Rubber Soul

Rubber Soul

Este é o melhor álbum dos Beatles? Não sei. Sei que é o que ouço com maior prazer. Há poucas alegrias maiores do que colocar o vinil de Rubber Soul no toca-discos e observar, na maior expectativa, o disco girar até ouvir os acordes iniciais de Drive My Car. É sempre uma pequena implosão de alegria. Faço isso há 50 anos com o mesmo vinil, ainda em perfeito estado.

Mais uma vez, é um álbum de turning point e, para mim, esses são quase sempre os melhores. A lente grande angular ‘olho de peixe’ da capa pressagia a psicodelia que se aproximava.

É esclarecedor que George Harrison, o guitarrista principal, tenha dito que Rubber Soul e Revolver eram um retrato de 1965/66. Isso foi na época em que os Beatles foram forçados a parar de fazer turnês devido à histeria incontrolável e ao caos dos fãs. Hesito em dizer isso, mas um problema para as equipes de limpeza daqueles shows era o de limpar a urina dos assentos, tal era a liberação frenética e descontrolada de emoção. Era 4 caras engraçados, carismáticos — quiçá bonitos — e musicalmente talentosos. O mundo inteiro estava fascinado. Naqueles dias, apenas visitar a América era um distintivo de honra para os britânicos e, quando os Beatles chegaram aos EUA, foi um vendaval de amor e loucura.

Rubber Soul é um álbum de 1965, uma continuação da trilha sonora de Help. Muitos críticos postulam que o álbum Help foi o álbum mais fraco dos Beatles. Eu concordo. E também concordo que ninguém estava preparado para a inventividade e musicalidade do Rubber Soul.

Grande parte da obra vem de Paul McCartney, o músico mais motivado e talentoso de todos. Mas ele não era o líder. A alma dos Beatles era John Lennon, seu contraponto perfeito — mas este é tanto um álbum de Lennon quanto de McCartney; provavelmente o último em que a musicalidade e inventividade melódica de Lennon realmente brilham.

Rubber Soul usa os gêneros musicais mais tradicionais no rock do que qualquer outro álbum. As pessoas apontam que os Beatles estavam imitando o som de guitarra que os Byrds deram a Mr. Tambourine Man de Dylan. Isso é verdade, mas, como sempre, os Beatles não apenas superaram a concorrência, eles a destruíram.

A abertura é Drive My Car. O solo de guitarra é fluido e fácil. George Harrison era um guitarrista de bom gosto que lutava para conseguir um lugar no grupo como compositor. Aqui, ele recebeu duas faixas do álbum… Só que tinha a (in)felicidade de ser o substituto da maior parceria de composição de todos os tempos. Para Rubber Soul, ele escreveu maravilhosa Think For Yourself. Harrison mais tarde comprovaria sua qualidade com Something, While My Guitar Gently Weeps, Here Comes The Sun, etc. e tem o álbum solo mais vendido após a dissolução dos Beatles, All Things Must Pass. No LP seguinte, ele escreveria Taxman com um extraordinário solo de guitarra, que abre Revolver.

Drive My Car é algo. Oasis, Blur e inúmeros outros artistas do britpop copiaram o modelo Taxman e Drive My Car. The Jam fez isso descaradamente em Start. Noel Gallagher foi ainda mais descarado em copiar motivos dos Beatles. Os Stone Roses foram uma das bandas musicalmente mais bem sucedidas e convincentes do final dos anos oitenta, e também fortemente influenciadas pelos Beatles. Eles pegaram essas ideias e as tornaram suas em seu debut. A canção é ótima e apenas compositores de vanguarda como Stockhausen, Cage e Boulez usaram loops de fita de trás para frente, mas George Martin e os Beatles os introduziram na música pop em Drive My Car. O solo de George em Tomorrow Never Knows do Revolver leva isso a um patamar ainda mais alto.

Depois vem Norwegian Wood e Nowhere Man, ambas de Lennon. Qualquer vocalista sabe como é difícil sustentar uma harmonia de três partes com dois outros ao longo de um minuto, quanto mais três. Mas Nowhere Man soa sem esforço. Norwegian Wood é lírica, inventiva e inesperada. Os Beatles estavam agora traduzindo suas aventuras e relacionamentos pessoais em experimentações iniciais de art-rock. Tipicamente Lennon. Suas letras começam a fazer monólogos.

Entre estas duas está um típico e bom McCartney. You Won´t See Me foi um merecido sucesso da época. Difícil não dançar ouvindo esta canção.

