Da formação dos grandes artistas

Arthur Rubinstein achava que um músico deveria praticar por 4 horas e depois passar outras 4 lendo, informando-se ou em contato com outro gênero artístico a fim de ter o que expressar quando voltasse à tocar.

Uma musicista como a Elena ouve um violinista e diz que ele deve ser muito culto para poder tocar daquele jeito. Eu pesquiso e o cara tem mil interesses. Os muito especialistas que me perdoem, mas cultura é fundamental.

(Para citar 3 supercraques, quando Pollini ou Brendel ou Ehnes chegam perto de seus instrumentos, eles trazem todo um mundo com eles, crianças).

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Na chaminé do Beira-Rio

O Bernardo devia ter uns 13 anos, então foi lá por 2004. Fomos ao Beira-Rio ver um jogo e subimos pela arquibancada superior até bem próximos do local onde ficava a chaminé da Churrascaria Saci, esta fechada desde os anos 80.

Quando sentamos, veio um rapaz muito educado me alertar que o setor era ocupado pelo Pessoal da Chaminé.

Eu perguntei se podíamos ficar ali e ele disse que sim, claro, desde que eu não me importasse com o fato de que eles fumariam maconha durante toda a partida. Ele garantiu que era só isso, que de resto estaríamos no local mais seguro, no menos agressivo de todo o estádio.

Fiquei um pouco na dúvida, falei com o Dado e resolvemos ficar. Ninguém nos incomodou, mas eles simplesmente ficavam em pé, muitos de costas para o campo, falando de tudo um pouco. Lembro que fizemos uns três gols e que, nestes momentos, participávamos dos abraços e das comemorações deles.

Depois, eles voltavam ao papo, que os interessava muito mais do que o jogo.

Onde andarão esses caras nestes tempos de gentrificação dos estádios e de posturas bolsonaristas? Ignoro, mas quando os estádios reabrirem para o público, irei até o local da ex-chaminé conferir se ela ainda existe. Ou será que a reforma do estádio sumiu com a chaminé e seu Pessoal?

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Em tempos de angústia, nada melhor do que as narrativas sombrias e engraçadas de Charles Dickens

Em tempos de angústia, nada melhor do que as narrativas sombrias e engraçadas de Charles Dickens

Da coluna de JOSÉ ANDRÉS ROJO, no El País
Traduzido livremente por este criado de vocês

Muito foi dito sobre a oportunidade que o confinamento nos proporcionou de reencontrar livros e filmes, ver séries. Falamos também das chances para começar a desenhar ou escrever, para contar coisas, para ouvi-las. Ficamos em casa para ajudar a conter o contágio da doença, e acontece que, entre quatro paredes, havia muitas possibilidades. Nestes momentos em que não se sabe o que finalmente acontecerá e que a suspensão da normalidade mais uma vez valorizou o tempo e, portanto, as histórias, recordamos que Charles Dickens foi um dos mais capazes de contá-las. E este ano está sendo lembrado que ele morreu em 1870, há 150 anos.

E ele tem algo a nos dizer neste momento, as aventuras de seus personagens são interessantes, ele oferece alguma lição, seus assuntos ainda preocupam as pessoas de hoje? Há um momento em um de seus livros em que um de seus personagens deixa cair um chapéu. E este começa a escapar, empurrado por um vento “sutil e brincalhão”. “Existem poucos momentos na vida de um homem”, escreve Dickens, “onde ele experimenta um sofrimento mais grotesco do que quando persegue seu próprio chapéu”. Esse homem é o Sr. Pickwick, fundador de um clube selecionado ao qual outros membros ilustres se juntam a fim de contarem suas aventuras e registrar suas viagens e investigações, suas observações e conjecturas sobre o mundo. E essa autoridade imponente de um clube tão especial sofre esse revés no meio de uma multidão que observava algumas práticas militares. As tropas aparecem em perfeita formação, a banda militar se interrompe para tocar, os cavalos movem suas caudas de um lado para o outro, há uma sucessão interminável de guerreiros de farda vermelha e calças brancas, os soldados se preparam para executar suas exibições de tiros e manobras. E Pickwick está na primeira fila, para não perder nada, e seu chapéu voa.

Dickens estava escrevendo suas histórias em capítulos, o público as esperava, lia e comemorava. Ele contou o que estava acontecendo com os curiosos membros do clube Pickwick, mas também contou histórias tristes de órfãos que viviam terríveis circunstâncias na Londres vitoriana. Casas apertadas e pobreza, mas também mansões e luxo, grandes ambições e esperanças, caminhos truncados, renúncias generosas e manobras repugnantes de exploradores sem escrúpulos. Dickens era um mestre a contar as mais diversas histórias. Você conhece George Silverman`s Explanation, nada mais do que algumas páginas em que ele conta a vida de uma criança que vê seus pais morrerem em um porão infectado e que depois renuncia à mulher que ama?

Onde exatamente estamos agora? Mais perto do homem que sofre ao levar a mulher que ama para os braços de outro ou do pobre diabo que é forçado a se fazer de bobo enquanto corre atrás do chapéu? Certamente de ambos os lados, no caso menor e no que parece maior. As histórias valem a pena e são melhores se forem contadas por alguém tão bom e engraçado como Dickens.

Charles Dickens (7 de fevereiro de 1812 – 9 de junho de 1870)

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Uma filha da p…

Uma filha da p…

Eu aprendi uma coisa curiosa naqueles dias da virada dos anos 60 para os 70, mais exatamente entre 1969 e 75, quando fui aluno do Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Tal ensinamento grudou em mim, desde aquela época em que o Julinho vivia seus últimos dias de auge e tinha algumas características educacionais bem próprias e libertárias, mesmo durante a ditadura.

O ensinamento era o seguinte: quando alguém denunciava um colega por ter cometido um erro ou alguma coisa fora das regras da escola ou do razoável, uma dura punição acabava sendo dirigida a ambos, ao delatado e ao dedo-duro, o delator. Porém, quando alguém confessava seu ilícito, a punição era bem menor. Pois delatar seria uma forma de filha-da-putice, uma canalhice, deslealdade, traição. E não confessar também.

