Rubber Soul

Rubber Soul

Este é o melhor álbum dos Beatles? Não sei. Sei que é o que ouço com maior prazer. Há poucas alegrias maiores do que colocar o vinil de Rubber Soul no toca-discos e observar, na maior expectativa, o disco girar até ouvir os acordes iniciais de Drive My Car. É sempre uma pequena implosão de alegria. Faço isso há 50 anos com o mesmo vinil, ainda em perfeito estado.

Mais uma vez, é um álbum de turning point e, para mim, esses são quase sempre os melhores. A lente grande angular ‘olho de peixe’ da capa pressagia a psicodelia que se aproximava.

É esclarecedor que George Harrison, o guitarrista principal, tenha dito que Rubber Soul e Revolver eram um retrato de 1965/66. Isso foi na época em que os Beatles foram forçados a parar de fazer turnês devido à histeria incontrolável e ao caos dos fãs. Hesito em dizer isso, mas um problema para as equipes de limpeza daqueles shows era o de limpar a urina dos assentos, tal era a liberação frenética e descontrolada de emoção. Era 4 caras engraçados, carismáticos — quiçá bonitos — e musicalmente talentosos. O mundo inteiro estava fascinado. Naqueles dias, apenas visitar a América era um distintivo de honra para os britânicos e, quando os Beatles chegaram aos EUA, foi um vendaval de amor e loucura.

Rubber Soul é um álbum de 1965, uma continuação da trilha sonora de Help. Muitos críticos postulam que o álbum Help foi o álbum mais fraco dos Beatles. Eu concordo. E também concordo que ninguém estava preparado para a inventividade e musicalidade do Rubber Soul.

Grande parte da obra vem de Paul McCartney, o músico mais motivado e talentoso de todos. Mas ele não era o líder. A alma dos Beatles era John Lennon, seu contraponto perfeito — mas este é tanto um álbum de Lennon quanto de McCartney; provavelmente o último em que a musicalidade e inventividade melódica de Lennon realmente brilham.

Rubber Soul usa os gêneros musicais mais tradicionais no rock do que qualquer outro álbum. As pessoas apontam que os Beatles estavam imitando o som de guitarra que os Byrds deram a Mr. Tambourine Man de Dylan. Isso é verdade, mas, como sempre, os Beatles não apenas superaram a concorrência, eles a destruíram.

A abertura é Drive My Car. O solo de guitarra é fluido e fácil. George Harrison era um guitarrista de bom gosto que lutava para conseguir um lugar no grupo como compositor. Aqui, ele recebeu duas faixas do álbum… Só que tinha a (in)felicidade de ser o substituto da maior parceria de composição de todos os tempos. Para Rubber Soul, ele escreveu maravilhosa Think For Yourself. Harrison mais tarde comprovaria sua qualidade com Something, While My Guitar Gently Weeps, Here Comes The Sun, etc. e tem o álbum solo mais vendido após a dissolução dos Beatles, All Things Must Pass. No LP seguinte, ele escreveria Taxman com um extraordinário solo de guitarra, que abre Revolver.

Drive My Car é algo. Oasis, Blur e inúmeros outros artistas do britpop copiaram o modelo Taxman e Drive My Car. The Jam fez isso descaradamente em Start. Noel Gallagher foi ainda mais descarado em copiar motivos dos Beatles. Os Stone Roses foram uma das bandas musicalmente mais bem sucedidas e convincentes do final dos anos oitenta, e também fortemente influenciadas pelos Beatles. Eles pegaram essas ideias e as tornaram suas em seu debut. A canção é ótima e apenas compositores de vanguarda como Stockhausen, Cage e Boulez usaram loops de fita de trás para frente, mas George Martin e os Beatles os introduziram na música pop em Drive My Car. O solo de George em Tomorrow Never Knows do Revolver leva isso a um patamar ainda mais alto.

Depois vem Norwegian Wood e Nowhere Man, ambas de Lennon. Qualquer vocalista sabe como é difícil sustentar uma harmonia de três partes com dois outros ao longo de um minuto, quanto mais três. Mas Nowhere Man soa sem esforço. Norwegian Wood é lírica, inventiva e inesperada. Os Beatles estavam agora traduzindo suas aventuras e relacionamentos pessoais em experimentações iniciais de art-rock. Tipicamente Lennon. Suas letras começam a fazer monólogos.

