Ontem, uma grande noite da Ospa no Salão de Atos da Ufrgs

Ontem, uma grande noite da Ospa no Salão de Atos da Ufrgs

Eu antecipara no Facebook que o Concerto da Ospa de ontem à noite tinha tudo para ser o melhor de 2016. E foi. Repertório bom (e difícil), solista espetacular, maestrina de alta musicalidade e comando, e uma orquestra tocando bem acima de sua própria média garantiram uma bela função no Salão de Atos da Ufrgs.

O repertório era formado por apenas duas peças: o Concerto para Viola de Béla Bártók e a Sinfonia Nº 2 de Camargo Guarnieri.

O Concerto para Viola de Bartók tem uma história triste e bonita. Em 1945, o compositor húngaro — um ateu socialista que anos antes declarara, em seu país natal, que gostaria de converter-se ao judaísmo para ser também perseguido pelos nazistas — estava morrendo de leucemia no exílio norte-americano. Sem dinheiro, passava dificuldades e aceitava trabalhos de composição para viver e deixar algo para sua esposa.

E as encomendas pingavam, poucas e importantes. Algumas das maiores figuras da música dos EUA fizeram-lhe encomendas: Benny Goodman, Yehudi Menuhin — que recebeu uma Sonata que é uma obra-prima — e William Primrose, violista, que pediu um concerto.

A violista russa Anna Serova | Foto: Ugo Zamborlini
A violista russa Anna Serova | Foto: Ugo Zamborlini

É notável como o Concerto para Viola tem a cara de Primrose. É a música mais norte-americana de Bartók, mas recebeu igualmente toques escoceses em razão das origens familiares do violista. O primeiro movimento, Allegro non troppo, é tomado por solos de viola, um mais belo que o outro. Antes de morrer, Bartók sofrera uma transformação. Amenizou um pouco seu estilo e aparou algumas arestas, enquanto a doença o vencia. O movimento lento, Adagio religioso, é uma emocionada despedida da vida. A compreensão da solista Anna Serova e da maestrina Valentina Peleggi a respeito daquilo que transmitiam era completa. Foi uma interpretação rarefeita, a música levitava linda, verdadeiramente expressando o desejo de que houvesse um outro plano ou continuidade, algo em que Bartók não acreditava. (O ateu Bartók tem também um Andante religioso no Concerto Nº 3 para Piano e Orquestra, composto quase na mesma época a fim de ser deixado para sua esposa atuar como solista e ganhar sua vida).

O último movimento é agitado e feliz, e a passagem do Adagio para ele foi especialmente trabalhada por Peleggi no ensaio de segunda-feira, assistido por mim. É aqui que aparece o tema escocês com que Bartók homenageia Primrose. Olha, é difícil caracterizar o nível de alta cultura musical envolvida no trabalho da russa Serova sob a direção de Peleggi. O resultado foi esplêndido. Aquilo que se interpretou ontem foi efetivamente o Bartók maduro de seus poucos anos nos EUA, não foi outra coisa.

A Sinfonia de Camargo Guarnieri também veio com uma demonstração de sensibilidade da maestrina. Desrespeitando o “protocolo”, ela pegou o microfone e explicou o que seria tocado através de exemplos retirados da Sinfonia e tocados pela orquestra. Foi oportuno e adequado. A italiana Peleggi trabalha na Osesp como assistente de maestro e sabe que os brasileiros conhecem pouco seus compositores. Então, tratou de contextualizar a música de Guarnieri. Na saída do concerto, a plateia elogiava a atitude de Peleggi ao falar sobre o objeto de seu trabalho.

A maestrina Valentina Peleggi | Foto: Augusto Maurer
A maestrina Valentina Peleggi durante um ensaio em 2015 | Foto: Augusto Maurer

Vamos a mais alguns detalhes: Guarnieri escreveu a Sinfonia Nº 2 em 1945. Em 1947, enviou-a para um Concurso Internacional realizado em Detroit, destinado a escolher uma “Sinfonia das Américas”. Tirou o segundo lugar entre as oitocentas obras inscritas. Villa-Lobos e Oscar Lorenzo Fernandes também enviaram trabalhos. Com 5.000 dólares a mais no bolso e crescente reconhecimento internacional, Guarnieri regeu a estreia da obra em 1950, em São Paulo, com a Orquestra Sinfônica Municipal.

Sofisticada e aparentemente mais difícil do que o Concerto de Bartók, a Sinfonia Nº 2 tem um primeiro movimento na forma de sonata, o segundo é contemplativo e praticamente monotemático e o terceiro é uma espécie de dança que é “uma loucura”, como disse simpaticamente Peleggi. Destaque para o trabalho da orquestra e para os belos solos de Paulo Calloni (corne-inglês), Flávio Moraes (fagote) e Wenceslau Moreyra, o Celau (violoncelo).