Eu adquiri tal postura. Quando faço algo errado, seja uma brincadeira equivocada ou um ato mais grave, me entrego logo de cara., peço desculpas, etc. Porém, quando outro comete mancadas, jamais acuso, mesmo que saiba. Tive uma colega e amiga que fazia o mesmo, e então comprovei como esta nobre postura também pode ser péssima. No trabalho como jornalista, ela tinha a mesma função de outra funcionária, que sempre acabava por montar nela. Todo erro dela era criticado em voz alta pela colega — algumas vezes por e-mail para a chefia e colegas –, a qual jamais recebia uma resposta de mesmo calibre. A acusadora acabou tida como pessoa correta e intocável, apenas caindo no conceito da minha amiga, o que não tinha significado nenhum na dinâmica do grupo. Pior, minha amiga silenciosamente corrigia os erros cometidos pela dedo-duro, tudo em nome do “time”. Se o Papa a conhecesse, lhe concederia a canonização.

Lembro que ela nunca virou seu caminhão de lixo ou de ressentimento sobre a outra. Todos a viam como uma jornalista mais ou menos competente e nada sacana. Eu só observava. Um dia, após um discurso da filha da puta, dei-lhe os parabéns e disse que, a propósito, não era de meu feitio apontar os erros de outros para a chefia. Resultado: ela passou a me perseguir.

Mas ela não sabia administrar o sarcasmo alheio e nisso… Bem, nisso eu sou bom demais.

Foto: Ricardo Duarte
Foto: Ricardo Duarte

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Um doido varrido

Um doido varrido

Às vezes temos revelações inesperadas décadas depois.

Há um sujeito casado com uma colega da mãe dos meus filhos. Por algum motivo, nestes mais de 20 anos pós-separação, eu cruzava muito com ele. Ele ou me cumprimentava efusivamente ou me ignorava por completo.

Eu achava que ele era de lua ou tinha um parafuso a menos.

Hoje, na saída do cinema, esgueirando-se entre as pessoas, passaram em fila a colega — oi, tudo bem? –, o tal sujeito — que me ignorou, agindo verdadeiramente como um grosso — e uma cópia idêntica dele — que me cumprimentou alegremente — oi, Milton, tudo bem, sempre no cinema ou com um livro na mão, hein? Ele até me abraçou e bateu nas minhas costas.

Pois é, o cara tem um irmão gêmeo com o mesmo corte de cabelo e tudo. E eu pensando que ele fosse doido varrido.

Cena do filme “Gêmeos, Mórbida Semelhança”.

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A história dos bares de esquerda de Porto Alegre: a Esquina Maldita (revisado)

A história dos bares de esquerda de Porto Alegre: a Esquina Maldita (revisado)

(Fanfarras. O auditório está animado, aplaude e o programa começa. Adentra o palco um homem grisalho, não de todo acabado. É o Especialista. Ele senta ao lado do apresentador, que fala.)

— Nosso pogrom d`oje traz o Espesializta Milton Ribeiro para nos contar sobre a Esquina Maldita. Boa noite.

— Boa noite, é um praz…

— Claro que é um prazer! Milton, diga-nos: quais foram os bares que formaram a famosa Esquina das avenidas Osvaldo Aranha e Sarmento Leite?

— Ora, primeiro, em 1966, veio o Alaska, depois vieram o Estudantil, o Copa 70 e o Marius.

— Quanto tempo duraram?

— Sei lá. O que sei é que o Alaska fechou em 1985 e o Marius foi adiante por mais um tempo.

— Quem ia ao Alaska?

— A militância d`esquerda.

(Fanfarras. O apresentador levanta-se e grita.)

— Ele acaba de ganhar uma caixa de nosso patrocinador, os cigarros d`Arrabalde, o cigarro d`oômem! Parabéns, Milton.

— Obrigado. Eu estava ligado.

— Bem, podemos continuar.

— O Alaska tinha um garçom que às vezes era acompanhado de um auxiliar meio idiota. O idiota sempre mudava, era de alta rotatividade. O garçom não era nada idiota, seu nome era Isake Plentis d`Oliveira.

(Fanfarras. Porém, o apresentador levanta-se e faz parar tudo.)

— Não, não valeu. Com nomes próprios não vale.

— OK, desculpe.

— Adiante!

— Então o garçom era Isake Plentis de Oliveira, conhecido por apenas por Isake. Quem ia lá era a intelectualidade da esquerda e muitas vezes éramos visitados pela polícia. Obviamente, o DOPS mantinha informantes lá.

— Sempre foi assim?

— Bem, nem sempre. No início era um bar em que as pessoas iam para conspirar ou falar de política, era também quase exclusivamente masculino. Depois, nos anos 70, as mulheres tomaram conta.

— Virou um bar de encontros?

— Não, de jeito nenhum… Foi um bar de resistência à ditadura até a metade dos anos 70, depois virou o local da esquerda festiva. Derrubávamos o governo todas as noites.

— E o que você comia lá?

— A gente comia os pratos mesmo.

(O apresentador ri e aponta para o Especialista. Seu gesto denota quão irresistivelmente engraçado é ele.)

— Os pratos eram o Robertão, o Burguês, o Vietcong e se bebia trigo velho ou batidas de côco e maracujá. Tinha chope, mas eu não tomava chope lá.

— E os outros locais?

— O Estudantil era barato e bagaceiro. As pessoas morriam no Hospital São Francisco e os parentes iam lá se embebedar. Esses momentos eram tristes. Era também o bar dos lixeiros da madrugada. Eles paravam o caminhão e o Ataliba, o garçom, servia cerveja para eles. Esse pessoal não se misturava com os intelectuais do Alaska e vice-versa.

— E o que você comia lá?

— Mulheres, porque o bar tinha dois ambientes. O da frente, com mesas, e o de trás, que era escuro e destinado ao sexo. Do amasso ao coito, podia tudo. Com o tempo, deixei de ir porque eu não era suficientemente promíscuo.

— Trepava-se com estranhos?

— Às vezes.

— E o Copa 70?

— Era um bar d`omossexuais!

(Fanfarras. O apresentador levanta-se e grita.)

— Ele acaba de ganhar mais uma caixa de nosso patrocinador, os cigarros d`Arrabalde, o cigarro d`oômem! Parabéns, Milton.

— Obrigado. Eu fiquei desligado por um tempo mas agora liguei de novo.

— Bem, podemos continuar.

— Era o bar onde a Nega Lu, que se chamava Luis Airton Bastos, fazia performances.

— Então, o que se comia lá?

— Bundas.

— Havia drogas nestes bares?

— Sim, mas o pessoal do Alaska não gostava daquilo. Elas alienavam.

— E o Marius?

— O Marius foi o último a abrir. Já era o tempo da decadência. A Universidade foi lá para o campus e o pessoal das drogas foi… foi… foi para… deixa eu fazer a frase… mais para o meio da Redenção.

— Hum, para que bar?

— O nome dele é… é. Bom, eles se tornaram o pessoal d`Ocidente.

(Fanfarras. O apresentador levanta-se e grita.)