Entre estas duas está um típico e bom McCartney. You Won´t See Me foi um merecido sucesso da época. Difícil não dançar ouvindo esta canção.

Think For Yourself é uma joia de Harrison com uma guitarra que faz, por todo o tempo, uma segunda melodia. Acho que se ouvirmos apenas a guitarra, a canção já será muito interessante. É um belo cartão apresentado por George a Paul e John. “George Harrison, compositor”.

The Word, de Paul, não chega a ser tudo aquilo, mas não compromete, só que é seguida pela obra-prima que é…

Michelle, também de Paul, vem da tradição da canção francesa. Era uma coisa absolutamente inédita, uma prova do esforço sem esforço de McCartney, pulando de gênero em gênero, bem como sua invenção melódica e harmônica.

What Goes On é um excelente rock escrito por Lennon, McCartney e, sim, Ringo Starr, que faz o vocal com grande competência. Todo mundo cantava bem nos Beatles. Era um assombro.

Girl é outro exemplo de harmonias de três partes. É uma bela melodia. Este álbum representa os períodos finais em que Lennon e McCartney escreveriam juntos. Na verdade, cerca de metade das músicas foram escritas por um ou outro por conta própria. No entanto, aqui, a fusão criativa cumulativa ainda brilha.

I’m Looking Through You é um golaço de Paul McCartney. Melodia grudenta de primeira linha.

In My Life é possivelmente uma das músicas mais tocantes e emocionantes dos Beatles de todas. É uma música de Lennon e você pode ouvi-la compartilhando abertamente seus sentimentos sobre um passado trágico. Sua mãe Julia sendo atropelada na frente de seus olhos, sua alma gêmea da escola de arte Stuart Sutcliffe morrendo aos vinte e poucos anos em Hamburgo, onde os Beatles aprimoraram seu ofício em bares decadentes de Reeperbahn.

Paul McCartney, como admitiu abertamente, teve muita sorte em muitos aspectos. Ele teve uma educação estável. Um pai músico e uma mãe amorosa, Mary, que morreu quando Paul tinha 14 anos, a Mother Mary de Let It Be.

John Lennon teve tudo menos uma adolescência fácil. Eu acredito que foi através de suas criações e circunstâncias radicalmente diferentes que eles se uniram.

Musicalmente, In My Life contém um solo de piano com ares barrocos e um acompanhamento de baixo solo executado com grande elegância. Grande parte disso se deve à sensibilidade clássica do produtor George Martin. Ele também traz isso à tona no acompanhamento do quarteto de cordas de Eleanor Rigby de Revolver.

Wait fica no nível de The Word.

If I Needed Someone é mais um pontapé de Harrison na porta de Lennon & McCartney. E que pontapé! Uma melodia longa e inventiva dentro de um arcabouço originalíssimo. As vozes do trio estão sensacionais nesta que é uma das melhores faixas do disco.

Run For Your Life é um rock sensacional de Lennon. Mas aqui temos problemas na letra machista que o próprio Lennon renegou depois. “Well, I’d rather see you dead, little girl / Than to be with another man” (“Bem, eu prefiro ver você morta, garota / a te ver com outro homem”). Isso é inaceitável há décadas, meu caros, mas em 1965 até passava. Que baita música!

Depois de Revolver, o público não conseguia entender o que havia acontecido com os Beatles. Por que a demora em lançar um novo disco? Por que mais de sete meses entre Revolver e Pepper? Hoje em dia, nomes como Coldplay são considerados prolíficos quando lançam um álbum a cada dois anos. Os Beatles se renovavam consistentemente a cada seis meses.

Este é o meu álbum favorito dos Beatles porque nunca uma banda compôs uma música tão atemporal de forma tão convincente. Nunca haverá outra banda para tocá-los. Nem no passado, nem no presente, nem no futuro. Centenas de anos depois, os ouvintes atestarão isso — disso não tenho dúvidas.

Se não tivesse cruzado com Mark Chapman, provavelmente John Lennon faria 80 anos hoje

Se não tivesse cruzado com Mark Chapman, provavelmente John Lennon faria 80 anos hoje

Hoje, John Lennon faria 80 anos.

