Isto ocorreu em janeiro de 2019, mas eu esqueci de publicar…
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Ciático
Pela primeira vez estou com a tal terrível dor no ciático que tantas vezes ouvi meus amigos descreverem para eu achar graça. Estou com dificuldades para levantar de cadeiras e camas e também para mexer os quadris. Ainda bem que não tenho compromissos importantes nos próximos dias. Imaginem se eu tivesse uma Noite de Núpcias pela frente, algo assim, sei lá.
5 anos. 5 anos, Elena
5 anos. 5 anos, Elena, completados neste 31 de agosto. E desde o primeiro momento, mesmo quando não tinha a menor ideia de como tu pensavas e falavas, mesmo quando não conhecia tua voz, mesmo quando eu só admirava de longe tua risada e a forma de caminhar, eu já tinha certeza, eu já sabia que te amava.
Obrigado por me aguentar por tanto tempo. Estou adorando.
Meu tratamento com o Dr. Eduardo, psiquiatra
Foi entre 1981 e 1983. Um dia, tentei telefonar para o CREA-RS, usando o número que tinha na minha cabeça. Não era aquele. Tinha trocado um 77 por um 07. Mas ouvi uma secretária eletrônica responder e me interessei. Dizia algo assim:
— Aqui é do consultório do Dr. Eduardo Pinheiro (só tenho certeza do primeiro nome), médico psiquiatra. Deixe seu recado após o sinal.
Hesitei um pouco, pensei nos meus ídolos do Monty Python, apresentei-me e comecei a contar ali mesmo, segurando o riso, uma série de problemas pelos quais estava passando. Devo ter ligado umas três vezes, pois a ligação era cortada pela secretária após três minutos. Lembro de logo ter me dado conta do potencial cômico daquilo, lembro do notável esforço para não rir, lembro de certa angústia para encontrar o tom correto durante o improviso. Eu desejava alguém que me ouvisse, alguém especializado e a quem não precisasse pagar. Expliquei ao Dr. Eduardo que, mesmo que pagasse pela sessão, ele não falaria mesmo, então eu usaria a secretária, que ainda tinha a vantagem de eu não precisar me deslocar.
Ainda não existia o Bina, então jamais seria descoberto, só se o Dudu — logo fiquei íntimo — me denunciasse à polícia, caso impossível porque psiquiatras são pessoas que não devem se irritar demais.
Nossa, quantas vezes telefonei! Planejava as inserções de 3 minutos com princípio, meio e fim. Ligava uma ou duas vezes por dia, dependendo de minha necessidade. Uma vez, ele interrompeu meu discurso, ouvi sua voz risonha do outro lado. Preferi desligar o telefone como tinha previamente planejado e passei a ligar após às 22h e nos finais de semana. O conteúdo era absolutamente verdadeiro, mas com doses cavalares de exagero. Como nos consultórios. Não escondia meu nome nem o de ninguém; minha persona tinha meu nome e meus amigos tinham os seus. Fantasiava que ele me ouvia, o que podia não ser verdade. Ninguém sabia de nada, só minha namorada na época. Planejei discurso por discurso durante uns dois ou três meses, quando comecei a cansar da coisa. Afinal, eu aspirava à alta.
Então, durante um almoço na casa de meus pais, contei para eles o que estava fazendo. Rimos um monte e pai me pediu o número do Dr. Dudu: desejava dar um testemunho familiar. Perguntou antes minha situação no tratamento e telefonou na nossa frente.
— Dr. Eduardo, sou o pai daquele rapaz que lhe telefona frequentemente para aliviar sua angústia. Há fatos que deveria relatar ao Sr. a fim de que o tratamento tome a direção correta.
E falou e falou. Não lembro bem do conteúdo, só de sua seriedade. Era sobre fatos preocupantes de minha infância, por aí. Ligou duas vezes enquanto nós dávamos gargalhadas. Achei que era um bom final, até porque o Dudu poderia mudar de postura, pensando que éramos membros de uma seita montada especialmente para lhe atazanar a vida. Eu sabia que, para ouvir os recados na tecnologia da época — duas fitas cassete, uma com a voz de Dudum outra com as ligações –, ele tinha que passar por cada um deles in-tei-ri-nho. Mas ele não mudou o número do telefone, prova de que não estava tão incomodado. Porém, no dia seguinte, deixei na secretária eletrônica do Dr. Dudu a informação de que estava curado. Novamente ele não precisava falar para eu saber. Estava livre.
Nunca mais telefonei. Obrigado, Dudu.
P.S. — Importante: não posso indicar o tratamento porque esqueci o número.
Este é o post de Nº 4000 deste blog
Pois é. Tantas vezes já pensei em parar, mas sempre aparece mais um assuntinho e vou ficando. Uma vez até fiz um post anunciando o fim do blog, mas apareceu um cara comemorando… E ele me detestava tanto que resolvi responder. Então, retirei o post de despedida e estou aqui até hoje. Os blogs estão fora de moda, acho que a sobrevivência do meu deve-se ao fato de ele aceitar tudo ou, melhor dizendo, de seu dono meter a colher em tudo. Publico sobre livros, música, futebol e sempre me pedem mais cinema, coisa que eu insisto em esquecer. Ou talvez os blogs não estejam acabando, mas apenas descobrindo seu real espaço de pequena influência. Aliás, noto que a maioria dos sites — mesmo os de grandes corporações — também não apitam muito.