— Ele acaba de ganhar mais uma caixa de nosso patrocinador, os cigarros d`Arrabalde, o cigarro d`oômem! Parabéns, Milton. A terceira caixa, hein?

— Obrigado. Agora tô ligado, tô ligado.

— E então?

— O grosso das pessoas foi para o Ocidente e os saudosos da Esquina Maldita acabaram no Marius.

— Bem, como já entregamos três caixas de nosso patrocinador e o Milton tem de trabalhar, encerramos aqui a entrevista. Milton, alguma coisa que queira acrescentar?

— Foi um`onra estar aqui.

(Fanfarras. O apresentador levanta-se e grita.)

— Não vale, não vale, tem que ser com “d”. Boa noite. Fim de programa.

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No Uber, com um haitiano

No Uber, com um haitiano

Ontem, peguei um Uber com um haitiano. Logo notei que o sotaque me era estranho e ele me disse que sua língua preferencial era o francês.

— E o crioulo?

— O crioulo é a língua das ruas. O francês é a língua da escola, dos livros e dos documentos. Eu falava crioulo na rua, mas tudo o que escrevia e lia lá era em francês.

— São línguas parecidas?

— Sim. Bon jour, bon soir, quase tudo igual, mas o criolo tem algumas palavras diferentes, nossas.

— O francês é oficial?

— Sim. Somos um dos 2 países da América com língua oficial francesa. O outro é o Canadá.

Perguntei como ele aprendera o português.

— Em Manaus, com um professor angolano. Três meses de aula. Bom professor, mas com aquele sotaque e a fala rápida dos portugueses. Tinha que suar para acompanhar.

— E o clima em Manaus, é parecido com o do Haiti?

— Não. O Haiti tem o melhor clima do mundo. É seco e agradável. É dos poucos motivos de orgulho. O sol do Haiti é vitamina, o de Manaus é doença.

— Sim, minha mulher viveu 7 anos lá e concordaria. E como vieste parar em Porto Alegre?

— Meu filho conseguiu emprego aqui. Me ajudou a alugar este carro e estou dirigindo há 4 semanas, sem conhecer quase nada da cidade.

— E tu sente o racismo?

— Claro que sim. Brasileiro não é fácil. Me olham estranho. É difícil alguém sentar do meu lado como o senhor. E reclamam que eu não sei o caminho. Não sei mesmo. Ainda bem que tem o banco de trás, né?

E abriu enorme sorriso.

.oOo.

(Boa sorte no Brasil, M., vais precisar. Detalhe: M. tem 4,66 na avaliação. Não sei se é merecido).

Foto de Porto Príncipe | Foto: Projeto 101 países

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Um ano de Bamboletras

Um ano de Bamboletras

Hoje, 12 de março, faz um ano de uma de minhas maiores loucuras, a de me tornar livreiro aos 60 anos. Se era um sonho antigo, também era um daqueles que todo mundo tem em devaneios irrealizáveis. Às vezes pensava em me tornar um velhinho de óculos vivendo em meio aos livros… E ia fazer outra coisa. Neste último ano, várias pessoas me cumprimentaram pela coragem. Não me acho corajoso. Apenas corri atrás quando soube que a Lu queria repassar a livraria a quem a mantivesse. E larguei a atividade de jornalista sem olhar para trás. A Elena ri, diz que eu garanti uma terapia ocupacional vitalícia, o ideal para quem nunca pensou em se aposentar. Ela está certa. Mas olha, jamais pensei que desse tanto trabalho. É claro que há uma maioria esmagadora de bonitos momentos atrás do balcão, mas há também um intenso trabalho de retaguarda que aprendi do zero.

Auden escreveu que “Quando o processo histórico se interrompe, quando a necessidade se associa ao horror e a liberdade ao tédio, a hora é boa para se abrir um bar”. Talvez por não haver tédio nem horror, apenas necessidade e liberdade, virei livreiro e não dono de bar, sei lá.

A Livraria Bamboletras é um ícone de Porto Alegre. A Livraria Bamboletras é um ícone de Porto Alegre criado com extremo cuidado e carinho pela Lu Vilella. Digo-lhes claramente que virei um livreiro por herança. Tentei preservar o estilo ao máximo, mas inevitavelmente uma nova cara deve ter aparecido.

Sim, nosso acervo é escolhido criteriosamente e não apenas recebido; sim, ficamos felizes quando um cliente retorna e diz que nossa última sugestão foi fantástica e que o livro era ótimo (conhecemos o que vendemos); sim, há muita tensão em razão do mercado instável; sim, as distribuidoras querem nos enfiar best sellers; sim, vocês pedem e a gente vai atrás e muitas vezes dá certo (a gente se orgulha), outras vezes não (contrariedade); sim, estamos com todas as contas em dia mas não pensem que sobra muita coisa (a gente realmente quer ver vocês nos visitando mais, sabe?); sim, coloquei a herança da minha mãe na compra da livraria; sim, ainda estamos pagando a citada ex-dona que deixou a Bamboletras assim tão linda (fazemos isso direitinho); sim, fizemos e fazemos parcerias com escritores, instituições, artistas e bares; sim, vamos atrás dos melhores lançamentos às vezes enchendo o saco de meio mundo (às vezes, receber uma reposição ou livros para um evento mais parece um thriller); sim, visitamos as distribuidoras para escolher as obras uma a uma e… Não, não pretendemos ser menos exigentes.

A Bamboletras não sou eu, é uma equipe. Tem a Bárbara, a Cacá, a Eliane, o Gustavo, a Zair. E durante o ano ainda tivemos a Ana, a Josi e a Vitória. É uma baita equipe e falo da qualidade. Agradeço a todos.

Só não pensem que é fácil. Aliás, qual é o trabalho sério que é fácil? Porém é também divertido, estou muito feliz.

Ah, dia 24 de abril faremos 24 anos sempre independentes e agora, devido à circunstâncias que não vamos citar para não emporcalhar este texto pobre mas limpinho, também resistentes.

Particularmente, agradeço à Elena, à Bárbara, ao Bernardo e à Iracema pelo apoio neste ano e nos que virão.

E também a todos os que nos visitam e que apreciam nosso trabalho.

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Erotismo e pornografia

Erotismo e pornografia

Dia desses escrevi no Face algo de tom ameno — o único tom possível para não receber muitas agressões no Facebook — sobre o fato de que as pessoas não sabem a diferença entre pornografia e erotismo. De qualquer maneira, aquilo causou certa confusão e recebi de volta até a citação de Alain Robbe-Grillet, “A pornografia é o erotismo dos outros”, a qual, para alguns, significa de uma coisa é igual a outra, bastando alterar a perspectiva.