Think For Yourself é uma joia de Harrison com uma guitarra que faz, por todo o tempo, uma segunda melodia. Acho que se ouvirmos apenas a guitarra, a canção já será muito interessante. É um belo cartão apresentado por George a Paul e John. “George Harrison, compositor”.

The Word, de Paul, não chega a ser tudo aquilo, mas não compromete, só que é seguida pela obra-prima que é…

Michelle, também de Paul, vem da tradição da canção francesa. Era uma coisa absolutamente inédita, uma prova do esforço sem esforço de McCartney, pulando de gênero em gênero, bem como sua invenção melódica e harmônica.

What Goes On é um excelente rock escrito por Lennon, McCartney e, sim, Ringo Starr, que faz o vocal com grande competência. Todo mundo cantava bem nos Beatles. Era um assombro.

Girl é outro exemplo de harmonias de três partes. É uma bela melodia. Este álbum representa os períodos finais em que Lennon e McCartney escreveriam juntos. Na verdade, cerca de metade das músicas foram escritas por um ou outro por conta própria. No entanto, aqui, a fusão criativa cumulativa ainda brilha.

I’m Looking Through You é um golaço de Paul McCartney. Melodia grudenta de primeira linha.

In My Life é possivelmente uma das músicas mais tocantes e emocionantes dos Beatles de todas. É uma música de Lennon e você pode ouvi-la compartilhando abertamente seus sentimentos sobre um passado trágico. Sua mãe Julia sendo atropelada na frente de seus olhos, sua alma gêmea da escola de arte Stuart Sutcliffe morrendo aos vinte e poucos anos em Hamburgo, onde os Beatles aprimoraram seu ofício em bares decadentes de Reeperbahn.

Paul McCartney, como admitiu abertamente, teve muita sorte em muitos aspectos. Ele teve uma educação estável. Um pai músico e uma mãe amorosa, Mary, que morreu quando Paul tinha 14 anos, a Mother Mary de Let It Be.

John Lennon teve tudo menos uma adolescência fácil. Eu acredito que foi através de suas criações e circunstâncias radicalmente diferentes que eles se uniram.

Musicalmente, In My Life contém um solo de piano com ares barrocos e um acompanhamento de baixo solo executado com grande elegância. Grande parte disso se deve à sensibilidade clássica do produtor George Martin. Ele também traz isso à tona no acompanhamento do quarteto de cordas de Eleanor Rigby de Revolver.

Wait fica no nível de The Word.

If I Needed Someone é mais um pontapé de Harrison na porta de Lennon & McCartney. E que pontapé! Uma melodia longa e inventiva dentro de um arcabouço originalíssimo. As vozes do trio estão sensacionais nesta que é uma das melhores faixas do disco.

Run For Your Life é um rock sensacional de Lennon. Mas aqui temos problemas na letra machista que o próprio Lennon renegou depois. “Well, I’d rather see you dead, little girl / Than to be with another man” (“Bem, eu prefiro ver você morta, garota / a te ver com outro homem”). Isso é inaceitável há décadas, meu caros, mas em 1965 até passava. Que baita música!

Depois de Revolver, o público não conseguia entender o que havia acontecido com os Beatles. Por que a demora em lançar um novo disco? Por que mais de sete meses entre Revolver e Pepper? Hoje em dia, nomes como Coldplay são considerados prolíficos quando lançam um álbum a cada dois anos. Os Beatles se renovavam consistentemente a cada seis meses.

Este é o meu álbum favorito dos Beatles porque nunca uma banda compôs uma música tão atemporal de forma tão convincente. Nunca haverá outra banda para tocá-los. Nem no passado, nem no presente, nem no futuro. Centenas de anos depois, os ouvintes atestarão isso — disso não tenho dúvidas.

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Há 57 anos, os Beatles chegavam aos EUA deixando 73 milhões grudados na TV

Há 57 anos, os Beatles chegavam aos EUA deixando 73 milhões grudados na TV
A chegada ao aeroporto de Nova York, em 7 de fevereiro de 1964

Nos momentos em que os Beatles estiveram pela primeira vez na TV americana, dentro do Ed Sullivan Show, não houve crimes nos Estados Unidos. O guitarrista George Harrison brincou dizendo que os criminosos eram seus maiores fãs. No início da noite de 9 de fevereiro de 1964, 73 milhões norte-americanos estavam na frente da telinha, de uma população de 192 milhões de habitantes. O Ed Sullivan Show era tão popular quanto o Fantástico era no Brasil no tempo em que não havia TV a cabo. Tudo o que fora pensado em termos de marketing dera certo. Os Beatles demoraram a ir aos EUA, demoraram mais de um ano depois da explosão da beatlemania europeia e só foram após ter emplacado o primeiro lugar nas paradas. Mas já eram conhecidíssimos e desejadíssimos no país. A CBS, a gravadora Capitol e o empresário Brian Epstein prepararam tudo com cuidado e, no momento em que Paul McCartney começou a cantar Close your eyes and I kiss you, início de All my loving, no teatro da Broadway onde acontecia o Ed Sullivan Show, a beatlemania tornava-se uma espécie de histeria coletiva.