Tenho 765 posts sobre literatura, 628 sobre futebol, 604 sobre música, 451 sobre política, 347 Porque hoje é sábado — categoria extinta em razão das pessoas terem desaprendido, entre tantas outras coisas, a diferença entre erotismo e pornografia –, 266 besteróis, 251 resenhas de livros, 231 sobre cinema, 171 em torno do meu umbigo, 166 crônicas, 166 crônicas familiares, 134 sobre viagens, 48 contos, etc.
O Google sempre me encontra, pois quase todos os textos são originais, ainda que sejam infelizmente meus. Só agora convidei o Samuel Sganzerla para escrever sobre o Grêmio, outro pedido de meus sete leitores. O incrível é que não o conheço pessoalmente.
O blog também me gerou dois processos. O primeiro foi movido por Letícia Wierzchowski contra uma crítica minha. Ela tinha razão, eu cometera uma cavalice. Pedi desculpas, retirei a coisa, ela retirou o processo e tudo acabou em civilidade. Não me orgulho do episódio. Mas me orgulho do processo de Mônica Leal contra mim. É uma medalha, uma demarcação de oposição. E mais não digo para ela não repetir a dose.
Só que o blog me proporcionou conhecer muita gente boa e legal. Todos os sete são.
Então, devo seguir mais um tempo aqui.
“Doutor, estou tendo uma crise de representação”
O paciente entrou no consultório com ar desalentado, deitou-se no divã e disse:
— Doutor, estou tendo uma crise de representação.
— Não me diga.
— Ninguém me representa e os que um dia se propuseram a isso, desistiram, mudaram, sei lá.
— Sim.
— Vi que a coisa era grave quando compareci em a audiência nesta semana e não encontrei meu representante, meu advogado. Não sabia mais quem era ele. Se o vi, não reconheci. Voltei para casa desesperado com a derrota na causa e, quando subi as escadas, cruzei com o síndico. Ele me disse que havia um vazamento no meu apartamento, só que, doutor…
— Sim?
— Não votei nele. Ele não me representa.
— Acredito.
Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos até que o paciente disse:
— Meu Deputado Estadual não foi eleito.
— O Federal?
— Também não.
— Senador?
— Perdeu por pouco.
— Presidente?
— Votei na Dilma, que já não me representava.
— Votaste em quem não te representava… Grave… Prefeito?
— O Sr. me toma por quem?
— Desculpe. E Governador?
— O Sr. realmente está me desconhecendo!
— Creio que deve haver pessoas em posições de algum poder que lhe representem. Vereador?
— Sim, votei numa boa menina. Foi eleita.
— Viu?
— É pouco, doutor.
— E o teu trabalho, ele representa tuas capacidades, teu papel e a forma como és necessário à sociedade…
— O que faço representa meu chefe, não a mim.
O médico contém o riso e diz que aquilo é muito comum.
— E as bancadas da Bala, da Bíblia, do Boi, da Bola?
— Nada doutor. Com B só Balzac, Bach, Beethoven e Brahms.
— E os movimentos identitários?
— Meu deus, doutor. Eles chegaram a tal grau de certeza de sua superioridade moral que não posso nem encará-los. Sinto-me indigno. E não poderiam me representar porque é o lugar de fala que garante a verdade do que é dito. Não adianta estudar. E meu lugar de fala é uma bosta: branco, homem, hetero, mesmo que traído pela mulher.
— Opa.
— Minha mulher, poderíamos chamá-la de Molly, elegeu um representante para minha função.
— Ela é mole?
— Meu deus, doutor, falo de Molly Bloom. Cito Ulysses.
— Ah, sim.
O médico se remexe na cadeira.
— Minha mulher tem um amante. Ponto.
O médico queria mudar de assunto. Decidira que representação era o tema daquela sessão. Adultério ficaria para uma ou várias próximas.
— E aqueles teus B`s queridos? Bach, Beethoven, etc.?
— Shostakovich.
— Como?
— Shostakovich. A polícia stalinista vinha buscar as pessoas em suas casas, à noite. Eles não davam tempo para o cara se vestir. Era levado para “prestar seu depoimento” como estivesse, normalmente de pijamas ou cuecas. Era para humilhar mesmo.
— E daí?
— E daí que Shostakovich passou a dormir vestido, preparado, para passar menos vergonha.
— E o que isso tem a…
— Depois ele pensou que seria melhor que não o pegassem dentro de casa. E começou a dormir no corredor. Quando ouvia o som do elevador, pegava a pasta e aguardava.
— Que loucura.
— Mas eles nunca vieram. A NKVD e a KGB nunca vieram.
— …
— E eu tenho medo do MBL, mas não apenas deles. Tenho medo de todos. E todos fazem linchamentos virtuais. Ninguém me representa.
— Escreva um textão no Facebook. Diga que respeita todo mundo. Os identitários, os punitivistas, a puta que o pariu, que cada um deve respeitar o espaço do outro, diga que acredita no diálogo e na democracia, que saúda respeitosamente cada degeneração. Não, não, não faça textão, responda a cada um de cada vez, sempre concordando. Depois volte aqui e vamos tratar do adultério em 30 sessões. Chama a Mole junto.