Definições melhores partiram de filósofos e linguistas que conhecem as raízes gregas das palavras — encontrei inclusive uma catilinária pró-erotismo do grande Donaldo Schüller — e de psicólogos.

A etimologia da palavra grega pornografia nos diz claramente: “escrever sobre prostituição”. A de erotismo vem de eros (amor, desejo sexual), mais o sufixo ismo, que significa atividade, sistema.

Comecemos pela pornografia. A pornografia é fácil de identificar. É quando é vendida uma ilusão (ou menu) simples e fácil. Não há nenhum fato de ordem psicológica que impeça a realização do desejo, nenhuma culpa ou neurose, nada. Ali, há a platitude, o 2D. Tudo é resolvido em linha reta no âmbito de um desejo a ser satisfeito. É mudar várias vezes de posições e chegar ao espetacular orgasmo. Não há inibições ou problemas. Apenas envolvimento no sentido de chegar lá.

Já o erotismo não dá facilidade. O sexo pode até não ocorrer. A realidade é incontrolável e pode ser fugidia. A erótica é uma ficção realista, carregada de possibilidades estimulantes ou não, longe do gozo louco e contínuo.

Ou seja, na pornográfica tudo está absolutamente controlado, seguro. É uma via em um só sentido, um atalho onde normalmente um responde ao desejo do outro. Ambos têm em grande quantidade o que outro quer e os acontecimentos são repetitivos, previsíveis, aguardados, sem divergências. Problemas para fazer o outro gozar? Nem pensar. Longe de qualquer problema, perto de um final feliz, a pornografia vai ao Olimpo com os gritos de Yesss da mulher dando aval ao pênis, à mão, à língua ou outro objeto ou equipamento. Você imagina um pornô dando errado? Jamais. O pornô deve estimular.

Já o erotismo pode ser tão excitante quanto a pornografia, mas nele a coisa pode tornar-se traiçoeira como a realidade. Ele vem carregado de possibilidades e impossibilidades, de ascensões e declínios, o gozo é limitado aos limites humanos e há possibilidades de embaraços.

Como o cinema é a arte mais pública e em comum que temos, diria que os filmes O Último Tango em Paris, Jovem e BelaShame Ninfomaníaca são filmes limítrofes, mas pendem mais decididamente para o erotismo, assim como tudo aquilo que nos excite fora do caminho fácil e inexorável da pornografia. Ou seja, é claro que muita coisa pode ser erótica em dramas ou comédias assistidos comportadamente por famílias. Já viram Grace Kelly crescendo na tela em Janela Indiscreta, Ingrid Bergman olhando para Humphrey Bogart  em Casablanca ou Juliette Binoche massageando os pés em Cópia Fiel? Pois é.

Já a pornografia pode ser vista às carradas em sites como pornhub, xvideos, redtube, xtube, o diabo.

Assistindo uns e outros, deve ser fácil notar a diferença…

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Enlouquecendo e morrendo

Enlouquecendo e morrendo

No Brasil — ou ao menos em Porto Alegre — existe o Imposto Sotaque. Se eu peço um serviço, ele custa mais ou menos R$ 25 por hora. Se a Elena pede, custa R$ 60. Não estou brincando. Aconteceu ontem e hoje, com a mesma pessoa.

Também se a Elena, que é bielorrussa, usa um táxi, tem que explicar o itinerário. Se não faz isso, o cara vai de um bairro a outro da cidade pelo Canal do Panamá.

Isso faz com que eu seja o porta-voz do casal para efeito de contato com prestadores de serviços. Marceneiros, hidráulicos, pintores, eletricistas, pessoas que arrumam ar condicionado, tudo tem que ser comigo. O que é muito chato, pois a maioria dessas pessoas presta maus serviços e tudo acaba em reclamação. Semana passada contratei um marceneiro para arrumar nossas venezianas.

— O Sr. também pode pintá-las?
— Sim, claro.

Pintura feita, vemos que o serviço ficou uma porcaria.

— É que o Sr. sabe, eu sou marceneiro. Pintei só porque o Sr. pediu. Na verdade, não sou pintor.

E eu não pedi absolutamente nada, apenas perguntei. Assim, enganado desta forma, vou lentamente enlouquecendo e morrendo. Para não matar.

Foto: Divulgação.

 

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Porto Alegre e o calor senegalesco

Porto Alegre e o calor senegalesco

Ainda bem que a temperatura caiu nos últimos dias em Porto Alegre. Na semana passada, quase todas as pessoas com as quais eu mantive contato estavam irritadas, muito irritadas e cansadas. Vivíamos sob 37 graus e sensação térmica de 46. Os antigos narradores de futebol falavam em “temperatura senegalesca”, o que revela que os narradores de antes eram tão desinformados quanto os de hoje, pois, se a temperatura do Senegal chegasse aqui, seria uma dádiva a ser saudada por qualquer porto-alegrense.

Saibam que o Senegal é um país de clima muito agradável. Tem, basicamente, duas estações. Uma estação seca de novembro a maio, quando nunca chove e as máximas ficam entre os 23 e 25 graus. A outra estação é úmida e mais quente: de junho a outubro há alguma chuva, principalmente no sul do país. A média das máximas fica em 29, 30 graus.

Então, meus filhos, quando a coisa estiver insuportável por aqui, não fale em temperatura senegalesca e pense em Dakar como um bom destino. Ah, prepare algumas frases em francês. Ou em uolofe.

O Monumento do Renascimento Africano em Dakar, Senegal | Foto: Black History Heroes

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Buscando uma pizza na Fermentô e o retorno para casa

Buscando uma pizza na Fermentô e o retorno para casa

Eu fui comprar uma pizza na Fermentô Pizzaria e aconteceu uma coisa admirável. Estava todo mundo naquele azáfama (está na hora de recuperar esta bela palavra), naquela correria louca de pegar ingredientes, montar as pizzas, colocá-las no forno, de empilhar as pizzas sobre o forno até que fossem buscadas quando, subitamente, começou a tocar Whole Lotta Love. Estavam todos de costas para o caixa, onde eu estava, menos a moça que trabalhou no Bonobo e que estava de frente. Quando Jimmy Page atacou o riff e Bonham ligou o motor, todas as bundas começaram a se mexer da mesma forma, em perfeita sincronia, menos a menina do Bonobo, que mexia os ombros. Era lindo, parecia que eu tinha entrado num musical. Até que um dos caixas pediu para baixar o som, porque aquilo o atrapalhava para conversar com os clientes no Whats. Hã???? Sim, ele conversava por escrito! Pois é, o cara acabou com nossa alegria. Mas tudo bem, todo mundo lá é legal, só que me deu vontade de dizer que um protetor auricular custa menos de R$ 5 em qualquer boa ferragem. E funciona até se ligarem uma britadeira.

