen, tal como él habría hecho de no haberse cumplido la peor de las posibilidades que el proceso de su enfermedad ofrecía.

ou

Nota dos herdeiros do autor

Diante da possibilidade da uma morte próxima, Roberto deixou instruções para que seu romance 2666 fosse publicado em cinco livros correspondentes às cinco partes do romance, especificando a ordem e a periodicidade das publicações (uma por ano) e até mesmo o preço para negociar com o editor. Com esta decisão, enviada dias antes de sua morte pelo próprio Roberto a Jorge Herralde, pensava deixar resolvido o futuro econômico de seus filhos.

Após sua morte e depois da leitura e estudo da obra e do material de trabalho deixado por Roberto, Ignacio Echevarría (o amigo que indicou como seu conselheiro literário) surgiu com outra consideração de ordem menos prática: o respeito ao valor literário da obra, que faz com que, em conjunto com Jorge Herralde, alteremos a decisão de Roberto e que 2666 seja publicado primeiro em um só volume, como o autor teria feito se não tivesse sido cumprida a pior das possibilidades que oferecia seu processo de doença.

(Trad. sem muita revisão feita por mim)

Então, lembrei de que estava em Montevideo e que seria interessante, além de econômico, voltar a comportar-me como um turista e não como um literato inveterado que fica lendo em seu hotel não obstante a viagem. Eu que deixasse a leitura para Porto Alegre. Retornei à 18 de julho e à Puro Verso, sabendo que o tesouro estava guardado no hotel e combinei o almoço com a Claudia no Panini`s da Travessa Bacacay, na Cidade Velha, bem perto da outra Puro Verso, a de seis andares. Neste ínterim, não fiz muita coisa que não fosse fuçar em alguns antiquários em busca do Spica perfeito.

Quando a Claudia chegou, comemos o maravilhoso almoço de sempre do Panini`s, lembro que falamos  no preço das roupas, no estado das meus blusões e, levados pelo Cabernet Sauvignon, em John Kennedy Toole. e sua mamãe. Na verdade, bebemos tanto que foi necessário um pit stop no hotel. onde ele, 2666, estava.

E agora estou lá pela página 140, faltando umas 900 para ler. Meu estado é: maravilhado. É curioso: em minha opinião, estou fazendo uma leitura fundamental para quem queira acompanhar a cena literária contemporânea, mas não há, no Brasil, meu ambiente, grande ressonância a Bolaño. Aliás, não há ressonância a nada que não seja perecível, efêmero. É nosso país. Para nossa sorte, há o Uruguai e a Argentina aqui perto. E há os blogues portugueses. Lá, faltam 9 dias, 14 horas, 39 minutos e vinte e seis segundos para 2666 ser lançado. Há um blog que acompanha o pré-lançamento e toda a reação ao livro. Ele faz uma contagem regressiva atá a data de lançamento, 26 de setembro de 2009. Há comentários por toda a blogosfera lusitana, parece haver autêntica expectativa, debate, existem tentativas talvez exageradas de arranjar-lhe um bom lugar na história da literatura, divulga-se opiniões de gente que leu (por mais amalucadas que sejam) e a cultura parece ser até assunto de conversa nas ruas. Isso em Portugal.

Para viver bem do Brasil, há que se acostumar com nossa estupidez. Quando a Cia. das Letras lançar o livro haverá matérias amadorísticas naqueles mesmos jornais, a Cultura dará desconto para quem fizer a compra antes do lançamento, vão chamá-lo de Livro do Ano, o bom Sérgio Rodrigues vai publicar uma crônica provocativa a seus leitores lançando a dúvida — Bolaño é superestimado ou não? — e será uma pequena confusão de leitores e não-leitores (a maioria) a iniciarem o enterro uma obra que, puxa, deveria ser ao menos debatida. E estamos, por incrível que pareça, na América Latina. E o livro lida com personagens e problemas muito, mas muito mesmo, latino-americanos. E com licença que vou ler mais um pouco.

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El archivo de Roberto Bolaño contiene dos novelas inéditas

Además contiene un puzle de narraciones, diarios y poemas / Cinco años después de la muerte de Bolaño, comienza el inventario de su legado / “Estoy seguro de que moriré inédito”, anotó en su diario a los 44 años, desesperanzado.

Por Josep Massot, de Barcelona. Retirado daqui.

La primera vez que Roberto Bolaño escribió el nombre de Benno von Archimboldi fue en 1988, en Blanes, donde vivía como escritor inédito, a la edad de 35 años. Es el inicio de la trama de la novela 2666, publicada tras su muerte, pero el escritor chileno tenía en la cabeza un universo narrativo en el que más que de títulos individuales puede hablarse de una obra total. Una obra que ahora se recibe con entusiasmo febril en EE. UU., Gran Bretaña, Francia, Alemania o Italia, y que le ha convertido en nueva referencia internacional de las letras hispanas.

Bolaño falleció el 14 de julio del 2003. Cinco años después, el enorme puzle que constituye su archivo empieza a revelar sus tesoros. Su legado es el espejo de quien siempre escribía varias historias a la vez y desplegaba y replegaba sus relatos como cajas chinas, estructuras en vórtice, relatos yuxtapuestos. Hay notas manuscritas con los personajes que quince años más tarde emergerían en 2666.Y poemas que coinciden con sus narraciones, como El Gusano de Llamadas telefónicas. También hay diarios – de México, de Barcelona-,en cuyas hojas casi siempre aparecen operaciones aritméticas, quizás su contabilidad del número de líneas escritas o por escribir, y junto a anotaciones y reflexiones, la anotación de su menú del día.

Además de El Tercer Reich,la novela inédita anunciada por el agente Andrew Wylie, hay otras dos novelas, Diorama y Los sinsabores del verdadero policía o Asesinos de Sonora. El estudio del archivo Bolaño se realiza a efecto de catalogación e inventario y el único texto sobre el que existe por ahora la decisión de publicación es El Tercer Reich,inspirado en uno de esos wargames por los que Bolaño tenía – según confesión propia-una inexplicada debilidad. El escritor solía escribir primero a mano y después pasaba el texto a máquina. En 1995 se compró su primer ordenador y antes de morir llegó a tiempo de transcribir en formato digital unas 60 páginas de las 350 mecanoscritas, lo que indica su voluntad de dar por concluida la novela.

Sucede en la Costa Brava, donde Udo Berger, campeón de juegos de rol alemán, tras cruzarse con personajes siniestros, libra una partida a muerte con el enigmático y desfigurado Quemado.

El futuro del archivo, un mar de libretas y cuadernos de todos los tamaños, una vez inventariado, será seguramente una universidad. Adentrarse en sus páginas requiere la paciencia del paleólogo o del domador de pulgas. El estudioso recogerá algunas perlas. Por ejemplo, Bolaño fue vigilante del camping Estrella de Mar y soñaba (Diorama)la historia del vigilante nocturno de una sala de cine frecuentada por un público de tercera edad y cuyo propietario sentía el aliento de la mafia tras de él. El autor, que no empezó a publicar hasta los 44 años, escribía, desesperanzado: “Estoy seguro de que moriré inédito”.