O melhor presente
Meu aniversário é apenas dia 19, mas acho que recebi hoje o melhor presente de aniversário de minha vida. Minha mulher, Elena Romanov, que é uma violinista de raro brilho, fez toda uma preparação secreta. Levou-me até uma pequena igreja aqui de Salvador do Sul, dizendo que queria estudar violino num espaço que não fosse acusticamente “seco” como nosso quarto de hotel. Pediu que eu levasse um livro para ler, a fim de não me entediar. OK. Lá chegando, após fazer algumas escalas, me pediu que eu fosse sentar em um lugar determinado e começou a tocar a Chaconne de Bach. No início eu achei “puxa, que bem tocado” para uma brincadeira improvisada, mas a coisa se estendeu de tal forma e com tamanha perfeição e musicalidade que primeiro me emocionei a ponto de ver surgirem algumas lágrimas e depois mais ainda porque me dei conta de que aquilo, talvez, fosse um presente imaterial para mim. Quando fui agradecer, apareceu um sujeito na igreja vazia falando para ela “Eu entrei aqui para fazer umas preces, mas depois disso já considero que tenha feito”.
Obrigado, Elena.
(Imaginem que ela decorou a enorme peça para que eu não pudesse saber de nada antecipadamente, vendo as partituras que ela levava).
Modesta reflexão sobre a “arte” de ver filmes
Dia desses, em questão de minutos, entraram em meu esquecido Feedly duas críticas acerca do filme argentino O Cidadão Ilustre, de Gastón Duprat e Mariano Cohn. Uma tinha sido publicada domingo e outra segunda-feira. A do domingo era constrangedora. A de segunda-feira era excelente. O fato da primeira ser contrária ao filme não significa nada, há críticas devastadoras que demonstram extrema compreensão de quem viu a obra, assim como é normalíssimo vermos elogios que mal tocam sua superfície. Meus 59 anos me mandam dizer que, quem não sabe ver filmes, habitualmente não sabe ver peças de teatro, e pior, não sabe interpretar livros. Sim, o pacote parece vir instalado completo, sem personalizações, à exceção do caso da música, que merece outro post.
Ontem, apesar da chuva, caminhei bastante pela rua, e pude pensar sobre as armadilhas que os alguns autores modernos exigem de seus leitores-expectadores. Mesmo um filme aparentemente simples como Cópia Fiel, está cheio de armadilhas para serem destrinchadas por um expectador que não seria mais um mero receptor e sim um intérprete que tem de trabalhar um pouquinho para entender o filme. No caso do citado filme de Kiarostami, o quebra-cabeça começa pelo título do filme. O nome original está em italiano, Copie Conforme. Em italiano Copie significa Cópia, mas Coppie é Casal, enquanto Conforme pode ser Fiel ou Conformado. É muito mais do que um trocadilho idiota, tem tudo a ver com o filme.
Refleti principalmente sobre o cinema porque ele é a arte mais pública e comum que temos. É difícil de se encontrar com alguém que leu há pouco exatamente o livro que a gente quer comentar. Já com os filmes é simples. Como estão em cartaz, todos os meus amigos viram O Cidadão Ilustre ou Perdidos em Paris. Dá para trocar ideias. O cinema é a grande cultura pública de nosso tempo.
O problema de certa crítica é não causado pela falta de inteligência, mas antes de falta de vivência ou pura desatenção para com a coisa artística. Lembrei dos ensaios de Bakhtin sobre Dostoiévski e de como O Idiota passou a figurar automaticamente ao lado de Os Irmãos Karamázovi como meu livro preferido de Dostô — sempre acompanhado do primeiro que conheci (a primeira vez a gente nunca esquece), Crime e Castigo. Quando li o que escrevera Bakhtin, tive que voltar a O Idiota e pensar que o título referia-se a alguém como eu… Hum… Ontem, enquanto caminhava, ri sozinho ao lembrar que Marcelo Backes cometera EM LIVRO o erro de deixar por escrito que eu seria o melhor leitor não-profissional que ele conhecera. Acho que dou a impressão de ser alguém mais inteligente do que sou. Que siga assim…
Mas avancemos: considerando aquele comentarista constrangedor e pensando que praticamente todos os grandes cineastas realizam/realizaram trabalhos sobre a linguagem, gente como ele está a ponto de dizer que — para citar apenas os vivos — Sokúrov, Kusturica, von Trier, Lynch, os irmãos Cohen, Moodysson, Sorrentino, Hartley, Polanski, Vinterberg, Haneke, P. T. Anderson são ruins, pois abusam de situações que representam outras.
Não é um assunto que me faça morrer, o que escrevo é uma reflexão vagabunda que é, para mim, nada mais do que uma curiosidade. É que quando li a primeira crítica me pareceu que o cara estava decididamente em outro mundo, numa faixa própria de esquizofrenia e estupidez. Será que ver certos filmes requer alguma especialização?
Maria Luiza faria 90 anos hoje
Hoje é o dia em que minha mãe faria 90 anos. Também é o dia em que um de meus melhores amigos, Ricardo Branco, faz 59, mas deixemos a prioridade para ela.
À medida em que vou ficando velho — completo 60 anos em agosto, idade que não sinto, mas que é tristemente real — vai crescendo a certeza de que sou não somente a óbvia mistura genética de meus pais, Maria Luiza e Milton — herdei-lhes atitudes e posturas muito próprias. Parece que a idade acentua suas presenças em mim. Por mais que trabalhassem fora de casa, meus pais sempre se preocuparam com minha educação e a de minha irmã. Sempre penso que a Iracema, um pouco mais velha do que eu, nasceu pronta e perfeita. Ela estudava muito e parecia fazer aquilo com gosto e inteligência. Eu me sentia meio burro em relação a ela. Tinha que ser empurrado.
