O melhor filme sobre a Segunda Guerra Mundial

O melhor filme sobre a Segunda Guerra Mundial

Retirado daqui.
Tradução mal feita por mim

Com a invasão nazista da URSS em 22 de junho de 1941, há 80 anos, a Segunda Guerra Mundial atingiu uma dimensão de selvageria até então desconhecida. O objetivo da ofensiva não era apenas a conquista, mas a aniquilação dos povos conquistados. “Os problemas começam com as crianças. Nem todos os povos têm o direito de existir. Nem todas as nações merecem um futuro “, diz um dos nazistas que participam do massacre da população civil que Elem Klimov retrata em Vá e Veja (1985), um clássico do cinema de guerra.

Este filme foi lançado por ocasião do 40º aniversário da vitória sobre o Terceiro Reich, quando a perestroika estava prestes a começar na URSS com a ascensão ao poder de Mikhail Gorbachev. O título que aparece em todas as listas dos melhores filmes de guerra. O escritor de ficção científica J.G. Ballard escreveu que foi “o melhor filme de guerra de todos os tempos”.

Situado em 1943 na Bielorrússia, Vá e Veja conta a história de um menino que se junta às fileiras da resistência em uma jornada infernal durante a qual descobrirá a tática do Exército Alemão para acabar com a guerrilha: o assassinato em massa de civis. A passagem das hordas nazistas é retratada quase como uma epidemia de peste, o custo humano da invasão alemã foi tão devastador quanto a doença medieval, a suástica foi um sinal de morte constante, implacável e cruel. Em muitas cidades, eles trancaram todos em um prédio — uma igreja ou um celeiro — e depois o incendiaram.

O filme inspira-se na memória do escritor bielorrusso Alés Adamóvich (1927-1994), autor do roteiro e do livro em que se baseia, The Story of Khatyn em sua tradução para o inglês (não confundir com Katyn, a local onde a polícia stalinista assassinou milhares de oficiais poloneses após a invasão de 1939). Adamóvich, que por sua honestidade e habilidade narrativa pertence à mesma linhagem da ganhadora do Nobel, a bielorrussa Svetlana Alexievich, serviu quando adolescente em um batalhão de guerrilheiros em 1942 e 1943. Seu livro, disponível em inglês, começa com as seguintes informações: “De acordo com documentos da Segunda Guerra Mundial, mais de 9.200 cidades foram destruídas na Bielorrússia e em mais de 600 delas, todos os seus habitantes foram mortos ou queimados vivos. Apenas alguns sobreviveram.”

Em uma entrevista com Pilar Bonet em 1985, após o lançamento do filme, Klimov explicou que queria fazer um filme “claramente antifascista” no qual suas próprias memórias da guerra também surgissem: “Eu sou um filho da guerra. Nasci em Stalingrado. A guerra começou quando entrei no primeiro ano da escola, vi a cidade queimada e destruída, cadáveres e prisioneiros. As memórias da infância são as mais fortes”.

Com uma estética brutalmente realista, Klimov e Adamóvich conseguem refletir algo quase impossível de contar em um filme: o horror da Segunda Guerra Mundial na URSS. Após a invasão da Polônia em 1939, os nazistas mataram intelectuais e perseguiram judeus. Com a Operação Barbarossa, o conflito ganhou uma nova dimensão e foi também o momento em que começou o Holocausto, primeiro com o assassinato em massa de judeus perpetrados pelos esquadrões da morte móveis, os Einsatzgruppen, e depois com as câmaras de gás. Entre 29 e 30 de setembro, eles foram mortos na ravina Babi Yar. Todos os judeus de Kiev, cerca de 200.000 pessoas, no maior massacre da Segunda Guerra.

O que mudou naquele verão de 1941 e está horrivelmente refletido no filme de Klimov, foi que o alvo dos massacres não eram apenas adultos, mas mulheres e crianças. O extermínio tinha que ser total. O historiador francês especialista em nazismo Christian Ingrao lembra em seu último livro, Le Soleil noir du paroxysme: “O objetivo desta luta deve ser a aniquilação da Rússia de hoje. Cada situação de combate deve ser enfrentada com uma decisão atrelada à aniquilação total e implacável do inimigo. Em particular, dos partidários do atual sistema russo-bolchevique.”

Nas primeiras quatro semanas da guerra na Polônia, os nazistas assassinaram 12.000 pessoas. Na URSS, 50.000 no mesmo período. E, em meados de agosto de 1941, começaram as execuções em massa de mulheres e crianças. Em dezembro de 1941, o Exército Alemão e os Einsatzgruppen haviam assassinado meio milhão de civis, a maioria judeus. Ingrao conta como os oficiais conseguiram convencer os soldados do “atroz dever”, nas palavras de Himmler, que deviam cumprir. Um oficial de 35 anos teve que anunciar a centenas de homens reunidos que agora teriam que matar mulheres e crianças. Então, ele trouxe uma mulher e seu filho recém-nascido e, na frente da tropa reunida, sacou sua pistola e atirou neles ”. Esse é o universo moral que retrata Vá e Veja.

 

Dia das Mães, uma lembrança

Dia das Mães, uma lembrança

Estávamos lá por 2004 e minha mãe estava começando a ficar confusa. Ela era uma viúva de 77 anos e passava muito tempo parada em casa. Aposentou-se aos 73 e foi horrível para ela. Prejudicou-a muito, acho eu, ela ficou solitária. Eu a visitava sempre, mas naquele dia resolvi levá-la ao cinema.

O filme era muito bom, com uma história cheia de complicações. ‘Longe do Paraíso’ parecia algo escrito por Tennessee Williams.

Frank e Cathy (Julianne Moore) eram um casal modelo no final de década de 1950. Ele era um executivo influente, enquanto ela desempenhava à risca o papel de esposa dedicada e atenciosa, que se ocupava em tempo integral com o lar, coisa que minha mãe nunca fez. D. Maria Luiza era dentista — uma das primeiras do RS, formada em 1948 — e cumpria dupla jornada em casa. Isto é, trabalhava muito em casa para nós e muito no consultório, onde era admirada pelos clientes.

Mas voltemos ao filme. Frank, entretanto, sentia-se atraído por outros homens, e mantinha à medo relações esporádicas fora de casa. Uma noite, quando o marido mais uma vez se atrasou, Cathy decidiu visitá-lo no escritório com uma refeição quentinha. Ao chegar, encontrou-o nos braços de um amante. Ele confessou que já vivenciara sentimentos desta natureza no passado, mas acreditava ser capaz de superá-los. Então, o casal decide procurar o auxílio de um psiquiatra.

Em meio a isto, Cathy torna-se alvo de comentários por aproximar-se de seu jardineiro, um negro. Um filme amplo — homossexualidade, armário, racismo, infidelidade e uma versão anos 50 de cura gay.

Durante o filme, observei que a mãe estava bem quieta. Eu revisava a toda hora se ela dormia. No final, perguntei-lhe o que achara, esperando ouvir qualquer coisa vinda das crescentes brumas que lhe atrapalhavam o cérebro. Pois ela me surpreendeu com uma opinião muito lúcida a respeito da relação do casal e dos amantes. Juntos, fizemos o elogio do filme e falamos sobre o sem-solução de tudo aquilo.

Acho que esta foi a última vez que vi-ouvi minha mãe inteira. Ela viveu mais 8 anos.

Foi nisso que pensei hoje, nesta véspera de Dia das Mães. Pois é, em minha mãe e em um filme.

(Deixo aqui uma foto dela de 1949, acompanhada do verso da mesma, anotado por meu pai. Eu nasceria 8 anos depois).

A Autobiografia, de Woody Allen

A Autobiografia, de Woody Allen

Charles Dickens difamou sua esposa porque desejava se separar. J. D. Salinger era esquisito com as meninas adolescentes… George Orwell denunciou stalinistas para o serviço secreto inglês — alguns denunciados eram “amigos” seus e dizem que foi pago por isso. (Não sou stalinista, OK?). Gertrude Stein parecia admirar fascistas. Ernest Hemingway foi espião da KGB. Jack London era racista. Monteiro Lobato também. Roald Dahl era antissemita e todo mundo lê seus livros e vê A Fantástica Fábrica de Chocolates. William Golding tentou estuprar uma garota de 15 anos. Norman Mailer quase assassinou sua esposa — apunhalou-a no estômago e nas costas. Céline era um fascista de 4 costados. Muita gente lê estes autores e, olha, Woody Allen me parece ser bem mais tranquilo, além de ter sido profundamente investigado e inocentado. É estranha a perseguição que ainda sofre.