Desnecessário explicar que John Winston Ono Lennon (Liverpool, 9 de outubro de 1940 – Nova Iorque, 8 de dezembro de 1980) foi cantor, compositor e que fundou, com outros rapazes de Liverpool, os Beatles, a banda de maior sucesso da história da música popular. Não preciso dizer que sua parceria com o  colega de banda Paul McCartney foi uma das mais célebres da história da música. Também todo mundo sabe que os outros beatles eram George Harrison e Ringo Starr. E é de conhecimento geral que ele seguiu carreira solo após a separação dos Beatles em abril de 1970.

Menos gente sabe que foi ele quem, em 1956, formou sua primeira banda, The Quarrymen, e que esta foi a origem da criação dos Beatles em 1960. Inicialmente ele era o líder de fato do grupo, porém depois passou a dividir o posto com McCartney. Lennon se caracterizou pela natureza rebelde e sagaz de sua música e letras.  No auge de sua fama, na década de 1960, ele publicou dois livros: In His Own Write e A Spaniard in the Works, ambos coletâneas de escritos meio sem sentido e desenhos rabiscados. Começando por All You Need Is Love e seguindo por várias outras como Imagine e Happy Xmas, suas canções foram adotadas como hinos pelo movimento pacifista e pela contracultura da época.

Após mudar-se para Nova Iorque em 1971, suas críticas frequentes e contundentes contra a Guerra do Vietnã resultou em uma longa tentativa do governo Richard Nixon de deportá-lo. Em 1975, Lennon se retirou da indústria musical para cuidar de seu segundo filho, Sean, e em 1980 retornou com o álbum Double Fantasy. Ele foi assassinado em frente à sua casa em Manhattan por Mark David Chapman, um fã dos Beatles, três semanas após o lançamento de seu último álbum.

Como intérprete, compositor ou colaborador, Lennon teve 25 canções na primeira posição da Billboard. Double Fantasy, seu álbum solo mais vendido, venceu o Grammy para Álbum do Ano logo após sua morte. Em 1982, o Brit Award de Contribuição Excepcional à Música foi dado a ele postumamente. Em 2002, Lennon foi eleito o oitavo maior britânico de todos os tempos pela British Broadcasting Corporation. A revista Rolling Stone o elegeu o quinto melhor cantor da história e o incluiu na lista dos cem maiores artistas de todos os tempos. Em 1987, ele foi introduzido no Songwriters Hall of Fame. Lennon ainda entrou no Rock and Roll Hall of Fame duas vezes: como membro dos Beatles em 1988 e como artista solo em 1994.

A célebre foto que Annie Leibovitz tirou de John Lennon e Yoko Ono para a Rolling Stone

Vamos começar pelo fim. Eram 23h do dia 8 de dezembro de 1980. John Lennon e sua mulher Yoko Ono voltavam para o apartamento do casal no luxuoso Edifício Dakota e isto era justamente uma das coisas que Mark Chapman não suportava. Afinal, Lennon cantara em Imagine um mundo sem posses e lá estava ele, entrando em sua casa, localizada num dos endereços mais valiosos de Nova Iorque. Era uma flagrante incoerência. Outra coisa que Chapman não podia admitir eram as muitas alusões religiosas de Lennon, nas entrevistas e nas canções.

Cristão, Chapman se irritara com a frase proferida por Lennon ainda na primeira fase dos Beatles: “Somos mais populares que Jesus Cristo”. Irritou-se ainda mais com o clássico Imagine, onde Lennon cantava que nem céu nem inferno existiam e com God, do primeiro disco pós-Beatles, onde Lennon dizia que “Deus é um conceito através do qual medimos nossa dor”. Não obstante a irreligiosidade, Lennon parecia muito feliz com sua Yoko e ainda era muito rico. Aquilo era demais para Chapman, uma pessoa que ouvia vozes e recebia ordens do além.

Uma das últimas fotos de John Lennon vivo, feita pelo fotógrafo amador Paul Goresh, exibe Lennon autografando o álbum Double Fantasy para seu futuro assassino. | Foto: Paul Goresh

Chapman tinha 25 anos e uma relação confusa com seu maior ídolo. Ao final da tarde daquele mesmo dia, ele, junto com outros fãs, encontrara-se com Lennon e pedira-lhe um autógrafo em seu último LP, Double Fantasy. Lennon autografara a capa do vinil. Às 23h, antes de efetuar cinco disparos contra o ex-beatle, ele gritara “Mr. Lennon!”. Errou o primeiro tiro, mas os outros quatro atingiram Lennon. Um deles acertou a aorta – artéria mais importante do corpo humano. John Lennon caiu e começou a perder rapidamente sangue. O porteiro do Dakota desarmou facilmente Chapman e perguntou: “Você sabe o que fez?”. A resposta foi tão simples quanto a pergunta: “Sim, eu atirei em John Lennon”. Então, o assassino de Lennon sentou-se na calçada e esperou pela polícia.