Borges decía que el escritor que no publica está condenado a reescribir siempre el mismo libro y Bolaño acumulaba material narrativo, con tramas que se van metamorfoseando continuamente. De uno de los legajos con una ingente cantidad de folios (Los sinsabores…)salieron ni más ni menos que Estrella distante,Los detectives salvajes y las cinco novelas de 2666. Entre el laberinto de borradores, hay una versión más reducida de Los detectives salvajes y un bloque homogéneo, que podría considerarse la sexta novela de 2666.El escritor dejó en una nebulosa por qué Amalfitano, el especialista en la obra de Benno von Archimboldi, abandonó Barcelona para ir a dar clases al fin del mundo, a Santa Teresa (trasunto de Ciudad Juárez), “un oasis de horror en medio de un desierto de aburrimiento”. En el mecanoscrito hallado ahora se desvela el misterio de su fuga, un motivo sorprendente que explica muchos cabos sueltos del personaje, y que adquiere, así, a la luz de este texto, nueva dimensión.

Entre los papeles, destacan por su abundancia los poemas inéditos dejados por el escritor. Bolaño fundó en México, entre 1975 y 1976, antes de trasladarse a Barcelona, el movimiento infrarrealista. El texto de presentación del grupo, Déjenlo todo, nuevamente. Primer Manifiesto del Movimiento Infrarrealista,fue obra del escritor chileno, con tono de posvanguardia y anunciando ya su realismo visceral: “Cortinas de agua, cemento o lata, separan una maquinaria cultural, a la que lo mismo da servir de conciencia o culo de la clase dominante”, y donde el poeta es “héroe develador de héroes, como el árbol rojo caído que anuncia el principio del bosque”, pues “soñamos con utopía y nos despertamos gritando”.

Otra parte del archivo la forman los diarios. Los más importantes son los que abarcan hasta 1980, momento en que Bolaño se traslada de Barcelona a Girona y después a Blanes.

La caja que contenía los manuscritos antiguos quedó olvidada y sólo ha sido abierta ahora para el inventario. Muestran que la capacidad creativa de Bolaño era pasmosa: escribió desde textos sobre una virgen ninfómana de Barcelona hasta una sátira desternillante con el torero Fran Rivera como personaje.

El escritor tenía un inmenso orgullo literario – no confundir con vanidad-,una férrea confianza en sí mismo, asombrosamente llevada al límite en condiciones adversas. Fue un chileno de pelo greñoso que vendía bisutería para turistas en Blanes y que, aún sin obra publicada, tenía la osadía de despreciar no sólo a los literatos establecidos en su oficio como en una carrera burocrática o como competidores para encaramarse a las listas de más vendidos, sino que marcaba distancias con los grandes de la generación anterior. Siempre respetó a Cortázar, Borges y Bioy, y aun reconociendo, como lector, la grandeza del García Márquez de El coronel no tiene quien le escribaode la catedral literaria de Vargas Llosa, su necesidad de encontrar la audacia y la inventiva para distanciarse de los escritores del boom le hacía decir, como boutade,frases de este tenor: “García Márquez a mí cada día me resulta más semejante a Santos Chocano o en el mejor de los casos a Lugones”.

En busca de su madre fue Bolaño a Barcelona en 1977, después de descartar Suecia. Quería salir de México para huir de un mal de amores – una de sus constantes-y despedirse del continente. Había nacido en Santiago de Chile en 1953 y su familia le llevó en 1968 a México. Cuando triunfó la revolución de Allende recorrió América, por tierra, desde México a Santiago, para llegar en la víspera del golpe de Estado de Pinochet. Le detuvieron al distinguir la policía su cartuchera, pero se salvó gracias a que en comisaría se encontró a dos condiscípulos de Cauquenes. Regresó a México, donde fundó el grupo infrarrealista. Y sufrió el desengaño amoroso que le llevó a España.

En Barcelona vivió un tiempo en la entonces llamada avenida José Antonio, antes de mudarse a un cuchitril sin ducha cerca de la calle Tallers y del bar Céntrico, donde colaboraba con Antoni G. Porta en La Cloaca.En 1981 conoció en Girona a la que sería su mujer, Carolina. Sin más referencias uno del otro que comentarios de amigos comunes, la paró en la calle y, sin más, la invitó a cenar aquella misma noche, sirviéndose de esa seducción de romanticismo apasionado mezclado con un humor disparatado que caracterizaba a Bolaño. Al cabo de unos meses, ya salían juntos. En 1983, la madre de Bolaño, Victoria Ávalos,montó en Blanes una tienda de bisutería para turistas y Carolina obtuvo un puesto en los servicios sociales del Ayuntamiento. El escritor pudo dejar sus múltiples empleos para escribir. Lo hacía a diario con suma dificultad, de noche, durmiendo de día. Dejaba, ya al alba, una nota con alguna frase y su cosecha nocturna, unas desalentadoras escasas líneas. Todo cambió cuando envió el manuscrito La literatura nazi en América a varias editoriales de Barcelona. Ya la había aceptado Seix-Barral, cuando llegó una nota de Jorge Herralde interesándose por publicar la novela en Anagrama. Bolaño se sacó de la manga otro texto, escrito en tres semanas, extraído del último capítulo de La literatura nazi…,que tituló Estrella distante. A partir de entonces, las notas que Bolaño iba dejando cuando se retiraba a dormir fueron creciendo: en lugar de unas pocas líneas, varias páginas, 6, 9, 13, por noche.

Así fue como Bolaño fue forjando su literatura, una forma de narrar en la que se funden alta y baja cultura, la ficción con la realidad, y el amor, el humor, la muerte, la esperanza, el absurdo, la lucha humana por vivir, el compromiso o la pervivencia de un secreto. Todo eso se entremezcla con estructuras narrativas y puntos de vista yuxtapuestos, en los que, si hay una intransigencia, es con quienes traicionan la literatura, artistas mediocres que se venden al peor diablo sin luchar por la validez de un acto creativo.

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Amuleto, de Roberto Bolaño

Há vários capítulos inesquecíveis em Os Detetives Selvagens, porém, se há um menos esquecível que os outros, talvez seja aquele que narra a história da uruguaia Auxilio Lacouture, a mulher que ficou presa num banheiro feminino da Universidade Autônoma do México (Unam), em setembro de 1968. Auxilio costumava ler no banheiro, só que daquela vez começou a ouvir gritos e explosões e, ao sair de seu local de leitura a fim de averiguar o que estaria acontecendo, viu militares levando funcionários e estudantes para fora do prédio da Faculdade de Letras. Voltou ao banheiro para esconder-se e permaneceu 13 dias ali fechada até o dia da liberação da Universidade para professores, funcionários e alunos. Então, uma secretária abriu a porta do esconderijo e deu de cara com Auxilio, que caiu desmaiada.