OK, não é muito normal casar-se com a filha da namorada — ela era filha adotiva de Mia Farrow e André Previn –, admito. Mas não vou me preocupar com isso.

Antes de escrever algo sobre o livro, digo que o editor brasileiro foi desrespeitoso para com seu título original, coisa que não aconteceu em Portugal, como vemos ao lado. O nome do livro em inglês é Apropos of Nothing. Este é o primeiro problema, o segundo é a tradução, que apenas eventualmente traz integralmente a voz e o estilo de Allen e usa certas gírias que ou são antiquadas ou muito Região Sudeste, não sei bem. Conheço mais 3 pessoas de Porto Alegre que leram o livro e todas reclamaram do trabalho do tradutor.

Apesar de tudo isso, curti o livro. A cada página há piadas hilariantes e boas histórias sobre conhecidas personalidades do cinema. Meu interesse só caiu quando a autobiografia foi interrompida pelo Caso Mia. É claro que o caso é incontornável — afinal, o fato interrompeu a vida profissional do cineasta, mas eu já conhecia bem a história e o texto não acrescentou muita coisa ao que eu já sabia, só preencheu algumas lacunas. Porém, fica claro que o livro só existe porque ele queria deixar clara sua visão.

Antes, ele descreve sua infância e nos leva pelo caminho através do qual se estabeleceu como um dos grandes cineastas americanos da década de 70 em diante. É um deleite ler sobre as décadas de 70 e 80, onde produziu filmes inesquecíveis como Annie Hall, Manhattan, Hanna e suas irmãs e outros. Os filmes mais recentes, mesmo os excelentes Match Point e Meia-Noite em Paris, recebem menor destaque. O texto de Allen é muitíssimo engraçado e ele releva-se modesto, sempre falando na sorte que teve. Seu único motivo de orgulho parece ser o fato de ter nascido cômico e de ter uma incrível capacidade de trabalho. Imaginem que ele assinou mais de 50 filmes, atuando em muitos deles. Filho de um livreiro e descendente de judeus de origem alemã, Woody Allen frequentou a Universidade de Nova Iorque, mas não completou os estudos. Muito jovem, começou a vender textos de humor para comediantes. Os primeiros filmes que o tornaram famoso foram as comédias leves, como Bananas (1971), Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo mas tinha medo de perguntar (1972) e O Dorminhoco  (1973). Só depois vieram seus clássicos, que permitiram a Allen explorar alguns dos seus temas preferidos: a cidade de Nova Iorque, a religião judaica, a psicanálise e a burguesia intelectual norte-americana. Ele também analisa sua tendência e admiração pelos filmes sérios, mas que se sai melhor provocando risadas, para o que sua figura ainda contribui.

Fica óbvio que, como cineasta, a imagem que Allen tem de si é bastante diferente daquela que percebemos como cinéfilos. E é interessante entender isso.

Penso que o livro seja altamente recomendável para fãs do cineasta. Para os demais, vale a leitura para conhecer de perto este episódio inacreditável criado pela “moral” estadunidense. Tudo faz crer que o cancelamento de Woody seja apenas um protesto contra a sua relação com Soon-Yi, que a maioria da sociedade americana, em sua hipocrisia religiosa, considera um “pecado” mais que um fato pouco comum. Sim, é um fato pouco comum e nada muito além disto. Certas coisas, definitivamente, só acontecem nos Estados Unidos. Seus filmes continuam sendo vistos na Europa e em muitos outros países, mas não nos EUA. Curioso.

Woody Allen, o cineasta interrompido | Foto: Divulgação

A cena do jantar de Fanny e Alexander

A cena do jantar de Fanny e Alexander

Por Thomas Vinterberg, na Criterion

Thomas Vinterberg não se apega mais aos princípios ascéticos do Dogma 95, o movimento cinematográfico que fundou em 1995 com o diretor dinamarquês Lars von Trier. Mas há algo que permaneceu constante ao longo de sua carreira: o foco na construção de personagens e na dinâmica social. Desde que foi aclamado pela primeira vez em 1998 com seu drama sombrio e cômico Festa de Família, o qual ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cinema de Cannes, ele mostrou grande variação estilística em filmes como o thriller romântico It’s All About Love, o drama A Caça e a adaptação de Thomas Hardy, Longe deste Insensato Mundo, além dos esplêndidos A Comunidade e Submarino. Seu filme mais recente, Outra Rodada (Druk), é um estudo que acompanha um grupo de professores enquanto eles testam a teoria de que um certo nível de álcool no sangue pode aliviá-los do tédio melancólico da vida cotidiana. É filme que está sendo muito bem recebido por público e crítica e este mês está concorrendo a dois Oscars: melhor diretor e melhor longa internacional.

Antes de falar com Vinterberg pelo Zoom no início deste mês, pedi a ele que falasse sobre uma cena favorita de um filme de nossa coleção. Ele escolheu com entusiasmo o jantar de Natal do épico semiautobiográfico Fanny e Alexander (1982) de Ingmar Bergman, cena que há muito tem sido um guia para ele e que foi diretamente referenciado em Festa de Família. Neste artigo, editado em conjunto a partir de nossa conversa, ele fala sobre como a abordagem artística do grande autor sueco e a sensibilidade escandinava o influenciaram. —Hillary Weston

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Eu comecei a escola de cinema no início dos meus vinte anos, e nosso professor de história do cinema disse que tínhamos que assistir a todos os filmes de Ingmar Bergman. Na época, eu era um jovem inquieto e no começo não os entendia. O professor disse que estava tudo bem se dormíssemos durante a exibição. Apenas tínhamos que ser capazes de dizer que os tínhamos visto. Mas então, lentamente, ao longo das aulas, seu trabalho me afetou — e nunca mais deixei de ver seus filmes.

Quando assisti Fanny e Alexander pela primeira vez, fiquei apaixonado pelo filme. Era uma sensação rara, apenas possível de se ter quando assistimos a certos grandes filmes. Era sobre um garotinho de cabelos escuros, sua bela família e sua experiência dentro da riqueza e da brutalidade da vida na burguesia de Estocolmo. Era também sobre ele enfrentar a perda do pai, que morre na primeira metade do filme e a chegada de um padrasto, que usa sua fé em Deus para oprimir a família. É a primeira metade do filme que mais admiro, especialmente a festa de Natal, que estabeleceu o padrão para o que estou fazendo como cineasta.

Algo que aprendemos na escola foi a ideia de “história natural”. Por exemplo, a história natural de ir ao cinema envolve ir à bilheteria e comprar um ingresso, ir ao banheiro, comprar um doce ou pipoca, mostrar seu ingresso e encontrar seu assento. Essa é uma história inteira por si só. Não parece muito interessante quando você fala sobre isso assim, mas você pode realmente aprender muito sobre as pessoas em meio a essa cadeia de eventos. Elas lavam as mãos? Elas reclamam do preço do doce? Elas esperam por alguém antes de se sentarem? Há muitas coisas que você pode revelar sobre os personagens desta forma, e em Festa de Família eu mantive isso muito estritamente. Cada vez que eu ficava preso na minha escrita, simplesmente voltava à história natural — e é isso que Bergman faz. Você observa a progressão natural de uma festa de Natal, passo a passo.

Tive a sorte de ter uma conversa sobre Fanny e Alexander com Bergman depois de fazer Festa de Família. Foi apenas um telefonema, mas foi longo. Ele chamou meu filme de obra-prima e fiquei muito orgulhoso. Disse a ele que tinha que me desculpar por roubar uma de suas cenas, porque há um momento que é quase uma cópia exata do baile pela casa em Fanny e Alexander. Ele disse: “Oh, isso não importa, eu roubei a cena de O Leopardo, de Visconti!”