73 milhões do outro lado

Para que os EUA sucumbissem, foram apenas cinco canções: All My Loving, Till There Was You, She Loves You, I Saw Her Standing There e I Want To Hold Your Hand. Mas, antes, houve tensão. George só conseguiu subir ao palco depois de um tratamento intensivo para uma gripe que contraíra logo na chegada ao país. Ele não participou da passagem de som e nem do teste de palco com as câmeras, que aconteceram no dia anterior. Além disso, Sullivan desconfiava daqueles quatro caras vestidos estranhamente, de ternos apertados e cabelos fora do padrão da época. Para que as fãs ficassem ainda mais agitadas em casa, a câmera enquadrou John Lennon durante Till There Was You, com a seguinte legenda: Sorry girls – he’s married (“Desculpem, garotas – ele é casado”). O teatro estava lotado, claro. Eram 728 pessoas, invejadas por milhões.

O programa de Ed era transmitido ao vivo para o país todos os domingos, às 20h. O apresentador recebia todos os grandes nomes da música norte-americana e quem quisesse chegar lá. O cachê dos Beatles foi ínfimo e eles se apresentaram entre um comediante e um show de mágica, mas nada disso interessava. A estratégia de se apresentar nos EUA dias depois de o compacto que continha I Want To Hold Your Hand e I Saw Her Standing There alcançar o primeiro lugar, fazia muito mais parte dos ambiciosos planos de Brian Epstein, empresário dos Beatles, do que da CBS, que bateria recorde de audiência.

A estratégia. O empresário Brian Epstein tinha o plano de levar o grupo à América do Norte, mas o grupo decidira que não embarcaria sem o primeiro lugar na Billboard. Era uma decisão surpreendente. Afinal, eles eram celebridades na Inglaterra mas desconhecidos nos EUA. E queriam primeiro conquistar o prêmio do primeiro lugar para depois conceder o ar de suas graças nos EUA. Talvez a atitude fizesse parte da empáfia britânica, ou quem sabe era apenas atrevimento ou falta de vontade. Porém, após aquela curta apresentação, não havia mais dúvida, todos sentiram a força dos Beatles. Eles vieram da Inglaterra para reinar.

Ed Sullivan e os Beatles

O quinteto de canções do show não podia ser mais simples. As letras eram coloquiais e fofas: “Quero segurar tua mão”, “Ela te ama”, “Bem, meu coração fez bum! / quando eu atravessei a sala / e peguei sua mão na minha” (para dançar, claro). A simpatia dos rapazes ao cantar aquelas canções bobas e de melodias grudentas era contagiante.

A estratégia promocional foi cuidadosa. Primeiro, a gravadora Capitol e Brian Epstein esperaram pacientemente pelo primeiro lugar. O citado compacto que alcançou o feito foi lançado em 26 de dezembro. Uma semana depois, apareceu na 83º posição; na seguinte foi para o 42º e na terceira estava em 1º lugar. Houve festa em Paris, onde o grupo se encontrava. Nada disso foi casual. Houve um grande esquema de divulgação e publicidade. E, quando todos estivessem querendo saber quem eram aqueles caras que estavam nas rádios, seria a vez de ir ao Ed Sullivan.

Sullivan deve estar dizendo: “Nem eu esperava por isso”

Sullivan tinha um programa desde 1947 e não recebia qualquer um. Ex-radialista vindo do colunismo social, o apresentador não via muita graça no rock. Mas sabia reconhecer o inevitável. A conquista dos EUA começou dois dias antes, no dia 7, quando chegaram a Nova Iorque pelo voo 101 da Pan Am. Havia 10 mil pessoas para recebê-los… Era algo nunca visto no país de Elvis Presley. Houve uma coletiva no aeroporto em que os garotos mostraram seu estilo e nova irreverência.

— O que vocês acham de Beethoven?
Ringo Starr: — Muito bom. Especialmente seus poemas.

— Existem dúvidas se vocês são mesmo capazes de cantar.
John Lennon: — Somos sim, mas queremos primeiro o dinheiro de vocês.