O que era um belíssimo capítulo sem continuidade nos Detetives, torna-se novela — e das boas, e altamente poética — em Amuleto. Os fatos reais: houve uma pesada e trágica repressão militar na Universidade Autônoma do México (Unam) em 1968; esta foi invadida e temporariamente fechada; seguiu-se o massacre de centenas de estudantes na praça das Três Culturas de Tlatelolco, durante as Olimpíadas. Os fatos romanescos: Auxilio Lacouture, uma personagem absolutamente sedutora, uma andarilha que se autodenomina a mãe de todos os poetas mexicanos, uma quarentona sem emprego que perdeu por aí os dentes da frente, que vive de pequenos serviços para os professores da universidade, alguém que leu e lê muito, que põe a mão na frente da boca quando sorri — síntese genial de um personagem que fica entre o melancólico e o bem humorado –, que visita poetas e escritores propondo-se a lavar suas roupas e a varrer o chão em troca de alguns dias de hospedagem, uma mulher que ia a muitos bares, tendo bebido e conversado com todos os escritores do México, uma espécie de hippie sem-teto, culta, alta, loira, magra e exilada ilegal, esta é a uruguaia Auxilio Lacouture que, dizem os amigos de Bolaño, existiu e se chamava Alcira, tendo, na imaginação de Bolaño, ficado presa com sua saia branca, blusa azul e um livro num sanitário feminino da Unam quando ocorreu a ocupação.

A resistência poética de Auxilio, suas memórias e diálogos enlouquecidos, são narrados com a arte superior de Bolaño. A capacidade narrativa do chileno é realmente arrebatadora. Estão presentes novamente as histórias inconclusas e as narrações que nascem umas dentro das outras (uma superfetação de fantasias), mas o registro é um pouco mais delirante e onírico que o de outros romances, apesar de que o destino daqueles de quem Auxilio se julga mãe, seja aludido por ela num sonho semelhante ao flautista de Hamelin. Aliás, talvez seja paradoxal que em seu livro mais poético, Bolaño chegue ao mais duro julgamento de sua (nossa, minha) geração e até do futuro da literatura — previsto em trecho absolutamente cômico.

Não é um Bolaño típico, mas é fundamental.

Observações:
1. Houve realmente uma mulher que ficou presa na Universidade durante a invasão, mas não foi a Alcira conhecida de Bolaño.
2. Ah, obviamente um dos filhos da “Mãe de todos os poetas do México” era ele, o de sempre: Arturo Belano.

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A pista de gelo, de Roberto Bolaño

Este é o primeiro romance do Bolaño, publicado em 1993. Se A pista de gelo ainda não apresenta a furiosa polifonia dos livros seguintes, já temos três narradores alternando-se para contar uma falsa história detetivesca. O livro poderia também chamar-se “Era para ser um whodunit…”. Não digo isso por achar que A pista de gelo seja um fracasso como livro policial — não se trata de um fracasso, longe disso –, mas para reforçar o tom de paródia que o romance mantém por trás de sua originalidade. Ou seja, ele não quer ser um whodunit.

É um livro leve, curto, onde se pode espreitar o grande autor que viria a seguir. Três personagens oriundos do mundo literário, o empresário com pretensões literárias Remo Morán, o poeta lúmpen Gaspar Heredia e o político filha-da-puta Enric Rosqueles contam e participam da história que se passa no balneário de Z, na Espanha, durante um verão. A ação gira em torno da patinadora Nuria para a qual Rosqueles constrói uma pista de gelo num palacete abandonado, onde ocorre um assassinato. O crime ocorre na segunda metade do livro — prova de que Bolaño diverte-se mais com as vozes e suas interações — e o responsável pela morte é revelado quase de má vontade, com se fosse uma concessão ao leitor que, afinal, há de querer saber alguma coisa sobre aquele assunto. O que sobressai no livro é a notável capacidade de Bolaño para construir personagens, as cenas sempre montadas de forma sedutora e sua prosa ágil. Mesmo não sendo um policial típico — e como seria com aqueles narradores? –, é impossível largar o livro antes da última página. Coisas de um grande autor.

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O mais confuso (e engraçado) dos grandes romances

Beethoven gostava de temas curtos e afirmativos. O crítico Otto Maria Carpeaux também, até demais. Beethoven repetia seus temas à exaustão, mas não enchia o saco. Carpeaux não os repete, mas larga aqui e ali juízos curtos, afirmativos e terríveis que às vezes me deixam louco. A literatura não prescinde de justificativas mais, digamos, alongadas. Eu adoro Beethoven e Carpeaux, só que o austríaco tem uma capacidade de me irritar que o alemão só utilizou n`A Batalha de Wellington e na Pastoral. Pobre do grande LAURENCE STERNE: na História da Literatura Ocidental, o maravilhoso amansa-burro de 2300 páginas de Carpeaux, ganhou a curta e grossa má vontade do mestre:

Não é romancista, e não compreendemos como seus contemporâneos puderam dar o nome de romance a esse aglomerado de conversas, digressões e anedotas, sem ação novelística, que é o Tristram Shandy.

Que equívoco! Fico curioso sobre o que diz Carpeaux sobre outro livro que também é quase exclusivamente um aglomerado de conversas e digressões filosóficas: O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. Consulto e ele demonstra coerência, fazendo questão de chamá-lo de romance-ensaio. OK. Romance-ensaio é mais que um aglomerado de conversas e digressões, porém Carpeaux sempre ensina muito e conta com minha INDULGÊNCIA.

Mas creio que Carpeaux não ousaria falar mal da espetacular prosa de Sterne, meu assunto de hoje. Seu principal romance (ou não), A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, é uma de minhas melhores lembranças literárias. Este livro extravagante, publicado em capítulos entre os anos de 1759-67, tem importantes admiradores. James Joyce, Luigi Pirandello, Samuel Beckett e – notem bem – MACHADO DE ASSIS, que o cita com conhecimento, foram alguns dos escritores que se declararam influenciados pelo irlandês Sterne, um pároco muito bem sucedido e amante de intermináveis digressões pontuadas de anedotas escabrosas e alusões cínicas. Agrada-me intensamente a forma como Sterne decepciona seus leitores ao não dar seguimento às ações que esboça, coisa que Roberto Bolaño se esmera em realizar (ou não).

A cena inicial do romance nos conta sobre o nascimento de Tristram. Seu pai costumava fazer duas coisas no primeiro domingo do mês. A primeira era dar corda no relógio da sala; a segunda era cumprir seus deveres conjugais. Porém, num destes domingos, sua mãe, JÁ PENETRADA mas sem o menor interesse, pergunta repentinamente (a pontuação, sempre originalíssima, é puro Sterne):

– Por favor, meu caro, não te esqueceste de dar corda ao relógio? ————-Por D—–! gritou meu pai, lançando uma exclamação, mas cuidando ao mesmo tempo de moderar a voz. ——–Houve jamais mulher, desde a criação do mundo, que interrompesse um homem com pergunta assim tão tola?

Com a interrupção, o velho Shandy, desconcertado, descuida-se de outra: a do coitus interruptus; e é desta forma que nasce o HOMÚNCULO ou, para nós, o feto daquele que seria o protagonista da “ação”. A piada fez enorme sucesso e por anos não apenas as prostitutas da Inglaterra perguntaram a seus candidatos QUERES DAR CORDA EM MEU RELÓGIO? como as senhoras de respeito deixaram de comprar relógios para suas casas com receio dos comentários que isso poderia provocar… Que os comprassem os maridos!