O corpo foi cremado dois dias depois. A viúva Yoko Ono nunca fez um funeral. Mark Chapman foi condenado à prisão perpétua, com possibilidade de liberdade condicional após 20 anos, isto é no ano 2000. Porém, o benefício foi-lhe negado sete vezes – uma vez a cada dois anos, desde 2000. Em todas as oportunidades, Yoko interpôs-se alegando que sua vida, a de seus filhos e até a de Chapman correriam riscos.

John com sua mãe Julia: aulas com uma péssima tocadora de banjo

Naquela calçada de Nova Iorque, acabava a carreira de um dos músicos mais importantes do século XX e tornava impossível o sonho de muitos fãs dos Beatles: o de um retorno da banda.

Como dissemos acima, John Winston Lennon nasceu em 9 de outubro de 1940. O nome John foi uma homenagem ao avô paterno e o Winston era devido ao ex-primeiro ministro inglês Churchill. Seu pai era um certo Alfred Lennon, que trabalhava na marinha mercante durante a Segunda Guerra Mundial e mandava dinheiro para sua mãe Julia e para o pequeno John, que viviam em Liverpool. O dinheiro deixou de vir quando Alf desertou. John foi criado mais pela rigorosa tia Mimi do que por Julia. Esta desafiava as convenções de que sua irmã Mimi era escrava. Adorava uma plateia e encontrou em John e seus amigos um excelente público. Ela cantava e tocava banjo. Porém, havia o outro lado. Tia Mimi condenava a postura de adolescente rebelde de John e, talvez para afrontá-la, Julia deu a seu menino o primeiro violão, ensinando-lhe os poucos acordes que aprendera para o banjo. Julia morreu subitamente. Foi atropelada por um carro em 1958 e não resistiu.

Um violão? Tudo bem, mas você jamais ganhará a vida com ele.
Tia Mimi

Em 1956, aos 16 anos, John Lennon, armado de seu novo instrumento, recrutava colegas de turma para formar os Quarrymen, que seria o início de sua carreira musical. Em 1957, Paul McCartney viu os Quarrymen em ação, mostrou suas habilidades ao líder John e entrou para banda. Em fevereiro de 1958, ocorreu o mesmo com George Harrison. Estava formado núcleo principal daquilo que seriam os Beatles. Dois anos depois, a banda trocou de nome 5 vezes, até chegar a The Beetles (os besouros) em homenagem a The Crickets (os grilos), banda de Buddy Holly. The Beetles mudou para Beatles porque, assim, o nome derivaria tanto de besouros quanto de beat (batida, ritmo).

A primeira foto de Lennon e McCartney: se Paul compõe, melhor fazer o mesmo

Paul McCartney compunha canções. Então John, para não ficar em segundo plano – logo ele, o fundador da banda – , começou a fazer o mesmo. Na verdade, os mais famosos parceiros de todos os tempos – a dupla Lennon & McCartney – , não costumavam reunir-se para trabalharem juntos. As canções eram escritas por um e depois o outro dava seus pitacos. Há uma regra quase infalível para se descobrir de quem é cada música: basta ouvir quem canta. Se Lennon cantar, é dele; o mesmo valendo para Paul McCartney. Este teste serve para demonstrar o quanto eram diferentes. E bons, muito bons.

Uma das poucas canções que tem melodias de ambos é A day in the life, onde a primeira parte é de Lennon e a segunda, mais rápida, de McCartney. Grosso modo, as canções de Lennon são mais rock ´n´ roll e têm letras mais elaboradas, muitas vezes ácidas. Já Paul é um inventor imbatível de melodias. John escreveu, por exemplo, Help, I’m a loser, You’ve got to hide your love away, Nowhere man e Norwegian Wood na primeira fase do grupo. Durante a segunda fase dos Beatles, John mostrou-se também um grande letrista em Lucy in the sky with diamonds, I am the walrus, Revolution, Julia, Happiness is a warm gun, All you need is love, Strawberry Fields Forever, A day in the life e Across the Universe, entre outras.