A cena da ceia de Natal no filme de Bergman é um estudo perfeito dos personagens. Ele captura o que as pessoas mostram ao mundo, como desejam aparecer quando estão ao redor de uma mesa e como revelam o que está escondido quando estão em seus próprios quartos. Sei disso por minha própria vida, porque cresci em uma comunidade hippie. Todas as noites eu ia a uma enorme mesa de jantar com vinte pessoas, e todos eles estavam se apresentando como queriam ser. Ao mesmo tempo, eu sabia exatamente o que estava acontecendo em suas vidas, nos cômodos ao redor da casa. Foi nessa mesa que vi pessoas que seriam derrubadas se não fossem socialmente fortes, que vi gente ser humilhada, mas também foi onde senti uma sensação de união que proporcionava muita euforia. Portanto, a mesa de jantar sempre foi o que me definiu e Bergman refletiu minha experiência de volta para mim.

A maioria dos cinegrafistas que conheço são obcecados por Sven Nykvist, porque ele tem essa maneira linda e suave de mostrar algo que é tão escandinavo, algo que você simplesmente não consegue descrever. Fanny e Alexander é como uma peça de ouro em meio a todos os filmes que vi. Tem muito calor, mas quando está escuro é muito escuro, semelhante a O Poderoso Chefão. Isso me apresentou a opções de cores realmente densas e corajosas. Isso é típico da Escandinávia, onde você tem essas horas azuis muito longas e depois vem a neve e você se esconde do frio refugiando-se em casas fechadas. A escuridão do filme é amplificada pela luz do início e pela vivacidade dos personagens.

Bergman sempre discordou veementemente de movimentar muito a câmera. Lars von Trier e eu o convidamos para fazer um filme do Dogma, mas ele achou o Dogma a coisa mais boba de que já tinha ouvido falar. Os filmes do Dogma levam a câmera onde os atores estão, Bergman coloca os atores na frente de onde ele gosta que a câmera esteja. Ele foi educado no teatro, então sabia como fazer algo como um corte no palco. Quando os personagens de repente ficam em silêncio ou se sentam, é como um corte; se todos no palco olham para uma pessoa, é como um close-up. Ele também usou esses artifícios em seus enquadramentos de câmera.

Bergman tem sido um modelo exemplar de várias maneiras para mim. Admiro sua coragem, sua severidade e crença em sua própria história. Eu o admiro por permanecer fiel ao que estava fazendo. Ele foi tentado por todos os tipos de oportunidades em todo o mundo, mas ele permaneceu na Suécia e fez seu trabalho em sua pequena ilha. Uma vez, ele descobriu que um filme seu estava fazendo sucesso em Cannes ao ler um jornal enquanto estava no banheiro. Acho que ele é um modelo de como ser cineasta — você tem que se ater ao seu ofício e não se deixar levar por tudo ao seu redor.

Quando me casei, minha esposa ainda não tinha visto Fanny e Alexander, então ela assistiu a primeira parte no começo de uma noite, e nós assistimos ao resto juntos na manhã seguinte. Fazia anos que eu não o via e ela chorou na segunda parte. Naquele momento, recebi um telefonema de alguém do Guardian, que começou a me entrevistar sobre Bergman, e pensei, que interessante, minha esposa está assistindo a um filme dele agora. Conversamos bastante e de repente eu perguntei: “Por que você me ligou para falar sobre Bergman?” E o jornalista respondeu: “Oh, você não sabia? Ele faleceu esta manhã.” Então, parece que estávamos assistindo Fanny e Alexander enquanto Bergman estava morrendo.

Não assisto Fanny com tanta frequência, mas lembro sempre de sua sinceridade. É tão rico e cheio de detalhes, muito irrestrito e ainda assim muito preciso. Essa combinação só pode vir de um mestre.

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Thomas Vinterberg é o diretor de Festa de Família (1998), Submarino (2010), A Caça (2012), Longe deste insensato mundo (2015), A Comunidade (2016) e Outra Rodada (2020), que é indicado a dois Oscars.

Ingmar Bergman sobre o analfabetismo emocional

Ingmar Bergman sobre o analfabetismo emocional

“Eu vou te dizer ALGO BANAL. Somos analfabetos emocionais. E não só você e eu – praticamente todo mundo, essa é a coisa deprimente. Aprendemos tudo sobre o corpo e sobre a agricultura em Madagascar e sobre a raiz quadrada de pi, ou como quer que se chame, mas nenhuma palavra sobre a alma. Somos terrivelmente ignorantes sobre nós mesmos e sobre os outros. Hoje em dia, fala-se muito de que as crianças deveriam ser educadas para saber tudo sobre fraternidade, compreensão, coexistência, igualdade e tudo o mais – isso está na moda agora. Mas não ocorre a ninguém que devemos primeiro aprender algo sobre nós mesmos e nossos próprios sentimentos. Nosso próprio medo, solidão e raiva. Ficamos sem chance, ignorantes e com remorso entre as ruínas de nossas ambições. Tornar uma criança consciente de sua alma é algo quase indecente. Você é considerado um velho sujo. Como você pode entender as outras pessoas se não sabe nada sobre si mesmo?”.

– Ingmar Bergman

Em 1913, era produzido o primeiro filme de Charlie Chaplin: Carlitos Repórter

Em 1913, era produzido o primeiro filme de Charlie Chaplin: Carlitos Repórter
Charles Chaplin em Making a Living ou Carlitos Repórter

Charles Spencer Chaplin ou simplesmente Charlie Chaplin estreou como ator de cinema com Making a living, de Henry Lehrman, filme de quase 9 minutos finalizado em 30 de novembro de 1913 – há exatos 100 anos – e lançado em 2 de fevereiro do ano seguinte. Tinha 24 anos. Como costumava acontecer na época, Making a living – traduzido para Carlitos Repórter no Brasil – se caracteriza por muita correria e desentendimentos.

Nesta primeira produção, Chaplin ainda não tinha o visual que o imortalizou. De casaco claro e com um bigode que contorna a boca, seu personagem parece decadente, mas de modo algum um mendigo. A produção é modesta, assim como todos as outras feitas – e são muitas, muitíssimas – durante o tempo em que Chaplin trabalhou para a Keystone Film Company.

No filme, Chaplin faz um vigarista que aceita um emprego como repórter. Ao presenciar um acidente, ele pega a câmera de outro repórter e corre para o jornal a fim de entregar as  fotos como suas. Carlitos Repórter deve ter servido para que ele chegasse a seu famoso personagem, O Vagabundo (The Tramp), …

… pois sua primeira aparição ocorreu logo no segundo filme, Kid Auto Races in Venice, também lançado apenas 5 dias depois:

A produção dos filmes curtos e mudos da época era realmente industrial. Só em 1914, Chaplin participou de 35 filmes, tendo sido roteirista e diretor de 21 deles. Em vários deles, foi O Vagabundo, em outros, fez diversos personagens, quase sempre cômicos.

The Tramp ficou conhecido como Charlot na Europa e como Carlitos no Brasil e na Argentina, apelido que tem perdido terreno para O Vagabundo. Como quase todos sabem, ele é um sem-teto pobretão que possui as maneiras refinadas e a dignidade de um cavalheiro. Além disso, é muito sensível do ponto de vista humano e à beleza feminina. Usa um fraque preto e gasto, calças largas surradas e sapatos em petição de miséria. Estes são bem maiores que seu número e as pontas dobram-se para cima. Na cabeça, um chapéu-coco e, para completar, uma bengala e um pequeno bigode semelhante ao de Hitler, mas um pouco maior.

Chaplin nasceu em 1889 em Londres. Sempre sentiu-se atraído pelo music hall e atuava atuando como ator numa excursão pelos EUA com a trupe de Fred Karno quando, no final de 1913, foi notado por Mack Sennett, que o contratou para seu estúdio, a citada Keystone. Inicialmente, ele teve dificuldades para se adaptar ao cinema. Quando viu Carlitos Repórter, Sennett pensou que cometera um erro ao contratá-lo. Foi Mabel Normand — atriz e comediante da Keystone — que o convenceu a dar a Chaplin uma segunda chance. Ela, aliás, escreveu e dirigiu vários de seus primeiros filmes. Só que Chaplin detestava ser dirigido por mulheres e os dois discutiam frequentemente. Por outro lado, os filmes faziam tanto sucesso que ele se tornara uma das maiores estrelas do estúdio. O esquema das produções era sempre o mesmo: ou seja, o mais desbragado pastelão.

