Biografia de Philip Roth escrita por Blake Bailey foi “cancelada”

Biografia de Philip Roth escrita por Blake Bailey foi “cancelada”

(Traduzo rápida, mal e porcamente este artigo para mostrar como a cultura de cancelamento norte-americana está atingindo gente como Philip Roth. Não quero saber muito sobre a vida pessoal de Bailey, mas fico perplexo com a vontade de destruir a obra de alguém através de sua vida. Já temos Allen, não? Se o artigo cancela o biógrafo — talvez ele mereça –, atinge também Roth de maneira profunda. Por exemplo, a foto que acompanha o artigo é inequívoca. Para quem lê inglês, será melhor clicar no link porque minha a tradução é quase sem revisão).

O novo livro de Blake Bailey sobre Philip Roth foi retirado por sua editora nos Estados Unidos após várias alegações de má conduta sexual contra o biógrafo. O trabalho deve ser julgado pelos padrões de sua vida?

Por Leo Robson
Tradução mal feita por mim

Um dos elementos mais impressionantes das acusações contra o célebre biógrafo literário Blake Bailey foi a rapidez e o veemência de sua negação. Ao longo das últimas semanas, Bailey, 57, cuja biografia de Philip Roth foi publicada no mês passado, foi acusado de vários atos de agressão sexual. As alegações abrangem um período de 20 anos, desde meados da década de 1990, quando Bailey começou a dar aulas de inglês para a oitava série na Lusher Charter School em New Orleans, até 2015, quando Valentina Rice, uma executiva editorial da Bloomsbury USA, afirmou que ele a estuprou na casa do crítico do New York Times Dwight Garner. Bailey foi imediatamente dispensado por seu agente e sua editora americana, WW Norton (que, ao que constava, já havia sido informada sobre o relato de Rice) e interrompeu uma segunda impressão de seu livro sobre Roth, que já era um best seller.

Uma declaração do advogado de Bailey enfatizou que seu cliente nunca “recebeu qualquer reclamação sobre seu tempo em Lusher”. Na era pós-#MeToo, essa defesa tem pouco peso; Bailey estava em uma posição de poder e há várias alegações de que ele se envolveu em um comportamento excessivamente familiar para um ambiente escolar. Embora ele tenha rejeitado todas as acusações recentes contra ele como falsas, Bailey admitiu no passado ter relações com ex-alunas.

Até que os detalhes do contrato de Bailey sejam conhecidos, a retirada feita pela editora do livro, a Norton, da biografia de Roth, parece uma decisão estranha ou pelo menos arbitrária, uma vez que o livro não defende a violência sexual e sua escrita não depende nem foi facilitada pelos supostos crimes de seu autor. (Uma explicação pode ser simplesmente que o editor tomou a decisão à luz da revelação de que já sabia das alegações de Rice.)

Como escândalo literário, a história lembra a de Paul de Man, o crítico belga conhecido por seu trabalho sobre a indeterminação da linguagem que, depois de sua morte, publicou postumamente uma série de artigos em jornais pró-nazistas.

Como escritor, Bailey se especializou nos supostos paradoxos do caráter humano — como alguém pode ser sábio ou emocionalmente intuitivo ou encantador e também agressivo, frio, violento, irresponsável? À primeira vista, parece óbvio o que une os sujeitos das três primeiras biografias de Bailey. Richard Yates (2003), John Cheever (2009) e Charles Jackson (2013): eram todos, em uma frase preferida, “alcoólatras colossais”. O irmão mais velho de Bailey, Scott, era multiplamente viciado e um predador sexual — ele agrediu Bailey pelo menos uma vez — que passou um tempo na prisão e acabou se matando. (Ele foi diagnosticado como esquizofrênico, mas parece mais provável que ele sofresse de um transtorno de personalidade.)

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O próprio Bailey foi um alcoólatra durante vinte e trinta anos, e ele disse que o fato de Yates e Cheever escreverem sobre “famílias suburbanas aparentemente prósperas e felizes que são realmente afetadas pelo álcool e doenças mentais e assim por diante, pode ter algo a ver com o porquê fiquei atraído pelo trabalho deles ”. Ele também observou que “o que realmente me atrai são personalidades compartimentadas”. Se a atração pela primeira categoria tem suas origens nos fatos de sua experiência, então o apelo da segunda certamente se relaciona com a sensação de Bailey de que “há aspectos de minha natureza que são desprezíveis”. (Ele acrescentou: “Mas eu não sou a soma das minhas qualidades desprezíveis.”)

Ele descreveu John Cheever como “uma espécie de meu sujeito por excelência”, acrescentando que ele tinha uma “ personalidade muito compartimentada”. Cheever se imaginava, Bailey disse, como “um brâmane de Massachusetts que desempenhou o papel de um “paterfamilias do condado de Westchester”. Ele era “um homossexual enrustido que gostava de companhias muito rudes” e, como Bailey disse em outro lugar, estava “apavorado o tempo todo” de que as pessoas descobrissem a verdade. Cheever era “charmoso” e “um mentiroso sem vergonha”. Bailey disse que gostaria de “resolver esse quebra-cabeça”: como um componente de uma personalidade se relaciona com outro que parece diametralmente oposto? Ele disse que “os monstros são fascinantes”.

O retrato da divisão de Bailey carrega uma dimensão ética. Ele revelou que ouviu coisas dos detratores de Cheever “fariam absolutamente você ficar de cabelos em pé”. Mas ele tende a procurar “as coisas atenuantes”, e que saber tudo é perdoar a todos. “Nunca odiei remotamente meus súditos”, disse ele há não muito tempo. “Na verdade, sempre senti uma afinidade calorosa … Tenho uma visão muito sombria de mim mesmo como ser humano, então realmente não é minha função lançar calúnias.” Bailey citou o método de Albert Goldman em sua biografia cruel de Elvis Presley como o “oposto de como eu trabalho”. (Ele elogiou as memórias de Michael Mewshaw de Gore Vidal por revelá-lo como uma “gárgula bêbada”, mas também um “amigo generoso e constante”.)

Mas há um desvio nos comentários de Bailey entre tentar entender o mau comportamento e decidir que, afinal, não era um mau comportamento. Bailey mencionou o caso do protegido de Cheever, um contista chamado Max Zimmer. Na biografia de Cheever de Bailey, há um momento em que Cheever tira o pênis da calça. Zimmer disse: “Aqui estava eu. Com um homem com seu pênis em um lugar totalmente estranho para mim.” Zimmer temia que, se recusasse, Cheever iria “causar confusão”. Bailey afirma que isso não era o estilo de Zimmer — então “Eu o masturbava. E era uma coisa horrível de se fazer. ” Mas Bailey mais tarde viu no diário de Cheever que o escritor estava “terrivelmente atormentado” com o relacionamento: Não era mesquinho ou explorador. Estava apaixonado por Max.

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A acusação de misoginia contra a escrita de Bailey remonta a pelo menos 2016, quando sua crítica irritada da biografia da escritora Shirley Jackson por Ruth Franklin foi publicada no Wall Street Journal. Ele discordou do que chamou de “tese principal” de Franklin — que Jackson havia sido explorada e maltratada por seu marido, o crítico Stanley Edgar Hyman. A história de “uma feminista pioneira”, escreveu ele, “precisa de um homem mau”. Há uma passagem especialmente reveladora. Franklin descreve como “cruel” uma passagem das memórias de Brendan Gill aqui na New Yorker na qual ela se refere a Jackson como uma mulher cujo “ar de garota gorda de palhaçada frivolidade” mascarava sua “aversão a si mesma não examinada” — uma observação que Bailey defende como “astuta”. Mas então ele resiste fortemente à sugestão de que Hyman tenha conspirado nos excessos de Jackson. Não, ele diz, eles simplesmente gostavam de comer juntos: “Isso os unia mais fortemente do que a literatura”. Bailey está ansioso para aplicar uma estrutura psicológica que acomode a insegurança feminina, mas uma que introduza agressão ou abuso masculino é um passo longe demais.

O livro de Bailey sobre Philip Roth revela seu animus de maneiras semelhantes. Laura Marsh no New Republic escreveu que a animosidade de Bailey em relação à primeira esposa de Roth, Margaret Martinson, era “algo mais do que uma questão de tomar partido em um divórcio amargo”. (Parul Sehgal, no New York Times, também foi fortemente crítico: “Com pouco menos de 900 páginas, o livro é uma extensa apologia do tratamento que Roth dava a suas mulheres.”) Frequentemente, há uma mulher má ou que faz bobagens no relato de Bailey sobre a vida de Roth e sua carreira. No final, em uma passagem muito estranha, Bailey argumenta que a proeminente feminista Carmen Callil, que se opôs a Roth como vencedor do Prêmio Internacional Man Booker de 2011 por motivos artísticos, fez todo o possível para elogiar a personagem feminina do romance Pastoral Americana para parecer despreocupada com a “alegada misoginia” de Roth.

O problema com o livro de Roth — facilmente o pior de Bailey — é que ele se inclina demais para a simpatia. Ele está irritado com a ideia de que Roth seja um misógino, apresentando isso como uma reação a Leaving a doll’s house (1996), onde a segunda esposa de Roth, Claire Bloom, dá vazão a memórias depreciativas de seu relacionamento com Roth. Bailey sofre com o equivalente biográfico da afirmação de Freud de que o psicanalista só pode levar o cliente até onde ele mesmo chegou. Ele nunca, por exemplo, levanta a possibilidade de que Roth justificou sua própria misoginia embarcando em relacionamentos com mulheres com vícios e problemas de saúde mental, ou que os atos de munificência de Roth foram controladores, digamos, ou foram oferecidos no lugar de intimidade emocional. Mais uma vez, a noção de equilíbrio de Bailey, o desejo de compreender ou perdoar, se confunde com a tendência de deixar as pessoas fora de perigo.

Em uma entrevista, Bailey simplesmente não conseguiu reconhecer a legitimidade das objeções ao seu retrato. Se Roth parecia um monstro, como a biografia também poderia ser branda ou censuradora? A resposta é que Bailey muitas vezes parece não apreciar a importância do que está contando. A força das biografias de Bailey é baseada em sua conexão intuitiva com seus temas — algo que ele enfatiza. Mas também existe uma atração inconsciente, e isso não é menos revelador.

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A própria história de vida de Bailey, conforme ele a conta, traça um arco familiar. Ele foi criado em uma família disfuncional e saiu dos trilhos. Ele se autodenomina “um jovem muito confuso e atrofiado”, mas não dá detalhes sobre conduta manipuladora ou agressão contra as mulheres, mesmo em um espírito de confissão. Bailey afirma que em seus trinta e poucos anos foi salvo ao conhecer sua futura esposa, Mary, que era estudante de graduação na época, e descobrindo sua vocação como biógrafo. Ele ainda tem cicatrizes e memórias ruins e permanece, ele disse, “muito bem conectado”.

Ele se pergunta em suas memórias de família The splendid things we planned (2014), referindo-se a seu irmão Scott: “Por que fui assim, e por que ele foi assim?” A tragédia de Scott, diz ele, é a história “do que eu poderia ter sido, ou do que, pelo menos, ainda não me tornei”, embora a referência seja à autodestrutividade de Scott. Scott, por sua vez, disse a Bailey: “Você vai ser exatamente como eu. Você vai piorar” — especulação considerada absurda pelo autor. Quando a mãe de Bailey diz a ele que Scott só precisa parar de beber, ele responde que não adianta; ele é simplesmente “um lunático sóbrio”. A mesma conclusão não ocorre a Bailey sobre sua própria recuperação.

Em um e-mail de 2020, visto pelo New York Times, Bailey escreveu para uma de suas supostas vítimas, Eve Peyton, uma ex-aluna, sobre “o horror” de uma noite em junho de 2003, na qual, ela afirma, ele a estuprou. Ele disse a ela que estava sofrendo de uma doença mental não especificada na época. Mas então o próprio relato de Bailey sobre seu progresso pessoal contém sinais preocupantes — notadamente, um descarado desprezo pelos limites que permaneceram evidentes no momento da escrita. Como ele explica, ele conheceu Mary em Lusher quando ela veio pegar o dever de casa de sua irmã de 13 anos. “Isso foi durante meu período de planejamento”, escreveu ele, “então tive tempo para flertar com ela”. Quando ele voltou a topar com ela, ela mencionou que vinha trabalhando meio período como auxiliar de professora, então ele a convidou para dar uma aula como convidada — “depois disso eu a levei para tomar um drink”. (Bailey, em suas memórias, lembra de ter dito a seu irmão que nunca tivera relações com seus alunos. Ele também disse a um entrevistador que as linhas de abertura e encerramento do romance Lolita de Nabokov, um texto que ele costumava ensinar em Lusher, “fazia meus cabelos dorsais tremerem”.)

Em uma entrevista, Bailey citou em êxtase a história de Tchekhov Dama com Cachorrinho, enfatizando a noção de que as aparências são falsas. Ele deu, a título de exemplo, a “versão recebida” dos últimos anos de Cheever, que John Updike chamou de “redentora” em que Cheever se recuperou do alcoolismo, chegou a um acordo com sua homossexualidade e criou alguns best sellers. “Nada poderia ser mais falso”, disse Bailey. “A vida superficial teve sucesso e a vida interior foi mais torturada do que nunca.”

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Por que esperei tanto para ler Jane Austen?

Por que esperei tanto para ler Jane Austen?

Por Joshua Raff
Tradução mal feita por mim

Cheguei tarde a Jane Austen. Como velho e fiel leitor vitalício, não tenho uma explicação simples para essa omissão, mas quando minha família decidiu ler Orgulho e Preconceito como um projeto de leitura familiar logo após a pandemia nos forçar ao isolamento, aproveitei a chance de preencher esta lacuna na minha alfabetização.

Depois que encontrei meu equilíbrio em sua linguagem, fiquei viciado. Deixei de lado os outros livros que estava lendo e me dediquei a Jane. Segui Orgulho e Preconceito com Emma e depois Persuasão em rápida sucessão. Cada um tem ótima narrativa, com o peso adicional de comentários sociais nítidos em uma linguagem que é elegante, intrincada e reconfortante ao mesmo tempo, uma combinação que parecia faltar nos outros livros que eu tinha lido durante o pandemia. E, como pai de duas filhas, senti um tipo especial de admiração pelas jovens heroínas de Austen, que parecem ter sua idade e serem modernas ao mesmo tempo. Particularmente Elizabeth Bennet em Orgulho e Preconceito, que se encaixa mas não se encaixa, que lê, que observa com algum humor as pessoas ao seu redor e o mundo em que habitam. E que, em uma das cenas favoritas de todos, enfrenta a imperiosa Lady Catherine de Bourgh, de uma forma que as heroínas ainda mais modernas teriam orgulho de imitar.