— O que vocês acham que a música de vocês causa nestas pessoas? (Referindo-se às fãs enlouquecidas no hall do aeroporto)
Ringo Starr: — Eu não sei. Acho que ela as deixa alegres. Bom, deve ser isso mesmo, afinal elas estão comprando nossos discos.

— Por que ficam tão excitadas?
Paul McCartney: — Não sabemos. De verdade.

A loucura nas ruas de Nova Iorque naquele 1964

Na verdade, a imprensa queria arrancar alguma tolice deles, mas eles respondiam com outro gênero de tolices. Estavam se divertindo em vez de responderem. Por exemplo, quando um repórter perguntou sobre um movimento em Detroit para acabar com os Beatles, Paul respondeu: “Nós também temos planos para acabar com Detroit”. Quando o ambiente estava ficando muito barulhento e cheio de risadas, John berrou para todos calarem a boca. A impressão era a de que eles tinham um toque irresistível de simpatia. E de Midas.

Porém, foram hostilizados na imprensa “adulta”. As letras eram um punhado de lugares-comuns amorosos. Os cabelos, ridículos. O som das guitarras, estridente. As harmonias, de simplicidade constrangedora. As previsões eram a de que eles desapareceriam depois de um mês e que logo todos voltariam a se preocupar com Krushev e o terrível Fidel Castro.

Mais uma no Ed Sullivan Show. Apresentação dos Beatles foi entre um comediante e um show de mágica

Depois do dia 9 de fevereiro de 1964, os Beatles tornaram-se os maiores. Se ficassem apenas naquelas canções bobas, talvez não sobrevivessem até hoje como referência mundial em música popular. Mas eles tiveram uma evolução espetacular, primeiro com o trio de LPs Revolver, Rubber Soul e Magical Mystery Tour, depois radicalizando com Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, The White Album e Abbey Road. Como conseguiram isso é um milagre, pois, após o show de Ed Sullivan, todos os holofotes passaram a apontá-los. A visita aos EUA tornou impiedoso o assédio a que foram submetidos. Há tantas fotos deles quanto de Marilyn Monroe, a diferença é que eles tiveram a inteligência de deixar os shows para priorizar a produção artística.

Sobreviveram muito bem, mas esta já é outra história. O mês de sucesso já completou 50 anos sem dar sinais de acabar.

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Os dez discos que mais me influenciaram

Os dez discos que mais me influenciaram

O Paulo Ben-Hur me convidou para deixar aqui as dez capas dos discos que mais me influenciaram. Só as capas, mas não resisti a fazer comentários. E eles foram crescendo disco a disco…

~ 1 ~

Bem, eu era uma criança quando minha irmã Iracema Gonçalves, em 1965, trouxe isso aqui pra casa. Eu certamente ouvi este disco mais de 500 vezes na minha vida — talvez mais de 1000 — e até hoje meu coração bate mais forte vendo a agulha com o disco girando antes de Harrison iniciar aquele solo de guitarra.

~ 2 ~

O segundo disco que mais me influenciou vem também lá da infância. A eletrola do meu pai ficava, por motivos difíceis de entender, no meu quarto. E ele ouvia muita música. Muita mesmo. Como eu, hoje, ele podia passar horas e horas ouvindo discos, um bem diferente do outro, o que deixava minha mãe louca.

Este era especial porque ele dizia que era algo diferente. Mas como eu saberia que era diferente se não conhecia nada? E ele, que era dentista e pianista amador, me explicava as harmonias, o violão, a batida, a forma de cantar… De tal forma que este é um LP que faz parte de mim. Veio pré-instalado no meu cérebro, o que jamais me incomodou.

E hoje eu sei que ele é absolutamente genial e revolucionário.

~ 3 ~

Esta é uma capa famosa, inspiradora de memes. Meu pai comprou o disco no ano de lançamento, em 1966, e ele rodava sem parar na nossa eletrola. Conheço cada acorde e verso dele.

É o LP de estreia deste cidadão muito admirado. Ouço este disco até hoje com enorme prazer.

~ 4 ~

O quarto disco é o primeiro erudito que comprei em minha vida. Era uma gravação pioneira em instrumentos originais, ainda com um jeitinho romântico, mas já com o som delicado e afinadíssimo que amo.

O Collegium Aureum era cheio de craques como Franzjosef Maier, Hans Martin Linde e Gustav Leonhardt.

Dias antes de comprá -lo, tinha saído do banho molhado, enrolado numa toalha, para perguntar a meu pai que maravilha era aquela que ele estava ouvindo. Era o Concerto de Brandenburgo N° 3 tocado com instrumentos modernos.

Então, dias depois, encontrei a minha maravilha na King’s Discos. Ele também ficou babando.