Porém, em 1915, Chaplin assinou um contrato mais vantajoso com a Essanay Studios. Seus filmes ficaram mais autorais, já com a pitada de sentimentalismo que o caracterizaria. A Essanay era mais ambiciosa, seus filmes duravam duas vezes mais do que os curtas da Keystone. Ali, Chaplin também passou a manter um elenco fixo, no qual estavam a heroína Edna Purviance e os vilões cômicos Leo White e Bud Jamison.

Chaplin em 1915

Como os EUA dos anos 10 eram uma Torre de Babel, com imigrantes chegando de todas as partes do planeta, os filmes mudos de Chaplin atravessavam as barreiras de linguagem, sendo compreendidos por todos. Nesse contexto, ele se tornou uma celebridade, passando a almejar o controle total sobre sua produção. Em 1916, a Mutual Film Corporation pagou a ele 670 mil dólares para produzir uma dúzia de comédias durante o período de dezoito meses. Um exemplo da nova fase é o clássico Easy Street:

Em 1917, Chaplin migrou novamente, assinando um contrato com a First National para produzir oito filmes. Além de manter a autonomia conquistada, a empresa financiaria e distribuiria os filmes, além de lhe dar mais tempo para trabalhar. Concentrando-se na qualidade, ele construiu seu próprio estúdio em Hollywood e expandiu alguns de seus projetos para longa-metragens, como Shoulder Arms (1918), The Pilgrim (1923) e sua primeira comédia dramática, a célebre O Garoto (1921), o qual elevou ao estrelato o menino Jackie Coogan:

Em 1919, o inquieto Charlie Chaplin não queria mais depender do financiamento e da distribuição de empresas externas e fundou a United Artists com Mary Pickford, Douglas Fairbanks e D. W. Griffith. E por lá ficou até o início da década de 1950. Todos os filmes de Chaplin distribuídos pela United Artists foram longas. As obras -primas vinham em série, como O Circo (1928) e Em Busca do Ouro (1925):

Apesar do cinema falado ter se tornado o modelo dominante no final da década de 20, Chaplin ainda resistiu até 1940. Durante o avanço dos filmes sonoros, produziu Luzes da Cidade (1931) e Tempos Modernos (1936). Esses filmes eram mudos, talvez falsamente mudos, pois possuíam música sincronizada e efeitos sonoros.

Tempos Modernos contém falas geralmente provenientes de objetos inanimados, como rádios ou monitores de TV. Isto foi feito para agradar o público da década de 1930, que já estava pouco habituado a assistir a filmes mudos. Além disso, Tempos Modernos foi o primeiro filme em que a voz de Chaplin é ouvida (no final do filme, na canção Smile, composta e cantada pelo próprio em dueto com Paulette Goddard). No entanto, a maioria dos espectadores considerou a obra como um filme mudo — e o fim de uma era.

O primeiro filme falado de Chaplin, O Grande Ditador (1940), foi um libelo contra o ditador alemão Adolf Hitler e o nazismo. Seu lançamento ocorreu um ano antes dos Estados Unidos abandonarem sua política de neutralidade para entrar na Segunda Guerra Mundial. Chaplin interpretou o papel de Adenoid Hynkel, ditador da “Tomânia”. O personagem era claramente baseado em Hitler e Chaplin, atuando em um papel duplo, também fazia o papel de um barbeiro judeu perseguido por nazistas. O filme também contou com a participação de Jack Oakie no papel de Benzino Napaloni, ditador de “Bactéria”, uma sátira ao ditador italiano Benito Mussolini e do fascismo; e de Paulette Goddard, no papel de uma mulher judia do gueto.

Dentro do ambiente político da época, o filme foi visto como um ato de coragem, tanto por seu ataque ao nazismo quanto pela clara representação de personagens judeus perseguidos de forma violenta. O Grande Ditador foi indicado ao Oscar de Melhor Filme, Melhor Ator (Chaplin), Melhor Ator Coadjuvante (Oakie), Melhor Trilha Sonora (Meredith Willson) e Melhor Roteiro Original (Chaplin).

O homem político

Chaplin fez parte do glorioso grupo de humanistas democratas da primeira metade do século XX, gente cujas opiniões eram ouvidas e consideradas como se fossem reservas morais da sociedade. Apesar de ser batizado pela Igreja da Inglaterra, Chaplin sempre se declarou ateu. Durante o período nazista, houve grande controvérsia a respeito de sua suposta ascendência judaica. Propagandas nazistas da década de 40 o retratavam como judeu. Investigações do FBI no final da década de 1940 também se concentraram nas origens étnicas de Chaplin. Mas não há documentos comprobatórios e, durante toda sua vida pública, ele se recusou a falar no assunto.

Charlie Chaplin em 1965

O posicionamento político de Chaplin sempre foi de esquerda, ao menos na noção norte-americana do termo. Durante a era macarthista, foi acusado de “atividades anti-americanas” e de ser comunista. J. Edgar Hoover instruíra o FBI a mantê-lo sob observação. A pressão do FBI para que Chaplin saísse dos EUA alcançou nível crítico no final da década de 1940, após o lançamento de Monsieur Verdoux (1947), considerado uma crítica ao capitalismo. O filme foi mal recebido e boicotado em várias cidades dos EUA, obtendo maior êxito na Europa, especialmente na França. Naquela época, o Congresso ameaçou chamá-lo para um interrogatório público. Isso nunca foi feito, provavelmente devido à possibilidade de Chaplin satirizar os investigadores.

O fim

Em seus últimos anos, juntamente com James Eric, Chaplin compôs músicas originais para seus filmes mudos e depois os relançou. Compôs a música de seus outros curta-metragens da First National: The Idle Class em 1971, Pay Day em 1972, A Day’s Pleasure em 1973, Sunnyside em 1974, e dos longa-metragens The Circus em 1969 e The Kid em 1971. O último trabalho de Chaplin foi a trilha sonora para o filme A Woman of Paris (1923), concluída em 1976, época em que Chaplin estava extremamente frágil, encontrando até mesmo dificuldades de comunicação.

tempos-modernos
Fontes: Site Oficial, AdoroCinema, Youtube, Chaplin: A Life e a Wikipedia.

E o vento levou: a notável coleção de conflitos de um grande sucesso (que acaba de ser cancelado)

E o vento levou: a notável coleção de conflitos de um grande sucesso (que acaba de ser cancelado)
Clark Gable e Vivien Leigh: uma relação nada fácil

A produção de E o vento levou foi absolutamente conturbada. Os direitos de filmagem do livro de Margaret Mitchell foram comprados por 50 mil dólares pelo produtor David O. Selznick um mês após seu lançamento. O romance, lançado em 10 de junho de 1936, tornou-se rapidamente um grande sucesso. Três meses depois, já vendera um milhão de exemplares e, no ano seguinte, Gone with de Wind, um livro cheio de personagens odiosos ou meramente interesseiros, foi premiado com o Pulitzer. Foi o único romance da autora. Os direitos autorais recebidos pela obra e pela adaptação cinematográfica tornaram-na uma mulher rica, e ela, envolvida em atividades de filantropia, decidiu encerrar sua carreira literária. Morreu atropelada por um táxi poucos anos depois. O roteiro do filme não contou com a participação de Mitchell, que é de autoria de Sidney Howard. Porém, dentre os colaboradores havia os nomes grandiosos de F. Scott Fitzgerald e William Faulkner.

Fleming: 100% da direção nos créditos, de fato, 45%

As confusões e desentendimentos durante a produção foram incríveis. Talvez baste dizer que, apesar de nos créditos figurar apenas o nome do diretor Victor Fleming, este só tenha dirigido 45% do filme. Mas vamos a um resumo.

As filmagens começaram em 26 de janeiro de 1939. George Cukor estava escalado para dirigi-las. A primeira a desembarcar do projeto foi Bette Davis. Ela soube que Errol Flynn estava cotado para um dos papéis e pediu para sair de forma preventiva. Afinal, eles já tinha discutido violentamente no passado e não se suportavam. Mas sua decisão foi precipitada, pois Flynn nunca chegou a fazer parte do elenco.