.oOo.

Aí eu chamei um Uber e entrei no carro com duas pizzas.

— Seu Milton…
— Sim?
— São 20h e meu almoço foram umas fritas com Coca-Cola.
— E este cheiro está te matando.
— Sim. Tem uma de alho e óleo aí.
— Tem.
— Sabe que eu não comia alho? Mas aí, para poder beijar a minha namorada, comecei a comer, claro. Hoje adoro alho. Tudo pelo sexo.
— Acho justo, digno, fundamental.
— De acordo, seu Milton.
— Alho é um ingrediente conjugal. Se minha mulher come alguma coisa com alho no almoço, chego em casa à noite, sinto o golpe e mastigo um dente de alho para ficar em iguais condições. Aí dá para conviver na boa.
— Eu faço o mesmo. Mas tem algo pior, Seu Milton.
— O quê?
— Eu não suporto mulher que fuma, me causa enjoo.
— É mesmo?
— Sim, seu Milton. Sai aquele cheirão do hálito, dos poros, não rola.
— Tu brocha?
— Vou lhe confessar, seu Milton. Brocho mesmo. Ainda mais que não sou mais criança. E minha namorada é ex-fumante. Ela costuma me ameaçar dizendo que vai voltar a fumar.
— E o que tu faria?
— Isso seria um aviso para eu ir embora.

Surpreso, um pouco chocado com a última frase, me despedi do cara. Ele estava deprimido, mal por causa do alho e óleo que a namorada lhe ensinara a comer e péssimo por causa do anúncio dos cigarros, feito pela mesma. Mas que diabo de nariz tem esse cara, né?

A pizza de Flor de Alho e Óleo | Foto: Fermentô

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Amor

Hoje eu fui a um velório de devastador impacto emocional. Era o velório de minha ex-babá, que faleceu aos 93 anos. Passei muitos anos sem vê-la, décadas, até que seu filho Jacó, em abril de 2015, me reconheceu na feira de sábado da Vasco, veio falar comigo e promoveu um reencontro imediato, pois ela estava ali. Pequenina, frágil, sorridente, ela me reconheceu e falou muito bem de mim e de minha mãe. Nos abraçamos, nos beijamos, a Elena tirou fotos. Se aquele foi um dia muito feliz, repetir hoje seria impossível.

Foto: Elena Romanov

Ver a babá é revisitar a infância. Fui uma criança agitada, muito ativa, devia ser insuportável. Se até hoje não consigo ficar parado, imagino a peste que fui. E imaginei a incomodação, a lavação de fraldas, a correria atrás de mim. Porém da Márcia só lembro de delicadezas. Minha mãe confirmava: dizia que eu tivera a mais amorosa das babás, que tivera sorte. (Minha mãe era uma dentista que, assim como a Márcia, trabalhava muito e na época as crianças só iam para o Jardim da Infância aos 6 anos).

A surpresa veio na conversa com seu filho Jacó. Ouvi muitas vezes coisas sobre o amor que a Márcia me dedicava, mas eu também cresci insuportável: sou o tipo de pessoa que não acredita ou reduz os elogios que raramente recebe. Com lágrimas nos olhos, mas mantendo o bom humor, o Jacó disse que estava feliz com minha presença e que “ficaria com ciúmes” porque a Márcia me adorava. Um exagero, pensei, mas não me passou despercebido um fato: um dos netos sabia quem eu era, eu era o cara do encontro na feira.

E desmanchei de vez quando Jacó pediu a palavra após a fala do padre. Orador nato, de fala inteligente, voz emocionada mas bem colocada, o advogado Jacó percorreu rapidamente o longo arco da vida de sua mãe e passou a referir cada pessoa presente. A pequena sala de velório estava apinhada. Falou de amigos e amigas de sua mãe, parentes — alguns dos quais ela também criara — e vizinhos.

Quando chegou a minha vez, soube que minha mãe era apenas a melhor amiga da sua. Márcia viera de Maquiné e minha mãe logo a empregara, mas eram mais amigas do que qualquer coisa, disse ele. E lembrei de visitas que fazíamos à Márcia quando ela não era mais babá. Lembrei que olhava para o Jacó e que ele era “muito criança” para mim — tinha seis anos a menos do que eu (aliás, tem até hoje…). E o Jacó lembrou do PUDIM que a Márcia fazia sempre para nossa chegada. Meu deus, eu lembro do pudim! Era um milagre! Até hoje amo pudim e sempre que vejo um tenho a esperança de que a massa homogênea e clara da parte de baixo seja laaaaarga, delicada e leve como os da Márcia.

E ele voltou a brincar sobre os ciúmes que tinha de mim, agora publicamente.

É claro que jamais retribuí nada para a Márcia, ao menos verbalmente. Esteja ela agora onde estiver, digo envergonhado que também a amo, que sei da sorte que tive ao conhecê-la — éramos dois jovens, Jacó — e que, mesmo sem esperanças, seguirei atrás de um pudim tão maravilhoso quanto o dela.

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Reflexão simples sobre uma frase de Siddhartha Mukherjee: Preencher a vida

Reflexão simples sobre uma frase de Siddhartha Mukherjee: Preencher a vida

Na bela palestra de Siddhartha Mukherjee houve uma frase em que ele disse que, mesmo consciente da doença, a pessoa deve seguir preenchendo sua vida com coisas interessantes. Aliás, isso seria viver. E mudou de assunto. Concordo. E mais: digo que efetivamente não confio em pessoas que não leem, não se informam, não pesquisam, não ouvem música inteligente, não têm atividades culturais ou científicas. Viver é sobreviver e pré-viver, expressão que ele também usou, mas também é tentar o impossível de preencher o tempo de uma forma bonita. Essa é a razão pela qual valorizei tanto o post que compartilhei abaixo — do Gustavo Melo Czekster. Dos candidatos, a única que sei que lê é Fernanda Melchionna. Do resto, nada sei, pois eles não divulgam, sinal claro de seus vazios, de sua falta de preenchimento. É gente desinteressante, DESGRAÇADAMENTE ATIVA, que representa apenas o próprio desejo de participar ou empresas. Antes de votar, considerem isto.

(*) Música de qualidade seria aquela que nasce não de um produtor ou da modinha, mas de um autor que promova quaisquer diálogos ou confrontos com a cultura.