Por que levei tanto tempo para ler Austen? Foi o preconceito masculino da minha educação? Eu comprei a percepção dela como muito feminina… E o que há em seus romances que oferece fuga e consolo para esses tempos estressantes?

Jane Austen

Antes de começar minha busca por Jane, eu sabia ainda menos sobre Austen e sua vida do que sobre seus livros. E eu não apreciava sua base de fãs obsessiva. Testemunhe as legiões de leitores de todas as idades, todas tomadas por histórias ambientadas quase inteiramente no mundo estultificante e aparentemente estreito das classes superiores da Inglaterra da Regência. Ela é popular no Japão, por exemplo, onde existem até versões em mangá de seus livros, de acordo com a estudiosa de Austen, Catherine Golden. Além de sua base de fãs japoneses, suas histórias foram transferidas para a Índia (Noiva e Preconceito) e para a Los Angeles contemporânea (Clueless, um favorito da família), para mencionar apenas alguns. Seus livros foram até mesmo reformulados como histórias de vampiros e zumbis. Existem Sociedades Jane Austen em todo o mundo celebrando todas as coisas relacionadas a Jane.

As mulheres parecem constituir os principais leitores de Austen. As aulas de Catherine Golden em Austen no Skidmore College, onde ela detém a Tisch Chair in Arts and Letters, são predominantemente ocupadas por mulheres. Estou supondo que o mesmo se aplica a muitas outras faculdades e universidades. “Os fás são tipicamente mulheres e principalmente bebem chá”, Jeanne Kiefer conclui na pesquisa mais recente de Jane Austen (Anatomy of a Janeite: Results from The Jane Austen Survey 2008). Existe uma conexão? Estou muito feliz por finalmente ler Austen, mas você não pode me fazer beber chá.

Os homens que encontram Austen tendem a fazê-lo mais tarde na vida do que as leitoras, de acordo com Kiefer. Isso certamente é verdade para mim. Mas a resistência do leitor masculino a Austen parece ser um fenômeno relativamente recente. O professor Golden me disse que até meados do século 20, os homens eram grandes leitores de Austen. E os romances de Austen foram até enviados para soldados britânicos no front em ambas as Guerras Mundiais, em edições feitas especialmente para caber no bolso de seus uniformes.

Os leitores veem em Austen “mulheres jovens bonitas, casas grandes e dramas recatados em salas de estar…”, de acordo com Helena Kelly. Essa é a versão de Austen apresentada em muitas adaptações para cinema e televisão de seus romances, com as bordas de Austen suavizadas. Mas se é assim que conhecemos Austen, Kelly diz: “Sabemos errado”.

Enquanto os romances de Austen acontecem em “espaços feminizados”, nas palavras do escritor e crítico literário William Deresiewicz, Jane é frequentemente caracterizada como “um expoente de grande paixão”. É possível que eu tenha colocado Austen em uma caixa reservada para escritoras particularmente femininas, embora eu leia pelo menos tantos romances de escritoras quanto de homens. É a própria existência de tal caixa (se é que existe uma) evidência de misoginia inconsciente?

Ao contrário das leitoras mulheres, que foram forçadas a se identificar com personagens masculinos durante anos, os homens não tiveram que encontrar coisas em comum com personagens femininas e simplesmente não são bons nisso, diz Deresiewicz. Seu livro, A Jane Austen Education, descreve sua transformação tanto como homem quanto como pessoa, uma vez que ele rompeu essa barreira. Por mais que me deliciasse com o trabalho de Austen, não posso dizer que passei por tal transformação ou, se passei, não percebi, nem minha família ou meus companheiros de zoom. Nunca é tarde demais, suponho.

Pode ser que “homens que lêem”, leitoras de Jane em potencial, sejam afastados pelo tratamento às vezes brutal de Austen para seus personagens masculinos. Eu, pelo menos, fico mais envergonhado, às vezes chocado, com os homens frequentemente vaidosos, insípidos, arrogantes e mesquinhos que povoam os livros de Austen, personagens como Sir Walter Elliot em Persuasão ou o Sr. Collins em Orgulho e Preconceito. Mas Austen não poupa ninguém e há muitas personagens femininas que também se enquadram nessa descrição. E, por necessidade, existem alguns bons homens, muitas vezes pares para as heroínas, uma vez que os livros terminam em casamentos tradicionais. Mas a descrição de Sir Walter que abre Persuasion foi quase o suficiente para eu abandonar totalmente o livro. Obcecado por posição social, seu lugar na sociedade, e impossivelmente vaidoso, “Ele [Sir Walter] considerava a bênção da beleza inferior apenas à bênção de um baronete; e o Sir Walter Elliot, que uniu esses dons, foi o objeto constante de seu mais caloroso respeito e devoção.” E essa é uma das descrições mais brandas de Austen desse homem ridículo. Superei meu desconforto para continuar lendo e estou muito feliz por ter feito isso.

Os poderes curativos ou calmantes da escrita de Austen foram reconhecidos há muito tempo, de acordo com o professor Golden. Não só os soldados britânicos no front receberam cópias de Austen, mas também os soldados em processo de reabilitação. Rudyard Kipling, um grande admirador da obra de Austen, até escreveu uma história sobre um grupo de soldados lendo Austen (The Janeites, publicado em 1924).

O que torna Austen tão atraente em tempos como estes, tempos de isolamento e estresse? É, pelo menos em parte, uma fuga para um mundo, por mais fechado e protegido que possa ter sido, no qual as principais preocupações parecem ser bailes, chás e casamentos, sugere Golden. Mundos ordenados e estáveis, como William Deresiewicz os descreve, ambientados em ambientes rurais e domésticos. E para aqueles soldados nas trincheiras, uma imagem de casa, uma Inglaterra idealizada. Um dos soldados na história de Kipling descreve os romances de Austen: “Eles não eram aventureiros, nem obscenos, nem o que você chamaria de interessantes, mas parece que em tempos particularmente estressantes, a fuga ideal deve ter peso suficiente para enfrentar a crise. Jane tem esse peso.

Seus romances são mais do que boas histórias, mesmo para o leitor casual. Seus comentários cáusticos sobre classes sociais e alguns outros males de seu tempo transcende o mero escapismo e torna seus livros uma diversão digna em dias difíceis. O comentário de Austen sobre o papel e a situação das mulheres, mesmo das mulheres privilegiadas, é tão relevante hoje quanto era há duzentos anos. O que eu suponho que seja triste por si só. Seus insights sobre as emoções humanas, “discurso livre e direto”, de acordo com o professor Golden, nos levam diretamente para a mente de seus personagens e fornecem um imediatismo que fala aos leitores hoje, prova de que a natureza humana e a emoção não mudaram tanto desde a época de Austen.

A linguagem de Austen costuma ser mordaz, mas também é um alívio da alta vulgaridade de hoje. Talvez pareça antiquado, mas há paz a ser encontrada ali, no ritmo, na contenção, na poesia e na elegância que é produto de outra época, inteiramente. E, claro, há o gênio de Austen. Austen retrata uma sociedade altamente regulamentada, seus personagens limitados por uma intrincada teia de regras. Eu não gostaria de viver naquela época, mas como ficção é um contraponto bem-vindo ao caos que parece nos cercar hoje. Existe uma polidez ou etiqueta que é sufocante e atraente, exigindo que seus personagens permaneçam no controle de seu comportamento, não importa o quão turbulento seja seu tumulto interno. Os vilões de Austen violam essas normas sociais aceitas de forma grosseira, enquanto as heroínas (e alguns heróis) se perdem em pequenos caminhos que se avultam no mundo estreito em que seus personagens vivem. E em um estranho paralelo com nossas vidas circunscritas durante a pandemia, o mundo de Austen, como o nosso, é limitado, tanto geograficamente quanto por ordem social.

Acontece que o resto da minha família está deliciada com minha conversão a Austen. E embora algumas coisas pareçam estar melhorando em nosso mundo desde que terminei de ler Persuasão , os eventos recentes são terríveis o suficiente para exigir uma distração valiosa, embora ocasional, da seriedade mortal dos eventos ao nosso redor. Jane Austen é a coisa certa. Estou saindo para ler a Abadia de Northanger .

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Vida interior

Uma vez, a Elena me mostrou um texto do genial Andrei Konchalovsky, onde ele dizia que invocava Tchékhov para uma conversa cada vez que se via em dificuldades com a escrita. E que Anton o aconselhava.

Desde aquele dia comecei a conversar com Anton. E com Lucia também. A Berlin, claro. Sou íntimo dessa gente. Ou doido varrido.

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Hoje, os 130 anos de nascimento de Prokofiev

Hoje, faz 130 anos que Prokofiev nasceu. Ele morreu em 1953 e a coisa que mais me impressiona é que ele morreu no mesmo dia e ano de Stalin. Faleceram com diferença de horas ou ao mesmo tempo. E não sobraram flores nem atenções para o compositor. Sua morte quase não foi noticiada na URSS. Um troço bobo em relação à obra que o cara nos legou, mas que me deixa triste.

Como um amigo disse: “Me lembrou o episódio da morte de Tchékhov, cujo corpo foi transportado num vagão de ostras, e na estação muitos seguiram o cortejo errado, pois que também lá estava o defunto de um oficial, esperado por muita gente, oficiais e uma banda. Tchékhov teria adorado isso.

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Estudiosos italianos descobriram a verdadeira identidade de Elena Ferrante?

Estudiosos italianos descobriram a verdadeira identidade de Elena Ferrante?

Elisa Sotgiu faz uma leitura de gênero e classe sobre um dos grandes mistérios literários de nosso tempo.

Traduzido por Milton Ribeiro. Daqui, ó

Quando Claudio Gatti publicou uma investigação sobre a identidade de Elena Ferrante, há alguns anos, ele levantou protestos na Itália e no exterior. Ele havia invadido a privacidade da autora e violado seu direito de permanecer anônima. Era injusto, era irrelevante, não queríamos saber.

Verdade? Sim e não. Havia uma conclusão importante no artigo de Gatti: quem escrevia os romances de Ferrante era a tradutora Anita Raja, uma mulher.

Isso foi um alívio. Se você não sabe como os acadêmicos e jornalistas italianos podem ser sexistas, fica difícil imaginar a importância do gênero de Ferrante para todos nós que estudamos seu trabalho ao longo dos anos. Antes mesmo de Minha Amiga Genial ser publicado, correram rumores de que a obra de Ferrante tinha sido de autoria de um homem, e eles se intensificaram após o sucesso dos romances napolitanos nos Estados Unidos. Lembro de meu orientador me contando sobre essas especulações quando comecei a trabalhar com Ferrante em 2015; nós dois zombamos da misoginia que esse tipo de fofoca implicava, sentindo-nos como se estivéssemos nas trincheiras de uma mini guerra cultural.

Portanto, quando me deparei com uma série de artigos acadêmicos que, por meio de uma análise estilométrica, identificaram Elena Ferrante como o romancista italiano Domenico Starnone (marido de Anita Raja), não estava pronta para depor minhas armas. Naquela época, eu não tinha lido nenhum dos romances de Starnone. Eu sabia que ele era um autor prolífico, que havia escrito bastante sobre o ensino médio e que seu longo romance semiautobiográfico sobre sua juventude em Nápoles, Via Gemito, ganhara o prestigioso Prêmio Strega. Mas eu realmente não me importava com ele. Quando confrontado com a ideia de que ele poderia ser o autor de meus amados romances napolitanos, meu primeiro impulso foi deixar essa informação de lado, não falar sobre ela, e nem pensar muito a respeito.

Eu não estava sozinha. Embora o primeiro desses artigos estilometricos, de Arjuna Tuzzi e Michele A Cortelazzo, tenha saído em 2018 — exatamente no momento em que as publicações internacionais sobre Ferrante se multiplicavam exponencialmente –, quase nunca era citado fora do campo das humanidades digitais. Nas raras ocasiões em que foi mencionado, foi rapidamente descartado: abordar o problema da identidade de Ferrante, ao que parece, seria bastante prejudicial para qualquer análise séria de seus escritos, na opinião de alguns estudiosos.

É uma boa prática entre os estudiosos de Ferrante declarar que, seja qual for o seu gênero, o que conta é que ela escolheu adotar a persona de uma mulher. Mas permanece o fato de que os críticos frequentemente (embora com reprovação) citam Gatti quando querem discutir as ideias de Anita Raja sobre tradução em relação a Ferrante, enquanto ignoram cuidadosamente Tuzzi, Cortellazzo, Jacques Savoy e os outros nove estudiosos que confirmaram que os estilos de Ferrante e Starnone costumam ser indistinguíveis. Rachel Donadio foi a única que tentou (com sucesso) comparar os romances de Ferrante e Starnone, mas o fez nas páginas do The Atlantic e do The New York Times, pois a comparação é um tabu na academia.

Comecemos do início, então, e vejamos que quadro de Ferrante esses artigos nos permitem traçar. Em primeiro lugar, é útil saber que Tuzzi e Cortellazzo montaram um grande corpus para suas análises: 150 romances de 40 romancistas italianos contemporâneos, equilibrados por gênero e origem regional. Este corpo de textos foi então usado por um grupo de especialistas internacionais que participaram de um workshop de verão na Universidade de Padova em 2017. Eles trabalharam de forma independente e com abordagens metodológicas diferentes, mas chegaram a conclusões semelhantes (os anais do workshop foram publicados pela editora da Universidade de Padova). Georgios Mikros, da Universidade de Atenas, por exemplo, usou o corpus textual para treinar um algoritmo (aplicativo) de aprendizado de computador para criar perfis de autores (ou seja, identificar seu sexo, idade e procedência) com um alto grau de precisão. Este algoritmo concluiu que a pessoa por trás de Elena Ferrante era um homem com mais de 60 anos da região da Campânia, onde fica Nápoles).

E aquele velho napolitano se parece suspeitosamente com Domenico Starnone: na representação visual do corpus de Maciej Eder e Jan Rybicki, os romances de Ferrante e Starnone ocupam o mesmo lugar marginal, distante da maioria dos outros textos e conectados a eles apenas pelos três primeiros romances de Starnone, que foram escritos entre 1987 e 1991. Em outras palavras, Starnone e Ferrante são autores altamente originais, diferentes de todos os outros escritores italianos, mas muito próximos um do outro.

No estudo de Margherita Lalli, Francesca Tria e Vittorio Loreto (Universidade La Sapienza de Roma), um algoritmo de compressão de dados atribui erroneamente Um Amor Incômodo, de Ferrante, a Starnone, e Excesso de Zelo, Via Gemito e A Primeira Execução, de Starnone, a Ferrante. Em sua introdução ao volume, Tuzzi e Cortellazzo também fornecem uma lista muito longa de termos e expressões que podem ser encontrados apenas (e frequentemente) nos escritos de Starnone e Ferrante, mas em nenhum trabalho de outro escritor.