E era. Minha mãe foi quem mais empurrou o menino que fui e que só se queria estar na rua com os amigos e jogar (mal) futebol. Certamente veio dela meu amor pela literatura. Não que ela fosse uma grande leitora, é que ela respeitava e amava a cultura de forma devocional. Nós tínhamos sempre dinheiro para livros. Eu e minha irmã éramos modestos em nossos pedidos — sempre fomos bem conscientes de que nossa vida confortável não incluía grande fortuna e era fruto direto do trabalho duro e diário de nossos pais –, porém o fato é que nossa mãe era uma pessoa generosa em termos financeiros. Poucas vezes negava meus pedidos de mais grana para qualquer loucura que inventasse. Porém, quando a coisa era para comprar livros, ela vinha de carteira literalmente aberta. Fazia questão que eu lesse. Quando chegava cansada do consultório de dentista onde trabalhava o dia inteiro, perguntava o que eu estava lendo, mesmo que depois não soubesse o que comentar. Ela ganhou esse jogo. Hoje não consigo não estar lendo nenhum livro. E carrego-os aonde vou.
Acho que a Maria Luiza cresceu tentando manter alguma magia espiritual em torno de si, mas suas intenções esboroaram-se contra o chão duro das ruas da Azenha e a correria da maternidade. Nós crescemos e ela não obteve de volta o piano da juventude, onde tocava tangos, e muito menos os livros. Estava sempre trabalhando fora ou em casa. Sempre com alguma coisa pendente. Sempre correndo. Foi uma das primeiras dentistas profissionais do RS e foi massacrada pela necessidade de ser a mulher da casa. Em tempos em que não havia feminismo no Brasil, ela fazia dupla ou tripla jornada para não decepcionar ninguém. Quando jovem dentista, no início dos anos 50, foi criticada por não deixar que meu pai a sustentasse financeiramente. Ainda bem que ela jamais concordou com isso, não daria certo. Ela era a chefe da família e ponto.
O que permaneceu da jovem Maria era a forma com que enfrentava a falta de gosto e a vulgaridade. É dela uma frase que uso muito: “Não ouço música descartável”. Adorava Chopin e a música erudita romântica. Tentando abrir uma janela em suas atividades incessantes, meu pai estabeleceu a quarta-feira como “o dia de ir ao cinema”. Talvez aquilo soasse a ela como mais uma atribuição. Com o tempo, ele também perdeu este jogo.
Minha mãe era AMADA por seus clientes de consultório. Eu notava isso naquela época e ainda hoje. Era um sucesso dizer que eu era o filho da dentista da Azenha. A maioria de meus colegas a visitava, pois ela era odontopedriatra. Também estava sempre disposta a ajudar. O tempo esticava-se para dar lugar a tudo que seu 1,55m queria fazer. Mas ela dizia que não tinha feito nada.
A Elena sabe o quanto uso suas expressões cruz-altenses. Cada vez mais. O casamento com meu pai não era lá nenhuma maravilha em alguns aspectos, porém lembro de uma frase muito significativa que ela me disse quando meu pai morreu em 1993. “Ele me deu muito mais amor do que eu dei para ele”. Esta frase, para a pudica e reservada Maria Luiza, equivalia a dar uma voltinha nua pela casa.
Também minha teimosia e autocrítica vêm dela. Quando metia uma coisa ou um assunto na cabeça… Se o assunto não fosse do nosso agrado, melhor fugir. E ela costumava criticar a si mesma com algum desdém, especialidade que mantenho em alto nível. Tudo o que fazia acabava mal, o que era uma tremenda mentira e injustiça dirigidas a grande mulher que ela foi. Construiu uma casa ruim, não deveria ter sido dentista mas outra coisa, fez comida sem gosto, comprou um monte de coisas que não usa, errou nisso, naquilo. Essas coisas foram criando a certeza de que, filho dela, também eu só fazia coisas erradas. A Elena não parece gostar muito de minha autocrítica, só que é um vício complicado de contornar. Ela parecia estar sempre em falta e eu, coincidentemente…
Hoje, por um acaso, esbarrei neste poema de Shakespeare. É sobre o amor, só que fala tanto em faltas, vícios ocultos — que certamente ela não tinha, a não ser o de esconder caixas de Bis no guarda-roupa –, em injúrias dirigidas a si mesmo e em erros, que logo pensei “Putz, hoje é o dia da Maria Luiza mesmo”.
Assim é o meu amor
Quando for teu desejo teres por mim fraco apreço
E colocares meus méritos no centro do desdém,
Ficarei do teu lado, contra mim lutarei,
Provar-te-ei, ainda que traidor, virtuoso.
Usando as minhas faltas, essas que sei de cor,
Contarei uma história falando por teu nome,
E os meus vícios ocultos todos condenarei,
E tu, ao me perderes, alcançarás a glória.
E, ao fazê-lo, eu também serei vitorioso,
Dobrando perante ti meus ternos pensamentos.
E as injúrias que a mim eu mesmo me impuser
Redobrarão meus ganhos, ao te darem proveito.
Assim é o meu amor, assim eu te pertenço,
Pois, ao provar-te certo, me descubro no erro.
W. Shakespeare, trad. Ana Luísa Amaral
Ela faleceu em 2012 após longo e doloroso Alzheimer. Acrescento isso apenas aqui no final porque já quase esqueci desta fase terrível, deixando no lugar a mãe amorosa, presente, interessada e, puxa vida, ativa.
Estudar (e amar) faz bem
Um ganho secundário do Almoço Clio Musical é a necessidade de estudar. Mesmo que não seja necessária uma dedicação exaustiva, pesquisar, estudar e escrever sempre me animam muito. Ontem, cheguei meio mal-humorado em casa, com aquela sensação ruim de atraso em coisas que precisam de tempo para serem desenvolvidas. Era o final da tarde e ainda dei mil voltas procrastinatórias. Depois, pensei que se começasse apenas a me organizar para o trabalho, ele se encaminharia naturalmente. Claro, a coisa engrenou e comecei a me sentir cada vez melhor e melhor, chegando quase a algum início de euforia. E tudo ficou (bem) encaminhado. Escrevi bastante sobre o tema A Sinfonia, Parte I: das Origens ao Classicismo.
