Ospa, Romeu e Julieta e a maravilhosa água do Báltico

Ospa, Romeu e Julieta e a maravilhosa água do Báltico
Renato Bal
Renato Bandel recebe os aplausos do público e do maestro Kiyotaka Teraoka | Foto: Carlos Latuff

Há talento de sobra em torno do Mar Báltico. Deve haver alguma coisa na água que corre dos rios da Polônia, Finlândia, Letônia, Lituânia e Estônia — estes três últimos chamados de Países Bálticos — para o mar, que faz com que nasçam compositores extraordinários na região. Quem contar a história da música erudita do século XX terá que passar por ali. Mais ainda se a história for dedicada ao final do século e ao início do nosso. Não consultei os anos de nascimento de cada um deles, mas quem pode ostentar um time com Witold Lutosławski, Karol Szymanowski, Krzysztof Penderecki, Henryk Górecki, Wojciech Kilar e Bogusław Schaeffer como a Polônia? E, se quiserem mulheres, o país ainda tem a excepcional Grażyna Bacewicz. Claro que o motivo do surgimento de tantos compositores é educacional e cultural, mas não deixa de ser curioso.

Sem citar compositores menores, a Finlândia, país que investe muito em música desde os tempos de Sibelius, hoje tem Kaija Saariaho — outra mulher — e Einojuhani Rautavaara. E a pequena Estônia ataca com o conhecido Arvo Pärt e Helena Tulve. Céus! Mas tergivesamos…

Krzysztof Penderecki (1933) foi um compositor pra lá de vanguardista nos anos 60 e 70 mas depois baixou a guarda, passando a obras de estética mais conservadora, retornando eventualmente ao sistema tonal. Sua música passou a caber no escaninho do classicismo pós-moderno. Ele é um dos poucos compositores vivos que tem plateias no mundo todo.

Longe da complexidade de sua famosa Paixão Segundo São Lucas (1967), o Concerto para Viola e Orquestra tem história ligada à América Latina. O concerto foi encomendado em 1983 pelo governo da Venezuela para marcar o bicentenário do nascimento de Simon Bolívar. Sua primeira performance foi em Caracas, no dia 24 de julho de 1983. Olha, é música de primeira linha. A obra tem pouco em comum com a monumentalidade e as texturas espessas de seus concertos anteriores. Ele fica mais próximo da música de câmara, porém preserva o caráter de um trabalho para virtuose. É muito contrastante (Lento – Vivo – Lento – Vivo) e tem duas belíssimas cadenze precedendo dois scherzi. Mas não é uma obra feliz, é antes pesada, contrapontística e reflexiva.

É óbvio que ela, como ponto alto do programa, deveria ser a última obra da noite. As opiniões dos músicos e estudantes de música na saída do concerto estavam de acordo comigo. O caráter das obras OBRIGAVA a quebra da tradição, colocando-se o concerto para viola no final da função. O violista Renato Bandel foi simplesmente fantástico. Tocou muito no ensaio de segunda-feira e só melhorou no concerto. A sonoridade quente da viola envolveu o velho teatro da tia Eva. Talvez tenha sido o melhor momento da Ospa em 2014. Há que explorar novos repertórios e territórios, gente!

Teraoka avisa que vai começar o Prokofiev | Foto: Milton Ribeiro
Teraoka avisa que vai começar o Prokofiev | Foto: Milton Ribeiro

O mesmo não diria da Suíte Nº 2 de Romeu e Julieta, retirada do balé de Prokofiev. Dado o tema, a música só pode ser romântica e trágica, mas soou meio boboca após a paulada de Penderecki. Só que nenhum Prokofiev é boboca. A orquestra também não rendeu o esperado, com erros aqui e ali, pois trata-se de uma obra falsamente fácil, cheia de repetições e denunciadora de problemas. O público amou, aplaudiu de pé, mas eu devo ser um chato: achei a coisa meia-boca.

No balanço geral, foi um excelente concerto, por Penderecki e porque deu muito assunto. E assunto é fundamental para quem vai assistir qualquer espetáculo.

Ah, Teraoka, volte sempre! Tu também, Bandel!