Selznick escolheu — entre 1400 candidatas — Vivien Leigh para viver a heroína sulista Scarlett O’Hara. Ela era casada com Laurence Olivier, o que certamente influenciou na escolha. Cukor ficou indignado com o resultado do certame e abandonou a produção com apenas 4% do trabalho concluído. Aproveitando o, digamos, vácuo de poder, Selznick tomou conta de tudo, chamando Clark Gable para o papel de Rhett Butler e Fleming para a direção.

Boa atriz, só que inglesa… Que mau hálito…

Mas o conflito de egos entre os atores só poderiam ser medidos por sismógrafos. Vivien Leigh trabalhou nos sets de filmagem por 125 dias, recebendo a quantia de 25 mil dólares; já Clark Gable trabalhou por 71 dias e ganhou 120 mil dólares. Mesmo ganhando muito mais, Gable opinava ser um absurdo oferecer um papel essencialmente norte-americano a uma atriz inglesa. Paradoxalmente, nos corredores, durante as filmagens, todos achavam que Gable conquistaria Leigh também fora de cena, mas ela não o suportava e mais: considerava pouco profissional que ele deixasse o estúdio sempre às seis da tarde, pontualmente, todos os dias. Como vingança, ele comia cebolas e bebia licor poucas horas antes de gravar. Ela, é claro, não suportava seu hálito. Para completar, Gable dizia a todos que, quando a beijava, pensava num bife.

Se o desentendimento entre a dupla romântica não provocava baixas, o mesmo não se pode dizer dos restantes. Em meio às gravações, Fleming brigou com Vivien Leigh e Olivia de Havilland – que eram amigas e desejavam o retorno de George Cukor à direção –, e pediu demissão. Mas Gable adorava Fleming. Estranhamente, o demissionário alegou outro motivo para sair: disse que tivera um colapso nervoso e acusou Selznick. Para tentar finalizar a superprodução de quase quatro horas, foi chamada uma fila de diretores que trabalharam mas que foram sistematicamente demitidos após poucos dias: Sam Wood, William Cameron Menzies, Sidney Franklin… Ao final, Fleming recuperou-se e finalizou o trabalho.

David O.Selznic: o produtor, montador e verdadeiro tocador do projeto

Finalizou? Nem tanto. Foi Selznick e o montador Hal C. Kern que deram acabamento ao filme. Eles ficaram quase um mês cortando e cortando. A lenda diz que eles se fecharam no estúdio com 60 mil metros de película gravada ou, em outras palavras, 28 horas de material.

O filme foi lançado em 15 de dezembro de 1939. O resultado foi estrondoso sucesso. Considerando-se a inflação, é o filme com maior faturamento da história, além de o mais visto de todos os tempos. Foram 400 milhões de pessoas em todo o mundo. Atualmente, seu resultado financeiro seria de mais de 3 bilhões de dólares, ou seja, deixaria qualquer blockbuster na poeira. E custou para a MGM apenas cinco milhões.

O argumento da película de Selznick e Fleming, assim como o romance, estão inteiramente fora de moda, mas o filme é surpreendente por vários motivos. Em primeiro lugar pela proeza técnica em todos os campos. Apesar de nada naturalista, apesar de ser teatral, a narrativa é poderosa, a reconstituição de época é impressionante, a trilha sonora está no contexto e a fotografia é arrebatadora. Difícil acreditar que estivéssemos em 1939. Além disso, o desempenho de Vivien Leigh como Scarlett O`Hara é esplêndido. O filme ganhou 8 Oscar e saudado como obra-prima. Visto hoje, é excessivamente acadêmico e discursivo, além de ser um filme com um número altíssimo de maldades e casamentos por metro quadrado.

E o vento levou é uma grande história, literalmente. Em livro, são quase mil páginas de reviravoltas; em filme, são 241 minutos. Mas Mitchell e Fleming sabiam contá-la com brilhantismo.

O cartaz do filme

O filme, na sua primeira parte, mostra uma visão idealizada da sociedade branca do velho sul dos EUA. Os senhores de escravos são mostrados como protetores benevolentes, e a causa confederada como nobre defesa da terra natal e de um modo de vida. Essa civilização que o vento levou é definida assim na abertura do filme:

Existia uma terra de cavalheiros e campos de algodão chamada “O Velho Sul”. Neste mundo bonito, galanteria era a última palavra. Foi o último lugar que se viu cavalheiros e damas refinadas, senhores e escravos. Procure-a apenas em livros, pois hoje não é mais que um sonho. Uma civilização que o vento levou!

Os responsáveis pelo filme demonstraram certo amor pelos incêndios

Deste modo pouco realista, o filme apresenta uma visão simpática da sociedade sulista. Mas alguém se interessa por isso ou diz como Butler:  Frankly, my dear, I don´t  give a damn? 

Voltemos ao filme. O trio central de personagens é estupendo e atípico.

Frustrada por não conseguir se casar com Ashley Wilkes, Scarlett acaba se envolvendo com o charmoso aventureiro Rhett Butler. Scarlett é a bela mulher com o demônio no corpo. Orgulhosa, egoísta, geniosa, cabeça dura, é capaz de absolutamente tudo para conquistar o que quer. Tudo entremeado de rios de lágrimas, claro. Porém, antes de ordinária, Scarlett impressionava os leitores e espectadores por ser empreendedora, decidida e forte.

Já Rhett Butler é o canalha incorreto, uma estranha mistura de extrema sinceridade, sedução e esperteza. Talvez por isso seja perfeito para Scarlett. Se ela tem interesses, ele é debochado. Ela entorna bastante açúcar em uma relação entre duas personagens nada simpáticas. OK, ele lhe dá uns beijos, mas mantém-se na incorreção. O notável é que a química entre eles – com a Guerra ao fundo – funciona como poucas vezes se viu.

Como o lucro de todos os envolvidos demonstra.

Mas trata-se de um filme que morreu no início do século XXI. Ou foi cancelado. Após protestos contra o racismo da produção, a HBO retirou-a de cartaz. Gravado nos EUA antes de qualquer movimento contra a segregação, E o vento levou é racista como Monteiro Lobato e o hino do Rio Grande do Sul. Imaginem que, pelo filme, a atriz Hattie McDaniel ganhou o primeiro Oscar de artista negra na categoria de atriz coadjuvante. Porém, na festa, Hattie não pôde sentar-se na mesma mesa que seus colegas de elenco. Se era assim nos anos 30, não seria diferente nos anos que o filme retrata.

E, se antes a beleza plástica tirava o foco de questões mais sérias — que a própria autora escolheu como pano de fundo –, tudo finalmente mudou. Sim, Scarlett O’Hara sempre foi uma personagem antipática, confusa e sem escrúpulos. Ela contestava a passividade feminina e tomava as rédeas de sua vida, mas foi amoral do início ao fim. A personagem eternizou a postergação de decisões difíceis com seu frequente I’ll think about that tomorrow. Tomorrow is another day.

Só que, mais de 80 anos depois, Scarlett não terá o dia seguinte para encontrar uma alternativa. E O Vento Levou é sim reprodução de uma estrutura racista e só voltará ao cartaz quando o racismo diminuir muito, deixando de ser uma questão urgente.

Lágrimas: Vivien Leigh verte torrentes delas

O dia em que os irmãos Lumière mostraram o cinema ao mundo

O dia em que os irmãos Lumière mostraram o cinema ao mundo

No dia 28 de dezembro de 1895, dentro da primeira sala de cinema – que ainda existe –, chamada Eden, foi exibido o primeiro filme de todos os tempos, Arrivée d’un train em gare à La Ciotat (Chegada de um trem à estação da Ciotat). Em pouco menos de 60 segundos, a primeira plateia acompanhou a chegada de um trem à estação e viu alguns passageiros desembarcarem. Eles tinham tanta noção do que estava ocorrendo que várias pessoas simplesmente fugiram desesperadas para o fundo da sala com medo de serem atropeladas. Mais: as pessoas que foram filmadas não perderam tempo acenando para a câmera e nem desviaram o rosto a fim de manterem a privacidade. Ninguém sabia o que era aquilo e a imortal cena é perfeitamente natural. Em menos de sessenta segundos estava vista e encaminhada a revolução que criaria a sétima arte.