~ 5 ~

Eu era um adolescente que estava descobrindo Bach quando comprei este disco de Thurston Dart (1921-1971) interpretando as Suítes Francesas de Bach no clavicórdio. Estas Suítes foram escritas para cravo ou clavicórdio, tanto faz.

Eu não sabia, mas Dart não era qualquer um, tanto que foi professor de gente como Michael Nyman, Davitt Moroney, Sir John Eliot Gardiner e Christopher Hogwood. Era um disco estupendo comprado na sorte por um ignorante.

O clavicórdio é um instrumento de teclado onde as cordas são percutidas como as do piano, e não pinçadas como as do cravo. Seu som é o mais leve e intimista dentre os três e as Suítes Francesas de Dart me pareceram a coisa mais próxima a um sussurro que já tinha ouvido. Mas era um sussurro muito belo, engenhoso e astuto.

Na Inglaterra, Dart é o padroeiro dos estudos de interpretação histórica. Toda a geração seguinte reverencia seu nome, e vários livros de interpretação histórica dividem esta área do conhecimento musical entre antes e depois de Thurston Dart. Parece que era uma pessoa realmente inspiradora.

Ouço este LP até hoje com enorme prazer.

~ 6 ~

Esse influenciou mesmo. Foi o disco que abriu as portas da música erudita do século XX para mim.

Quem me levou até Bartók foi Erico Verissimo lá nos anos 70. Num de seus livros — creio que se trata de O Senhor Embaixador –, um personagem diz que os Quartetos de Bartók davam-lhe uma representação tão vívida da Europa nos períodos das Guerras Mundiais que lhe era insuportável ouvi-los.

Como sabia de entrevistas que Erico amava os Quartetos de Bartók, aquilo foi a senha definitiva para que eu os procurasse. Perguntei para o amigo Herbert Caro que gravação deveria comprar e ele respondeu que eu deveria ouvir a do Quarteto Végh. Bem, teria que importar e o fiz. Eram 3 LPs da Astrée Auvidis. Me custaram os olhos da cara e aquela pessoa que SABEMOS QUEM É sumiu com o trio de LPs nos anos 90.

Só que o mundo abriga amigos e amigos e é comum acontecerem coisa mágicas. Há uns 5 anos, o Norberto Flach me ofereceu a gravação do Végh para ouvir. Essa mesmo, a de 1972, a que eu tinha. Eu jamais tinha falado pra ele do roubo nem nada, ele só chegou e colocou num e-mail: “Queres?”. Imaginem o que respondi.

~ 7 ~

Depois eu fui tomado de assalto por Schubert, o homem que conseguia fazer a poesia cantar e a música falar. Poderia colocar aqui o LP de A Morte e a Donzela, ou um de Sonatas (Pollini ou Brendel), ou o Winterreise com Fischer-Dieskau, ou a Fantasia Wanderer (com Pollini, novamente), quem sabe os dois últimos quartetos com o Allegri ou A truta, mas acho que ouvi muito mais este Quinteto que chamava de Quintetão.

É uma peça bastante longa e foi a última composição de câmara de Franz Schubert. Às vezes é chamado de “Quinteto para violoncelo” porque foi escrito para um quarteto de cordas padrão mais um violoncelo extra em vez de duas violas, como é mais comum em quintetos de cordas convencionais. Foi composta em 1828 e concluída dois meses antes da morte do compositor.

O incrível é que a primeira apresentação pública da peça só ocorreu em 1850 e a publicação em 1853.

Vale a pena ouvir mil vezes. O Adágio é algo sobrenatural com suas duas seções externas muito lentas e uma parte central turbulenta.

Sem exageros, penso que quem não conhece esta música ainda não viveu. Simples assim.

~ 8 ~

Uma capa ridícula, um disco de uma gravadora desconhecida em 1982, mas eu queria conhecer a tal Sinfonia Concertante de Mozart. E tive uma surpresa.

Sim, há ‘Don Giovanni’, ‘A Flauta Mágica’, os Concertos para Piano de números mais altos, a Júpiter, a 40, o Concerto para Clarinete, o Divertimento K. 287, é tanta obra-prima que nem sei, etc., porém, dentre os sei lá quantos CDs de Mozart de minha discoteca, escolho esta despretensiosa gravação da Bis sueca. É a que mais gosto, é endorfina pura, me deixa feliz. E nem é pelo extraordinário Concerto para Piano, é muito antes pela interpretação da Sinfonia Concertante para Violino e Viola K. 364. Para meu gosto torto, é meu melhor CD do mestre de Salzburgo.