Em seu último estudo, Tuzzi e Cortellazzo também nos permitem delinear uma evolução paralela no tempo: depois de seus primeiros romances relativamente convencionais, Starnone desenvolve um estilo muito reconhecível no início dos anos 1990. Entre 1992 e o início dos anos 2000, diferentes romances são publicados com os nomes de Ferrante e Starnone, mas todos parecem pertencer à mesma família: o romance de Ferrante de 1992 (Um Amor Incômodo) é semelhante aos romances de Starnone de 1993 e 1994 (Excesso de Zelo e Dentes), a Ferrante de 2002 e 2006 (Dias de Abandono e A Filha Perdida) são mais semelhantes ao Starnone de 2005 (Responsabilidade). Então, por volta da década de 2010, vemos um desenvolvimento estilístico: tanto Ferrante quanto Starnone adquirem um certo distanciamento de seus eus mais velhos. Os romances napolitanos são mais semelhantes entre si — compreensivelmente, já que são um longo romance dividido em quatro volumes — e com o romance de Ferrante de 2019, A vida mentirosa dos adultos. Além disso, os romances mais recentes de Starnone podem ser agrupados, pois suas características são mais marcadamente únicas.

Esses dados podem ser interpretados de diferentes maneiras. No início, parece claro que Starnone está usando o nome de Ferrante quando quer adotar uma narradora feminina em primeira pessoa, sem se preocupar em mudar sua voz característica. Mais tarde, ele pode ter trabalhado para uma diferenciação mais acentuada dos dois estilos — ou outra coisa pode ter acontecido. Talvez uma colaboração com Raja. Um autor, Rybicki, que teve experiência anterior em analisar os esforços de escrita de um casal, não exclui essa possibilidade. Tuzzi e Cortellazzo também mostram que os escritos de não ficção de Ferrante — aqueles reunidos no volume Frantumaglia –– não são tão estilisticamente coerentes quanto sua ficção. Seu algoritmo atribui os diferentes ensaios, cartas e entrevistas a três autores diferentes: Starnone, Raja e um autor coletivo que representa os proprietários e materiais de publicidade da editora E/O (a editora de Ferrante desde o início). Em todo caso, parece quase fora de dúvida que Starnone, sozinho ou em dupla com sua esposa sentou-se e datilografou os romances que foram publicados sob o nome de Elena Ferrante.

Mas esta é uma história que vai além de Starnone. Para quem se interessa, como eu, pela história cultural do nosso presente, a criação de Elena Ferrante é um caso notável.

No início da década de 1990, Domenico Starnone tinha contrato com uma das principais editoras italianas, a Feltrinelli, para a qual havia publicado três romances entre 1989 e 1991. Nesse ponto, começou a colaborar com a jovem e pouco conhecida editora a casa Edizioni E/O, onde sua esposa Anita Raja trabalhou como tradutora freelancer de alemão durante os anos 1980. No catálogo da E/O, o nome de Starnone aparece apenas entre 1991 e 1992. Ele escreveu um posfácio para uma coleção de contos de Mark Twain, um ensaio em um volume sobre literatura infanto juvenil, e Sottobanco, uma adaptação teatral de seu primeiro livro, o único que Feltrinelli não publicou. 1992 foi também o ano em que O Amor Incômodo, o primeiro dos romances de Ferrante, saiu pela E/O.

Sandro Ferri e Sandra Ozzola, os fundadores da editora, devem ter feito questão de manter Starnone entre seus autores, mas Starnone — talvez por causa de obrigações contratuais, talvez por escolha — decidiu continuar a publicar em seu nome real para a Feltrinelli e sob o pseudônimo de Ferrante para a E/O. Afinal, uma escritora estava mais de acordo com o projeto editorial de Ferri e Ozzola, e a escolha de Starnone de escrever como homem para uma editora de prestígio e como mulher para uma editora marginal era consistente com a estrutura do espaço literário italiano dominado por homens.

O segundo capítulo dessa história começa em 2005, quando Ferri e Ozzola fundaram a Europa Editions em Londres e Nova York. Sua missão — de publicar autores periféricos e servir como ponte entre diferentes nações e culturas — não encontrou muita ressonância na Itália, mas estava perfeitamente alinhada com o novo entusiasmo pela “literatura mundial” que estudiosos, críticos culturais e editores independentes compartilhavam no mundo anglófono. Para conquistar seu nicho neste mundo, Ferri e Ozzola decidiram apostar em Elena Ferrante: Dias de Abandono foi um dos dois livros que a Europa Editions publicou em seu primeiro ano, e todos os seus outros romances foram traduzidos para o inglês imediatamente depois que eles saíram em italiano.

Foi uma aposta vencedora, mas eles não tiveram apenas sorte. Se ser uma autora era uma desvantagem na Itália, era muito menos nos Estados Unidos. Na década de 2010 a 2019, as mulheres constituíram 60% dos autores selecionados e 60% dos vencedores do National Book Award for Fiction, 52% dos indicados e 60% dos vencedores do Prêmio PEN / Faulkner e 80% dos vencedores do National Book Critics Circle Award, só para citar alguns dos reconhecimentos mais importantes. Enquanto Ferrante levou seus leitores globais a uma “febre”, Domenico Starnone recebeu atenção da crítica nos Estados Unidos apenas com seu romance de 2014, Laços, que pode ser lido como uma sequência de Dias de Abandono, de Ferrante.

Não estou sugerindo que a invenção de Elena Ferrante foi apenas um empreendimento editorial astuto. Um pseudônimo feminino pode ter sido uma forma de evitar críticas: se você pesquisar no Google “escritores masculinos que escrevem personagens femininos”, os primeiros resultados (com títulos como “30 vezes que autores masculinos mostraram que mal sabem alguma coisa sobre mulheres” e “escritores masculinos não têm nenhuma ideia de como escrever sobre personagens femininos”) deixam claro que essa prática sofre de enorme má reputação. Escrever sobre gênero da perspectiva de uma mulher também poderia ter sido uma forma de chamar a atenção para a questão da dinâmica de classe e mobilidade social que muitas vezes esteve no centro da escrita de Starnone. Perto do final do Quarteto Napolitano, a protagonista Elena Greco diz que sem sua brilhante amiga Lila, toda a sua vida “seria reduzida apenas a uma batalha mesquinha para mudar de classe social”.

Poderia ser útil, então, redirecionar nossa atenção do assunto de gênero para o de classe. O último romance de Ferrante, A Vida Mentirosa dos Adultos, tem pouco a acrescentar sobre a questão da identidade das mulheres. Especialmente no início, a história parece se repetir com pequenas variações a todos os tropos de Ferrante: a ideia de não ser nada além de “um nó emaranhado”, o apagamento de mulheres em fotos e na carne, a ideia de mães espiando através de suas filhas, a amizade feminina baseada na emulação e desejo de fusão, o ciúme e possessividade em relação à mãe, a sexualidade dos filhos. Frases de livros anteriores, e especialmente do Quarteto Napolitano, são repetidas quase inalteradas. A única diferença é que desta vez o ponto de vista parece ser o de uma reencarnação mais jovem de Lila em vez de outra Elena.

A principal novidade da história, ao contrário, é o que ela diz sobre classe social. Os romances napolitanos foram construídos na contraposição dos bairros proletários e subproletários de Nápoles ao centro da cidade burguesa. Uma ética de responsabilidade e realização educacional e um grande investimento em status eram as pedras angulares das crenças de Elena Greco. Em A Vida Mentirosa, porém, a protagonista Giovanna e seus amigos abraçam valores pós-materialistas e se atualizam: eles podem viajar livremente e ainda reconhecer a importância das periferias mais pobres de Nápoles, eles não se preocupam com boas notas, mas estão interessados ​​em ler e escrever como um meio de cultivar seu eu autêntico. Eles são a nova classe média cosmopolita e rejeitam as dicotomias de classe da geração mais velha.

Estudar os romances de Ferrante junto com os de Starnone pode nos tornar melhores leitores de ambos e abrir novos caminhos para os estudiosos. Mas reconhecer que Elena Ferrante é provavelmente um homem também pode mudar as coisas para pior. Ela nos serviu bem: as acadêmicas que se dedicam a estudos italianos de repente tiveram um ingresso confiável em conferências internacionais, revistas online, edições especiais, em editoras. Essas vantagens podem chegar ao fim. Mas isso não é motivo para ficar triste; Elena Ferrante ainda é um prazer de ler. E ela também é o maior mistério literário de nosso tempo.

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Elisa Sotgiu é candidata ao doutorado em Literatura Comparada em Harvard. Ela estudou na Scuola Normale Superiore em Pisa e publicou sobre Edoardo Sanguineti, Henry James e Elena Ferrante.

Anita Starnone e Domenico Ferrante? Ou Elena Raja?

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Um ateu (já que hoje é o Dia do Bibliotecário)

Um ateu (já que hoje é o Dia do Bibliotecário)

dia-de-santa-luziaJá se passaram muitos anos desde aquela vez em que fui expulso de uma instituição católica de ensino. O motivo me deixa tranquilo. A ferida interna que ficou, não.

A tal instituição é uma tradicional escola particular porto-alegrense. Um colégio que pode receber quaisquer alunos, mas que tem a característica de, há muitos anos, manter turmas para deficientes visuais. Está preparada para a missão e tem professores especializados. Eu ficava no meu canto, tranquilo, na biblioteca. Gostava de lá e era bastante amigo da bibliotecária que trabalhava à tarde. Ela conhecia seu ofício e era a responsável pela Hora do Conto. Conversávamos antes de ela contar as histórias e lendas para as crianças pequenas, despertando-lhes o interesse com seu talento. Ela também costumava pressionar a bibliotecária titular para que esta cumprisse seus horários de forma a que pudéssemos recolocar mais rapidamente para empréstimo os livros que retornavam e os que chegavam. Chegava muita coisa boa. Eu carimbava os livros, colocava-lhes etiquetas e ajudava na restauração dos muitos que voltavam quase destruídos da casa de crianças e pais descuidados. Quando vieram as férias dos alunos, fui deslocado para a digitação. O que se digitava lá? Ora, livros. Digitávamos os livros que depois seriam impressos em Braille para os deficientes visuais.

Então, em julho, me passaram o livro Porteira Fechada, de Cyro Martins. Ele já fora digitado até a página 50 e faltavam 103. Como tratava-se de leitura obrigatória para o Vestibular da UFRGS, havia a necessidade de passá-lo com urgência para Braille. Era uma atividade que me dava prazer. É um excelente livro, conta uma boa história e dei o meu melhor. E então começaram os problemas.

Conversei com a funcionária que receberia meu trabalho e ela ficou encantada com minha disposição de não apenas terminar a digitação de cada página, como com minha vontade de revisar as 50 páginas iniciais que eu constatara estarem cheias de erros. Haviam permanecido erros de pontuação e palavras não corrigidas, apesar da gritaria do corretor ortográfico do Word. Na curta biografia de Cyro que abre o volume, as únicas letras maiúsculas eram as que iniciavam as frases. O nome dos pais de Cyro, o de sua cidade, o das universidades onde estudou, o das cidades por onde andou, o nome de seus amigos, etc. estavam todos em minúsculas. Pior: como em Braille não há itálicos, os nomes das obras do autor teriam que figurar entre aspas. E não havia aspas no texto. Tinha até uma frase onde parecia que Estrada Nova era parte da frase e não nome de um romance de Cyro. Eu mostrei tudo aquilo para a responsável e ela então pediu que eu fizesse a revisão completa. OK, sem problemas, tinha tempo de sobra.

Quando relatei os acontecimentos para minha chefe, uma religiosa, ela disse que a responsável pelo Braille estava querendo que eu fizesse um trabalho que era de outro setor, não do meu. Completou dizendo que se tratava de uma inútil. Sinceramente, não me parecera. De forma débil, pois sei que tudo o que não tinha lá era “espaço”, “direitos” e “poder”, solicitei educadamente fazê-lo, pois o nome do digitador vai na capa da obra e será lido tanto por quem o vê quanto por quem o lê com as mãos. Ela recusou terminantemente. Disse-me que eu estaria fazendo o trabalho que um setor coalhado de preguiçosos (expressão dela) não fazia. Esta religiosa é uma patética personagem de romance: uma espécie de faz-tudo que anda entre os setores supervisionando o trabalho de cada funcionário, espalhando sorrisos e pequenas maldades. Seu problema era o de ser acatada apenas por quem precisava acatá-la: pelos que tinha medo dela. O restante, os funcionários, riam da figura ou simplesmente a ignoravam. Em quatro meses, nunca tivera nenhum problema. Aquele era o primeiro e não era grave.

Decidi fazer a revisão em casa e entreguei o arquivo ao setor de Bralle num final de manhã através de outra pessoa, para que a freira não tivesse a oportunidade de questionar nada. O meu nome estaria lá, pô. Por volta daquele dia, a freira faz-tudo anunciou que estava estressada — puxa, estressada é tudo o que ela NÃO parecia — e que iria para um retiro. Os tais retiros são motivos de piada entre os funcionários. Quando um religioso se incomoda, ser superior que é, vai para uma espécie de Spa de Cristo; quando o mesmo acontece com um funcionário, ele segue trabalhando. Acontece muito neste gênero de empresas livre de impostos, administradas por deus: quando ninguém suporta mais uma freirinha, ela vai para um retiro e depois é destinada a um novo paradeiro, de onde será novamente chutada entre padre nossos. Certamente ela estava de malas prontas, pronta a enobrecer com suas fofocas a obra de deus em outras plagas, mas antes tinha que me sacanear.

E, antes de viajar, ela, que sempre vinha conversar sorridente comigo, subitamente me acusou de trabalhar em outros “arquivos”. Quis responder, mas ela me mostrava sua mão espalmada, sinal inequívoco de “Não quero ouvir”. Então, eu calava. Sim, era verdade, ela tinha razão, eu mexia em outros arquivos. É que o pessoal do Braille me perguntara se eu poderia apressar a digitação de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que já andava lá pela página 300 com outra pessoa. Eu vira a qualidade da digitação já realizada e sabia que era apenas razoável, principalmente em razão da dificuldade e da aridez do texto em muitas partes. O que fiz? Busquei o livro inteiro no Portal Domínio Público. Busquei a mesma edição digitada, pois o pessoal do Braille me alertara que a transcrição tinha de ser similar ipsis litteris igualzinha cara de um focinho de outro à edição que a escola possuía. Eu queria repassar aos cegos a melhor cópia possível. E que eu fazia com meu pecaminoso arquivo disponibilizado pelo Governo Federal em seu site? Ora, procurava passar o “.pdf” para “.doc” a fim de deixar Os Sertões no formato ideal antes de ir para a impressora Braille. Ficou logo pronto, com suas letras grandes, com underline no lugar dos travessões das falas, travessões onde havia travessões, etc.