Então, perto das das 22h, fui buscar a Elena no ensaio da Ospa. Para este bobo apaixonado é sempre uma alegria vê-la e revê-la, mesmo que o intervalo seja de segundos. Fiquei esperando por ela e dei risada com um colega seu de Ospa que me disse que “havia abutres rondando meu avião”. Tá bom. Eu e ela voltamos abraçados, caminhando naquela velocidade que fica entre o medo de ser assaltado e a elegância. Jantamos e pensei no tempo que dura a alegria de fazer um trabalho intelectual, mesmo que este não seja uma loucura de complicado e se este pode ser catalisado por outros fatos da vida diária. E concluí que devo repetir e repetir, ainda que sem o incentivo do Almoço Clio. Ou correr pela rua, pois ambas são atividades que me fazem retornar a um melhor equilíbrio.
Hoje pela manhã, dei uma reajustada na alegria. Caminhei até o trabalho com a 9ª de Mahler nos fones. Sim, é uma tragédia, mas o contato com uma uma realização daquelas sempre me deixa feliz. Ao meio-dia, após um almoço rápido, usei a meia-hora restante dando-me novo empurrão lendo De Amor e Trevas, de Amós Oz, na Biblioteca Pública. É muita sorte trabalhar na mesma quadra que a BPE. A gente ganha mal mas tem sorte.
Acho que tenho que dar um jeitinho de tornar mais frequentes esses estímulos que me deixam feliz. Todos eles. Afinal, estou por fazer 60 anos e é, digamos, minha reta final.
Eu e uma crente em um ônibus em Porto Alegre
Na segunda à tarde, durante um intervalo, fui pegar algumas coisas na casa de um amigo. Entrei num ônibus, sentei e abri um Simenon enquanto Anne Sofie von Otter cantava Rheinlegendchen ou Wer hat dies Liedlein erdacht? de Gustav Mahler em meus fones. Logo passou um homem que nem vi o rosto e depositou um bilhete de tamanho mínimo na minha mão:
QUERIDOS IRMÃOS PRECISO DE VOCÊS PERDI MINHA MÃEZINHA SOFRO DO VÍRUS DO HIV ESTOU ME TRATANDO COM COQITEL E ESTOU DESEMPREGADO ESTA DIFÍCIL O EMPREGO TENHO UMA FILHA DE 2 ANOS QUE ESTA PASSANDO FOME PESSO SUA AJUDA OBRIGADO
MARCOS E VITÓRIA (nomes alterados)
Juntei uma nota de dinheiro ao bilhete e segui lendo o livro acompanhado de Anne. Quando senti que ele voltava, ergui a mão direita com a nota e o bilhete entre o indicador e o dedo médio um pouco acima de minha cabeça. Porém, o homem não me viu e saiu para tentar a sorte em outro ônibus.
Então, uma senhora falou em voz altíssima que era um absurdo dar R$ 10,00 a um vagabundo e que eu faria melhor doando meu dinheiro à igreja. Subitamente e ainda meio zonzo, caí de meu mundo e notei que aquilo era para mim. Fiquei surpreso. R$ 10,00? Nas vezes em que dou dinheiro para pedintes, meu máximo é R$ 2,00, o valor aproximado de um litro de leite — um critério absolutamente pessoal. Fora um engano. Sem tirar os olhos do livro, guardei a nota, o bilhete e levantei bem alto um solitário dedo médio para que a beata o visse claramente. Nem sempre sou um lord.
O ônibus achou graça e ela me chamou de mal-educado em pavoroso discurso de meio minuto, no mínimo. Lembrei do que um amigo um dia me disse:
É impressionante a quantidade de filhos-da-puta entre os crentes.
Desci na minha parada sem maiores incomodações. Mas como canta a Anne Sofie von Otter!