A primeira sala de cinema do mundo ainda funciona e alguns dos primeiros cinematógrafos podem ser vistos no Instituto Lumière, localizado na cidade francesa de Lyon.

Louis e Auguste eram filhos e empregados do fotógrafo e fabricante de películas Antoine Lumière, dono da Fábrica Lumière (Usine Lumière), na cidade francesa de Lyon. Antoine aposentou-se em 1892, deixando a fábrica entregue aos filhos. Seu cinematógrafo era uma máquina de filmar e projetor de cinema, invento que lhes foi sido atribuído mas que na verdade foi inventado por Léon Bouly, em 1892. Só que este perdeu a patente, de novo registrada pelos irmãos Lumière a 13 de Fevereiro de 1895. Deste modo, se a dupla de irmãos não foi a inventora de fato, foi de direito.

Foto: Wikimedia

Como inventores do cinema, os irmãos Lumière juntam-se a Georges Méliès, que é considerado o pai do cinema de ficção e dos efeitos especiais. O perfil artístico de Méliès não encontrava correspondência em Louis e Auguste Lumière, que eram engenheiros que passaram a se dedicar à atividade cinematográfica produzindo pequenos documentários destinados à promoção e vendas do cinematógrafo. Pensavam que se tratava de uma ferramenta científica sem muito futuro comercial. Tinham uma vida pacata, casaram-se com duas irmãs e moravam todos na mesma mansão. Depois, antes e durante a 2ª Guerra Mundial, admiraram e apoiaram Benito Mussolini e o Marechal Pétain.

A palavra cinematógrafo vem do grego κίνημα – kinema (movimento) e γράφειν (descrição). Ele é uma evolução do cinetógrafo de 1888, obra do maior inventor de todos os tempos, Thomas Edison, que a considerou uma curiosidade e uma grande perda de tempo. Capaz de filmar e projetar películas, o aparelho dos Lumière foi tecnicamente superior a seus antecessores. Porém, os primeiro diretores de cinema não eram lá muito exigentes e experimentaram o novo aparelho filmando o que tinham por perto. La sortie des usines Lumière (A saída das indústrias Lumière) foi, assim, sua primeira obra. É, aliás, possível visitar o lugar exato em que ela foi filmada, um lugar ainda dedicado ao cinema: a Cinemateca de Lyon.

Uma dúzia de filmes foram produzidos em seguida pela dupla, dentre os quais L’arroseur arrosé (O regador regado), breve cena em que um rapaz se diverte às custas de um jardineiro, e o famoso e já citado L’arrivée d’un train en gare de La Ciotat (A chegada de um trem à estação de La Ciotat), que apavorou os espectadores, levando-os a crer que uma locomotiva de verdade se aproximasse deles.

Desta forma, desde o primeiro dia, o cinema documenta, distrai e assusta. Quando os irmãos Lumière enviaram operadores para os outros lugares do mundo, pedindo-lhes que lhes mandassem imagens, constataram que o cinema também poderia informar.

Assim como as palavras foram armazenadas em palimpsestos, depois em papel e livros, as imagens começaram pelas câmeras fotográficas. A primeira fotografia foi também tirada por um francês, Nicéphore Niépce, em 1826. O cinematógrafo nada mais é do que uma câmera fotográfica com a capacidade de gravar várias imagens em sequência sobre uma película, as quais, vistas no cinematógrafo, dão ideia de movimento.

Na verdade, a primeira projeção pública do invento, aquela de 28 de dezembro de 1895 no cinema Eden, ainda hoje situado em La Ciotat, no sudeste da França, foi bem simples, limitando-se ao filme que mostramos acima. A verdadeira divulgação do cinematógrafo, com publicidade e – vejam bem – já com entradas pagas, teve lugar em Paris, no Grand Café, situado no Boulevard des Capucines. O programa incluía dez filmes. A sessão foi inaugurada com a apresentação de La Sortie de l’usine Lumière à Lyon (A Saída da Fábrica Lumière em Lyon). No início da sessão, os irmãos Lumière explicaram o funcionamento do cinematógrafo. Depois o mostraram. As imagens em movimento tiveram uma enorme repercussão: L’Arrivée d’un train en gare de la Ciotat (Chegada de um Comboio à Estação da Ciotat), Le Déjeuner de Bébé (O Almoço do Bebé) e outros foram apresentados, incluindo os primeiros esboços cômicos, como o já citado L’Arroseur arrosé (O “Regador” Regado).

Foto: Panoramio

Ali começava o cinema, meio de expressão de alta influência em nossa cultura ao combinar várias artes mais antigas: o teatro, a encenação, a música, a fotografia e a literatura. Além disso, ele gerou as figuras de diretores, roteiristas, produtores e outras várias profissões técnicas. É todo um mundo que pode resultar em estilos artísticos muito diferentes, mas sempre muito representativos. Além disso, é um fenômeno econômico, fonte de entretenimento popular. As imagens animadas conferem aos filmes seu poder de comunicação universal. As dublagens ou as legendas, fizeram com que se tornasse mundialmente popular.

O uso da película dos Lumière na produção de filmes encontra-se em queda. Há aproximadamente dez anos, o cinema digital está em franco crescimento, tanto na tomada de imagens como na projeção. O digital permite, além disso, que os filmes circulem fora dos circuitos tradicionais de distribuição. Mas achamos que seus rebentos sempre serão chamados de cinema, como os dos irmãos Lumière.

(*) Com o auxílio do site france.fr, do blog O Cinematógrafo e do YouTube, é claro.

Another Round, de Thomas Vinterberg

Another Round, de Thomas Vinterberg

Nos últimos anos, acho que os filmes que mais me satisfizeram foram os de Thomas Vinterberg. Sim, sempre os escandinavos. Festa de Família, Submarino, A Caça, A Comunidade, etc. são obras inesquecíveis. Que saudades do cinema!

Seu último opus, Another Round — que talvez seja traduzido aqui para Outra Rodada — é até mais leve que os demais, apesar de acabar na habitual paulada. Quatro desencantados professores secundaristas resolvem seguir um teórico que diz que o ser humano funciona melhor com 0,05% de álcool no sangue. Parece uma brincadeira, mas acaba tudo fora de controle, claro.

Em países onde o problema do alcoolismo é tão grande, o filme talvez ganhe maior corpo. Aqui nós temos tantos outras desgraças nos circundando que para se dar grandeza ao filme precisamos ter bem presente que são dinamarqueses brincando com suas vidas, assim como aqui se brinca e não apenas com álcool.

O filme é um ensaio sobre o desejo e a atração da autodestruição, mas que só fica claro no final, depois da construção detalhada de cada personagem.

Todos os elogios para Vinterberg — diretor e corroteirista –, para a atuação impressionante de Mads Mikkelsen e para aquele momento em que toca a Fantasia para Dois Pianos, D. 940, de Schubert (4º mvto).

Há outra cena impressionante, a final. Sim, a cena final, com as mensagens recebidas no telefone e a dança, é inesquecível.

Sim, os filmes tristes insistem em ter os mais belos momentos de cinema. O que são aqueles 4 grandes atores ouvindo Schubert?

Os 10 (ou 13) Melhores Discos Brasileiros

Os 10 (ou 13) Melhores Discos Brasileiros

Estou ocupadíssimo, então vamos a uma listinha irritante com a qual ninguém vai concordar.

1. João Gilberto – Chega de Saudade, sem comentários.
2. Elis Regina e Tom Jobim – Elis e Tom, idem.
3. Heitor Villa-Lobos – Bachianas Brasileiras com a Orquestra da Rádio Teledifusão Francesa, regência de Villa-Lobos, idem.
4. Edu Lobo – Edu Lobo (1973), o que tem Vento Bravo, Viola Fora de Moda, etc.
5. Chico Buarque – Meus Caros Amigos, acho que é o melhor do Chico. Há aquele de 1966, com A Banda, Olê, olá, Pedro Pedreiro, A Rita, Você não ouviu, etc., mas fico com este, snif.
6. Tom Jobim – Matita Perê, vocês conhecem? É um Tom curioso, muito diferente e experimental. Uma joia.
7. Egberto Gismonti – Dança das Cabeças, quem está melhor? Egberto ou Naná Vasconcelos?
8. Paulinho da Viola – Nervos de Aço, a mulher abandona Paulinho e ele passa a cometer obras-primas.
9. Milton Nascimento – Clube da Esquina 2, mas poderia ser o “1”, ou quem sabe Geraes.
10. Elis Regina – Elis Regina (1966), aquele que tem Lunik 9, Carinhoso, Tem mais samba…
11. Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Elizete Cardoso – Canção do Amor Demais, impossível ficar de fora, mas aí já são onze e…
12. Mutantes (1968) e Mutantes (1969) – Os Mutantes, é quase um álbum duplo e ainda…
13. Hermeto Paschoal – Slaves Mass.