Ah, se a tia Eva vê isso!
Detalhe do público de ontem antes do concerto. Ah, se a tia Eva vê esses dois pezinhos… (Logo depois, os pés foram recolhidos, com a dona deles escolhendo Penderecki) | Foto: Augusto Maurer

O programa de ontem no Theatro São Pedro:

Krzysztof Penderecki: Concerto para viola e orquestra
Sergei Prokofiev: Romeu e Julieta – Suíte n° 2

Regente: Kiyotaka Teraoka
Solista: Renato Bandel

Ospa em noite de programa perfeito

Ospa em noite de programa perfeito

A Ospa acertou no ângulo. Há problemas com os locais de ensaio e de apresentações? A programação de 2013 teve que ser toda alterada, sofrendo uma espécie de downsizing? A construção da Sala Sinfônica está atrasada? Sim, sem dúvida, mas nada disso atrapalhou a criatividade de quem programou a gloriosa função de ontem à noite, toda feita de obras de primeira linha. Confiram na lista abaixo.

Ricardo Castro – Samba nº II para Orquestra
Sergei Prokofiev – Concerto para piano nº 3
Wolfgang Amadeus Mozart – Sinfonia nº 36

Regente: Roberto Tibiriçá
Solista: Alexandre Dossin (piano)

Ricardo Castro (1981) foi um dos vencedores do Concurso Ospa para Jovens Compositores. Eu me preparei para encará-la com certa indulgência por tratar-se, afinal, de um jovem compositor. Mas era desnecessário. O Samba Nº II é bom demais, é música muito bem escrita e pensada. São vários temas — alguns de aparência vetusta — que vão discutindo, argumentando e adequando-se um ao outro até se engalfinharem num samba rasgado. O parentesco com Villa-Lobos é bastante claro, mas a visitação a um de nossos ritmos mais importantes — também o caso dos Choros de Villa — também é uma questão de inteligência histórica, pois a maioria dos compositores do passado, começando lá na Idade Média, fizeram constantes visitas à música popular. Afinal, como se fizeram Bartók e Stravinsky, para não ir mais longe?

Dos cinco concertos para piano escritos por Prokofiev, o terceiro é o meu preferido. Na verdade, é uma das obras de minha preferência absoluta. Muito contrastante — com passagens líricas e dissonâncias espirituosas, principalmente em seu movimento central –, irradia grande vitalidade. Uma verdadeira proeza de Prokofiev, que ainda mantém notável equilíbrio entre o solista e orquestra. Ao contrário dos concertos para piano criados por muitos de seus antepassados ​​românticos, a orquestra não está lá para apenas dar brilho ao piano, mas para desempenhar papel ativo.

O pianista Dossin: show de bola
O pianista Dossin: show de bola

Alexandre Dossin foi um solista extraordinário. Demonstrou claramente que seus anos russos (ou seriam soviéticos?) não foram em vão. Tenho a lamentar apenas certo empastelamento causado pela acústica da Reitoria da Ufrgs. O toque sutil de Dossin, quando vinham junto com o som da orquestra, muitas vezes perdia-se nos enganadores meandros do auditório e, com efeito, nem sei se no final do primeiro movimento havia mesmo alguém(ns) muito errado na orquestra ou se estava sendo iludido por não ouvir bem o piano nos forti, tutti, essas coisas. O fato mais importante é que a Ospa enfrentou uma obra complicada, saindo-se muito bem. Ah, Dossin deu três bis. O melhor foi um Tchaikovsky que quase me destruiu. Depois, a coisa ficaria bem mais simples e eufórica, apesar de igualmente trabalhosa.

Linz

No dia 3 de Novembro de 1783, Wolfgang Amadeus Mozart terminou a composição da Sinfonia Linz, que seria estreada logo no dia seguinte. A sinfonia é uma pequena joia composta em apenas 3 dias. Sem um tema grudento ou excepcionalmente melodioso, é genial e atlética. Sua história é curiosa: Mozart estivera com a esposa Constanze por alguns meses em Salzburgo. Em seu retorno a Viena, passou por Linz, onde ficaram hospedados na casa do Conde Thun-Hohenstein. Comovido com a hospitalidade do mesmo, Mozart retribuiu a gentileza, aceitando apresentar uma nova obra. Como não levava nenhuma sinfonia no coldre, resolveu criar uma novinha em folha para o concerto, que iria se realizar quatro dias depois. Desta forma, a estreia da Sinfonia Nº 36, de Mozart, teve lugar em Linz. Adivinhem qual foi o apelido que ela ganhou? Acertou quem respondeu Linz!