Os discursos de Fidel Castro e Thomas Bernhard
Em certa época da ditadura militar brasileira, eu era da Engenharia da Ufrgs, mas frequentava mais o pessoal, as festas e as reuniões das humanas. Zanzava pelos Diretórios Acadêmicos onde volta e meia era marcada uma sessão de cinema em que era apresentado um discurso de Fidel Castro. Quase sempre acabava assistindo. Gostava deles. Era coisa para ser apresentada no início de uma noite ou num fim de semana, pois via de regra duravam mais de quatro horas. A data e a hora das apresentações dos filmes eram secretas, mas todo mundo sabia. Assisti a vários deles, alguns divididos em dois turnos. Lembro de pouca coisa e não sei se ainda concordaria com eles, o que sei é que ele era um extraordinário orador. Era complicado até de ir ao banheiro. Tudo parecia muito importante. Um dia comecei a pensar na estrutura daqueles textos falados. A primeira conclusão a que cheguei foi a de que eles eram indissociáveis do ator. Castro era notavelmente carismático e sabia como seduzir com pausas e alterações de tom e dinâmica. E havia seu rosto, muitas vezes com expressões irônicas. Tudo o que ele dizia adquiria caráter mítico. Quando conheci Thomas Bernhard, fiquei surpreso não somente com seu discurso de ódio contra a sociedade, mas com a estrutura encadeada de sua prosa, algo parecida com a de Fidel, mas funcionando esplendidamente por escrito. Não dá para falar de avanço em espiral porque ambos voltam a pontos anteriores do discurso e uma espiral sempre avança tontamente por lugares onde não passou. Era mais uma sequência minimalista de variações que avançam de tal forma que muitas vezes a frase atual era uma variação da anterior, mas se ouvíssemos a décima oração anterior, ela já seria totalmente diferente da atual. Ou não era assim. Eram como as de um professor que avança duas casas no jogo de seu discurso e volta uma para depois avançar mais duas novamente. Não sei porque lembrei disto agora. Talvez seja saudades da juventude; de ler, estudar, estagiar e ainda ganhar uns trocos dando aula; de, apesar desta super atividade, ter a eterna impressão de não estar fazendo nada. Ou saudades daqueles ambientes esfumaçados, ultra hiper ripongas, e daquelas meninas que iam lá assistir e que ficavam mudando de posição até encostar em nós. O que eu sabia é que estávamos fazendo tudo para atrapalhar a ditadura civil-militar e que eles tinham observadores — ratos — infiltrados entre nós. Tinham receio de nós e dos discursos de Fidel, que talvez os entediassem. O que Fidel falava era liso, sem fendas. Como o texto de Bernhard, suas falas tinham caráter repetitivo e exagerado, o que lhes garantia grande impacto (e eficiência nas queixas). Bernhard desconsidera a estrutura de parágrafos e creio que alguém que transcrevesse os discursos de Fidel não deveria repetir tal estratégia, pois ele fazia longas pausas. Em ambos os casos, há um desesperado adiamento do ponto final, pois o que vale é o encadeamento de orações subordinadas, como se o narrador tivesse a necessidade compulsiva de jamais abrir mão da palavra. Com Fidel, a bunda ficava quadrada, mas eu não me incomodava com o tamanho dos discursos nem lembro de gente dormindo. Sim, nem os ratos dormiam, então acho que não se entediavam. A fala de um e a escrita do outro eram impecáveis. Perdiam-se por ladeiras e ruelas mal frequentadas que só eram compreendidas quando apareciam lá na frente na avenida. Ou talvez não seja nada disso e o que tinham em comum fosse a tentativa de aniquilação de adversários ou de si mesmo — caso de Bernhard — através de palavras. Ah, e a soberba de ambos, arma que parecia mortal na mão destes dois Quixotes em ambientes hostis. E o fato de frases ditas aqui serem complementadas apenas bem adiante. Sei lá, só sei que toda vez que lia Bernhard lembrava de Fidel e que hoje, ao rever no YouTube um discurso de Fidel, ele não me fez lembrar em nada Bernhard. Nada, nem um pouco.
Viagem ao redor do umbigo
Li no livro Bartleby e companhia, de Enrique Vila-Matas, a curiosa definição de Marguerite Duras sobre o ato de escrever: escrever é tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos. Dou-lhe inteira razão, mas há algumas pessoas, dentre as quais me incluo, que negam o que escrevem e raramente releem o que deixam escrito por aí. Nem este blog é relido por mim.
Hoje, dediquei algum tempo a reler uns posts antigos e surpreendi-me com o grande número de frases e expressões que revisaria ou cortaria. Há idiotices incríveis. Encontrava aqui uma ideia que deveria estar clara e não está; ali, uma frase horrenda; mais adiante, surpreendia-me comigo mesmo — eu escrevi isto, isto sou eu ou um personagem? Ou sou eu meu personagem? Acho que é o caso. Afinal, quando divagamos sobre nossas vidas, não estamos reescrevendo um livro com caracteres mais brilhantes ou não para depois recolocá-lo — capa dura ou brochura — em nossa memória, a fim de retirá-lo no momento seguinte com o objetivo de mais uma revisão, a mesma revisão que não faço aos duros caracteres do monitor? Escrever é tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos.
Porque hoje é sábado, o Milagre
Por delicadeza, por obediência,
quase perdi minha vida.
Vivia apenas metade dela,
tudo era meia verdade.
Meia verdade é como habitar meio quarto,
ganhar meio salário.
É como só ter direito
à metade da vida.
Num milagre, a uma metade juntou-se outra
perfazendo um inteiro.
Aquela parte que existia ganhou um corpo,
e agora ela o observa.
Mônica Leal e meu Tempra dourado
Obs. inicial: Hoje, duas pessoas vieram me falar deste velho post. Recordar é viver! Importante dizer que já paguei o que devia à nobre vereadora.
Alguns poucos de vocês devem lembrar que a atual vereadora de Porto Alegre e ex-Secretária de Cultura do RS, Mônica Leal, me processou. Sei que muita gente vai me invejar e devo confirmar que tenho o maior orgulho disso. É currículo, meus amigos! Bem, ela ganhou a causa e fiquei devendo um alto valor para ela. Depois, meu advogado — que é excelente — conseguiu baixar o montante e hoje a coisa está num valor que não lembro qual é, só lembro que é igualmente impossível de pagar. Afinal, se me virarem de cabeça para baixo e chacoalharem, só vão cair no chão minhas passagens e os almoços que devo comer até o fim do mês.
Hoje me ligou um oficial de justiça. A seguir, o diálogo:
— É o Sr. Milton Ribeiro?
— Sim, quem fala?
— Aqui é X., oficial de justiça, e eu tenho uma intimação para entregar ao Sr.
— Da parte de quem? — perguntei, já sabendo do que se tratava.
— De… Mônica Leal — ele disse e deu uma risadinha curta, não sei por quê.