Siddhartha Mukherjee

 

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Sobre o País da Cocanha e a Pasárgada de Bandeira

Sobre o País da Cocanha e a Pasárgada de Bandeira

Quando a lenda surgiu ninguém sabe, tampouco a origem da palavra. A denominação aparece num poema jocoso, recolhido por volta de 1230. Mas há inúmeras referências muito antigas a esta terra de tantas maravilhas.

Há um país pra lá da Alemanha, abundante de todos os bens, ao qual chamamos Cocanha, onde cada um, sem nada fazer, pode ir viver quando quiser; e ter roupa sem precisar de dinheiro, sempre que quiser; sem suar, nem sofrer, tem-se o que quiser. Aqueles que amam o trabalho, renegam esse lugar. Molengas e preguiçosos ali são bem-vindos e, é certo, se sentirão muito bem entretidos. Acreditarão que estão no paraíso terrestre e, por nada, desejarão trocar de lugar. Não há onde estar melhor e sem sofrimento, tão somente para desfrutar, rir, beber e comer.

Tradição oral da Idade Média, esta Cocanha é um país obviamente mitológico. Nesta terra maravilhosa, não havia trabalho e o alimento era abundante. Todo qualquer produto era de graça, as casas eram feitas de cevada ou doces, o sexo podia ser obtido livremente, o clima era sempre agradável, o vinho nunca terminava e todos permaneciam jovens para sempre. Vivia-se entre dois rios, um de vinho e outro de leite, as colinas eram de queijo — aliás, o queijo chovia do céu — e leitões assados caminhavam pelo campo com uma faca espetada no lombo para facilitar.

Esta utopia — fantasia de fartura, ociosidade, juventude e liberdade — enraizou-se no imaginário de diversos povos ao longo da Idade Média.

O País da Cocanha, ou Cocagne, foi retratado pelo pintor Pieter Bruegel.

O País da Cocanha, de Pieter Brueghel
O País da Cocanha, de Pieter Bruegel

A lenda de Cocanha também representou um símbolo para a cultura hippie nos anos finais da década de 60, um lugar onde todos os desejos seriam instantaneamente gratificados.

E, bem, há uma Praia da Cocanha, em Caraguatatuba (SP).

E Manuel Bandeira criou Pasárgada

Na verdade, Pasárgada não tem nada a ver com espetacular poema de Bandeira. Pasárgada ou Pasárgadas (campo dos persas) foi uma cidade da antiga Pérsia, atualmente um sítio arqueológico na província de Fars, no Irã, situado 87 quilômetros a nordeste de Persépolis. Foi a primeira capital da Pérsia, no tempo de Ciro II, e coexistiu depois com outras, dado que era costume persa manter várias capitais em simultâneo, em função da vastidão do seu império: Persépolis, Ecbátana, Susa ou Sardes. É hoje um Patrimônio Mundial da Unesco.

Ruínas de Pasárgada, Patrimônio Mundial da UNESCO
Ruínas de Pasárgada, Patrimônio Mundial da UNESCO

Bandeira explica: Vou-me embora pra Pasárgada foi o poema de mais longa gestação em toda minha obra. Vi pela primeira vez esse nome de Pasárgada quando tinha os meus dezesseis anos. Foi num autor grego. Esse nome de Pasárgada, que significa “campo dos persas”, suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias. Mais de vinte anos depois, quando eu morava só na minha casa da Rua do Curvelo, num momento de fundo desânimo, da mais aguda doença, saltou-me de súbito do subconsciente esse grito estapafúrdio: “Vou-me embora pra Pasárgada!”. Senti na redondilha a primeira célula de um poema

Vou-me embora pra Pasárgada

Manuel Bandeira (do livro Libertinagem, 1930)

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe – d’água.
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
– Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

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Você sabia que Martinho Lutero foi um precursor do feminismo?

Você sabia que Martinho Lutero foi um precursor do feminismo?

Tradução livre (*) a partir de uma postagem em russo
da psicóloga e escritora Nuné Barseghyan.

Quinhentos anos da Reforma. Obrigado, Lutero, pelo dia de folga.

Todos sabem que Lutero contribuiu para a saída de um grande número de freiras dos conventos, mas não com a finalidade de que estas caíssem numa vida dissoluta, e sim para que tivessem uma vida honesta, centrada na Religião e dentro do permitido pelas Escrituras. A intenção era a de que elas seguissem se desenvolvendo espiritualmente.

Mas o mundo, há quinhentos anos atrás, era um lugar muito pior, mesmo que seja difícil acreditar. Na época, ninguém era punido por abuso sexual, pois o fato era considerado corriqueiro, normal. E uma mulher que vivia sozinha, convidava e apontava o caminho para o abuso.

E as pobres freiras tinham que casar. Caso contrário, não poderiam sobreviver honestamente.

Marinho e Catarina
Marinho e Catarina

Uma freira chamada Catarina, que foi provavelmente colocada na Roda dos Expostos, entregue a um convento a fim de que a família se livrasse de uma boca supérflua, não queria se casar de jeito nenhum. Na opinião de alguém que era freira por convicção, o casamento era um terrível erro. Como se não bastasse, ninguém queria se casar com ela por ela ter um rosto feio.

Ela ficou ainda muito tempo sozinha, então Lutero pediu-a em casamento. Ele era um celibatário convicto, mas decidiu salvar a mulher. O casamento foi muito feliz, como sabemos.

Mas nem todo mundo sabe que Lutero, nesta sociedade machista, estava um dia sentado entre homens em uma mesa discutindo todo o tipo de questões prementes relativas à Reforma Religiosa, quando, repentinamente, num ato desafiador e após ouvir todos os colegas homens, voltou-se para a esposa, que servia à mesa, e perguntou: “O que você pensa sobre isso, Frau Luther?”

Frau Luther deu sua opinião detalhadamente, tendo deixado o grupo estupefato. Todos ficaram em transe, impossível imaginar um choque maior. Como assim? Desde quando se ouve uma mulher?

Mas então o Lutero deu o tiro de misericórdia: “Sente-se conosco à mesa para o almoço, querida!”

Se não fosse o próprio Lutero, talvez os homens o agredissem, tamanho o absurdo da atitude. Era um tremendo acinte, uma enorme provocação aos outros comensais.

Eu hoje estou pessoalmente muito agradecida a ele. Posso viver sozinha, sem precisar de autorização. Ninguém acha isso inadequado ou incomum.

Danke, Martin Luther!

(*) Por Elena Romanov e Milton Ribeiro

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“Doutor, estou tendo uma crise de representação”

“Doutor, estou tendo uma crise de representação”

O paciente entrou no consultório com ar desalentado, deitou-se no divã e disse:

— Doutor, estou tendo uma crise de representação.