Em 1988, Peter Greenaway realizou sua obra-prima ‘Afogando em Números’ utilizando o Andante da Sinfonia Concertante, o qual é executado longamente durante as cenas de assassinatos de maridos pelas Cissies do filme. Certamente, Mozart nunca imaginaria tal utilização, mas ficou lindo, perfeito, dentro de um filme virtuosístico tanto pela atuação dos atores como por sua beleza plástica.

Mas nosso assunto é Mozart. Prestem atenção ao primeiro movimento da Sinfonia Concertante, atentem ao momento em que violino e viola entram para fazer seu primeiro solo. Se você não sentir arrepios, a pandemia lhe afetou. Dificilmente haverá um mergulho vertiginoso que seja mais belo.

E num ano desses — antes de 2013 –, a Elena, seu ex e o Alexandre Constantino me deram de presente uma interpretação do Andante da Concertante na casa onde eu morava. Fiquei pasmo.

Este disco está no PQP Bach.

~ 9 ~

Tenho que colocar aqui meu querido Shostakovich. E uma audição da 10ª Sinfonia me deixou tão, digamos, fora de mim, que eu escrevi uma carta para a Rádio da Ufrgs pedindo que eles repetissem a Sinfonia no programa Atendendo o Ouvinte.

Fui atendido e fiquei deitado no sofá de casa tentando entender porque aquilo me contava uma história e qual seria exatamente ela. Pois eu sentia que algo de muito grave estava sendo contado.

Este monumento da arte contemporânea mistura música absoluta, intensidade trágica, humor, ódio mortal, tranquilidade bucólica e paródia. Tem, ademais, uma história bastante particular.

Que é, resumidamente, esta:

Em março de 1953, quando da morte de Stálin, Shostakovich estava proibido de estrear novas obras e a execução das já publicadas estava sob censura, necessitando autorizações especiais para serem apresentadas. Tais autorizações eram, normalmente, negadas. Foi o período em que Shostakovich dedicou-se à música de câmara e a maior prova disto é a distância de oito anos que separa a nona sinfonia desta décima. Esta sinfonia, provavelmente escrita durante o período de censura, além de seus méritos musicais indiscutíveis, é considerada uma vingança contra Stálin.

Primeiramente, ela parece inteiramente desligada de quaisquer dogmas estabelecidos pelo realismo socialista da época. Para afastar-se ainda mais, seu segundo movimento – um estranho no ninho, em completo contraste com o restante da obra – contém exatamente as ousadias sinfônicas que deixaram Shostakovich mal com o regime stalinista.

Não são poucos os comentaristas consideram ser este movimento uma descrição musical de Stálin: breve, absolutamente violento e brutal, enfurecido mesmo. Sua oposição ao restante da obra faz-nos pensar em alguma segunda intenção do compositor. Para completar o estranhamento, o movimento seguinte é pastoral e tranquilo, contendo o maior enigma musical do mestre: a orquestra para, dando espaço para a trompa executar o famoso tema baseado nas notas DSCH (ré, mi bemol, dó e si, em notação alemã) que é assinatura musical de Dmitri SCHostakovich, em grafia alemã.

Para identificá-la, ouça o tema executado a capela pela trompa. Ele é repetido quatro vezes. Ouvindo a sinfonia, chega-nos sempre a certeza de que Shostakovich está dizendo insistentemente: Stalin está morto, Shostakovich, não. O mais notável da décima é o tratamento magistral em torno de temas que se transfiguram constantemente.

Crianças, não ouçam o segundo movimento previamente irritados. Você e sua companhia poderão se machucar.

Ah, e quem eu ouvia? Ora, a Filarmônica de Leningrado sob Mravinsky, que foi o maestro que estreou a obra.

~ 10 ~

Esta é uma gravação que ouvi lá na virada do século e que, para mim, é a melhor desta obra-prima de Bach. Talvez seja a música que mais amo de todas. Sim, muita gente a gravou, os adversários são fortíssimos, mas nada se lhe compara ao que fez Pierre Hantaï. Confiram!

Eu nunca tive insônia. Talvez, em razão de alguma dor ou febre, não tenha dormido repousadamente apenas uns dez dias em minha vida. Não é exagero. Quando me deprimo, durmo mais ainda e acordar é ruim, péssimo. O sono é meu refúgio natural. Mas há pessoas que reclamam (muito) da insônia. Saul Bellow escreveu que ela o teria deixado culto, mas que preferiria ser inculto e ter dormido todas as noites — discordo do grande Bellow, acho que ele deveria ter ficado sempre acordado, escrevendo, vivendo e escrevendo para nós. Também poucos viram Marlene Dietrich adormecida. Kafka era outro, qualquer barulho impedia seu descanso, devia pensar no pai e passava suas noites acordado, amanhecendo daquele jeito após sonhos agitados… Groucho Marx, imaginem, era insone, assim como Alexandre Dumas e Mark Twain. Marilyn Monroe e Van Gogh também sofriam muito.