Como punição por me preocupar com a qualidade da leitura dos cegos, fui devolvido à Biblioteca. OK, problema nenhum. Lá fui eu, bovinamente. No dia seguinte, recebi a folha de avaliação. Havia várias perguntas e um espaço para que pudéssemos dar nossas opiniões. E então, certamente por raiva, cometi um erro grave. Expliquei o que fizera para o setor de Braille. Falei de Euclides e seus adjetivos arrevesados. Escrevi sem nenhuma ironia, cheio de boas intenções. Uma hora depois, a freirinha voltou com a folha na mão. Sua primeira pergunta foi inacreditável. Ela perguntou sobre minha crença em deus. Mesmo sabendo que meu trabalho era bom e necessário, sabia que me atirava no precipício ao responder: sou ateu. Fui bruscamente solicitado a me retirar dali para sempre.

Nos dias seguintes, recebi diversas ligações do setor de Braille. Queriam que eu voltasse. Eu disse que tinha sido expulso. Fodam-se os cegos, né? Obedeça-se a quem acha a disciplina formal mais importante do que a disciplina cabal de fazer as coisas. Três meses depois, a funcionária do setor de Braille ainda queria que eu voltasse, principalmente porque a freirinha tinha sido finalmente transferida, mas já estava outra em seu lugar que… Já sabia que eu era ateu. Como a responsável pelo setor de Braille também era, mas não dizia.

(Meus sete leitores, digo-lhes: que romance não daria a vida naquele inferno com Cristo, quanto ciúme, quantas querelas, quantos olhares… E quanto conforto, meu deus! Deveria pensar mais nisso e dedicar o resultado às manas servas de deus!).

Obs.: Texto revisado hoje. Prova de que ainda é um problema.

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Uma reflexão preguiçosa sobre a literatura e a sensibilidade femininas

Meu amigo S. era muito desejado pelas mulheres. Bonito e inteligente, falava com voz estereofônica e as moças do escritório — trabalhávamos numa grande multinacional — o seguiam com os olhos para cá e para lá. Nós, homens, reconhecíamos sua superioridade. Ele nascera em Antônio Prado, uma cidade histórica gaúcha. Certa vez, um jornal publicou uma reportagem sobre as velhas construções dos italianos da região. O título da matéria era Toda a Graça de Antônio Prado. Nossa secretária pôs a página no mural e completou com caneta vermelha: Toda a Graça de Antônio Prado ESTÁ CONOSCO.

Um dia, S. confidenciou-me algo espantoso:

— Milton, tenho inveja de ti –, pensei que vinha uma piada qualquer e esperei.

— As mulheres que saem contigo são intelectuais, inteligentes, de bom nível. Já meu séquito é formado por mulheres burras que se apaixonam pela minha cara.

Fiquei espantado. Seguimos conversando, mas o assunto não prosperou. Meses depois, S. sofreu um grave acidente. Dormira ao volante e fora de encontro à traseira de um caminhão parado. Estava a 80 quilômetros por hora. A comoção foi geral, era uma pessoa querida por todos. Após um mês no hospital, ele retornou com duas grandes cicatrizes no rosto. Falou-me de sua intenção de submeter-se a todas as cirurgias possíveis para recuperar o rosto de Adonis. Ao comentar com minha (então) mulher a respeito, ouvi uma opinião discordante.

— Milton, ele era perfeito demais. Agora ficou humano! Acuse-o de não entender nada de mulheres! É muito grave.

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Passei grande parte das últimas três décadas procurando entender as mulheres. Evoluí muito. Hoje sei de alguns detalhes que, se não penetram a alma feminina, fazem que ela respire melhor. As mulheres têm um gênero de sensibilidade diversa da nossa, queiramos ou não. Trabalham, adornam-se, falam, escrevem e criam obras literárias distintas. Têm expressão tão diversa da masculina quanto sopranos e contraltos diferem de tenores e baixos.

Os primeiros críticos ingleses que escreveram sobre Jane Austen (1775-1817) referiram-se a tea-table novels. É uma interpretação muito superficial. Austen — que escrevia seus romances em seu quarto, temendo que alguém entrasse e interviesse — põe lentamente em movimento grandes e complexos personagens. Esta escritora genial é absolutamente irônica e realista. Foi a primeira a retirar a nota trágica do romance sério. Criou personagens e diálogos inesquecíveis dentro das velhas histórias tradicionais de mocinhas que só pensam em noivar e casar — na verdade, uma necessidade absoluta para evitar a pobreza ou o viver de favor. Quem leu Orgulho e Preconceito (Pride and Prejudice) nunca esquecerá Elisabeth Bishop e Fitzwilliam Darcy e alguns críticos consideram Emma Woodhouse, de Emma, a maior personagem da literatura inglesa. Não é pouca coisa. Sua voz em Orgulho e Preconceito:

Mary não compreendia seus sinais. Uma tal oportunidade de exibir-se era-lhe deliciosa e ela começou a cantar. Os olhos de Elisabeth se fixaram nela com os mais dolorosos sentimentos. Ouviu as várias estrofes com uma impaciência muito mal contida, pois Mary, ao perceber entre os agradecimentos a sugestão de que ela pudesse ser instada a renovar o prazer que estava dando a seus ouvintes, recomeçou a cantar, depois de uma pausa de meio minuto.

A admiração atual por Virginia Woolf (1882-1941) é estrondosa e merecida. Foi romancista, contista, ensaísta e memorialista de primeira linha. Anos atrás, o Oscar de melhor filme foi dado à adaptação de um livro baseado na biografia de Woolf e em uma de suas obras, Mrs. Dalloway. As Horas (The Hours) era o título inicial de Mrs. Dalloway. Não pretendo resumir em poucas palavras uma escritora tão conhecida, ampla e de voz tão original, seria uma temeridade. É curioso saber que, nas margens de seus manuscritos havia observações como esta:

Eu não consigo escrever & todos os diabos aparecem – pretos e peludos. Ter 29 anos e ser solteira – ser um fracasso – Sem filhos – também doida, e não escritora. E, ao lado, esta outra: Fico deitada & penso na minha adorada fera, que me torna mais feliz a cada dia & instante de minha vida do que jamais pensei ser possível. Não há dúvida de que estou terrivelmente apaixonada por você. Ponho-me a pensar no que estará fazendo, & tenho que parar porque começo a querer muito beijar você.

Tais anotações, quais romances?

Lembro-me de George Eliot, Sylvia Plath e Doris Lessing, porém concluo com Clarice Lispector (1925-1977). Para mim é difícil chamar Clarice de intimista; ela é mais do que isto, torna-se íntima de quem a lê. Ela me é ou ela torna-se eu, poderia ter escrito Clarice. Longe dos padrões estabelecidos, temos de abdicar da segurança das convenções da literatura tradicional para deixar que sua maravilhosa invenção nos leve. A palavra é protagonista tão importante em sua criação que temos a sensação de que vem antes do pensamento: Como poderei saber o que penso até que veja o que digo? (*) Sua arte é de tal forma envolvente, que quando relemos nossas anotações anos depois, não compreendemos mais do que se trata. É melhor recomeçar o livro, reentrar em seu espaço, é melhor ir direto a Clarice de, por exemplo:

Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio. Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas – escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio.

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Querem saber se S. fez as tais cirurgias? Não, não fez. Talvez a vaidade masculina seja tão boa ouvinte quanto a feminina…

(*) André Gide, em “Os Moedeiros Falsos”.

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Rubem Fonseca (1925-2020)

Rubem Fonseca (1925-2020)

Eu li bastante da primeira metade da obra de Rubem Fonseca. Conheci-o adolescente quando houve a censura ao ótimo Feliz Ano Novo. A censura era uma boa propaganda na época.

Acho que conheço quase tudo de sua obra até Agosto ou Bufo & Spallanzani ou Vastos Pensamentos, não sei qual foi o último. Achei que sua literatura, antes sinceramente noir, estava decaindo.

Gostava de sua habilidade para inserir a maldade em seus textos. Ela estava sempre rondando.

Creio de Feliz Ano Novo, Lúcia McCartney, O Cobrador e A Grande Arte ficarão.

Era um mineiro muito carioca que recebeu seis Jabutis e era um sujeito conservador, apoiador do golpe de 64 e homofóbico, mas isso não chegava a transparecer com clareza em sua obra, que é o que interessa.

Ontem, ele morreu à beira dos 95 anos.

 

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Como Shakespeare utilizou sua quarentena…

Como Shakespeare utilizou sua quarentena…

O Bardo sobreviveu à praga, referenciou-a em algumas de suas peças mais famosas e tornou suas quarentenas produtivas | Ilustração fotográfica da revista Slate. | Fotos da Biblioteca de Manuscritos Raros da Universidade de Yale e Wikipedia.

William Shakespeare (1564-1616) é considerado por muitos o maior escritor de língua inglesa de todos os tempos. Autor de clássicos da dramaturgia como Romeu e Julieta, Macbeth, Rei Lear, A Tempestade e Hamlet, o “Bardo” foi um escritor prolífico, que sabia como ninguém trabalhar e interpretar os caminhos e lacunas da psicologia humana. O que pouca gente sabe, porém, é que a epidemia de Peste Bubônica na Europa teve um papel fundamental em sua vida e obra.

É realmente verdade o pouco que se sabe sobre Shakespeare? Bem, talvez. Mas, certamente, é justo dizer que, como todos os elizabetanos, a carreira do dramaturgo foi afetada pela peste bubônica de maneira quase impossível de se conceber agora, mesmo em meio a pandemia do Covid-19. Quando criança, teve a sorte de sobreviver à doença: é que Stratford-upon-Avon foi devastada por um enorme surto no verão de 1564, logo após seu nascimento, e até um quarto da população da cidade morreu. Ao crescer, Shakespeare deve ter  ouvido inúmeras histórias sobre esse evento apocalíptico e se ajoelhado na igreja em lembrança e respeito solenes aos mortos. Seu pai, John, esteve intimamente envolvido nos esforços de assistência e participou de uma reunião para ajudar os mais pobres de Stratford. Ela foi realizada ao ar livre em razão do risco.

Quando Shakespeare se tornou um ator profissional, além de dramaturgo e acionista de uma empresa de Londres, a peste representou uma ameaça tanto profissional quanto existencial, tanto econômica quanto médica. Por falar em médicos, os doutores elisabetanos não tinham ideia de que a doença era transmitida por pulgas de ratos e, no momento em que um surto explodia — muitas vezes durante os meses de primavera ou verão, estações de pico dos teatros –, as autoridades proibiam as reuniões de massa. Pior, isolavam pessoas em casas por onde os roedores passeavam com suas pulgas. Dado que as autoridades naturalmente suspeitavam da arte como um incentivo à indecência e às fantasias e Deus sabe o que mais, os teatros eram, invariavelmente, os primeiros a fechar. Além dos bordéis, claro. Como um pregador da época disse categoricamente: “A causa das pragas é o pecado, e a causa do pecado é a peça de teatro”. Entre 1603 e 1613, quando a capacidade de Shakespeare como escritor estava no auge, o Globe e outros teatros de Londres foram fechados por um total surpreendente de 78 meses…

Em tempos de isolamento social em razão do COVID-19, a revista americana Slate publicou um excerto do livro The Hot Hand: The Mistery and Science of Stakes, de Ben Cohen, que conta como isso aconteceu.

Como disse, Shakespeare já nasceu em meio a uma epidemia na pequena cidade de Stratford-upon-Avon. Foi o terceiro filho de oito, sendo o mais velho a sobreviver. De acordo com Cohen, apesar da peste ser “a força mais importante na vida dos seus contemporâneos”, ela era um tabu para Shakespeare e outros escritores. Eles não falavam dela, não era de bom tom.

Porém, ela surge num momento decisivo de sua obra. Em Romeu e Julieta, a principal reviravolta da história acontece por causa da peste. A trágica falha de comunicação entre os amantes mais famosos de todos os tempos acontece por um motivo insólito… O personagem Frei Lourenço, responsável por entregar a carta que revelaria os planos de Julieta a Romeu, não conseguiu sair de casa por causa de uma quarentena!

Foi a quarentena também a responsável por um dos períodos mais produtivos do “Bardo”. Entre os anos de 1605 e 1606, a maioria dos teatros da Inglaterra estavam fechados por medidas sanitárias, fazendo com que Shakespeare não pudesse se apresentar com sua companhia teatral. Ele se aproveitou disso para escrever. Foi nesses anos que produziu alguns dos seus maiores clássicos: Antônio e Cleópatra, Rei Lear e Macbeth.

Vamos ao texto de Cohen?

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A pestilência infecciosa reinou

Como a praga devastou o mundo de William Shakespeare e inspirou seu trabalho, de Romeu e Julieta a Macbeth

Traduzido livremente por mim da Revista Slate
Texto original de Ben Cohen

Num dia de verão em 1564, o aprendiz de um tecelão morreu em uma pequena vila no interior da Inglaterra, uma tragédia local que foi imortalizada nos registros da cidade. Ao lado do nome do aprendiz, foram escritas três palavras ameaçadoras em latim: “Hic incipit pestis” (Isso inicia pestes).

A epidemia destruiu uma porção considerável da vila. Sobreviver foi aparentemente uma questão de sorte. A praga poderia dizimar uma família e poupar a família ao lado. Em certa casa, numa rua chamada Henley Street, por exemplo, havia um jovem casal que já havia perdido dois filhos devido às ondas anteriores da peste, e seu filho recém-nascido tinha três meses quando eles trancaram as portas e janelas para tentar impedir que a praga invadisse sua casa novamente. Eles sabiam, por infelizes experiências, que os bebês eram especialmente vulneráveis ​​a essa doença. Entenderam muito bem que seria um milagre se ele sobrevivesse. Era como se eles estivessem jogando uma moeda num cara ou coroa, apostando a vida de seu rebento. Mas quando a peste foi embora naquela pequena vila no interior da Inglaterra, chamada Stratford-upon-Avon, o casal deu um suspiro de alívio por seu filho ainda estar vivo. O nome dele era William Shakespeare.