Trata-se de uma sinfonia feliz e gentil, o que permitiu ao maestro Roberto Tibiriçá brincar bastante com os músicos, principalmente com os primeiros violinos, os condutores da obra em âmbito sonoro. Ele pulava, dançava, sorria, agachava-se e torcia-se todo. Loucura? De modo algum. Estava apenas retirando com empolgação o melhor da orquestra — o que fez por todo o concerto — , além de encarnar o espírito de uma sinfonia feliz que deixou todo sorridente à saída do concerto.

Estávamos tão felizes que, ao final do concerto, cantei para o violoncelista Philip Gastal Mayer, mais conhecido como Phil:

Phil maravilhááááá, nós gostamos de você!
Tiú, tiú, tiú, tiú, tiú, tiuru, tiú
Phil maravilhááááá, faz mais um pra gente vê!
Tiú, tiú, tiú, tiú, tiú, tiuru, tiú

Acho que ele riu só para ser simpático.

E bem, diante da ausência do fotógrafo oficial deste blog, Augusto Maurer, utilizaremos dois registros vindos da assessoria de imprensa da Ospa:

Foto: Giovanna Pozzer
Foto: Giovanna Pozzer
Foto: Giovanna Pozzer
Foto: Giovanna Pozzer

Eu não entendo a OSPA

(Anotações para minha agenda)

Fiquei estarrecido ao ler atentamente a programação da OSPA até o mês de setembro. Nenhum Mahler, nenhum Shostakovich, nada de Bartók, só para dar alguns exemplos, poucos autores estreantes e brasileiros e raros programas com obras realmente diferentes. Ignoro quem faz a programação, mas sei que é alguém muito conservador, quem sabe um chato.

Os programas dos quais gostei são quatro. No dia 29 de abril, um domingo, às 11h, há um Concerto para Juventude que achei interessante:

Elgar: Concerto para Cello, Op. 85
Ney Rosauro: Concerto para vibrafone e orquestra
Rimsky-Korsakov: A Grande Páscoa Russa

Ouço bastante as coisas do Rosauro e tenho uma estranha tara pela Grande Páscoa Russa. Depois, lá em 5 de junho, às 20h30, há a Missa Solene de Beethoven. O único problema é que será lá na Igreja da Ressurreição, onde os fiéis, em seu desespero pela salvação, aceitam sentar em cruéis bancos de madeira. Como meu Para encarar, almofada é o mínimo.

Ludwig van Beethoven: Missa Solene, Op. 123 em Ré Maior

Uma semana depois (12/6), voltamos ao Auditório da Reitoria da UFRGS para um bom programa:

Aaron Copland: El Salon Mexico
Richard Strauss: Quatro Últimas Canções (Vier Letzte Lieder) <—
Sergei Prokofiev: Sinfonia nº 1 (Clássica), Op. 25
Igor Gandarias (Guatemala): Desde la Infancia
César Guerra-Peixe: Museu da Inconfidencia

E, no fim do mês, no dia 26/6, novamente na UFRGS, mais um dos bons:

Maurice Ravel: Alborada Del Gracioso
Jaques Ibert: Concerto para Flauta
Claude Debussy: Prelude a L´après Midi dun Faune
Claude Debussy: La Mer

Em 3 de julho, há outro quase só francês e bem legal

Maurice Ravel: Tzigane – Rapsódia para Violino e Orquestra
Camile Saint-Saëns: Introduction et Rondeau Capriccioso, Op. 28
Mussorgski (Ravel): Quadros de uma Exposição

Depois, até setembro, nada me seduziu. Há uma verdadeira epidemia de Tchaikovskis e Rachmaninoffs, compositor que parece estar recebendo uma bisonha homenagem este ano. Mas não é seu centenário nem nada. Já imaginaram se fosse?

P.S.– Vitor Necchi entra em campo para dizer que há um Mahler (a Sinfonia Nº 7) em novembro. Erro nosso.