Foi uma grande noite, merecedora de um jantar com muita alegria e risadas. Uma observação final: nos últimos anos, a Ospa foi regida três vezes por mulheres. Em pouco tempo, tenho certeza que será absolutamente indiferente se o comando for masculino ou feminino. O que será importante será a concepção e o gesto. Da primeira vez, ouviram-se piadas machistas e o concerto não foi muito bom; da segunda, houve menos, o resultado de palco foi excelente; ontem, a aceitação era quase geral, com os narizes torcidos definitivamente vergados pela competência. Gente, esqueçam o patriarcado. Logo logo, ele estará enterrado e será muito brega e antinatural.

Ospa, Romeu e Julieta e a maravilhosa água do Báltico

Ospa, Romeu e Julieta e a maravilhosa água do Báltico
Renato Bal
Renato Bandel recebe os aplausos do público e do maestro Kiyotaka Teraoka | Foto: Carlos Latuff

Há talento de sobra em torno do Mar Báltico. Deve haver alguma coisa na água que corre dos rios da Polônia, Finlândia, Letônia, Lituânia e Estônia — estes três últimos chamados de Países Bálticos — para o mar, que faz com que nasçam compositores extraordinários na região. Quem contar a história da música erudita do século XX terá que passar por ali. Mais ainda se a história for dedicada ao final do século e ao início do nosso. Não consultei os anos de nascimento de cada um deles, mas quem pode ostentar um time com Witold Lutosławski, Karol Szymanowski, Krzysztof Penderecki, Henryk Górecki, Wojciech Kilar e Bogusław Schaeffer como a Polônia? E, se quiserem mulheres, o país ainda tem a excepcional Grażyna Bacewicz. Claro que o motivo do surgimento de tantos compositores é educacional e cultural, mas não deixa de ser curioso.

Sem citar compositores menores, a Finlândia, país que investe muito em música desde os tempos de Sibelius, hoje tem Kaija Saariaho — outra mulher — e Einojuhani Rautavaara. E a pequena Estônia ataca com o conhecido Arvo Pärt e Helena Tulve. Céus! Mas tergivesamos…

Krzysztof Penderecki (1933) foi um compositor pra lá de vanguardista nos anos 60 e 70 mas depois baixou a guarda, passando a obras de estética mais conservadora, retornando eventualmente ao sistema tonal. Sua música passou a caber no escaninho do classicismo pós-moderno. Ele é um dos poucos compositores vivos que tem plateias no mundo todo.

Longe da complexidade de sua famosa Paixão Segundo São Lucas (1967), o Concerto para Viola e Orquestra tem história ligada à América Latina. O concerto foi encomendado em 1983 pelo governo da Venezuela para marcar o bicentenário do nascimento de Simon Bolívar. Sua primeira performance foi em Caracas, no dia 24 de julho de 1983. Olha, é música de primeira linha. A obra tem pouco em comum com a monumentalidade e as texturas espessas de seus concertos anteriores. Ele fica mais próximo da música de câmara, porém preserva o caráter de um trabalho para virtuose. É muito contrastante (Lento – Vivo – Lento – Vivo) e tem duas belíssimas cadenze precedendo dois scherzi. Mas não é uma obra feliz, é antes pesada, contrapontística e reflexiva.

É óbvio que ela, como ponto alto do programa, deveria ser a última obra da noite. As opiniões dos músicos e estudantes de música na saída do concerto estavam de acordo comigo. O caráter das obras OBRIGAVA a quebra da tradição, colocando-se o concerto para viola no final da função. O violista Renato Bandel foi simplesmente fantástico. Tocou muito no ensaio de segunda-feira e só melhorou no concerto. A sonoridade quente da viola envolveu o velho teatro da tia Eva. Talvez tenha sido o melhor momento da Ospa em 2014. Há que explorar novos repertórios e territórios, gente!

Teraoka avisa que vai começar o Prokofiev | Foto: Milton Ribeiro
Teraoka avisa que vai começar o Prokofiev | Foto: Milton Ribeiro

O mesmo não diria da Suíte Nº 2 de Romeu e Julieta, retirada do balé de Prokofiev. Dado o tema, a música só pode ser romântica e trágica, mas soou meio boboca após a paulada de Penderecki. Só que nenhum Prokofiev é boboca. A orquestra também não rendeu o esperado, com erros aqui e ali, pois trata-se de uma obra falsamente fácil, cheia de repetições e denunciadora de problemas. O público amou, aplaudiu de pé, mas eu devo ser um chato: achei a coisa meia-boca.

No balanço geral, foi um excelente concerto, por Penderecki e porque deu muito assunto. E assunto é fundamental para quem vai assistir qualquer espetáculo.

Ah, Teraoka, volte sempre! Tu também, Bandel!

Ah, se a tia Eva vê isso!
Detalhe do público de ontem antes do concerto. Ah, se a tia Eva vê esses dois pezinhos… (Logo depois, os pés foram recolhidos, com a dona deles escolhendo Penderecki) | Foto: Augusto Maurer

O programa de ontem no Theatro São Pedro:

Krzysztof Penderecki: Concerto para viola e orquestra
Sergei Prokofiev: Romeu e Julieta – Suíte n° 2

Regente: Kiyotaka Teraoka
Solista: Renato Bandel