Existe a possibilidade de Shakespeare ter desenvolvido imunidade em razão de sua exposição quando criança, mas essa especulação começou apenas séculos mais tarde e somente porque a peste foi um incômodo constante para Shakespeare. “A peste foi a força mais poderosa que moldou sua vida e a de seus contemporâneos”, escreveu Jonathan Bate, um de seus biógrafos. As epidemias eram naturalmente um assunto tabu na sociedade da época. Mesmo quando as pessoas só pensavam a respeito dela, ninguém falava a respeito. E os londrinos iam aos teatros da cidade para que pudessem esquecer temporariamente do medo.

Mas a peste também era uma arma de Shakespeare. Ele não a ignorou. Ele a usou.

Um exemplo deste curioso fenômeno é Romeu e Julieta. É basicamente impossível apreciar a natureza verdadeiramente louca dessa peça quando você a lê pela primeira vez. Então vamos apontar alguns detalhes agora. Você provavelmente se lembra do básico da trama: Romeu e Julieta nascem em famílias rivais; Romeu e Julieta se apaixonam; Romeu e Julieta morrem. Mas você se lembra como isso acontece? Talvez não. E você sabia que a peste é o que acaba separando Romeu e Julieta? Aposto que não lembra.

Há outra morte no 3º Ato de Romeu e Julieta, um assassinato. Romeu mata Tybalt, primo de Julieta. Isso é um problema, porque não somente porque a família de Romeu é inimiga jurada da de Julieta, mas porque, como consequência, Romeu é banido de Verona. Julieta não sabe o que fazer. Quando ela conversa com Frei Lourenço, ele decide que há uma maneira de acabar com a rixa entre as famílias: ele casará Romeu e Julieta. E traça um plano que exige que Julieta tome uma poção que a faça dormir por tanto tempo que sua família achará que ela está morta. Ao mesmo tempo, Lourenço escreverá uma carta para Romeu explicando o esquema preparado. Frei João entregará essa carta a Romeu na cidade de Mântua, onde ele está agora. Romeu voltará furtivamente e roubará Julieta para que eles possam se casar e viver felizes para sempre.

Era um plano absolutamente maluco que funcionará pessimamente — mas não pelas razões que você poderia esperar. Julieta bebe a poção. A família dela acha que ela está morta. Romeu volta furtivamente para vê-la. Por enquanto, tudo bem. Mas a parte mais confiável desse plano ridículo não funciona: Frei João nunca chega a Mântua e, assim, a carta de Frei Lourenço nunca chega a Romeu. O que acontece a seguir é uma série de eventos altamente infelizes. Romeu acha que Julieta está morta. Ele se mata. Julieta acorda de sua falsa morte e descobre que Romeu está morto de verdade. Ela se mata.

Vamos retroceder algumas cenas e ler como Frei João explica a Frei Lourenço o motivo pelo qual ele nunca chegou a Mântua. (Eu, Milton Ribeiro, reli na tradução de José Francisco Botelho e copio aqui para vocês). A conversa deles revela como o esquema se desfez.

FREI LOURENÇO

Vens de Mântua. E Romeu, o que nos diz?

Se ele escreveu, me entregue sua carta.

FREI JOÃO

Eu fui atrás de um outro irmão descalço,

Da nossa Ordem, pra me acompanhar

Na visita aos doentes da cidade

Fui atrás e encontrei, mas a patrulha,

Foi à casa onde estávamos, nós dois,

Suspeitando que a praga ali imperasse,

Selou as portas, nos prendeu lá dentro,

E, por isso, eu não pude ir a Mântua.

FREI LOURENÇO

E quem levou a carta até Romeu?

FREI JOÃO

Eis a carta. Não pude enviá-la,

Nem buscar mensageiro que a trouxesse,

Tamanha era a suspeita de contágio.

FREI LOURENÇO

Acidente infeliz!

Por que Frei João não entregou a carta de Frei Lourenço a Romeu? Porque ele ficou preso em QUARENTENA. Deste modo, Romeu e Julieta foram indiretamente atingidos pela peste. A praga é a reviravolta que transforma a mais famosa história de amor já contada em uma tragédia.

Toda a peça desemboca e gira em torno dessa cena final. Talvez você não lembrasse de como a praga criou a tragédia final. Shakespeare foi propositadamente discreto. Ele escreveu em linguagem velada, mas o subtexto era óbvio na época. Ele não precisava explicar o assunto. Mencionar a praga era o equivalente shakespeariano de terminar um tweet com ridículo emoticon. Não havia necessidade de qualquer tipo de explicação adicional. “A peste era onipresente”, diz James Shapiro, professor da Universidade Columbia. “Todo mundo na época sabia exatamente o que essas uma ou duas linhas significavam.”

Aquele que seria o balcão de Julieta em Verona | Foto: Wikipedia

Mas como Shakespeare usaria a praga mais tarde em sua vida?

Estudiosos acreditam que Shakespeare escreveu Rei LearMacbeth, e Antônio e Cleópatra em poucos meses entre 1605 e 1606. O consenso era o de que Shakespeare escrevia duas peças por ano, mas isso é dito por estudiosos de literatura nada estatísticos. Eles chegaram a esse número simplesmente dividindo o número de peças que ele escreveu pelo número de anos produtivos. Deu duas por ano. Segundo estes cálculos, se Shakespeare escreveu 10 peças em cinco anos, escreveu duas peças por ano… Bobagem, isso não é nem remotamente verdade.

Acontece que “Shakespeare não era um conta-gotas teatral, ele escrevia em espasmos, em grupos”, diz Shapiro. “Foi algo que demorei um pouco para entender, simplesmente porque eu sempre acreditei nas alegações infundadas de que ele produzia duas peças por ano. Mas nunca foi o que ele fez. Shakespeare escrevia em surtos de criatividade. Suas peças não foram espalhadas de forma homogênea ao longo de sua carreira. Elas vinham agrupadas. “E quando você começa a ver essas peças realmente agrupadas, começa a perguntar: o que explica tantas peças em um período muito curto de tempo?”

Ora, a peste. A praga fechou os teatros de Londres e forçou a companhia de atores de Shakespeare, os King’s Men, a serem criativos em suas apresentações. Enquanto viajavam pelo campo inglês, parando em cidades rurais que não haviam sido atingidas pela praga, Shakespeare notou que escrever era uma melhor utilização de seu tempo. “Isso significava que seus dias eram livres pela primeira vez desde o início da década de 1590”, escreveu Shapiro em seu livro The Year of Lear: Shakespeare in 1606, o melhor relato desse momento estranho em sua vida.

Além disso, Shakespeare também se beneficiou da praga por um motivo do qual não tinha controle: ela dizimou a concorrência que permaneceu em Londres… Os King’s Men acabariam recuperando seus espaços de teatro por causa da doença que atacava mais os jovens. A praga criou a circunstância que fez explodir o talento de Shakespeare, primeiro ele escrevia durante o dia nas viagens para fugir da peste, depois voltou e viu o campo livre . E ele tinha com ele Rei LearMacbeth e Antônio e Cleópatra.

“Três tragédias realmente extraordinárias”, diz Shapiro. “Estou sempre interessado em como e porque essa coisa misteriosa aconteceu. Shakespeare entendeu completamente o mundo em que estava e era capaz de falar com ele e por ele!”. Muitas vezes, é tentador para os estudiosos examinar determinados momentos da carreira de Shakespeare através das lentes de sua vida pessoal. O problema com essa linha de pesquisa é que eles ainda não sabem muito da vida do Bardo. “Não temos ideia do que ele estava sentindo”, escreveu Shapiro em seu livro. “Sabemos muito mais sobre como uma visita de roedores em 1606 alterou os contornos da vida profissional de Shakespeare, transformou e revigorou sua companhia de teatro, prejudicou a concorrência e mudou a composição do público para quem ele escreveria (e, por sua vez, os tipos de peças que ele poderia escrever).

Shakespeare não era um escritor com um metrônomo na mão. Ele era participante de sua época. Estava envolvido pelo ambiente. E escrevia em surtos de criatividade. E esses surtos eram possibilitados pelo que ocorria lá fora. Eram forças além de seu controle. Foi por causa da praga que ele conseguiu transformar um período de grande convulsão social em algo completamente diferente: num arrebatador nível artístico cujo brilho dura até nossos dias.

 

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Pelos 160 anos do nascimento de Tchékhov, transcorridos hoje

Pelos 160 anos do nascimento de Tchékhov, transcorridos hoje

Tchékhov viveu apenas quarenta e quatro anos, convivendo a metade deles com a tuberculose que o levou para o túmulo. Pois, durante este tempo, ele não apenas criou uma grande obra — vinte volumes de prosa mundialmente famosa –, como fez muito mais:

— Construiu quatro escolas em aldeias do interior, uma torre de sino, um galpão para bombeiros no campo e uma estrada, superando a resistência e fraudes dos administradores locais, além da indiferença dos camponeses.

— Ergueu um monumento de bronze dedicado a Pedro, o Grande, em Tangarog, onde nasceu. Convenceu o escultor Antokolsky a enviá-la de fora do país, onde se encontrava. Tchékhov organizou a entrega através do porto de Marselha.

— Fundou uma biblioteca pública em Taganrog, doando mais de dois mil livros próprios. Depois, por quatorze anos, atualizou a biblioteca do próprio bolso, comprando mais livros.

— A cada ano, como médico, atendeu gratuitamente mais de mil camponeses doentes, fornecendo remédios a eles também do próprio bolso.

— Durante uma epidemia de cólera, ele como médico, cuidou sozinho, sem assistentes, dos doentes de 25 aldeias.

— Fez uma viagem heroica até a Ilha de Sacalina. Sem ajudantes, fez um censo de toda a população da ilha e escreveu “A Ilha de Sacalina”, provando com números e fatos que aquele degredo era um “escárnio imprudente dos ricos sobre os pobres sem direitos”.

— Ajudou milhares de pessoas. O conteúdo de muitas cartas recebidas por ele e hoje catalogadas iniciam por: “Agradecimento pelo dinheiro recebido…”, “Agradecimento por interceder para que eu conseguisse um trabalho…”, “Gratidão por auxiliar no recebimento de meu passaporte…”, etc.

— Plantou cerca de mil árvores em áreas florestais devastadas. Foram bordos, cerejeiras, ulmeiros, pinheiros, carvalhos e larícios. Em um local de queimadas na Crimeia, plantou sedoso, palmeiras, ciprestes, cerejeiras, amoreiras, lilases, groselheiras, etc.

Num caderno, Tchékhov deixou as seguintes linhas: “Um muçulmano, para a salvar sua alma, cava um poço. Se cada um de nós deixar para trás uma escola, um poço ou algo assim, nossa vida não passará para a eternidade sem deixar traço”.

Leia também aqui.

………………….

Anton Pavlovich Tchékhov (17 de janeiro de 1860 – 15 de julho de 1904) — escritor e dramaturgo russo.

(Traduzido do russo com uma PEQUENA ajuda de Elena Romanov)

Obs.: Elena avisa que, na Rússia, a data será comemorada em 29 de janeiro em razão da mudança para o calendário gregoriano.

Foto colorizada por Olga Shirnina, também conhecida como Klimbim.

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Alejandra Pizarnik, propósito de ano novo

Alejandra Pizarnik, propósito de ano novo

“Que este ano me seja dado viver em mim e não fantasiar nem ser outras, que me seja dado me colocar boa e não procurar o impossível mas sim a magia e estranheza deste mundo que habito. Que me sejam dados os desejos de viver e conhecer o mundo. Que me seja dado o interesse por este mundo.”

Alejandra Pizarnik, propósito de ano novo (diários). Sexta-feira, 1º de Janeiro de 1960.

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Tolstói jogando xadrez com seu amigo e editor Vladimir Chertkov em 1907

Tolstói jogando xadrez com seu amigo e editor Vladimir Chertkov em 1907

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3 drops de abril

Modiano (14), Aleksiêvich (15) e Ishiguro (17) foram boas escolhas. Do fato da absurda escolha de Dylan em 2016 não dava para depreender a putaria que estava a Academia Sueca. Afinal, já houve casos quase tão incríveis quanto este no passado. Mas tergiverso. Bem, teremos Nobel de Literatura este ano? É tão difícil organizar uma comissão de bom gosto, conhecimento e conduta aceitável?

.oOo.

Jude Law deve ser um cara interessantíssimo. Produtor e ator principal da série ‘O Jovem Papa’, ele não tem conseguido gravar a nova temporada — já escrita e planejada — em razão dos compromissos. Não é de todo raro um grande ator abraçar um projeto, inclusive arcando com seus custos. O que é raro é um ator produzir uma série daquele tamanho e com um nível artístico tão alto, se bem que eu gostaria de ver o diretor Paolo Sorrentino de volta ao cinema. Agora, espero que Law arranje tempo para desovar a coisa, né?

Ou será que está buscando a grana que vai gastar? Pode ser.

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Ai, que inesperado!

Pesquisa Foca e Methodus apura que apenas 8% aprovam a administração Marchezan em Porto Alegre.

E o recém eleito Eduardo Leite?

Péssimo: 22,34%
Ruim: 24,11%
Regular: 42,64%
Bom: 10,41%
Ótimo: 0,51%

Parabéns, boas escolhas!

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Hoje, 120 anos de Vladimir Nabokov

Hoje, 120 anos de Vladimir Nabokov

E eu mando bala num texto quase que montado a partir de várias fontes e da memória de tantos Nabokovs lidos:

A voz de Nabokov é única. Ele trabalha uma perfeita fusão de estranheza, sentimentos, nostalgia e imagens, formando um ambiente ao mesmo tempo denso, subjetivo e histórico. Ler Nabokov é realmente entrar em outra realidade. As tramas são complexas, há sempre jogos inteligentes de metáforas e um estilo de prosa capaz de paródias e de intenso lirismo.

Nascido em São Petersburgo, no dia 22 de abril de 1899, Nabokov foi romancista e contista de primeira linha, poeta, tradutor e entomologista. Seus primeiros nove romances foram escritos em russo, mas ele conseguiu proeminência internacional apenas após começar a escrever em inglês.

Poucos escritores do século passado foram (e são) mais festejados do que ele. Presença certa em qualquer lista dos grandes, o autor de ‘Lolita’ está sempre lá, ao lado de Borges, Joyce, Proust, Beckett… E, posso estar enganado, mas, a julgar pela quantidade de biografias existentes (até sobre Véra, sua mulher, já se escreveu uma), citações e releituras (como O Encantador, da franco-iraniana Lila Zanganeh), me parece que, hoje, poucos autores desfrutam do status de celebridade equivalente ao do “bruxo russo”.

Lolita (1955), seu mais famoso romance em inglês, foi classificado em quarto lugar na lista dos 100 melhores romances da Modern Library; o belíssimo Fogo Pálido (1962) foi classificado 53º na mesma lista, e suas memórias, Fala, Memória (1951), foi listado em oitavo na lista das maiores não-ficções do século XX. Mas chega de listas.