É notável o momento em que Shandy desiste de narrar sua própria vida – o livro é escrito na primeira pessoa. Isto acontece lá pela página 80 de um livro de 600 páginas. Ele observa que já passou alguns meses descrevendo as primeiras horas de sua vida. Constata assim que demora muito para escrever do que para viver e que os acontecimentos narrados estão afastando-se mais rapidamente do que a narrativa avança… Impossível alcançar-se. Conclui que o melhor é parar de perseguir-se e conversar com os leitores. A vida de Tristram que siga seu curso e Sterne, bem, Sterne sabe e declara-se consciente de que a literatura existe primeiro para SATISFAZER O AUTOR… Danem-se os leitores.

Como se não bastasse ser um excêntrico romance sobre quem escreve um romance, Tristram Shandy apresenta uma série de artifícios antes nunca vistos: uma página inteiramente pintada de preto, tentativas de desenhar graficamente a evolução do romance, alguns capítulos em branco (em que nada é escrito) e uma página também em branco, limpinha, para que o leitor desenhe sua amada.


Acima, Sterne nos brinda com o esquema gráfico da história do tio Toby…

Hoje, poucos leem o descontrolado e desprogramado romance Tristram Shandy, mas os estragos causados por ele fez foram grandes: Joyce adorava seus jogos de palavras e trocadilhos ab-so-lu-ta-men-te malucos, Beckett – “Nada tenho a dizer, mas somente eu sei como dizer isto” – deliciara-se com o fato de Sterne ter, por assim dizer, inviabilizado seu próprio romance e Machado de Assis aprendeu com ele a dialogar freqüentemente com o leitor e a brincar com aqueles pequenos capítulos em que nada, mas nada mesmo, acontece.

Li este livro em 1985, na brilhante tradução de José Paulo Paes e, por ter lido hoje alguns textos do textos do DOUGLAS CECONELLO — o qual ADORA pontuações de ESTRANHA MUSICALIDADE e de escrever em maiúsculas as PALAVRAS-CHAVE,  passei o dia pensando em Tristram e em Joyce. Coisas.

Despeço-me com mais um trecho do Tristram Shandy. A pontuação é a do autor, claro:

O que é a vida de um homem! Pois não é um rolar daqui para lá?——–De infortúnio em infortúnio?—— Abotoar uma ca(u)sa de aflição!—–e desabotoar outra?

(…)

—Entrementes, tenho umas poucas coisas a fazer—uma coisa a nomear—uma coisa a lamentar—uma coisa a esperar, uma coisa a prometer, e uma coisa a ameaçar.—Tenho uma coisa a imaginar—uma coisa a declarar—uma coisa a esconder, e uma coisa por que rezar. ——A este capítulo chamarei, portanto, o capítulo das COISAS——e o capítulo a ele subseqüente, isto é, o primeiro do volume seguinte, se eu viver o bastante, será o capítulo das SUÍÇAS, a fim de manter algum tipo de nexo entre as minhas obras.

A coisa que lamento é terem as coisas se apinhado de tal modo sobre mim que não consegui chegar àquela parte de minha obra a que visei durante todo o caminho com tamanha ansiedade, qual seja a parte das campanhas, e mais especialmente a dos amores do tio Toby; os acontecimentos e eles respeitantes são de natureza tão singular e de cunho tão cervantino que se eu conseguir transmitir a outro cérebro as impressões que as ocorrências suscitam por si sós em meu próprio cérebro—garanto que o livro abrirá caminho no mundo muito melhor do que nele abriu seu autor.—Oh Tristram! Tristram! poderá jamais acontecer, uma vez que seja—que o prestígio de que venhas a desfrutar como autor compense os muitos infortúnios que te afligiram como homem?—Festejarás o primeiro—quando tiveres perdido toda a sensação e lembrança dos outros!—

Não estranha eu estar tão inquieto por chegar a estes amores.—Eles são o acepipe mais refinado de toda a minha história! E quando eu chegar enfim a eles—asseguro-vos, boa gente,—(não me importam os estômagos delicados aos quais possa desgostar) que não serei nada cuidadoso na escolha das minha palavras;—a coisa que tenho a DECLARAR——–é que receio não poder chegar-lhes ao fim em apenas cinco minutos—e a coisa que ESPERO é que vossas referendas senhorias não se ofendam—se vos ofenderdes, podeis contar, minha boa gentry, que no próximo ano eu vos darei algo com que de fato vos ofenderdes—assim o faz minha querida Jenny—mas quem seja a minha Jenny—e qual a extremidade certa e a extremidade errada de uma mulher, essa é a coisa a ser ESCONDIDA—ser-vos-á contada dois capítulos após meu capítulo acerca das casas de botão—e em nenhum outro capítulo anterior.

E agora que chegastes ao fim destes quatro volumes—a coisa que tenho a PERGUNTAR é, como estão vossas cabeças? A minha dói horrivelmente—quanto às vossas saúdes, sei que estão bem melhores…

Estão mesmo, Laurence, ou ao menos hoje a minha está.


A descrição da morte de Yorick: uma página preta, de luto

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Putas Assassinas, de Roberto Bolaño

Putas Assassinas é uma coletânea de contos publicada em 2001. É obra menor do grande Roberto Bolaño. Achei os contos muito desiguais. Uns são dignos de antologia, outros nem tanto. O Olho Silva, Últimos entardeceres na terra, Dias de 1978, Vagabundo na França e na Bélgica, Prefiguração de Lalo Cura, O retorno, Buba e talvez Dentista são excelentes. Já o restante… São cinco contos meio sem graça e oito bons. Bem, mas então o saldo não é mau! É que como os bons estão localizados no início, a impressão final é de insatisfação.

O melhor conto do livro é o de abertura: O Olho Silva. Li-o em voz alta para minha mulher e filho e a impressão causada foi devastadora. O conto que dá título ao livro é bastante ruim; Dias de 1978 é inesquecível e possui em seu cerne uma arrepiante e inusitada descrição do filme Andrei Rublev, de Andrei Tarkóvski (o nome do filme nunca é dito pelo personagem que o descreve); Últimos entardeceres na terra é fortemente autobiográfico, assim como Vagabundo na França e na Bélgica. Buba é futebolístico e ótimo.

Acho que vale a pena ler se você já tiver lido o merecidamente cultuado Os detetives selvagens e a impecável novela Noturno do Chile.

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Um Fígado para Roberto Bolaño (Final)

Os livros modernos que mais amamos nascem da confluência e do choque de uma multiplicidade de métodos interpretativos, maneiras de pensar e de estilos de expressão. Ainda que o desenho geral tenha sido cuidadosamente planejado, o que conta não é a construção de uma figura harmoniosa, mas a força centrífuga que libera, a pluralidade de linguagens como garantia de uma verdade imparcial.