O fim dos Beatles foi causado pelas diferenças entre Paul e John, apesar de grande parte dos fãs da época preferirem acusar Yoko e Linda, mulher de McCartney, como as causadoras da separação. Os dois casais pareciam caminhar em paralelo, mas acabaram colidindo. Em março de 1969, Paul e Linda se casaram. Oito dias depois, foi a vez de John e Yoko fazerem o mesmo em Gibraltar. Mas o estilo de Lennon era outro. Em vez dos sorrisos e da privacidade escolhidas pelo casal McCartney, John e Yoko foram para o Amsterdam Hilton a fim de protagonizarem um grande happening de protesto. A polícia holandesa se assustou, mas o protesto era bastante pacífico. Eles anunciaram que deixariam o cabelo crescer e que passariam uma semana sobre a cama, “pela paz, contra a violência e o sofrimento do mundo”. Tudo está explicado na canção The ballad of John and Yoko e em  Give peace a chance. (Esta canção, de 1969, marcou o começo de um processo que culminou, em 1972, com a tentativa do presidente norte-americano Richard Nixon de deportá-lo dos Estados Unidos.)  Mas, além das diferentes bodas, havia uma questão financeira.

John queria que os negócios do grupo fossem dirigidos por Allen Klein, um hábil contador norte-americano que já tinha organizado e deixado ainda mais multimilionários os Rolling Stones — retirando dinheiro das gravadoras a fim de depositá-lo na conta de seus clientes. Em contrapartida, Paul desejava que o gerente fosse Lee Eastman, seu sogro, um conhecedor de questões internacionais sobre direitos autorais. Foi uma batalha que acabou com Paul McCartney deixando os Beatles em 1970, o que provocou o fim da banda.

Após o final dos Beatles, John Lennon seguiu gravando excelentes álbuns, como o primeiro, John Lennon and the Plastic Ono Band, e o segundo, Imagine, onde podemos encontrar Working Class Hero, Mother e God, no primeiro, e Jealous Guy e Imagine, no segundo. No último álbum, Double Fantasy, gravado com músicas suas e de Yoko após cinco anos de reclusão, ainda havia uma grande canção, Watching the Wheels.  Neste disco, em (Just Like) Starting Over, John faz referências à sua volta. Esta canção e Woman atingiram o primeiro lugar nas paradas de sucesso norte-americanas e inglesas, impulsionadas pelo tiro desferido por Mark Chapman. Após ter carregado por toda a vida a mágoa de ter convivido muito pouco com a mãe, John deixou sua carreira paralisada por cinco anos a fim de ver seu filho Sean crescer. Porém, de forma simétrica, Sean não teve melhor sorte: tinha cinco anos quando o pai foi assassinado.

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— Qual o seu nome?
— Joleno.
— Putz, de onde a tua mãe tirou esse nome?
— Dos Bitus.

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John Lennon traduziu angústias masculinas que dizem tanto ao século XXI

Do Pragmatismo Político

John Lennon não foi o melhor músico e — alguns vão objetar, mas subjetividades são sempre subjetividades — tampouco o mais bonito dos Beatles. Talvez até fosse o mais inteligente, o mais experimental, embora os fãs de Paul, de George e mesmo de Ringo sempre tenham lá seus argumentos.

O que não dá para negar é que, nesta sexta-feira do seu aniversário de 80 anos de idade, Lennon sobrevive na memória coletiva como o melhor espelho para o homem desconstruído de 2020 — aquele que foi levado a reavaliar preconceitos, traumas, questões de poder, religião e a própria masculinidade. Com uma vantagem: dessa inquietação, o inglês fez canções que são patrimônio da humanidade.

“E afinal, o que é rock’n’roll? Os óculos do John ou o olhar do Paul?” A troça, feita por Humberto Gessinger e seus Engenheiros do Hawaii na canção “O papa é pop”, põe na mesa a eterna rivalidade, camuflada no interior da parceria Lennon-McCartney, que serve de combustível até hoje para intermináveis conversas de bar (ou melhor, de Zoom, dados os tempos pandêmicos).