O Conde Keyserling sofria de insônia e desejava tornar suas noites mais agradáveis. Ele encomendou a Bach, Johann Sebastian Bach, algumas peças que o divertissem durante a noite. Como sempre, Bach fez seu melhor. Pensando que o Conde se apaziguaria com uma obra tranquila e de base harmônica invariável, escreveu uma longa peça formada de uma ária inicial, seguida de trinta variações e finalizada pela repetição da ária. ‘Quod erat demonstrandum’. A recuperação do Conde foi espantosa, tanto que ele chamava a obra de “minhas variações” e, depois de pagar o combinado a Bach, deu-lhe um presente adicional: um cálice de ouro contendo mais cem luíses, também de ouro. Era algo que só receberia um príncipe candidato à mão de uma filha encalhada.

O Conde tinha a seu serviço um menino de quinze anos chamado Johann Gottlieb Goldberg. Goldberg era o melhor aluno de Bach. Foi descrito como “um rapaz esquisito, melancólico e obstinado” que, ao tocar, “escolhia de propósito as peças mais difíceis”. Perfeito! Goldberg era enorme e suas mãos tinham grande abertura. O menino era uma lenda como intérprete e o esperto Conde logo o contratou para acompanhá-lo não somente em sua residência em Dresden como em suas viagens a São Petersburgo, Varsóvia e Postdam. (Esqueci de dizer que o Conde Keyserling era diplomata). Bach, sabendo o intérprete que teria, não facilitou em nada. As Variações Goldberg, apesar de nada agitadas, são, para gáudio do homenageado, dificílimas. Nelas, as dificuldades técnicas e a erudição estão curiosamente associadas ao lúdico, mas podemos inverter de várias formas a frase. Dará no mesmo.

O nome da obra — Variações Goldberg, BWV 988 — é estranho, pois pela primeira vez o homenageado não é quem encomendou a obra, mas seu primeiro intérprete.

Não posso distribuir cálices de ouro por aí, mas talvez devesse dar alguma coisa a Pierre Hantaï, o maior intérprete da obra.

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Hoje, uma importantíssima data na história recente da música: Revolver completa 50 anos

Hoje, uma importantíssima data na história recente da música: Revolver completa 50 anos
A capa de Revolver
A capa de Revolver

É uma escolha que pode variar. Meus discos preferidos dos Beatles são Rubber Soul, O Álbum Branco e Abbey Road, mas Revolver é, sem dúvida, o mais importante do ponto de vista da história do rock. Eu tinha 9 anos e lembro que minha irmã tinha comprado Rubber Soul e que pegara Revolver emprestado de uma amiga. Ambos eram objeto de culto absoluto em minha casa, na Av. João Pessoa, em Porto Alegre. Ignoro como não furaram, de tanto que ouvimos.

Revolver é um divisor de águas na história dos Beatles e do rock. A partir dele, o grupo deixou de se apresentar em público porque as canções não poderiam ser reproduzidas no palco, uma aparente necessidade da época. Era um álbum criado em um estúdio muito bem equipado, com recursos que poderiam ser buscados onde estivessem e o grupo — para nossa sorte — passou a ser escravo da casa de Abbey Road onde gravava, tanto que só fez mais uma apresentação pública até sua dissolução. As gravações envolveram fitas tocadas de trás para diante — como no solo de guitarra de Tomorrow never knows, arrancado de Taxman — orquestra, quarteto de cordas, o extraordinário trompista Alan Civil, etc. Para Revolver, os Beatles alteraram totalmente a forma de compor e George Martin foi atrás. Eu disse atrás, não na frente. Muito da inovação sonora e de estilo das músicas do álbum deve-se ao engenheiro de som Geoff Emerick. Foi dele a ideia de aproximar os microfones aos instrumentos e amplificadores, em especial, à bateria de Ringo, o que produziu um som mais pesado e impactante. A EMI detestou a novidade. A direção da gravadora se reuniu com os músicos, querendo vetar o novo estilo, mais agressivo, porém Paul, falando em nome do grupo, deu um ultimato aos executivos: “De agora em diante, esse é o nosso som. Ou será assim ou simplesmente não será”.