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Amós Oz (1939-2018)

Amós Oz (1939-2018)

Por Heitor Lima (*)

É com profunda tristeza que anuncio a morte do grande escritor e pacifista Amós Oz. Morreu aos 79 anos em decorrência de um câncer, segundo sua filha Fania Oz-Salzberger.

A literatura faz parte da humanidade. Oz foi um inesgotável ser humano. A despeito de qualquer silogismo, os dois são signos eternos da vida, do esforço em representar o que há por baixo da realidade — da qual o olho desatento é presa de fácil captura. Impossível falar de Oz sem colocá-lo ao lado da alta literatura: escrevo sobre um homem que não poderia se separar de seus livros nem sob o conluio do tempo e da morte.

Nasceu Amos Klausner, mudando posteriormente para Oz (palavra hebraica que significa “coragem”). Filho de judeus poloneses que fugiram de Odessa, na Ucrânia, passando pela Lituânia e chegando ao Mandato Britânico da Palestina no ano de 1933. Nasceu em 1939 numa “pátria incompleta”, antiga promessa de uma real pátria judaica. Açoitado pelo medo constante dos árabes enfurecidos, dos britânicos armados até os dentes, Oz cresceu como um “pequeno fanático”, como retrata na maravilhosa novela autobiográfica Pantera no Porão e na sua autobiografia, e assim permanece durante boa parte da infância, sob pressão das grandes dificuldades ideológicas e existenciais. Com o tempo percebe que, antes das nossas grandes diferenças existe a nossa unidade evidente: o espetáculo da humanidade. Seus laivos ideológicos tendenciosos se dissolvem enquanto brota a semente da subversão ao preconceito, da compreensão, do amor genuíno. Em seu livro Como curar um fanático admite que todos temos um aspecto de fanatismo no que somos. Porém cabe a nós mesmos identificá-lo e, até onde for possível, enfraquecê-lo. Isso é, segundo Oz, um exercício de compreensão mútua.

Em todos nós há o locus da maldade, crueldade e do egoísmo. Mas há também uma bondade genuína, uma capacidade de raciocínio amplo e inclusivo, uma força modificadora persistente.

Foi um dos fundadores e maior representante do movimento israelense Paz Agora e o escritor mais influente de seu país. Israel aparece em boa parte de seus romances como núcleo gerador. Tel Aviv é como a respiração do desenvolvimento e da velocidade. Mas é no kibutz, o embrião de uma sociedade democrática, que sua obra aponta o esforço da reconstrução da humanidade, partindo de um ponto de vista de respeito, convivência e união.

Oz tinha uma particular posição quanto a guerra entre Israel e Palestina: “É um choque entre o certo e o certo”, diz ele. Para o escritor, a única possibilidade de reconciliação está em abrir mão, ceder um pouco do que é de seu de direito, estar aberto a abraçar a sua dor e a dos outros. Está em sofrer uma perda: mais uma ferida no orgulho de um povo para alcançar uma relação pacífica. O registro em sua obra do microcosmos do kibutz (já que residiu em um, dando aulas, participando de suas demandas e relações) e suas considerações e posições sobre os problemas da guerra (já que lutou na guerra dos seis dias e na guerra do Yom-Kippur) estão sempre no caminho da compreensão, da capacidade de dar e receber, de sofrer e crescer.

Em “O mesmo mar”, um de seus romances mais experimentais, ele escreve o seguinte poema em prosa:

A duas vozes

Por trás do primeiro regato talvez se esconda um segundo.
Por causa da corrente impetuosa desse riacho, o primeiro,
quase não se pode ouvir o murmúrio
do segundo, o oculto. Rico está sentado numa pedra. Quem sabe
só se pode ouvir no escuro? Rico se dispõe a esperar.

Há em Rico, um personagem que vaga sozinho pelos ermos do Tibete para buscar sua paz interior, uma angústia pela morte da mãe, uma dor que o obriga a sair do tumulto. Assim como há também uma angústia em Ionatan Lifschitz do romance Uma certa paz, que deseja, na verdade, sair de uma estagnação interior e um excesso de paz enquanto mora num kibutz. Angústia tão grande que ele decide partir de fato e deixar seu pai, sua companheira e a lembrança da filha que morreu. Para Oz o ser humano não é simples e imutável. É uma existência dinâmica e complexa, repleta de contradições e anseios. A obra do israelense nos diz que a nossa unidade está na imensa capacidade de mudar, de transformar e ser transformado. Não é por acaso que Tchékhov e seus dramas essencialmente humanos sempre foram uma paixão dele. Em Judas há uma desilusão com a própria vida, uma subversão de antigas crenças, um amor quase físico pelo nada, mas há uma posterior reconstrução e uma renovação da dúvida, força geradora do nosso crescimento. Nas seguintes e últimas linhas do romance:

Schmuel continuou ali em pé, no meio da rua deserta. Baixou do ombro o kitbag, depositou-o no asfalto empoeirado. Com cuidado, pôs o casaco sobre o kitbag, e também a bengala e o chapéu. E perguntou a si mesmo.”

E perguntou a si mesmo”. Esta última frase vem depois de um ponto final, quase como se estivesse condensada em si mesma mas, na verdade, sendo a condensação do próprio romance, da humanidade pulsante que permeia a obra inteira. A vida perde uma de suas maiores joias. Mas Amós Oz é e sempre será uma força vital e literária que vibra e reverbera dentro de cada um de seus leitores, amigos, alunos e família.

.oOo.

(*) Heitor Lima é um amigo de Fortaleza, estudante de psicologia e apaixonado por literatura.

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Gustavo Melo Czekster: “O pior patrulhamento nem é o da sociedade, mas o autoimposto”

Gustavo Melo Czekster: “O pior patrulhamento nem é o da sociedade, mas o autoimposto”

20170928-gustavo-melo-czekster-nao-ha-amanha-204x300Publicado em 28 de setembro de 2017 no Sul21

Gustavo Melo Czekster é um homem que escreve. Passa seus dias escrevendo petições, recursos e ações e, ao chegar em casa, segue escrevendo contos, ensaios, romances. Como revelou aqui, escreve até dormindo. Teve que afastar o celular de si porque respondia dormindo às perguntas que lhe faziam nas redes sociais e, ao acordar, não lembrava de nada. Chegou a revisar textos dos quais não sabia uma palavra ao acordar.

Publicou dois livros de contos muito elogiados: O Homem Despedaçado, em 2011, e Não há amanhã, em março deste ano. Suas obras completas estão em computadores e em oito caixas de papelão que, segundo ele, estão cheias de insetos e ignomínias. Já prepara seu primeiro romance, que será sobre a grande violoncelista inglesa Jacqueline du Pré, cuja carreira foi tragicamente abreviada em razão da esclerose múltipla que a forçou deixar os palcos aos vinte e oito anos de idade.

Na entrevista que ele concedeu ao Guia21 no Bar Chopp Tuim, falou sobre seu segundo livro, sobre os dias que correm, a posição da literatura e da cultura no Brasil e sobre o pintou na conversa.

Gustavo Melo Czekster | Foto: Maia Rubim/Sul21
Gustavo Melo Czekster | Foto: Maia Rubim/Sul21

Guia21 — Comecemos pelo teu livro Não há amanhã. Há quanto tempo foi lançado e como tem sido a recepção?

Gustavo Melo Czekster — O livro foi lançado há seis meses e a recepção tem me surpreendido favoravelmente. As pessoas reclamam da fuga dos leitores, mas talvez o que esteja faltando seja escritores contando boas histórias. Tento fazer isso em meu livro. Também me surpreende a forma com que as pessoas têm interagido comigo. Muitos mandam mensagens com impressões e comentários. As redes sociais ajudam nisso, claro. Da minha perspectiva, a melhor parte de escrever é ver que nosso trabalho não é lido com indiferença. Vi exemplares do Não há amanhã bastante anotados. Claro que fiquei feliz.

Guia21 — Não há amanhã não é um livro fácil.

Gustavo Melo Czekster — Não, não é fácil e as pessoas parecem desafiadas a apresentarem interpretações para algumas das histórias. É muito interessante porque algumas vezes o que é comentado não passou pela minha cabeça, mas deve estar ali de alguma forma. Posso dizer que recebi leituras atentas.

Guia21 — São 30 contos no Não há amanhã. Apesar da variedade de temas há uma grande unidade. Como foi escrito?

Gustavo Melo Czekster — Quando eu planejei o livro, logo pensei: meu tema será o sentido. “O Homem Despedaçado” fora sobre a fragmentação humana — ou seja, sobre quantas pessoas existem dentro de nós mesmos — e agora meu tema será o sentido, que é um conceito com vários usos e significados. Aliás, o nome do livro era “O Sentido”. Quando fui pesquisar na filosofia, vi que o sentido é sempre associado a algo, o sentido da vida, da morte, etc. O único autor que chegou mais perto do sentido como conceito puro foi Camus em O Mito de Sísifo.  É o homem em busca de sentido diante de um mundo ininteligível, sem Deus e eternidade. Ele fala sobre o absurdo de pensar que a vida teria um sentido e que a única decisão efetivamente livre seria a dar cabo da própria vida. Mas o nome do livro foi alterado porque vários colegas acharam o título ridículo. Me avacalharam. Disseram que parecia autoajuda e que não era marcante. Então, voltei para casa, folheei Camus e encontrei a frase que diz que “O absurdo me esclarece o seguinte ponto: não há amanhã.” E então escolhi Não há amanhã. Ficou meio Sidney Sheldon, “Se houvesse amanhã”.

"Outra coisa que tem prejudicado a produção atual é a autocensura. A originalidade da história entra pelo ralo porque o escritor tem medo do que o pai e a mãe vão pensar..." | Foto: Maia Rubim/Sul21
“Outra coisa que tem prejudicado a produção atual é a autocensura. A originalidade da história entra pelo ralo porque o escritor tem medo do que o pai e a mãe vão pensar…” | Foto: Maia Rubim/Sul21

Guia21 — Gostei também de “O Sentido”, mas voltemos a um ponto inicial. Tu disseste que as pessoas têm lido Não há amanhã porque há poucas pessoas contando histórias.

Gustavo Melo Czekster — Sim, o que te leva a ler um livro de ficção? Ora, tu compra porque quer ler uma boa história. Afinal de contas, é isso que atrai na literatura em prosa desde que começamos a ler, só que hoje há uma curiosa massificação. Parece que os 6 ou 7 principais editores do país se reúnem periodicamente e decidem o que as leitores desejam ler. E então todos os livros saem mais ou menos iguais. Hoje, na minha opinião, a literatura mais excitante é aquela que está sendo publicada fora das grandes editoras. Porém, como as grandes se impõem junto ao público, as boas histórias, as coisas realmente diferentes, as coisas que prendem o leitor, estão fazendo falta. Há livros contemporâneos que a gente lê e depois pensa: o que eu acabei de ler? Que sentido tem isso? E o resultado é que a gente esquece logo. Quando alguém vai contar sobre o que leu, tem dificuldade para fazer um resumo em poucas frases… Normalmente as capas são maravilhosas, na maioria das vezes são livros bem escritos, mas que não nos dão a sensação de estarmos melhores ou piores com o livro, é puro entretenimento, falta interiorização. Alguns escritores querem o preto e o branco, certo e errado, sem ver que a realidade é nebulosa, que há uma zona cinza escura e outra cinza mais clara. Outra coisa que tem prejudicado a produção atual é a autocensura. A originalidade da história entra pelo ralo porque o escritor tem medo do que o pai e a mãe vão pensar, do que as feministas vão pensar, do que os deficientes e os políticos de todos os gêneros vão pensar. Isso é um crime contra a criatividade. Eu acho que temos que ser fiéis às nossas histórias mesmo que elas possam ofender alguém, mesmo que ninguém a leia. Acho que a voz autêntica é a única que pode devolver algo ao autor.

Guia21 — Falta sentido ou falta contar histórias?

Gustavo Melo Czekster — As duas coisas. Falta a sensação de imanência da arte. Por exemplo, Balzac nos envolve pela humanidade, sinceridade, pela história. Veja Anna Kariênina. Há uma certa perversidade na história que, bem, poderia acontecer conosco… O livro verbaliza coisas que talvez alguns de nós tenham vergonha de verbalizar. Eu poderia ser Kariênina em outras circunstâncias, em outro mundo. Hoje é difícil construir esta empatia com os personagens que são criados. Há uma postura blasé que diz que o autor não deve se envolver tanto com o personagem. Parece que os autores têm receio de mostrar muito de si em suas criações. Não há o pensamento de que o personagem é outra vida.

"Detetives, dragões e senhoras de 50 anos descobrindo o sexo..." | Foto: Maia Rubim/Sul21
“Detetives, dragões e senhoras de 50 anos descobrindo o sexo…” | Foto: Maia Rubim/Sul21

Guia21 — E temos boa literatura sendo produzida?

Gustavo Melo Czekster — Certamente, mas como disse, a boa literatura está correndo por fora, à margem. Por exemplo, os romances que são premiados não refletem a diversidade e a qualidade da literatura atual. É curioso: os grandes editores querem romances, dando absoluta preferência aos de detetive, aos de dragões ou aos de senhoras de 50 anos que descobrem o sexo. Um editor me disse isso uma vez e eu brinquei com a ideia de escrever um romance com detetives, dragões e senhoras recém liberadas. Seria um arraso. (risadas)

Guia21 — Com todas esta limitações…

Gustavo Melo Czekster — Sim, o patrulhamento. O pior patrulhamento nem é o da sociedade, mas o que é autoimposto ou que tenta se agregar a modas. A história pede um personagem X, mas o escritor usa um transsexual porque quer ser atual. Há também uma coisa forçada que impede vilões negros ou vilãs, por exemplo. O autor receia críticas do tipo “Quem tu pensa que é para dizer isso?” Não há desligamento do autor destes arquétipos, ele os procura para ser melhor aceito. Li recentemente um livro onde havia um relacionamento de 5 páginas entre duas mulheres. Não há problema nisso, só que não se sabe porque chegamos ali nem porque foi abandonado  subitamente. Ou seja, o escritor forçou a barra e a excrescência não contribuiu para o que interessa, que é contar uma história, que é o motivo pelo qual o leitor está na frente do livro.

Guia21 — Os escritores também têm medo de outras coisas, como de não serem chamados para eventos…

Gustavo Melo Czekster — Certa vez, contestei a forma de organização de um concurso. Vieram pessoas inbox me parabenizar pela coragem, mas dizendo que eu não esperasse ganhar prêmios… Bem, eu não escrevo pela possibilidade de prêmios. Até me sentiria tolhido se tivesse uma meta dessas. E, ademais, as pessoas simplesmente esquecem de quem ganhou. Tu lembra quem ganhou o Açorianos no ano passado?