John era o beatle sarcástico, cerebral, revoltado, que não se esquivava das polêmicas — um irresponsável capaz de dizer que os Beatles eram mais populares que Jesus Cristo. E Paul, o compositor do sentimento aflorado, que fazia as grandes canções de amor dos Beatles e que entendia como ninguém os anseios do seu público.

No entanto, nos 50 anos passados desde o fim dos Beatles, o público mudou, bem como as sensibilidades. As grandes canções de amor, é verdade, resistem, assim como Paul, que antes da pandemia continuava bem ativo nos maiores palcos do mundo. Mas o “zeitgeist” nervoso do pop de 2020 tem muito mais a ver com John, um artista que não se acanhou em transformar a terapia em arte, abrindo a alma diante do que a vida trazia para ele, fossem separações, crenças, mágoas, posições políticas, o mal-estar com si mesmo ou o pesadelo após o fim da lua-de-mel com as drogas.

“A única razão pela qual faço música e sou uma estrela é que aqui posso dar vazão às minhas repressões”, disse certa vez.

Sexo, raiva e ativismo

Ainda com os Beatles, Lennon pediu socorro ante o turbilhão de fama que o engolira (“Help!”) e falou de depressão (“You’ve got to hide your love away”), de infidelidade (“Norwegian wood (this bird has flown)”) e do incontrolável desejo sexual (“I want you (she’s so heavy)”). Em carreira solo, expôs sua raiva em relação a McCartney (“How do you sleep?”), mandou o povo ocupar as ruas (“Power to the people”) e, inspirado pela teoria do grito primal do psiquiatra Arthur Janov, exorcizou a perda da mãe, quando criança, em “Mother” — a intensa faixa de abertura de seu primeiro álbum pós-Beatles.

Aos poucos, Lennon repensou sua atitude abusiva de homem inglês de sua época (“Eu costumava ser cruel com minha mulher, e fisicamente — com qualquer mulher”, admitiu) e, a partir do romance com Yoko Ono, o feminino passou a ter centralidade em sua obra. Ele não apenas defendeu Yoko diante dos outros beatles e dividiu discos com ela, mas de forma absolutamente franca falou de seus erros nessa relação (em “Jealous guy”) e na que teve com a ex-mulher, Cynthia.

Depois de um tempo conturbado de separação de Yoko e muita farra (o “lost weekend”), em 1975 John tomou a decisão de interromper a carreira para, junto da mulher, cuidar do filho Sean — o que não conseguira fazer com Julian, filho que teve com Cynthia no começo do sucesso dos Beatles. E, pouco antes de ser assassinado na porta de casa, em 8 de dezembro de 1980, deixou a canção “Woman”, para Yoko.

Quando propunha um mundo sem religiões, em “Imagine”, John Lennon já considerava Deus “um conceito pelo qual medimos a nossa dor” (na letra da canção “God”). Era a expressão madura de um artista que, anos antes, quando os Beatles foram à Índia, ousara questionar o guru Maharishi Yogi e que conseguiu transformar indagações sobre a existência em um hit de rádio (“Whatever gets you thru the night”, em 1974). Com a postura que tem muito a ver com o niilismo dos tempos atuais, Lennon já dizia nos 70: “Não consigo te acordar, você pode se acordar. Não posso te curar, você pode se curar”

Um dos poucos artistas do rock de sua época cujo ativismo político foi consistente — do bed-in com Yoko (contra a Guerra do Vietnã) e o apoio aos Panteras Negras às críticas sociais de “Working class hero” —, Lennon pagou o preço. Se hoje as pessoas reclamam da vigilância eletrônica sobre suas opiniões, há que se lembrar que, nos anos 70, o beatle duramente foi investigado pelo FBI por suas posições antimilitaristas e esquerdistas. E esteve, durante anos, sob a ameaça de ser deportado dos EUA — como tantos imigrantes por lá hoje.

Pode-se tentar imaginar o que John Lennon estaria fazendo e pensando aos 80 anos. Talvez admirasse os jovens progressistas de 2020, talvez apreciasse as redes sociais — ou tivesse muitas críticas a tudo. Mas pode ser ainda que repetisse o conselho do Lennon fictício, velhinho e anônimo, do filme “Yesterday” (2019), passado numa realidade paralela em que ele e Paul nem chegaram a montar os Beatles: “Diga a verdade a todo mundo que você conhece.”