Bergman, Victor Sjöström e um motorista do Uber

Bergman, Victor Sjöström e um motorista do Uber

Dias desses, eu peguei um motorista de Uber hiper qualificado. O cara sabia tudo sobre cinema. E começou a falar sobre os filmes que influenciaram Bergman. Eu conhecia alguns de nome, de ter lido entrevistas e livros do mestre, mas ele os tinha visto. E sugeriu que eu assistisse este filme mudo de Victor Sjöström, realizado em 1920. Sim, Victor é o ator velhinho de Morangos Silvestres. Ele garantiu que eu entenderia muitas coisas de meu diretor predileto olhando os escandinavos mudos e dos anos 30. E aqui está o filme que ele chamou de 100% obrigatório. (Sim, o Brasil é triste. O cara deveria estar dando aulas de cinema, mas estava me levando a uma distribuidora de livros).

O Sacrifício, de Andrei Tarkovski

O Sacrifício, de Andrei Tarkovski

Eu e Elena acabamos de ver o filme que talvez melhor dialogue com a triste época que vivemos: “O Sacrifício”, de Andrei Tarkovski.

A produção foi a última filmada pelo diretor, é falado em sueco e a equipe técnica parece ser a de Bergman — Sven Nykvist é o fotografo — , além de ter Erland Josephson como ator principal.

No dia do aniversário de Alexander (Josephson) eclode a Terceira Grande Guerra Mundial. À beira do holocausto, ele planeja um sacrifício. Como em outros filmes de Tarkovski, este mereceria rodapés para ser bem entendido. Dois personagens têm caráteres que não parecem ser deste mundo: o carteiro Otto e a empregada Maria, uma bruxa no melhor sentido. O mensageiro da Bíblia e a própria Maria?

Desesperado, Alexander promete sacrificar tudo o que ama, até se afastar do menino — seu filho — se isso aquilo puder ser desfeito. Mas Otto o aconselha a fugir e deitar-se com Maria. Depois desta cena, o filme torna-se colorido, mas um sacrifício acontece. Ficamos por aqui.

Por incrível que pareça, há uma última belíssima cena cheia de esperança.

O curioso é que eu dei este DVD de aniversário para a Elena quando éramos apenas amigos, há uns 8 anos. Eu ignorava que ela o amava e que o tinha visto muitas vezes na Bielorrússia. Hoje, foi o dia de abrirmos a caixa.

O filme completo legendado:

Onze fatos curiosos sobre Onde os Homens são Homens (McCabe & Mrs. Miller)

Onze fatos curiosos sobre Onde os Homens são Homens (McCabe & Mrs. Miller)

Hoje, na Sala Redenção, às 19h, haverá a apresentação da obra-prima de Robert Altman McCabe & Mrs. Miller (Onde os Homens são Homens ou Quando os Homens são Homens no Brasil). O filme é de 1971 e é espantosamente belo. Ele recebe nota 7,7 no IMDB, 8,7 no Rotten Tomatoes e 5 estrelas no NY Times e na Rolling Stone.

Altman era um iconoclasta que virou uma série de gêneros de cabeça para baixo. M*A*S*H era uma comédia anti-bélica. O Longo Adeus foi uma revisão do noir. E o que dizer de seu Popeye? E, é claro, há McCabe & Mrs. Miller, um “western revisionista” que substitui o tiroteio habitual por sequências em que o herói se esconde e se esconde, tentando ficar de fora. O filme ficou restrito ao sucesso cinéfilo. A maioria do público torceu o nariz. Porém, sua reputação foi inflando ano após ano e agora é considerado um dos melhores Altman. Aqui estão alguns fatos dos bastidores da filmagem.

1. O título inicial era A Aposta de Igreja Presbiteriana.

Embora o filme tenha sido baseado em um romance de 1959 de Edmund Naughton chamado McCabe, o título do trabalho era A Aposta de Igreja Presbiteriana (…), referindo-se a uma aposta de alguns moradores da cidade sobre se McCabe seria morto depois de se recusar a vender seus negócios. É que a cidade se chama Igreja Presbiteriana, em homenagem a sua estrutura mais proeminente. Robert Altman disse que, durante a produção, a Warner Bros. foi contatada por líderes da religião, pedindo que não usassem o nome da instituição em uma história sobre bordéis e jogos de azar. O título foi alterado para John McCabe e, depois, para McCabe & Mrs. Miller.

2. Os atores principais eram um casal da vida real que nunca havia trabalhado junto antes.

Warren Beatty e a grande atriz britânica Julie Christie mantiveram um relacionamento amoroso intermitente por vários anos. Em McCabe & Mrs. Miller, eles aparecem juntos nas telas pela primeira vez. Uma biografia de Christie diz que ela foi contratada antes de Beatty. Outra de Altman diz a mesma coisa, acrescentando que a participação de Beatty foi necessária para garantir o financiamento. Mas uma biografia de Beatty conta que ele concordou em fazer o filme depois de se encontrar com Altman e, posteriormente, “convenceu Christie também”. Então, quem sabe?

3. Os prédios da cidade foram construídos por pessoas que fugiam da Guerra do Vietname.

O filme foi filmado perto de Vancouver em 1970, quando muitos jovens americanos estavam fugindo para o Canadá para escapar da Guerra do Vietnã. Alguns desses homens foram contratados para ajudar a construir a cidade Igreja Presbiteriana e até moraram nela.

4. Alguns dos cenários ainda estavam sendo construídos enquanto o filme estava sendo filmado.

Como o filme foi filmado em ordem cronológica, e como a cidade da virada do século deveria ir se expandindo ao longo da história, fazia sentido economizar tempo realizando o filme durante a construção da cidade. Carpinteiros, vestidos com roupas de época, podem ser vistos em segundo plano em algumas cenas, fazendo trabalhos de construção.

5. O filme foi fotografado de maneira incomum e arriscada.

Altman e seu diretor de fotografia, Vilmos Zsigmond, queriam um visual áspero e antiquado. Eles chegaram a um método que os chefes do estúdio nunca teriam aprovado, se soubessem. A técnica mandava expor levemente o negativo do filme antes de fotografar. Isso dificulta a definição da exposição e aumenta as chances de todo o lote ser danificado. O estúdio não gostou do resultado, mas não havia nada que pudesse ser feito depois de pronto — esta é outra razão pela qual Altman fez assim.

6. A fotografia era inelegível para o Oscar.

A elogiadíssima fotografia ganhou menções em muitas críticas, mas foi ignorada quando as indicações ao Oscar apareceram. Acontece que Zsigmond não era sindicalizado. Ele ingressou na Sociedade Americana de Cinegrafistas em 1973 e foi posteriormente nomeado para quatro Oscars, vencendo em 1978 por Encontros Imediatos de Terceiro Grau, de Steven Spielberg.

7. Entre os custos de produção há o replantio do gramado de um morador.

O local das filmagens, uma área rural perto de Vancouver, era escassamente povoada, mas tinha vizinhos. Um desses vizinhos teve que ser reembolsado pelo custo de ter que replantar seu gramado depois que um burro da produção ter se soltado. Ele comeu a grama do cara. Os funcionários da Warner ficaram surpresos ao ver as despesas listadas, embora certamente não tenha sido a primeira vez que um filme de Hollywood incorreu em despesas por causa de algum animal.

8. As cenas de negociação reproduzem as experiências de Altman com produtores.

Altman disse no comentário do DVD que as cenas de McCabe discutindo valores e preços de venda de seus negócios foram inspiradas por suas próprias negociações com produtores e atores.