"Eu não preciso me comportar, não preciso colocar a última e mais atual pregação ideológica na obra para vender -- não que isso funcione... | Foto: Maia Rubim/Sul21
“Eu não preciso me comportar, não preciso colocar a última e mais atual pregação ideológica na obra para vender — não que isso funcione… | Foto: Maia Rubim/Sul21

Guia21 — Não. Sei que eu ganhei em 2012 ou 13 um e ninguém sabe dele.

Gustavo Melo Czekster — (Risadas) Noto que pouca gente reclama, pouca gente protesta. Todos querem ser bonzinhos. Isso é muito de nossa época. Quase todos querem convites para feiras, para financiamento de livros, quase todos querem ver o governo comprando seus livros infantis, etc. E então o escritor não pode isso nem aquilo. Isto limita a literatura. Eu tenho a sorte de não viver da literatura. É uma sorte. Eu não preciso me comportar, não preciso colocar a última e mais atual pregação ideológica na obra para vender — não que isso funcione… Hoje, por exemplo, é muito difícil escolher um livro infantil. Dia desses fui dar um presente para uma criança e conferi o fato de que há muitos livros que, em resumo, eram a manipulação de uma história para agregar posicionamentos e não para contar uma história autêntica. Acabei nos clássicos.

Guia21 — Depois de Roald Dahl tem pouca coisa efetivamente interessante. Os personagens são ruins porque são ruins em razão de um trauma, coitados. Ninguém é ruim quis fazer uma maldade. Há medo da história?

Gustavo Melo Czekster — Sim, é como o cavalo que refuga um salto numa competição de hipismo. Muitas vezes estou lendo uma história e sinto que tal coisa vai acontecer. Então vem um balde de água fria. Há o medo de desagradar, o escritor passa a evitar sutilmente certas palavras. Já vi discussões de casal onde ambos evitavam palavras pesadas… Às vezes sabemos que o personagem deve se encaminhar para um destino, que aquilo vai acontecer, que ele vai descobrir algo, vai abrir uma porta, mas o autor segura e decide ficar no comando. Ele pensa “isso é muito sombrio para meu personagem”. O sistema de causa e efeito é quebrado. Voltemos à Anna Kariênina: se ela quisesse ser boazinha o livro não seria a obra-prima que é. Mas ela é apaixonante,  vai se afundando e afundando. Imagina se Tolstói resolvesse que Anna voltasse atrás para ser uma boa mãe?

Guia21 — Por falar em censura e autocensura, o que tu achaste sobre o episódio do Queermuseu?

Gustavo Melo Czekster — Eu fui na exposição. Não tinha quase ninguém, nem seguranças em torno. Ela não me cativou nem escandalizou. Acho Caravaggio mais ousado. Também não encontrei pedofilia, nada. As pessoas veem o que querem ver. Eu não vou procurar obras de arte como comprovações de minhas teses. Quem viu escândalo estava procurando escândalo. Como é que as pessoas procuram isso? Por quê? O que eu vi foi uma desconstrução de várias imagens, mas jamais zoofilia, pedofilia, etc. Há duas semanas fui denunciado por pornografia pelo administrador de uma rede social porque postei uma pintura de Cézanne onde uma mulher amamentava seu filho. O outro seio aparecia nu. Ou seja, há o crescimento de um conservadorismo torto que é inclusive auxiliado pelas redes sociais. Nós já temos censura. E isso pode invadir a literatura. Por outro lado, chocar por chocar, escandalizar por escandalizar, envolvendo às vezes gratuitamente poder, sexo ou religião, é inútil. A arte tem que ter um objetivo. Por exemplo, Caravaggio usava prostitutas e mendigos para mostrar que aquilo existia. Acho que falta uma ideia além da provocação. Voltando à pergunta. acho que o Santander teve uma reação desproporcional e eu gostaria que os quadros fossem apresentados em outro espaços. Mas a mentalidade conservadora está se inserindo entre as pessoas mais jovens e vem subindo. A nova geração está chegando mais engessada, certinha, contida, sem ironia e isso gera conservadorismo.

"A nova geração está chegando mais engessada, certinha, contida, sem ironia..." | Foto: Maia Rubim/Sul21
“A nova geração está chegando mais engessada, certinha, contida, sem ironia…” | Foto: Maia Rubim/Sul21

Guia21 — Na época do lançamento de Tristram Shandy, os jovens eram mais conservadores que os velhos.

Gustavo Melo Czekster — Tristram Shandy é um livraço! Na época de Sterne, na Inglaterra, o mundo não estava, digamos, evoluindo. É o que ocorre também agora, estamos voltando no tempo. A pessoas estão usando palavras bélicas, ferozes, que buscam o confronto. São raros os ponderados, os que evitam as meras dualidades, buscando entender a complexidade do que acontece. Ninguém respeita professores, intelectuais, artistas, escritores, ninguém, é tudo no grito. O pessoal simplesmente não quer saber. Fico pasmo quando leio notícias de professores sendo agredidos — para mim, o professor não tem pele e osso para ser agredido.

Guia21 — Indo para o lado pessoal, qual é a tua formação?

Gustavo Melo Czekster — Eu sou advogado, mas meu mestrado foi em Letras, o que foi uma confusão porque existem termos comuns ao Direito e à área de Letras, com significados diferentes. Na época da dissertação, eu fiz uma lista de palavras que não poderia dizer de modo nenhum. Por exemplo, no Direito, a palavra “representação” tem um significado bem simples, porém, se eu utilizasse a palavra na área da Literatura, cairia num buraco negro teórico. No Direito, eu represento a parte X, eu a defendo, estou lado a lado, nas Letras eu substituo a parte. E, pior, desde Aristóteles se discute este segundo conceito de representação.

Guia21 — Tu dormes muito pouco, né?

Gustavo Melo Czekster — Eu tenho dificuldade crônica para dormir. Consigo descansar, repouso e passo bem o dia, mas acordo muito cedo. Às 3h30, 4h, eu já estou acordando. Vou ler, escrever, vejo filmes, às vezes quero sair, mas aí tenho receio não porque a noite está chegando, mas porque ela ainda não acabou. E devo ter um leve sonambulismo. Já respondi dormindo e por escrito coisas no celular. Ainda bem que com coerência e sentido. Hoje durmo com ele bem longe. Às vezes, as pessoas me agradeciam por respostas a coisas que não lembrava de ter lido e muito menos respondido. Era sempre um susto, mas vi que respondo educadamente, com sujeito, verbo e predicado. Parece até ser eu escrevendo… Provavelmente, ouço o sinal do celular e respondo dormindo. Tive que afastá-lo da cama. Esses dias cheguei a revisar um texto que me mandaram, dormindo. Bem, mas acordo muito cedo e às vezes vou para o Parque da Redenção quase de madrugada. Conheço os mendigos de lá, eles acham que sou um deles. Já tomei quentão de madrugada com eles. Eles têm grandes histórias para contar. Gosto muito de ouvi-los.

Guia21 — E os próximos planos?

Gustavo Melo Czekster — Estou escrevendo um romance sobre a violoncelista Jacqueline du Pré e o Concerto de Elgar. Sou fascinado pelo concerto e pela biografia de du Pré, além da ironia macabra da esclerose múltipla. Estou estudando um pouco mais de música para enfrentar o tema. O livro se passa durante uma execução do concerto de Elgar.

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O motivo pelo qual Jorge Luis Borges não ganhou o Nobel em 1967

O motivo pelo qual Jorge Luis Borges não ganhou o Nobel em 1967

Tolstói não levou o Nobel, nem Proust, Joyce e Greene. Jorge Luis Borges não ganhou o Nobel, nem Nabokov, Virginia Woolf e Drummond. Mas todo ano são abertos os arquivos do prêmio de 50 anos atrás e descobrem-se coisas.

Jorge Luis Borges

Agora descobriu-se as razões, certamente esdrúxulas, que tiraram o prêmio de Borges em 1967. Estava decidido que o vencedor seria um latino-americano. Então Borges era franco-favorito, só que perdeu a láurea para o guatemalteco Miguel Ángel Asturias. Os motivos? Ora, o então presidente do comitê do Nobel, Anders Osterling, achava o escritor “demasiado exclusivo ou artificial em sua engenhosa miniatura”.

A sumidade também barrou outros autores importantes. Um ano antes, em 1966, havia eliminado Samuel Beckett. Achava-o “niilista e pessimista”, fora do que considerava “o espírito da Academia”. Beckett acabou virando o jogo e recebeu o prêmio em 1969. O mesmo não aconteceu com Borges, morto em 1986 sem o Nobel.

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Cartas recém reveladas de Sylvia Plath citam abuso doméstico cometido por Ted Hughes

Cartas recém reveladas de Sylvia Plath citam abuso doméstico cometido por Ted Hughes

A correspondência inédita entre a poetisa e sua antiga terapeuta registra acusação de espancamento por parte do marido e o desejo explícito de que ela morresse.

Traduzido livremente do Guardian

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Numa carta dirigida a sua antiga terapeuta, Sylvia Plath (1932-1963) escreveu que seu marido, Ted Hughes (1930-1998), vencera. Isso dois dias antes de ela abortar o segundo filho do casal. Também escreveu que Hughes queria vê-la morta. É o que diz nas cartas de Plath. As duas acusações estão entre as revelações mais explosivas de uma correspondência inédita escrita durante um dos casamentos mais famosos e destrutivos da literatura.

Escritas entre 18 de fevereiro de 1960 e 4 de fevereiro de 1963, uma semana antes de sua morte, as cartas cobrem um período da vida de Plath que permaneceu até hoje desconhecido tanto para leitores como para estudiosos. A escritora norte-americana, que viveu estes anos na Inglaterra, era uma prolífica escritora de cartas e mantinha diários detalhados desde a idade de 11 anos. Porém, após sua morte, Hughes declarou que os diários de Plath daquela época foram perdidos, incluindo o último volume que, estranhamente, ele disse ter destruído para proteger seus filhos, Frieda e Nicholas.

Enviada sempre para a Dra. Ruth Barnhouse — o modelo para a Dra. Nolan na novela autobiográfica de Plath, A Redoma de Vidro, e que tratou o escritora nos EUA após sua primeira tentativa de suicídio em agosto de 1953 — a correspondência é entendida como os últimos textos sem censura escritos por Plath em seus meses finais, junto de algumas de suas poesias mais famosas, incluindo as da coletânea Ariel.

Assia Wevill
Assia Wevill

As nove cartas escritas após Plath descobrir a infidelidade de seu marido com sua amiga Assia Wevill em julho de 1962, formam o núcleo da coleção. Também estão incluídos registros médicos a partir de 1954.

O tratamento de Plath com Barnhouse terminou quando a poeta mudou-se para Inglaterra mas as duas seguiram uma amizade muito íntima que tem sido foco de estudo de scholars.  A correspondência revela uma intimidade tranquila e acolhedora, bem como um grande senso de humor.

Além de expor sua dor pela descoberta do adultério de Hughes, as passagens mais chocantes revelam a acusação de abuso físico (espancamento) sofrido por Plath pouco antes de abortar seu segundo filho em 1961. E na carta datada de 22 de setembro de 1962 — no mesmo mês em que os poetas se separaram — ela diz ter sido espancada por Ted. Vários dos poemas de Plath abordam o aborto, como Parliament Hill Fields.

A extensão do distanciamento do casal durante este período é revelada em outra carta da coleção, datada de 21 de outubro de 1962, em que Plath escreve para Barnhouse contando que Hughes lhe disse diretamente que a desejava ver morta. Embora Plath tivesse uma história de depressão e auto-agressão, e tivesse tentado se matar em 1953, ela apenas revelou tais episódios para Hughes após o casamento.

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As cartas foram escritas numa época em que Plath estava temendo por seu estado mental. Era o período da desintegração de um dos mais famosos casais literários do século XX. Hughes, nascido em Yorkshire, conhecera Plath enquanto ambos estudavam na Universidade de Cambridge em 1956. Hughes já era um poeta estabelecido e ela tinha ido a uma festa no dia 25 de fevereiro daquele ano com o desejo expresso de conhecê-lo. Quatro meses depois, eles se casaram e formaram rapidamente uma formidável e mutuamente benéfica parceria criativa que resultou na obra de Hughes, Hawk in the Rain, e na novela semi-autobiográfica de Plath, A Redoma de Vidro.

O fascínio público com o relacionamento era grande, ainda mais que a produção criativa de ambos se baseava em experiências de vida. Em outubro de 1962, Plath escreveu a maioria dos poemas que seriam incluídos em Ariel — publicado postumamente em 1965 — que inclui muitas referências e iconografias interpretadas como sendo sobre Hughes. Estes incluem as linhas em Daddy: “I made a model of you, / A man in black with a Meinkampf look / And a love of the rack and the screw” (“Eu fiz um modelo de você, / Um homem de preto com um olhar de Meinkampf / E um amor de cremalheira com parafuso”). Plath escreveu para sua mãe durante este período: “Eu estou escrevendo os melhores poemas da minha vida. Eles farão o meu nome”.

Décadas mais tarde, em Birthday Letters, de 1998, Hughes falou sobre seu tempo com Plath, sobre a tempestuosa ligação e as consequências da morte da mulher. O livro foi sua resposta final aos críticos feministas que, nos anos 70, acusaram Hughes a respeito do tratamento que dava a Plath. Durante esse tempo, ele foi várias vezes interrompido com gritos de “assassino” em suas leituras. A feminista norte-americana Robin Morgan publicou o poema The Arraignment, que começa com a frase “Eu acuso Ted Hughes”. Plath foi sepultada e na lápide lia-se Sylvia Plath Hughes, por insistência dele. Ela foi alvo de “vândalos” que removeram o sobrenome do marido, que sempre colocava o Hughes de volta.

Grave1Em sua coleção de 1998 Howls and Whispers, Ted citou uma das respostas de Barnhouse a Plath, em setembro de 1962, no poema de título: “And from your analyst: ‘Keep him out of your bed. Above all, keep him out of your bed’” (E se seu analista: Deixe-o fora da cama, deixe-o fora da cama). Em 2010, a aparente palavra final de Hughes sobre o relacionamento turbulento foi publicada sob a forma de seu poema Last Letter, que descreve o que aconteceu nos três dias antes de sua esposa morrer.