— Ah, sim, pois é, acho que ela deve processar muita gente, né? E o que diz a intimação?
— Ela pede a penhora de um Tempra de sua propriedade.
— Um Tempra? O Sr. quer dizer o automóvel?
— Sim, o automóvel.
— Mas eu nunca tive um Tempra.
— Mas é o que está escrito aqui.
— OK, o Sr. fica de plantão no dia X no horário Y no local Z, não?
— Sim.
— Eu vou aí buscar a intimação, pode ser? Passo aí na frente todo dia.
— Ah, perfeito. Estarei aqui. Obrigado.
— Obrigado, boa tarde.
— Boa tarde.
Quando depositei o telefone no gancho, minha mente se iluminou. Lembrei do Tempra. Estávamos talvez em 1997. Eu e meus amigos Daniel e Corrêa compramos um carro em São Paulo para fazer negócio. O troço era bom e caro e não era um Tempra. Vendemos na primeira semana. Recebemos uma parte em dinheiro e outra na forma de um carro de menor valor: o Tempra dourado.
Eu juro para vocês que nunca tinha visto uma coisa mais feia na minha vida. Eu nunca dei bola para carros, mas aquilo era uma excrescência, um problema de malformação de fábrica, algo que faria a Igreja aprovar o aborto, algo que deve ter feito os operários da Fiat pararem a produção para olharem bem, darem gargalhadas e contarem pros amigos.
— Daniel, que carro é esse?
— É o que a gente recebeu na volta.
— Daniel, esse carro não foi figurante em Carruagens de Fogo?
— Que coisa horrível, né?
— Daniel, quem é que vai comprar isso?
— Olha, Milton, o carro está em excelente estado blá, blá, blá…
Demoramos uns 3 meses ou mais para nos livrar do Chariots of Fire. Mas ele foi adiante. A dúvida que fica no ar é a seguinte: será que ele ainda está em meu nome? Será que, em estando no meu nome, teve pagos seus impostos? Bem, se não teve, aí toda a piada começa a perder a graça. O pior é fucei no site do Detran e nada de Tempra.
Hoje à tarde, só para apavorar meus sete leitores, procurei um Tempra dourado na internet mas não achei. Era um amarelo metálico, credo. Era dessa cor aí embaixo, mas não era digno como este Maverick. Imaginaram o horror?
.oOo.
Acabamos de encontrar uma foto de Tempra dourado!
A roupa entlou
Houve uma época em que eu trabalhava de terno e gravata. Tinha 14 kg a menos. Hoje, não preciso mais usar roupa formal e faz anos que não visto — ou me fantasio — com tal indumentária. Desta forma, meus ternos ficaram guardados num canto do guarda-roupa. Mas, no próximo sábado, vou a uma festa mais social e, bem, tive que encarar a realidade. Comprar um terno, alugar ou tentar me meter num dos que tenho?
Fui experimentando um por um. Todos estão em muito bom estado, mas as calças simplesmente se negavam a caber no modelo arredondado que me tornei. Por algum motivo bem masoquista, resolvi tentar me enfiar no mais velho deles e vim em direção ao mais novo. Como deus é pai, o último entrou. Quando aconteceu, disse para mim mesmo, “entlou”.
Sim, entlou. Explico: uma vez lavava a louça com meu filho Bernando brincando a meus pés. Ele devia ter uns 2 ou 3 anos de idade. Como eu com meus ternos, ele pegava uma coisa de cada vez na cozinha e colocava dentro de seu caminhão de madeira. Por exemplo, pegava um ovo, colocava no bagageiro, fechava-o e dizia “entlou”. (Sempre foi muito cuidadoso, jamais estragou um CD ou livro meu. Tinha respeito pelas coisas da casa). Depois pegava uma laranja e dizia “entlou”. Um limão e dizia entlou, etc. Então, pegou um mamão, colocou delicadamente no bagageiro e disse “não entlou”. Aí eu disse pra ele, “É, filho, o mamão é muito grande, não cabe no bagageiro”. E segui lavando os pratos e talheres quando ouvi um barulho estranho de bisnaga sendo apertada e sua voz “mas agola entlou”.
Incrível, o mamão ficou quadrado, a coisa mais linda. Mais ou menos como eu dentro da calça que entlou. Mas entlou, tá entlado, vou com ela. Hoje, comi apenas salada, um filé de peixe e água no almoço. Tudo para que a calça entle sem eu ouvir som de bisnaga.
Falta testar as gravatas. Não pensem que sei dar nó de gravata. Mantenho por anos os nós que as boas almas fazem para mim, mas lembro que os desmanchei na última vez que as guardei. Achei que jamais as usaria novamente e que era ofensivo dar gravatas para os mendigos do Bom Fim.
E conjeturo se pescoço engorda. Ah, a camisa entlou sem reclamar de nada.
Caminhando para o trabalho
Venho diariamente a pé para o trabalho. Saio em horários muito próximos. Às vezes às 7h10, outras às 7h20 e, se estiver muito atrasado, às 7h40. Quando se caminha numa cidade como Porto Alegre, a gente tem que estar atento a quem está próximo. Ainda não fui roubado, mas é somente questão de tempo, se depender de nosso governador. Ando com fones de ouvido, ouvindo um CD completo cada manhã, sempre de música erudita ou jazz. E vejo como os grupos de cada horário se repetem de forma diferente.