O ecletismo tornou-se uma marca do rock. Vejam o que foi feito depois de Revolver e o que tínhamos antes. O LP lançado na Inglaterra em 5 de agosto de 1966, abriu muitas portas. As letras abandonam o garoto-encontra-garota e falam de impostos, de vidas desperdiçadas, do vazio diário, do sono, da tristeza dos finais das relações e de um certo e altamente lisérgico submarino amarelo. Os arranjos ganharam inédita complexidade, mostrando quem era George Martin, um irreverente erudito.

Como se não bastasse, o álbum mostra a cara de cada um. George ganhou espaço. Colocou três composições suas das quatorze do disco. É sua a obra-prima chamada I want to tell you, canção sobre a frustração de querer dizer algo e não conseguir. Taxman é uma crítica aos impostos cobrados e Love you too traz pela primeira vez as cítaras para o rock. Ele estava cada vez mais envolvido com a cultura indiana e Ravi Shankar. E todos estavam mergulhados nas drogas.

Lennon torna-se o irônico que foi até a morte. Em Tomorrow never knows, exige que sua voz soe como a do dalai lama cantando na montanha, seja lá isso o que for. É uma viagem drogadíssima de três minutos. George Martin que se virasse. Em Tomorrow há as fitas tocadas de trás para diante, oboés dando risadas, uma bateria violentíssima — Ringo parecia alucinado — e uma letra sensacional. E o que dizer das deliciosas Dr. Robert e She said she said? A primeira era uma alusão ao fornecedor de drogas do grupo, ali chamado de doutor Robert. E diz:

Ring my friend, I said you call Doctor Robert
Day or night he’ll be there any time at all, Doctor Robert
Doctor Robert, you’re a new and better man
He helps you to understand
He does everything he can, Doctor Robert

(…)

Well, well, well, you’re feeling fine
Well, well, well, he’ll make you… Doctor Robert

Ainda de John, há I´m only sleeping, que fala sobre como John amava dormir e odiava ter seu sono interrompido. O arranjo é bastante onírico com a voz de John sendo sutilmente distorcida por um gravador em velocidade pouca coisa mais alta que a correta.

Mas as canções de Paul talvez sejam o ponto alto de Revolver. Eleanor Rigby é um clássico sobre a solidão. O arranjo para cordas de Martin é uma pérola irrepetível. “Onde estão os outros Beatles nesta música?”  — perguntava a criança que eu era na época. “Onde ficaram as guitarras de John e George?” For no one é, em minha opinião, uma das melhores canções já compostas. De repente, surge a trompa de Alan Civil para dar ornamento fundamental a uma melodia lindíssima. Há também a canção favorita de McCartney, Here there and everywhere, e a inacreditável soul music by Paul de Got to get you into my life que nos faz perguntar novamente onde diabo estão os Beatles, pois o acompanhamento é quase só de metais.

Yellow Submarine, escrita por Paul e cantada por Ringo, tem em sua letra um tema infantil que depois seria aproveitado para dar título a um desenho animado. Traz sons de bolhas, barulho de água e outros sons gravados em estúdio. A letra sugere mais drogas, não? “Vamos vivendo uma bela vida / Achamos para tudo uma saída / Céu azul, mar verde e belo / Em nosso submarino amarelo”.

Revolver foi uma viagem sem volta na estética do grupo. Ouçam outros discos de 66 e a maioria parecerá vir de um passado remoto se comparados com este LP.

Mas por que Revolver? As sugestões eram as seguintes: Many years from now, Magic circles, Beatles on safari, Four sides of the eternal triangle, Pendulum e After Geography, uma brincadeira de Ringo com Aftermath, álbum dos Rolling Stones. Mas Revolver venceu porque se referia tanto à arma quanto ao movimento de revolução de um disco de vinil no prato giratório de um toca-discos.

Se você nunca ouviu Revolver, sua vida não mudará em nada, mas ele foi uma pedra fundamental para o rock para chegar à época de ouro setentista. Sem este degrau, tudo seria menor.

Relação de canções de Revolver.

Taxman (Harrison) 2:39
Eleanor Rigby (McCartney) 2:07
I’m Only Sleeping (Lennon) 3:01
Love You To (Harrison) 3:01
Here, There and Everywhere (McCartney)2:25
Yellow Submarine (McCartney)2:40
She Said She Said (Lennon) 2:37
Good Day Sunshine (McCartney)2:09
And Your Bird Can Sing (Lennon) 2:01
For No One  (McCartney) 2:01
Doctor Robert (Lennon) 2:15
I Want to Tell You (Harrison) 2:29
Got to Get You into My Life (McCartney)2:30
Tomorrow Never Knows (Lennon) 2:57

A contracapa de Revolver, dos Beatles
A contracapa de Revolver, dos Beatles

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