— Não me diga.

— Ninguém me representa e os que um dia se propuseram a isso, desistiram, mudaram, sei lá.

— Sim.

— Vi que a coisa era grave quando compareci em a audiência nesta semana e não encontrei meu representante, meu advogado. Não sabia mais quem era ele. Se o vi, não reconheci. Voltei para casa desesperado com a derrota na causa e, quando subi as escadas, cruzei com o síndico. Ele me disse que havia um vazamento no meu apartamento, só que, doutor…

psi

— Sim?

— Não votei nele. Ele não me representa.

— Acredito.

Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos até que o paciente disse:

— Meu Deputado Estadual não foi eleito.

— O Federal?

— Também não.

— Senador?

— Perdeu por pouco.

— Presidente?

— Votei na Dilma, que já não me representava.

— Votaste em quem não te representava… Grave… Prefeito?

— O Sr. me toma por quem?

— Desculpe. E Governador?

— O Sr. realmente está me desconhecendo!

— Creio que deve haver pessoas em posições de algum poder que lhe representem. Vereador?

— Sim, votei numa boa menina. Foi eleita.

— Viu?

— É pouco, doutor.

— E o teu trabalho, ele representa tuas capacidades, teu papel e a forma como és necessário à sociedade…

— O que faço representa meu chefe, não a mim.

O médico contém o riso e diz que aquilo é muito comum.

— E as bancadas da Bala, da Bíblia, do Boi, da Bola?

— Nada doutor. Com B só Balzac, Bach, Beethoven e Brahms.

— E os movimentos identitários?

— Meu deus, doutor. Eles chegaram a tal grau de certeza de sua superioridade moral que não posso nem encará-los. Sinto-me indigno. E não poderiam me representar porque é o lugar de fala que garante a verdade do que é dito. Não adianta estudar. E meu lugar de fala é uma bosta: branco, homem, hetero, mesmo que traído pela mulher.

— Opa.

— Minha mulher, poderíamos chamá-la de Molly, elegeu um representante para minha função.

— Ela é mole?

— Meu deus, doutor, falo de Molly Bloom. Cito Ulysses.

— Ah, sim.

O médico se remexe na cadeira.

— Minha mulher tem um amante. Ponto.

O médico queria mudar de assunto. Decidira que representação era o tema daquela sessão. Adultério ficaria para uma ou várias próximas.

— E aqueles teus B`s queridos? Bach, Beethoven, etc.?

— Shostakovich.

— Como?

— Shostakovich. A polícia stalinista vinha buscar as pessoas em suas casas, à noite. Eles não davam tempo para o cara se vestir. Era levado para “prestar seu depoimento” como estivesse, normalmente de pijamas ou cuecas. Era para humilhar mesmo.

— E daí?

— E daí que Shostakovich passou a dormir vestido, preparado, para passar menos vergonha.

— E o que isso tem a…

— Depois ele pensou que seria melhor que não o pegassem dentro de casa. E começou a dormir no corredor. Quando ouvia o som do elevador, pegava a pasta e aguardava.

— Que loucura.

— Mas eles nunca vieram. A NKVD e a KGB nunca vieram.

— …

— E eu tenho medo do MBL, mas não apenas deles. Tenho medo de todos. E todos fazem linchamentos virtuais. Ninguém me representa.

— Escreva um textão no Facebook. Diga que respeita todo mundo. Os identitários, os punitivistas, a puta que o pariu, que cada um deve respeitar o espaço do outro, diga que acredita no diálogo e na democracia, que saúda respeitosamente cada degeneração. Não, não, não faça textão, responda a cada um de cada vez, sempre concordando. Depois volte aqui e vamos tratar do adultério em 30 sessões. Chama a Mole junto.

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Impregnado

Impregnado

Gosto de crianças. Tenho boas relações com elas e acho que sei como surpreendê-las. Quando meus filhos eram pequenos, fazia às vezes concorrência natural aos recreacionistas das festas infantis. (Também tenho uma estranha habilidade para fazê-las dormir). Sempre tratei de tirar meus filhos da frente da TV e dos jogos. Acho que as crianças ficam tempo demais na frente da tela luminosa, demais no videogame. Meus filhos — hoje na faixa dos 20 anos — nunca pediram videogame e, se a Bárbara via muita TV quando pequena, depois foi se afastando.

É difícil convencer uma criança que há outras coisas tão legais quanto ficar deitado como uma besta vendo TV ou ganhando habilidade com os dedos no videogame. Sempre disse a eles que os jogos os deixavam incrivelmente hábeis para os jogos e só. Em minha sistemática pressão antiTV, entrava em casa diariamente cantando em altos brados a música dos Titãs:

A televisão me deixou burro
muito burro demais
agora todas as coisas que eu penso
me parecem iguais

E, depois, vinha o golpe fatal que irritava minha filha e a “obrigava” a correr atrás de mim para me bater:

(…)
e agora eu vivo dentro dessa jaula
junto dos animais.

Pois dia desses eu fui ao futebol com o filho de um amigo. Ir a um jogo acompanhado de crianças é sensacional. É boné, salgadinho, sorvete, amendoim, mais salgadinho, água, o diabo. Mas vale a pena. Quando, já na arquibancada, veio o primeiro moço com a cesta de salgados, carregando todos aqueles quilos de gordura trans, e ofereceu seus produtos, ele respondeu:

— Não, agora não, recém comi um pão e um suco. Depois eu vou querer. Volta depois, tá? Obrigado.

É claro que o homem não ouviu nada após o primeiro não. Eu ria explicando a meu pupilo que não precisava dar um discurso, que era só dizer não, obrigado.

Mas, voltemos um pouco no tempo. Voltemos até nossa entrada na arquibancada. Antes do campo abrir-se para nós, eu o avisei:

— Te prepara para uma visão espetacular. Tu nunca vai esquecer disso.

Ele caminhou silenciosamente até a borda da arquibancada superior. Parei a seu lado e vi que ele estava pasmo, impregnado pelo ambiente. É lindo ver um campo de futebol iluminado, à noite. É uma coisa que só nós entendemos e que é impossível transmitir a quem não gosta de futebol. A melhor resposta para quem não entende nossa cara nestes momentos é a de Louis Armstrong quando lhe perguntaram qual era a graça que ele via no jazz: Man, if you gotta ask, you’ll never know. Se você tem que perguntar, nunca saberá.