Se saio no primeiro horário, logo vejo o homem negro no café em frente ao Colégio Rosário. Ele sempre usa alguma coisa do Inter em sua roupa. Não o vi hoje, pois saí no terceiro horário, mas tenho certeza que ele estaria com um abrigo perfeitamente colorado, defendendo-se do frio. Ele come torrada e bebe de uma xícara grande. Acho que café com leite. Ainda no primeiro horário há a loira alta e desajeitada que agora passou a usar óculos para deter a luz de seu olhar azul. Ela é muito apressada, tem menos de 20 anos e, pela pressa, dorme muito ou demora para sair.
Saindo no segundo horário, os das 7h20, há o guri dos músculos. Ele sempre dá um jeito de mostrar seus bíceps ou outra coisa que julgue poderosa. Como faço este caminho há quase três anos, sei que suas tatuagens têm menos de um e mostram lutas terríveis entre pássaros e cobras. Tenho vontade de lhe perguntar porque ele desenhou no braço uma galinha comendo uma minhoca, mas é melhor não. Neste horário, temos também o grupo de estudantes que desce a Independência de skate pelo corredor de ônibus e lotações. Mas eles passam muito rápido e jamais os reconheceria.
No terceiro horário, temos a velha anoréxica e o velho das meias. A velha anoréxica é isso mesmo. Ela caminha e treme um pouco a cada passo. É como se fosse cair de tão magra. A coitada deve trabalhar demais e seu cabelo, repartido do lado, toma-lhe tempo, porque é visível e minuciosamente alisado, formando uma franja estilo Hitler que lhe cobre diagonalmente a testa. Lava roupas em casa, pois algumas vezes carrega uma trouxa branca. Já o velho das meias fica na frente de um edifício quase na Senhor dos Passos. Ele e mais dois amigos ficam conversando, creio que sobre futebol ou fazendo observações sobre as mulheres que passam. Ouvi alguma coisa rapidamente. Certamente tem problemas circulatórios, pois usa meias de compressão para ajudar na circulação de sangue nas pernas. No verão, usava bermudas e as tais meias. Eu sempre olhava para elas. Tem um grande queixo de prognata e olhos de gente que se irrita facilmente. Como saí tarde, hoje foi o dia em que os vi.
Mas há muito mais. Temos a perua da Praça Dom Feliciano que desce na direção da Pinto Bandeira, o barítono cego vendedor de bilhetes que grita olha a megasena premiada e minha preferida, a vendedora de jornais da esquina da Rua da Praia com a Borges. Quando compro alguma coisa dela, sempre pergunto o preço e ela me responde terminando a frase com amado. Tem ar de mãe de toda a Borges e sorri muito. Um dia, estava perigando chover e ela me mandou apressar o passo.
Quando subo a Travessa Acelino de Carvalho, que liga o calçadão da Rua da Praia à Rua Andrade Neves, sinto o cheiro do mijo de quem passou ali à noite e a moça da lancheria à direita que quase sempre me dá bom dia. E chego ao edifício onde trabalho. Nosso porteiro é um gremista meio de lua que raramente diz alguma coisa quando chego. Afinal, está concentrado no jogo de xadrez do computador.
Eu sofro com o calor
E, por isso, estou aqui de janela aberta, aproveitando a rara oportunidade de sentir um ventinho de 13ºC entrando por ela. É um imenso prazer depois de meses terríveis indo de ar condicionado em ar condicionado. Sei que as plantas crescem no calor, sei também que as pessoas ficam mais bonitas e saudáveis quando estão na praia. Mas sei também que me sinto mal numa cidade quente e úmida, suando cada vez que saio à rua ou quando desligo o ar. E canso. E produzo pouco. Por isso, se tivesse dinheiro para tanto, iria para o Hemisfério Norte em todos os verões, para dar uma trégua de alguns dias no suadouro porto-alegrense.
A propósito, fui amigo do grande Dr. Herbert Caro. Ele sumia de Porto Alegre durante os meses de, nas palavras dele, canícula. Saía da cidade para a Europa no início de dezembro e só voltava ao final de março, passando dois invernos por ano. Se eu tivesse condições econômicas, repito, daria definitivamente adeus aos verões, coisa apenas aceitável na praia e olhem lá.
Então, hoje estou mais feliz que pinto no lixo, que formiga em tampa de xarope, que genro levando sogra na rodoviária, que pobre em dia de excursão ou quando ganha frango no bingo e muito, mas muito mais feliz do que ontem. E me sinto novo como camisola de noiva.
A perspectiva para os próximos dias é ótima. Desta vez, parece que teremos inverno!
(E, falem sério, o frio facilita o amor, certo? Ou vocês não gostam de abraçar um outro corpo — mesmo o mais querido deles — no inverno?).
Jorro matinal
42 bilhões desviados
— 1% do PIB —
de uma só empresa
como se fossem adestrados
os políticos de Brasília
sentam na mesa apenas
desejosos de cheirar
os cus uns dos outros
o que pensa este?
do que necessita aquele?
como acomodar
meu interesse?
não pensam
no sistema de ensino
no genocídio dos indígenas
na juventude negra das periferias
na mulher morta
no aborto
nos LGBT
na reforma
pensam
em quem lhes financia
em consumir direitos
no agronegócio
em criminalizar movimentos
em consumir o pré-sal
em deus, ou melhor,
na igreja
querem adiar
o enfrentamento com o ambiente
querem evitar
a Polícia Federal
querem
que o resto se foda
os paleolíticos brasileiros
querem chupar o pré-sal
são eles os dinossauros
que vão nos aquecer e sufocar
mas bem poderiam receber o óleo
— negro e quente —
em seus rabos
eles estão reunidos
e sorriem balançando suas caudas
preparando
os próximos 42 bilhões