ITALO CALVINO, Seis propostas para o próximo milênio

Roberto Bolaño é fácil de ler. Sua prosa é fluida e bem humorada até quando descreve o bizarro, a desgraça e o patético. Só que esta opção pela clareza parece ser um artifício para nos colocar problemas abismais e demonstrar uma realidade dividida e ramificada de tal maneira que precisei recorrer a esquemas gráficos para entender quem conhecia quem e o que quando li Os Detetives Selvagens. Mas a tentativa não melhorou minha leitura e desisti. É estranho como a orelha da edição da Companhia das Letras involuntariamente diminui a obra. Dizer que o livro é sobre a procura de dois poetas, Arturo Belano e Ulises Lima, por uma terceira, a misteriosa Cesárea Tinajero, é o mesmo que dizer que Os Irmãos Karamázovi discute apenas quem, afinal de contas, teria matado o velho Fiódor…

Os Detetives Selvagens tem 3 partes. A primeira, de mais ou menos cem páginas, uma longa segunda parte de 500 páginas e uma terceira, um epílogo curto. Apesar da esplêndida introdução, o que interessa está na segunda parte: esta é formada de textos escritos na primeira pessoa do singular. São mais de 50 narradores que se alternam para contar a história dos personagens e outros fatos que aparentemente não tem muito a ver. Eles são extremamente envolventes, apesar de quase sempre finalizarem de forma abrupta, como um Tchékhov enlouquecido que resolvesse retirar não um, mas os dois ou três últimos parágrafos. A gente fica… com vontade de ler o próximo, que é, normalmente, sobre outro assunto envolvente e que novamente nos deixará na mão. É claro que nos acostumamos e acabamos por achar divertido o autor que nos tira o pão da boca. Só que o efeito geral da obra é devastador. Quando você se afasta do livro, acaba descobrindo que as narrativas complementares estão se afastando do plot, ao invés de formar um todo tranqüilizador. O romance é minuciosamente descontrolado por um homem de visão nada indulgente para com toda aquela turba. O resultado de toda a alegria de viver demonstrada é o desencanto e é mais, é o horror do vazio.

Tudo é parcial e tem múltiplas significações no mundo falsamente simples de Roberto Bolaño. Para referenciar o vazio, Bolaño recorre, como me ensinou a Meg, à hipérbole, ou seja, a intensificar a vida de forma inconcebível, de forma a negá-la. Explicando melhor, Bolaño escreve infinitamente suas belas histórias sem origem nem fim, preenchendo infinitamente todos os espaços ficcionais com sua prosa agradável e de inícios e finais abruptos, conseguindo, com isso, negar seu preenchimento, mostrando o inconsolável vazio de seus inteligentes e simpáticos personagens. De que outra forma apreenderíamos o vazio senão valendo-se da hipérbole? Mais: Bolaño utiliza-se brilhantemente de repetições, só que elas são normalmente imprecisas, diferentes, perturbadoras.

Não estou com o livro a meu lado, mas creio que a única história onde o horror é descrito de forma direta é uma das mais belas que já li: o episódio de Auxilio Lacouture. Trata-se do seguinte: quando a Universidade Autônoma do México foi invadida pelo exército em setembro de 1968, Auxilio decidiu permanecer no banheiro, onde já estava, resguardando o último reduto de autonomia universitária. Ela lê um volume de poesias, e às vezes observa e ouve os militares que cuidam para que ninguém entre na Universidade. Permanece ali por vários dias (não lembro quantos), em plena resistência e com “uma certeza meio vaga” de que ia morrer. Não morreu, tornando-se uma heroína aos olhos de alguns amigos, enquanto outros duvidavem da história. (Depois, a uruguaia Auxilio transformou-se em protagonista do romance Amuleto (1999), mas este é outro assunto).

Mas por que, céus, escrevi quatro posts sobre Bolaño? Porque acredito que seu projeto literário seja realmente importante e pode ter continuidade sob a mesma ou outras formas; porque acho que os jovens que o lêem com tanta dedicação têm razão; porque acho que Bolaño é um escritor que finalmente escreve para o futuro e não repisa experiências gastas; porque tenho certeza que ele desejava ser popular e lido; porque ele foi um vanguardista que se preocupava em não ser um serial killer de leitores e porque ele era humano o suficiente para dizer que escrever era…

Correr por el borde del precipicio: a un lado al abismo sin fondo y al otro lado las caras que uno quiere, y los libros, y los amigos, y la comida.

ROBERTO BOLAÑO – Discurso quando do recebimento do Prêmio Rómulo Gallegos

Obs.: As citações de Calvino e Bolaño constantes neste post foram retiradas deste trabalho de Rafael Gutiérrez Giraldo.

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Um Fígado para Roberto Bolaño (III)

Em 2004, achei que era brincadeira quando li que um certo chileno chamado Roberto Bolaño morrera em julho do ano anterior, aos 50 anos, em Barcelona. Até aí, tudo bem, as pessoas morrem jovens e é uma injustiça mesmo; mas é que vários jornais e revistas lamentaram o desaparecimento de um dos três principais autores contemporâneos da América Latina. Os outros eram García Márquez e Vargas Llosa. Roberto Bolaño? Quem é, ops, quem era? Esqueci do assunto até que a Companhia das Letras anunciou o lançamento de Noturno do Chile. Comprei-o logo. Resultado: engoli o livro num final de semana e, penso agora, que Susan Sontag não estava brincando quando disse que Noturno do Chile é o que há de melhor e de mais precioso.

A seguir, deixo para vocês duas críticas sobre o livro. Volto nos primeiros minutos de amanhã para comentar Os Detetives Selvagens, livro que li no final do ano passado e que não me sai da cabeça. Ah, a primeira crítica é de Adelto Gonçalves e saiu na Gazeta Mercantil:

São Paulo, 27 de Novembro de 2004 – A morte do escritor chileno Roberto Bolaño em 2003, por insuficiência hepática, aos 50 anos de idade, em Barcelona, interrompeu prematuramente uma carreira literária que já o colocara entre os maiores autores da literatura de um país que já teve dois ganhadores do Prêmio Nobel – os poetas Pablo Neruda (1904-1973) e Gabriela Mistral (1889-1957).

Quem duvida que leia “Noturno do Chile” (Nocturno de Chile), que acaba de ganhar tradução em português de Eduardo Brandão pela Companhia das Letras, de São Paulo, um apaixonante monólogo interior de um padre crítico literário às vésperas da morte. Embora não se deva confundir a persona com o seu autor, é impossível deixar de ver no religioso Sebastián Urrutia Lacroix um alter ego e, no texto, um acerto de contas do escritor com o seu passado.

Bolaño estava em plena atividade literária: em 2001, havia publicado o livro de contos “Putas asesinas” (Barcelona, Alfaguara) e era autor de “La pista de Hielo”, “Llamadas telefónicas” e do romance “Los detectives salvajes” (1998), com o qual obteve o Prêmio Rómulo Gallegos. Mas a notoriedade, ele havia obtido mesmo com o livro “La literatura nazi en América” (1996). Bem, a rigor, isto é o que se informa na edição brasileira, o que leva o leitor que não conhece Bolaño a imaginá-lo um autor de poucos títulos.