Ou seja, o vírus inoculara-se nele. Não tive muito tempo para ficar nostálgico lembrando do dia em que meu pai me levara para ver Inter 1 x 0 São Paulo, em 1968, nem para recordar o ainda mais emocionante Inter 4 x 0 São Luís, a estréia do meu filho Bernardo no Beira-Rio, pois tinha que controlar o menino dando discursos encantados com tudo, mas principalmente com aquela atmosfera tribal… Logo depois, ele começou a demonstrar todo seu grande conhecimento de palavrões.

— Vai tomar no cu, seu juiz idiota do caralho. Enfia o apito no rabo!

Sim, foi um começo promissor, apesar de ele levantar a cada minuto, atrapalhando o pessoal de trás para torcer gritando:

— Vai, vai, vai, vai! Não!

Ou utilizando a mui contrastante variação:

— Isso, isso, isso, isso! Não!

Quando se dava conta de que tinha levantado novamente, pedia desculpas aos detrás, que riam, achando divertido o “descontroladinho”…

Foi muito divertido, claro. Um dia, nessa grande desilusão do crescer e amadurecer de cada um de nós, talvez ele queira reencontrar seu próprio deslumbramento com o mundo. Os escritores alemães (a começar por Goethe e seu Wilhelm Meister) criaram um gênero de romance muito próprio, aquele que trata da história pessoal da desilusão: o Bildungsroman. É o romance de formação, da edificação da individualidade, da incorporação da cultura. Mas nada disso ele reencontrará se ler este texto, talvez apenas dê risadas de sua falta de jeito.

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Sobre um detalhe da mostra Queermuseu do Santander

Sobre um detalhe da mostra Queermuseu do Santander

Quando pequeno, vendo TV, meu filho não suportava a voz do locutor que anunciava as maravilhas do Motel Botafogo. Ao ouvir a competente voz lasciva emitindo ar demais, meu filho tapava os ouvidos. “Por que ele precisa falar assim?”. Aquilo era muito para ele. Quando criança, o filho da Elena fechava os olhos quando Javier Bardem beijava Scarlett Johansson e Penelope Cruz em Vicky Cristina Barcelona. Minha filha também evitava tudo o que parecesse sexo. E garanto que vi inúmeras crianças fazerem o mesmo. Elas se protegem.

Hoje todos os citados e quase todas as outras crianças têm mais de 20 anos e são perfeitamente normais. Sei que não deve ser geral, mas é regra. Também sei que os politicamente corretos — de direita e esquerda — jamais engolirão esta liberdade assim no mais. É demais para as bolhas onde vivem.

Só quem tem experiência com elas sabe que evitam e logo esquecem quando veem uma cena forte (ou fraca) de sexo. Acham nojento. Na minha opinião, é idiotice achar que uma imagem sexual explícita vá deixar uma criança traumatizada. Ela não vai ficar parada, olhando, vai se retirar. Eu escrevi imagem, papel, tela, representação; não escrevi realidade, presença.

Tudo é usado pelos fascistas do MBL em sua sanha de proibição e “moralidade” e não guardo ilusões: a esquerda não é muito mais evoluída. Mas é um pouquinho.

Por outro lado, estou pasmo com a manutenção do fechamento por parte do Santander. Realmente, não há apelo à razão que entre na cabeça de um burocrata.

.oOo.

E meu guru Moysés Pinto Neto dá uma aula em seu perfil do Facebook:

O que vamos assistindo é o despedaçamento da inteligência em nível social e o jogar nas margens quem ainda ousa pensar. É uma sociedade burra, que não sabe fazer nada além de ~curtir~ e ~descurtir~, mobilizando seus afetos de raiva contra todos os signos que não correspondam à sua bolha algorítmica. A capacidade de interpretação é totalmente perdida, o mundo vira uma superfície unidimensional em que tudo só carrega um sentido: o de indicar como se deve agir. Tudo vira pedagogia rasa nas guerras culturais.

No universo unidimensional do sentido único, a arte é “incentivo a __”, como se o artista estivesse lá com a pretensão de dizer a regra. Ainda me lembro do debate, alguns anos atrás, quando uma desembargadora ativista defendeu a censura da música da Bidê ou Balde por incentivo à pedofilia, como já acontecera, por motivos análogos, com Racionais MCs e Planet Hemp.

Evidentemente, uma área como a arte, a mais polissêmica e multidimensional de todas da cultura, seria a primeira a ser assassinada numa sociedade de ignorantes que não conseguem entender o que é uma paródia, uma ironia ou qualquer coisa que escapa do sentido literal — além de viciados no complexo persecutório de que todo mundo é potencialmente um inimigo oculto. Por isso, não entendem que uma exposição que vende fotos da violência da Olimpíada sobre as favelas é uma ironia à mercantilização da morte ou que as mulheres que vão na Marcha das Vadias não são vadias no sentido estrito, mas querem transvalorar o termo para afirmar a liberdade sobre seus corpos, ou que não necessariamente alguém que escreve alguma coisa está dizendo exatamente o que está escrito. A metalinguagem, a escada infinita com que joga a inteligência, é o que está morrendo. Parece que só restarão superfícies de um lado só na pobreza do mundo moralista dos escrachos e repúdios.

Vivemos na era dos filmes dos irmãos Coen, em que a burrice — embora continue a mesma de sempre — consegue se encadear em rede, provocando eventos catastófricos e insólitos. Ainda não sabemos bem como reagir a isso, a não ser fazendo textões que nenhum dos ignorantes irá ler de qualquer modo.

Charge do genial Santiago
Charge do genial Santiago

 

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Noções bestinhas (mas verdadeiras) da língua russa

Noções bestinhas (mas verdadeiras) da língua russa

Nabokov se diz Nabôkav. Mas dizer o nome do autor de Anna Kariênina — sim, Karênina é apenas o nome de um dos cachorros de meus filhos — é mais complicado. É Talstói, porque o “o” que é não tônico vira “a” na pronúncia (vide Nabôkav). E sim, é Dastaiévski, tão pensando o quê? E o livro de Gontcharov (Gantcharóv), Oblómov, se diz Ablômav. Já o nome de Tchékhov (Tchéhav) envolve fonemas decididamente alienígenas. Então, se você encontrar um russo, pergunte “Como é mesmo o nome do autor de A Dama do Cachorrinho, As Três Irmãs, que era contista, dramaturgo e médico?” Quando o cara responder, preste bem atenção porque eu não consigo dizer aquilo. E o primeiro nome é Antôn…

Shastakovich, Prakófiev, Gógal, samavar… Vai por aí.

Me chamem de Dastá, nada de Dostô.
Me chamem de Dastá, nada de Dostô.

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