9. Os atores escolhiam seus próprios trajes, que não poderiam ser trocados.

O pessoal de figurino de Altman montou uma vasta coleção de roupas de época de todos os tipos, penduradas em prateleiras em um dos edifícios da “cidade”. Os atores, desde os protagonistas até os extras, tiveram liberdade para escolher seus próprios trajes, dentro de certas diretrizes: um par de calças, talvez duas camisas, um casaco, etc. Então eles tiveram que usar essas roupas durante toda a filmagem, e cuidar delas como pessoas do velho oeste, sem a assistência de um departamento de guarda-roupas.

10. Tudo bem se você não conseguir ouvir parte do diálogo.

Como a maioria dos filmes de Altman, McCabe & Mrs. Miller têm diálogos naturalistas e sobrepostos. Em vez de uma pessoa dizer uma linha e depois outra pessoa dizer outra, os personagens falam como pessoas reais, interrompendo-se, gaguejando, falando ao mesmo tempo e parando. Zsigmond perguntou a Altman sobre isso. “Não entendo o que as pessoas de segundo plano estão dizendo”, lembrou o diretor de fotografia húngaro. “‘Bem, Vilmos, você já esteve em bares barulhentos. Você ouve o que essas pessoas estão falando ao fundo? Quero uma trilha sonora real. Às vezes você não entende o que elas estão dizendo.”

11. Altman pode ter sido influenciado por Leonard Cohen.

Altman comprou o álbum Songs of Leonard Cohen em 1967, ouviu-o muito, apaixonou-se por ele e depois largou de mão… Dois anos depois, ele estava em Paris pensando em McCabe, e já sabia que não queria uma trilha de música orquestral. Um amigo tocou o tal álbum de Leonard Cohen e Altman disse: “Essa é a música!” Ele imediatamente procurou Cohen a fim de obter permissão para usar algumas das músicas, que os fãs do filme sabem que são assustadoramente apropriadas. “Foi estranho como as letras dessas músicas se encaixavam no filme”, ​​disse Altman. “Eu acho que inconscientemente, elas devem ter estado na minha cabeça.”

 

Duas cenas de O Passageiro – Profissão Repórter, de Michelangelo Antonioni

Duas cenas de O Passageiro – Profissão Repórter, de Michelangelo Antonioni

Primeiro, Jack Nicholson encontra Maria Schneider na Casa Milà, edifício de Gaudí.

Depois, a cena clássica do final do filme. Notem bem: trata-se de um único plano sequência. Tentem descobrir onde diabos Antonioni enfiou a maldita grade. Hein?

Schneider & Nicholson

A mesma carta marcada (observações de Marcos Nunes sobre o filme Coringa)

A mesma carta marcada (observações de Marcos Nunes sobre o filme Coringa)

A MESMA CARTA MARCADA, por Marcos Nunes

Fiquei bastante surpreso com o fato de algumas pessoas de minhas relações terem visto – e gostado – de CORINGA. Me obriguei, assim, a vê-lo, ainda que deteste o subgênero “filmes baseados em histórias em quadrinhos com super-heróis”, basicamente porque super-heróis são apenas uma expressão de cultura de massas, que se utiliza da fórmula das soluções mágicas para mascarar a impotência de seus consumidores, inserindo-os em um universo demagógico onde ele tem voz e poder.

Lamento, mas não gostei mesmo do filme, ainda que ele seja diferente dos demais desse subgênero, tanto na construção do roteiro quanto das personagens, além da linguagem cinematográfica que o aproxima mais de filmes realistas como Midnight Cowboy ou hiper-realistas como Taxi Driver e sua violência gráfica. Arthur, o Joker da vez, me pareceu uma fusão de Ratso (de Midnight Cowboy) com Travis (de Taxi Driver).

O tipo esquizo-paranoide que é associado ao cidadão comum, suas mazelas, fracassos e acentuado grau de sociopatia, não me pareceu representar a revolta dos pobres esquecidos pelo capitalismo financeiro versus os ricos que abdicaram de qualquer pretensão a um mundo mais justo e gozam com a multiplicação das injustiças.

Ele me parece mais um… bolsomínion, alheio à política, imerso no ressentimento e, em dado instante, também adepto da solução violenta como expressão de sua potência íntima relegada à marginalidade por um sistema injusto.

Arthur, cuja fisionomia muitas vezes lembra a do vigarista-em-chefe ora no poder, também não sabe de nada, sequer da própria vida e de seu passado. Supostamente a mãe foi vítima de uma trama de ocultação de paternidade sob responsabilidade do vilão da história, o pai de Bruce Wayne (que virá a ser o “Batman”, coisa mais ridícula, um bilionário ocupado em fazer justiça com as próprias mãos para o bem de uma sociedade conflagrada justo pela desigualdade crescente de renda e poder…).

Mas tudo pode ser apenas projeção de mentes paranoicas, mergulhadas no delírio persecutório. Mas também pode não ser.

Nisso entra o discurso subliminar acerca da ignorância, despolitização, incapacidade técnica e fracasso social em que mergulhou a maioria dos habitantes de Gotham City, que passam a cultuar o “assassino do metrô” por ele ter liquidado com três agentes do mercado financeiro (coisa, aliás, bem inverossímil: três corretores do mercado financeiro na madrugada, viajando pelo infecto e perigoso metrô da cidade…).

Isso lembra o que? Exatamente: o revanchismo do pobre que, ao invés de mudar sua condição pela razão e compreensão do jogo político e social de um universo financeirizado, toma para si a figura de um assassino que potencializa suas realizações, dá expressão aos desejos de vingança e às soluções mágicas da violência, da fé cega e faca amolada, que significariam, para essa massa, a fuga do sistema, vitória sobre ele, conquista de força pessoal e coletiva.

Mas tudo que se produz a partir desse herói imerso em complexo de inferioridade é o caos, a anarquia.

Me pareceu que a conclusão do filme é óbvia: dar poder ao povo significará caos irremediável. A miséria que existe é responsabilidade apenas dos próprios miseráveis, mentalmente incapazes e psicologicamente destruídos por uma fusão de ignorância total e desejos irrealizáveis.

Ao imergir na cultura das massas, chega-se à conclusão que o mais perigoso para a sociedade é render-se à demagogia da assimilação dos conceitos do homem comum para melhor feitura e conclusão de um Estado capaz de atender a todos, não apenas àqueles que, em termos darwinistas sociais mais bem dotados, tomam o poder nas mãos, e isso é posto como absolutamente legítimo.

O que é a falta de poder do Coringa se não inadaptabilidade social derivada de males psicológicos derivados não dos conflitos de classe e poder, mas apenas de relações afetivas instáveis e marcadas pelo pendor à esquizofrenia?

Me parece bem estranho que pessoas “de esquerda” tomem o Coringa como símbolo para uma revolta consequente das massas. O que o filme apresenta é justo o posto: ressentidos cuja arma revolucionária é apenas a violência direcionada genericamente aos “ricos”, sem que compreendam qualquer coisa acerca do tecido social construído por determinado modo de produção.

O Coringa representa, isso sim, os bolsomínions, o cara ignorante, violento, preconceituoso, que emerge das massas como expressão do obscurantismo essencial das mentes imersas nas piores patologias. A massa o acolhe como herói, um homem antissistema, despolitizado, que vence como símbolo da estupidez coletiva empoderada.

Funciona, assim, como um aviso contra lideranças políticas “populistas”. E nesse balaio cabe, prioritariamente, quaisquer lideranças políticas de esquerda, jamais os tecnocratas do liberalismo econômico.

Funciona como imagens reveladoras da degradação dos povos, sob única responsabilidade… deles mesmos. São as cartas marcadas de sempre: ou o povo é conduzido por déspotas esclarecidos, ou cria um despotismo próprio, o fascismo, elegendo um líder carismático e pondo-o a serviço de sua irracionalidade patológica.

Não serve como expressão de revolta legítima contra um sistema político e econômico que condena as massas à pobreza e à miséria, mas o inverso: como tal revolta apenas expõe uma massa de ressentidos cuja fúria leva tão somente à perseguição, tortura e morte dos inimigos, designados apenas como “os ricos”.

Diante disso, “chama o Batman”.

E isso é muito pouco. E certamente demais para ter ganho um Leão de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Veneza.