Não é. Ainda em 2002, Bolaño lançou o romance “Amberes” (Barcelona, Anagrama) e “Una novelita lumpen” (Barcelona, Mondadori), breve romance que conta a história de uma jovem que, a partir da morte dos pais num acidente automobilístico, converte-se na “mãe” do irmão menor, reorganizando o sentido de sua existência – aparentemente, também um romance de formação, pois, claro está, é inspirado na vida atribulada de um chileno desarraigado por força da situação política em seu país.

Em 2000, Bolaño publicou pela editora “El Acantilado”, de Barcelona, o livro híbrido “Tres”, que está dividido em três partes: “Prosa del otoño en Gerona”, “Los neochilenos” e “Un paseo por la literatura”. A primeira e a segunda partes estão em prosa e a terceira, em verso, um poema narrativo que inclui personagens, diálogo e histórias que contam uma viagem ao Norte do Chile, Peru e Equador por um grupo musical de jovens na faixa dos vinte anos e de seu cantor, o mais maduro deles. O poema emprega endecassílabos, octassílabos e heptassíbalos, deixando entrever que foi escrito para ser falado em voz alta.

De 2000 ainda é a segunda edição do romance “Estrela distante” (Barcelona, Anagrama), que ganhou tradução francesa em 2002 (Étoile distante). Seu tema é inspirado no último segmento de “La literatura nazi en América” (“Ramírez Hoffman el infame”) e recupera os anos de 1968 e de 1973 no Chile, especialmente em relação a sua literatura e seus poetas.

Depois de ter saído do Chile com a família para o México em 1968, Bolaño retornou em 1973, entusiasmado com os rumos do país sob o governo socialista de Salvador Allende, mas, depois do golpe militar comandado pelo general Augusto Pinochet, ficou detido.

Libertado por um amigo de infância, seguiu para o exílio e, depois de uma passagem por El Salvador, radicou-se na Cidade do México, onde criou o grupo de vanguarda Infra-Realismo e passou a publicar poemas. A partir de 1977, estabeleceu-se na Espanha e lá permaneceu até o fim, pois retornar ao Chile ao tempo de Pinochet equivalia a uma condenação à morte.

Noturno do Chile é um romance que, publicado na Espanha em 2000, ganhou tradução em 2002 na Inglaterra e nos Estados Unidos e em 2003 na Itália. Escrito em linguagem que contagia o leitor desde o início, não tem divisões nem segmentações.São 118 páginas com apenas dois parágrafos – aliás, o segundo, inspirado em Norman Mailer, diz apenas o seguinte: “E depois se desencadeia a tormenta de merda”.

O narrador, testemunha do tempo que precede o assalto ao poder pelo general Pinochet e seus sequazes, repassa a sua vida num monólogo febril, reconstruindo na memória dois momentos especiais da vida chilena – antes e depois do golpe. Lacroix é um religioso ainda aferrado aos dogmas da Igreja, que não dispensa a sua batina surrada, usando-a como se fosse uma bandeira.

Jovem talentoso, entra para a elite das letras chilenas pelas mãos de Farewell, o crítico literário mais respeitado do país e também proprietário rural. Vários escritores chilenos – e alguns estrangeiros – são citados com seus nomes completos ou sob pseudônimos. Críticos importantes do jornalismo chileno da segunda metade do século XX também surgem disfarçados como Alone e Nicasio Ibacache, personagens que apareceram pela primeira vez em “Estrella distante”.

Há ainda uma alegoria anagramática em dois personagens – Odeim e Oidó (medo e ódio em espanhol escritos de trás para a frente) -, empresários de comércio internacional que convidam o padre para fazer um trabalho na Europa: visitar igrejas de referência em matéria de soluções antidesgaste, estudar as técnicas de conservação, cotejar os distintos sistemas e escrever um relatório.

De volta da Europa, Lacroix encontra o país convulsionado pela crise do governo de Salvador Allende, pressionado pela conjuntura financeira internacional e pela burguesia assustada com suas promessas socialistas. O religioso, porém, passa a ignorar o que corre pelas ruas, fechando-se em casa para ler freneticamente autores gregos. Depois do golpe, curiosamente, é contratado pelos novos donos do poder para dar aulas de marxismo a ninguém menos que o general Pinochet e seus companheiros de junta militar.

Com um ponto de vista ético irônico e malévolo, o memorialista recorda uma festa entre intelectuais ao tempo da ditadura Pinochet num casarão localizado nos confins de Santiago, de propriedade de uma ricaça candidata a escritora, Maria Canales, casada com um norte-americano, Jimmy Thompson.

Lá pelas tantas, um teórico da cena de vanguarda, um tanto bêbado em busca de um sanitário, descobre no porão da casa um homem amarrado numa cama metálica, de olhos vendados, ainda vivo, a respirar com dificuldades, cheio de feridas, “supurações, como eczemas, mas não eram eczemas, as partes maltratadas de sua anatomia, como se tivesse mais de um osso quebrado”. Soube-se, depois, quando chegou a democracia, que Thompson havia sido um dos principais agentes da Dina, a sanguinária polícia política de Pinochet, e que usava a sua casa como centro de interrogatórios e torturas.

Com a descrição de casa dos horrores, o memorialista compõe a metáfora do Chile que lhe coube viver, um país hoje organizado economicamente, às portas do seleto clube do Primeiro Mundo, mas que, pela insânia de seus generais e das elites nacionais e estrangeiras que os financiaram, teve de descer ao inferno e viver um pesadelo que haverá de perturbar o sono de todos os chilenos por várias gerações.

Ao reconstituir a vida social e literária do Chile da segunda metade do século XX, às vezes, de maneira sedutora e, outras, de modo corrosivo, Bolaño não faz só mais uma denúncia política da tragédia latino-americana de nossos dias, mas revolve o esterco de que é feita a espécie humana.

A segunda é de Francisco Foot Hardman e foi publicada na Folha de São Paulo:

São 110 páginas num só fôlego, por isso mesmo num só parágrafo. Imagine que você está mal, não lhe resta muito tempo, e agora mesmo deva passar em revista todos os acontecimentos de sua desafortunada existência, você que foi poeta e crítico literário de ponta, que serviu à inteligência do país como poucos de sua geração. Imagine-se no lugar deste protagonista agônico, padre Lacroix. Sua memória confunde-se com a da história do país, “entre um descampado e um crepúsculo interminável”. Não há mais testemunha do seu solilóquio: há apenas este fantasma renitente do “jovem envelhecido” que lhe perturba as imagens, afeta o juízo. “Noturno do Chile” pode ser lido como uma elegia para um país impossível, para uma pátria literária que é só pesadelo e contra-senso.

É possível falar de “literatura chilena” após Pinochet?, parece-nos indagar Roberto Bolaño, atualizando os termos de Adorno, mas desviando o discurso da metalinguagem filosofante, da novela-ensaio, em prol de uma ficção que corrói todas as ilusões de estéticas redentoras ou de romances da denúncia catártica. Ficção do real arruinado pela contra-revolução na América Latina, definida pelo autor em conto recente como “o manicômio da Europa”. Ao que acrescenta: “O manicômio, há mais de 60 anos, está queimando em seu próprio azeite, em sua própria gordura”. Literatura “visceral-realista”, como costumou-se chamar, no mundo hispano-americano, a corrente de poetas e escritores exilados, entre os quais Bolaño, que se formou no México, em meados dos anos 70. Denominação adequada porque a aspereza dessa prosa torrencial incorpora-se às sensações corporais mais primárias.

A violência é internalizada em imagens rápidas e ríspidas, tragicômicas, absurdamente triviais em sua cotidianidade, que, num repente, irrompem como um soco no estômago capaz de quebrar nossos automatismos perceptivos, mas sem nunca transpor o limiar de suas terríveis cadeias, de seus equívocos sinistros.

Se “Noturno” consegue enfrentar o duro dilema da ficção pós-desastre no Chile, “Estrella Distante” (1996) tinha sido o romance inaugural dessa linhagem, trazendo para a primeira cena os efeitos da repressão genocida sobre toda uma geração, não como prática social ou política, mas como experiência mental e corpórea imediata. Já nos ótimos contos de “Putas Asesinas” (2001), saídos um ano depois de “Noturno”, a marca que perpassa é a da memória deslocada pelo exílio, “o calor de uma certa desmedida”, que é o vagar sem rumo dessas escrituras de proscritos.

Tendo vivido metade de sua vida na região de Barcelona (Roberto Bolaño morreu no ano passado, com 50 anos, e lá viveu desde 1978), é “visceral” mesmo sua desconfiança com respeito à instituição literária, sobretudo no que diz respeito à construção de mitologias e martirológios nacionais. O vigor incisivo de sua prosa espiralada não redime nenhuma das ilusões de uma nacionalidade fundadora, seja antes, durante ou pós-era Pinochet.

Em “Noturno”, a narrativa investe contra o mundo dos artistas (a personagem María Canales é casada com um agente norte-americano da Dina, o temível órgão de repressão e tortura), críticos (na figura de Farewell, autoridade absoluta do mundo literário chileno, cujo declínio já se insinua no nome) e poetas (desconstruir o mito Pablo Neruda é um dos esportes favoritos dos narradores de Bolaño).

Também a Igreja Católica não passa incólume, nessa presença em muitos lances patética do padre Lacroix, membro da Opus Dei: contratado por dois comerciantes obscuros (os senhores Odem e Oidó, anagramas respectivos de medo e ódio, detalhe muito bem apanhado pelo tradutor brasileiro, Eduardo Brandão), ele oferece aulas introdutórias e clandestinas de marxismo à junta militar golpista, apoiado, entre outros textos, no manual de materialismo histórico da chilena Marta Harnecker, hit das esquerdas latino-americanas dos anos 60 e 70.

Mas “Noturno do Chile” não é libelo, nem pote amargo. Se a paisagem é a da noite elegíaca de uma barbárie que ultrapassou os portais do absurdo, e a atmosfera ronda sempre o pesadelo, sobra entretanto humor, imaginação, erudição literária e um lirismo que se espraia em detalhes só acessíveis a um escritor que começou a escrever, viveu e morreu como poeta, no epicentro de terremotos que solaparam as utopias de sua geração. Cujos rostos talvez se pareçam com o desse “jovem envelhecido”, “fantasma”, ternamente admissível, contudo, se não pretendermos continuar o vôo cego.

(o final será publicado nos primeiros minutos de amanhã, sexta-feira)

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Um Fígado para Roberto Bolaño (II)

E então, após sua morte, os livros de Bolaño começaram a vender cada vez mais. Há muito Bolaño nos blogs de língua espanhola e <em>Os Detetives Selvagens</em> e <em>Estrella Distante</em> são os preferidos de meus colegas. Alguns deles traçam linhas de continuidade e conexões entre <em>Os Detetives</em> e <em>O Jogo da Amarelinha</em> de Julio Cortázar ou <em>Adán Buenosayres</em> de Leopoldo Marechal. Falam não apenas das qualidades literárias de Bolaño, mas de suas obsessões como a eterna busca de personagens perdidas, amores e cidades. Li <em>Os Detetives Selvagens</em> na virada deste ano, mas como minha leitura d`<em>O Jogo</em> data de mais de 30 anos, não consigo estabelecer tais conexões, apesar de não ignorar que qualquer livro que contenha 50 ou mais narradores deva alguma coisa à Cortázar…

Santificado hoje e diabólico ontem, Bolaño se comprazia em fustigar seus inimigos literários. Ele os depreciava de frente, não obedecendo aos habituais salamaleques. Sobre Isabel Allende disparou: “Digo calmamente que Allende é má escritora. Para qualificá-la como escritora, uso de certa indulgência, pois nem isso ela é”. Isabel respondeu: “Dei uma olhada a dois de seus livros e eles me entediaram profundamente”. Até aí, tudo normal. A novidade é que, quando Bolaño morreu, Allende seguiu firme: “Não o lamento. É uma pessoa que nunca disse nada de bom a respeito de alguém. O fato de estar morto não o faz melhor. Era um senhor bem desagradável”. Isabel Allende foi bastante exagerada ao escrever que seu conterrâneo nunca disse nada de bom sobre alguém.

“Skármeta é um personagem televisivo. Sou incapaz de ler qualquer um de seus livros. Sua prosa me vira o estômago”, torpedeou Bolaño. O colombiano Fernando Vallejo respondeu pelo colega afirmando que a prosa de Bolaño é demasiadamente simples, plana, elementar, do tipo “Eu, Tarzan; tu, Jane”.

Bolaño teve problemas também com Diamela Eltit. Eu, Milton, os acho tremendamente cômicos… Ela o convidou para um jantar em sua casa. OK. Só que depois, ele publicou uma impiedosa crítica a um livro de sua anfitriã e aproveitou para também fazer referências à péssima gastronomia oferecida pela autora, dando detalhes. “Este é um tema sobre que prefiro não tocar. O que se passou foi algo absurdo e hipertrofiado. Bolaño morreu e eu prefiro não dizer nada a respeito”.

Bolaño deu também tiros que alcançaram o Brasil, atingindo Nélida Piñon e Paulo Coelho…

<em>Hace poco, Nélida Piñon, celebrada novelista brasileña y </em>serial killer<em> de lectores, dijo que Paulo Coelho, una especie de Barbusse e Anatole France en versión telenovela de brujos cariocas, debía ingresar en la Academia brasileña, puesto que había llevado el idioma brasileño a todos los rincones del mundo. Como si el “idioma brasileño” fuera una ciencia infusa, capaz de soportar </em>(sobreviver a)<em> cualquier traducción, o como si los sufridos lectores del metro de Tokio supieran portugués. Además, ¿qué es eso de “idioma brasileño”? Idea tan desmesurada como si habláramos del idioma canadiense o australiano o boliviano.</em>

Javier Cercas, autor de <em>Soldados de Salamina</em>, romance onde Bolaño é personagem, sustenta que há dois tipos de lendas em torno de Bolaño. Uma que foi construída pelos leitores e fãs e outra criada pelo próprio autor, voluntária e involuntariamente. Diz Cercas que ambas não se ajustam à realidade, mas que a de Bolaño é, em certo sentido, “mais real que a realidade” e que a outra é uma quase mentira ou uma mentira com elementos de verdade. O escritor espanhol enumera fatos em favor de uma construção mítica em torno de seu amigo: morreu jovem; morreu no melhor momento de sua carreira; morreu e foi recebido pela de braços abertos pela tendência que os meios literários possuem de falar bem dos mortos (com fartas cotas de hipocrisia — exceto Allende, claro). “A história da literatura está cheia de exemplos de canonização após uma morte prematura. Mas o que acho assombroso é que o mesmo homem que escreveu <em>A Pista de Gelo</em>, escreveria 3 anos depois <em>Estrella Distante</em> e seis anos depois <em>Os Detetives Selvagens</em>. É estupefaciente que, entre 1996 e 2003, ano de sua morte, ele tenha evoluído e escrito tanto!”.

Eu me pergunto se Bolaño sobreviverá a isto. Hoje, a única pergunta que cabe é se Bolaño é genial ou extraordinário. A última entrevista concedida por Bolaño foi para Mônica Maristain, da Playboy mexicana; ela perguntou: “O que você diz daqueles que pensam que <em>Os Detetives Selvagens</em> é o melhor romance mexicano de todos os tempos?”. Ele respondeu: “Dizem isto de pena. Me vêem decaído e desmaiando em praça pública e não lhes ocorre nada melhor do que uma mentira piedosa, que é o mais indicado nesses casos. Não é pecado fazer isso”.

Graças a boa relação existente entre o editor Jorge Herralde (Anagrama) e a família de Bolaño, chegaram às livrarias em 2007 textos que formaram mais dois livros: <em>El Secreto Del Mal</em> e <em>La Universidad Desconocida</em>. Também chegou um livro de poemas: <em>Los Perros Românticos</em>. Jorge Herralde foi amigo, editor e promotor da obra de Bolaño. E hoje é mais: é quem garante a subsistência de sua mulher e filhas, cuidando para que os direitos autorais cheguem a elas. Cumpre o que prometeu ao escritor antes de sua morte. Foi e é, repito, um amigo.

<em>(continua amanhã com comentários sobre obras de Roberto Bolaño)</em>

<small>Fontes consultadas: Livros de Bolaño, Caderno de Cultura do Clarín de 22/09/2007 e blogs hispano-americanos.</small>

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Um Fígado para Roberto Bolaño (I)

Alguns o vêem como o sucessor de Borges e Cortázar, outros como um autor intranscendente e plano, porém, indiferente a quaisquer avaliações, segue engrossando o culto a Roberto Bolaño na América de língua espanhola.

Ícone chileno, mexicano, argentino e espanhol, ele tem multiplicado seus leitores de forma permanente e os que o lêem parecem ser tomados pelo vírus de tal forma que passam logo ao estado de fãs e seguidores. Para nós, brasileiros, é estranho que um autor de alta qualidade seja incensado pelo grande público; afinal, estamos sob uma vaga de ignorância tão grande que é bastante desconfortável saber que os grafiteiros destes países costumam escrever nos muros das cidades: “¡Un hígado a Bolaño!”. Aqui, Paulo Coelho, Marcelino Freire e Bruna Surfistinha; logo ali, atravessando a fronteira, Roberto Bolaño.

Além da América espanhola, ele está sendo traduzido com sucesso para a Europa e Estados Unidos. Busca-se mais contos, romances e poemas do autor cujas cinzas foram jogadas por sua mulher e filhas no Mediterrâneo em 2003.

Bolaño era chileno, mas se reconhecia como “autor latino-americano”. É compreensível: teve vida breve, nasceu em 1953, viveu largas temporadas no México e na Espanha — o golpe de Pinochet, por exemplo, aconteceu quando morava com sua família no México — e sua morte ocorreu em Barcelona.

Enrique Villa-Matas diz que a morte de Bolaño fechou uma vida destinada a tornar-se uma lenda. Ele está certo e é por este fato que estou escrevendo a série de quatro artigos que começo aqui. Minha motivação é a de comprovar que talento, coragem, idealismo e loucura, características tão raras na era do politicamente correto e do incontroverso, são absolutamente necessárias à arte.

Sua morte prematura aos 50 anos — enquanto esperava, em Barcelona, um fígado para transplante — foi o último ato da formação de um mito para o qual Bolaño contribuiu de forma direta. Morreu em 14 de julho de 2003 no hospital Valle de Hebrón. Passou 10 dias em coma por complicações hepáticas enquanto esperava em vão. Deixou textos para publicação póstuma e outros inconclusos. Estava preocupado com o futuro de sua mulher e das filhas. Entre os papéis deixados havia os cinco grandes textos que deveriam – e formaram – o estupendo romance 2666, que gira em torno de um escritor desaparecido (Benno von Archimboldi) e onde há cenas que descrevem o horror dos feminicídios em Ciudad Juárez, onde as mulheres parecem ser caça.

Mas voltemos à biografia do autor.

Roberto Bolaño nasceu em Santiago do Chile em 1953. Com 13 anos, mudou-se com sua família para a Cidade do México. Ali, praticamente morava dentro da Biblioteca Pública. Permanecia tanto tempo lendo que, pasmem, não terminou a escola média nem entrou para a universidade. Curiosamente, hoje existe a cátedra Roberto Bolaño na Universidade Diego Portales de Santiago… Em 1973, caiu Salvador Allende e Roberto retornou ao Chile de carona, com a intenção de unir-se à resistência contra a ditadura que se instalava. Foi preso. Salvou-se graças a um amigo, ex-colega de colégio, então já milico, que o reconheceu e conseguiu liberá-lo. Ano depois, diria que não falava sobre política pois “os que detém o poder, ainda que por pouco tempo, não sabem nada de literatura”. Porém, a literatura ocupa-se do político e Bolaño viria a escrever o brilhantíssimo, premiado e inteiramente político Noturno do Chile.

Em seu regresso ao México, juntamente com o poeta Mario Santiago Papasquiaro –- a inspiração para a criação do personagem de Ulises Lima, o amigo de Arturo Belano do romance Os Detetives Selvagens — fundou o movimento poético infra-realista que se opôs dissonante e ferozmente aos principais pilares da literatura mexicana, representada especialmente por Octavio Paz.

“Poderíamos dizer que o infra-realismo o moldou como escritor e romancista, mas também o México teve importância nesta transformação. Ela amava o México noturno, o México das ruas e dos cafés, a fala cotidiana e seu indiscutível humor desencantado. Não é casual que seus dois maiores romances – Os Detetives Selvagens e 2666, sejam centrados no México”, escreveu o escritor Juan Villoro.

Anos depois emigrou para a Espanha, onde já vivia sua mãe. Colheu uvas em alguns verões, trabalhou como vigilante noturno em Castelldefels, foi balconista de armazém, lavador de pratos, faxineiro de hotel, estivador, lixeiro e recepcionista até tornar-se escritor em tempo integral.

Como todo apaixonado por literatura, também foi um hábil ladrão de livros, quando não tinha dinheiro para pagar por eles. (Tal fato, que destaco em parágrafo especial, talvez sirva de atenuante para os articulistas de vida pregressa plena de roubos nunca descobertos…).

(continua)

Fontes consultadas: Livros de Bolaño e o Caderno de Cultura do Clarín de 22/09/2007.

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