O nome de Hughes foi diversas vezes recolocado por ele na lápide de Plath
O nome de Hughes foi diversas vezes recolocado por ele na lápide de Plath

Bem, os estudiosos de Plath elogiaram a alta qualidade e as informações contidas nas cartas recém encontradas. Elas estão sendo publicadas em livro. O primeiro volume já saiu. O co-editor Peter K Steinberg disse: “É um incrível material que tinha ficado totalmente fora do radar”, Citando as poesias “sensacionais” que Plath escreveu em outubro de 1962: “É possível que Plath fizesse uma catarse ao escrever para a Dra. Barnhouse e que, ao fazê-lo, sentia-se livre para escrever aqueles poemas explosivos e duradouros”.

Andrew Wilson, autor de Mad Girl’s Love Song, sobre a vida de Plath antes de conhecer Hughes, disse que a correspondência com Barnhouse fornecem uma inestimável visão das origens de sua batalha contra a depressão. Elas formariam “o elo perdido” entre sua biografia e história literária. “Essas cartas parecem capazes de preencher certas lacunas de nosso conhecimento e lançam novas luzes sobre o casamento turbulento e controverso entre Plath e Hughes”, disse ele.

Por incrível que pareça, o arquivo chamou a atenção dos estudiosos da Plath após um vendedor de livros raros anunciá-lo on-line para venda.

Com todo o barulho provocado pela descoberta, Carol Hughes, a viúva do poeta, tratou de rebater: “As alegações feitas por Sylvia Plath em cartas inéditas para sua psiquiatra, sugerindo ter sido espancada por Ted Hughes, dias antes de ter abortado o segundo filho, são tão absurdas quanto chocantes para quem conhecia bem Ted”.

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O Monty Python Michael Palin em Portugal: “O politicamente correto está impedindo o desenvolvimento da comédia”

O Monty Python Michael Palin em Portugal: “O politicamente correto está impedindo o desenvolvimento da comédia”

Michael Palin… Bem, quem não conhece Michael Palin? Ele é um dos Monty Python e se você não o conhece talvez não deva lê-lo, pois a desinformação denuncia alguém não muito familiarizado com a comédia, esta muito pouco religiosa e solene instituição. A biografia de Palin já garante que toda palavra sua torne-se importante, ainda mais quando ele se manifesta a respeito daquilo que exerceu como poucos — a tarefa de grandíssimo comediante. Os filmes dos Python, muitos com mais de 50 anos, ainda são vistos e de-co-ra-dos com devoção pelos fás no youtube. Se você ainda não os viu, não sei onde esteve nas últimas décadas.

Palin andou dando entrevistas e participando de eventos em Portugal na semana passada. Não posso evitar de copiar aqui duas matérias do sempre excelente publico.pt.

HUMOR

Um Monty Python em Viseu: “A Igreja achava mesmo que ia ser derrubada por A Vida de Brian?”

O politicamente correcto “está a impedir o desenvolvimento da comédia”, mas hoje Michael Palin não escreveria um sketch sobre o islão. Entrevistado por Ricardo Araújo Pereira, chamou centenas de pessoas à 3.ª edição do festival Tinto no Branco.

Por Joana Amaral Cardoso

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“Este homem não é um homem comum”, começou Ricardo Araújo Pereira, fazendo de uma fala do sketch do super-homem que arranjava bicicletas dos Monty Python a sua apresentação elogiosa de Michael Palin. Estes são dois homens da comédia e dos livros que tiveram “uma conversa completamente diferente”, claro, nesta sexta-feira à noite em Viseu perante centenas de pessoas — e sob um frio de rachar. Palin defendeu, num tempo em que considera que o politicamente correcto “está a impedir o desenvolvimento da comédia”, que “o humor ilumina tudo e nada [há de] demasiado sério que não se consiga defender contra o humor. A Igreja achava mesmo que ia ser derrubada por A Vida de Brian?”.

A conversa marcou a abertura da 3.ª edição do festival literário Tinto no Branco, inicialmente prevista para a Tenda Jardins de Inverno, mas depois transferida para o exterior do Solar do Vinho do Dão — o centro nevrálgico do evento — devido à prevista e confirmada afluência do público, que superava os 200 lugares previstos da tenda e assim encontrou espaço nos cerca de 600 lugares sentados disponíveis e muitos outros em pé. “Já alguém morreu?”, atirou a certa altura Michael Palin, dos Monty Python, escritor, viajante profissional, actor e apresentador de TV. Aos dez minutos de conversa ao ar livre, com sete graus nos termómetros, Ricardo Araújo Pereira já tinha puxado uma mantinha sobre as pernas. “Pareço uma velhinha”, disse a uma audiência que nunca deixou de sorrir e que terminou a hora de conversa com uma ovação de pé. “Isso, activem a circulação”, brincou Palin antes de abandonar o palco.

Esse palco pertencera aos dois, entrevistador e entrevistado, fã e ídolo. A conversa provou logo no título como os Monty Python são, entre muitas coisas, infinitamente citáveis. Comprovou que falar dos limites do humor, do politicamente correcto e, claro, de papagaios mortos não tinha rival no frio viseense. E solenizou-se então quando Ricardo Araújo Pereira, que acaba de lançar um livro de crónicas em torno do que descreve ser o seu reaccionarismo quanto a elementos tão variados quanto os novos media até à língua, perguntou a Michael Palin como achava que seria recebido hoje um sketch como o do lenhador travesti ou A Vida de Brian (1979). Palin responde: “É difícil saber, porque ainda são populares.”

O filme dos Monty Python (formados por John Cleese, Graham Chapman, Eric Idle, Terry Gilliam, Terry Jones e Palin) foi recebido com boicotes, protestos e muito debate na época. A rábula do lenhador travesti é um dos intemporais números dos Python e o seu protagonista é Palin, que também escreveu sketches como aquele que ficou reconhecível pela sua exclamação “Ninguém espera a Inquisição Espanhola!”. Para Michael Palin, é uma questão em aberto saber “se se consegue agora escrever algo fresco sobre travestismo, transgénero ou autoritarismo religioso”.

O homem que é conhecido, como lembrou Araújo Pereira, como “o Python simpático” passou depois a responder à sua própria pergunta: “Escreveria hoje algo sobre o islão? Nem pensar, nem pensar, porque há por aí pessoas perigosas.”

“[Mas] gostaria de escrever sobre toda essa área da tolerância e intolerância. E gostaria de escrever algo sobre o politicamente correcto hoje, porque acho que está a impedir o desenvolvimento da comédia. Estamos todos a fazer coisas de que temos vergonha e a comédia é uma forma óptima de falar sobre essas coisas e de lidar com elas. São tempos diferentes daqueles quando escrevíamos comédia em 1969, em que tudo era um alvo em aberto, mas estranhamente acho que isso era porque no mundo na altura havia mais com que nos preocuparmos, a Guerra Fria, a luta pelos direitos civis, mas por alguma razão em Inglaterra podíamos falar sobre quase tudo através da comédia. Porque ninguém tinha feito isso antes.”

E chega à conclusão: “Olhando para os Python hoje, há provavelmente todo o tipo de coisas que seriam totalmente politicamente incorrectas. O que é estranho é que as pessoas ainda se riem delas, ainda vêem os programas, e não houve nenhuma insurreição civil, nenhuma grande religião encerrou por causa disso.”

Michael Palin considera-se “um sacana extremamente sortudo”, disse logo no pontapé de saída a Ricardo Araújo Pereira. “Escrever é o que mais gosto. É um acto criativo primário”, acredita, “ é algo que estamos sempre a aprender”. O Monty Python está em “Biseo”, como pronuncia atenciosamente, provavelmente sem saber porque arranca alguns risos da plateia — a troca do bê pelo vê e o ligeiro ciciar no esse aproximam-no ao sotaque da região, e a audiência reconhece-se. São fãs dos Monty Python de todas as idades, mas também fãs dos Gato Fedorento, que ocupariam Araújo Pereira com fotografias e autógrafos no final da conversa.

O humorista e colunista português quis saber muito sobre o grupo de que é admirador, sendo que já entrevistara Terry Jones e John Cleese no passado. É das “tensões” entre os vários Python que vêm alguns dos seus feitos, responde-lhe Palin. Elas eram “parte da dinâmica que fazia os Python funcionar”, essa trupe que já de si considera que “era em parte um acidente”. A voragem criativa era tal que era “uma força centrífuga” e a sua conhecida animosidade com John Cleese serviria o grupo no programa da BBC em que se estrearam, Monty Python’s Flying Circus (1969-74). “Eu cumpria a função do homem com quem o John se zangava. O que é muito importante. Ele tentava devolver o papagaio e eu dizia ‘Não, não, está só a descansar’.” Esse sketch é um dos que nomeia quando fala do processo criativo do grupo, um dos tiros certeiros que os pôs logo, numa primeira leitura, a rir “histericamente”. “O [sketch do] Ministry of Silly Walks foi mais trabalhoso.”

Michael Palin assume-se como um observador do comportamento humano. Tanto que é essa a sua leitura dos três filmes Python, que considera que Ricardo Araújo Pereira “levou demasiado a sério”. Por não serem, como enunciara o entrevistador, sobre os grandes temas de Deus, fundação de Inglaterra e sentido da vida, mas sim “sobre o absurdo do comportamento humano” na religião organizada (e esganiça a voz para imitar alguns dos seguidores de A Vida de Brian), “sobre o comportamento britânico”, sempre polido mesmo quando violento (“Oh, temos um Império. Oh céus, oh dear”, brinca sobre Monty Python e o Cálice Sagrado, de 1975) ou um filme que, concede, “ainda é bastante radical” — O Sentido da Vida, de 1983.

O encontro entre o Python e o Gato foi o grande chamariz do festival, que alia o vinho da região e a literatura e visa colocar Viseu na rota do turismo cultural. Conta também na programação desta sexta-feira com uma actuação de Benjamin e que ao longo do fim-de-semana terá ainda duetos conversadores com o crítico cultural Pedro Mexia, o escritor e ex-secretário de Estado da Cultura Francisco José Viegas, a historiadora Raquel Varela, o poeta Nuno Júdice ou o escritor Afonso Cruz, bem como entre Frei Bento Domingues e Carlos Fiolhais.

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ENTREVISTA:

Michael Palin em Portugal: “A boa comédia é na verdade um protesto”

O Monty Python esteve em Viseu no festival literário Tinto no Branco para falar da comédia revolucionária que fez há 50 anos mas também sobre livros, Trump e viagens.

Por Joana Amaral Cardoso

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Horas antes de um encontro às cegas com Ricardo Araújo Pereira, que nunca tinha visto mas com quem aceitou conversar em Viseu, Michael Palin estava preparado para falar uma vez mais dos Monty Python. O grupo que formou com John Cleese, Graham Chapman, Eric Idle, Terry Gilliam e Terry Jones é quase sempre o seu cartão de visita – embora, explica ao PÚBLICO, nem sempre isso aconteça nos festivais literários em países mais remotos onde a trupe não é tão conhecida.

Não foi o caso nesta 3.ª edição do Tinto no Branco, vinho Dão e livros, escritores e pensadores à conversa com provas de vinho à mistura no centro de Viseu. Uma cidade que não conhecia, também, e que assim cumpria dois requisitos para aceitar vir a um de tantos festivais literários que proliferam mundo fora. “Estou sempre interessado em falar sobre a escrita. Gosto de viajar e se há um festival num sítio que não conheço ou onde estive e quero voltar, isso é apelativo para mim. E quanto mais pequeno o festival mais gosto dele, porque conhecemos as pessoas e fazem uma diferença real — vê-se numa cidade pequena como Viseu.”

Michael Palin, encarnação de cavalheiro inglês e simpatia imune a feitos e fama, é um viajante inveterado que já seguiu os passos de Hemingway nas suas viagens, ou os de Phileas Fogg de Volta ao Mundo em 80 Dias, e que a BBC levou em inúmeros programas pelo globo. Nunca fez um sobre Portugal mas já visitou o país e suas cidades várias vezes, em férias. Tem editados em Portugal muitos dos seus livros de viagens, e também um único livro de ficção, Verdade e Consequência (Bizâncio, 2015). Trabalha agora num novo livro: “Estou a escrever a história da vida de um navio”, envolta tanto em mistério quanto em tragédia, a do HMS Erebus.

Depois de uma conversa com Ricardo Araújo Pereira que manteve mais de meia centena de pessoas ao ar livre numa fria noite de Viseu na sexta-feira, o adepto do Sheffield aqueceu-se com uma espreitadela ao Porto-Benfica. Horas antes, falava sobre a intemporalidade dos Python, pedagogia humorística, sobre Trump e o “Brexit”.

Alguma vez se cansa de falar sobre os Monty Python? Honestamente.
Canso-me se for pura repetição. Mas estou sempre grato por [haver] pessoas genuinamente interessadas nos Python e no facto de ainda resultarem, especialmente no estrangeiro porque é fascinante saber por que é que os Python ultrapassam fronteiras — [saber] o que as pessoas em Portugal, no Brasil ou na Polónia pensam sobre os Python. De cada vez tento pensar, da forma mais clara possível, na melhor resposta que dou.

Estando neste festival, pensa-se em como o trabalho dos Monty Python tem algo de literário na construção e estrutura de alguns dos seus sketches. Introduziram isso de forma consciente, quando escreviam?
Os Python reflectiam muita da informação que tínhamos adquirido na nossa educação e atirávamos para lá absolutamente tudo. Mas a ideia primordial era de que nunca devia ser um sermão, devia ser engraçado, ter um toque de leveza. Tivemos o [Marcel] Proust, por exemplo, e não havia muitos programas de comédia com Proust. Usámo-lo numa espécie de estúdio de televisão provinciano onde concorrentes tinham de resumir as obras de Proust em menos de 15 segundos [risos]. Lidámos com livros incrivelmente densos e complexos e confiámos no facto de o público saber que é um livro incrivelmente complicado e rico, que demora muito a ler. Conscientemente usávamos partes da nossa formação e ideias, temas. Lembro-me de um sketch muito engraçado que Eric Idle escreveu sobre dois homens a discutir a existência ou não de deus, enquanto estão a lutar – um era um bispo e um humanista. Usávamos conceitos intelectuais e tornávamo-los algo muito tonto.

Em Junho, doou mais de 50 dos seus cadernos e diários, cheios de ideias e esboços de sketches redigidos entre 1965 e 1987, à Biblioteca Nacional Britânica. O que o levou a fazê-lo?
Durante muito tempo escrevi e mantive cadernos de notas, farrapos de papel, envelopes, ideias apontadas e que estavam a apanhar pó em pastas em casa. Pensando no que faria com eles, foi claro que os Monty Python não são algo que vá desaparecer. Na verdade, quanto mais nos afastamos dos Python mais as pessoas estão interessadas na forma como trabalhei, mesmo sendo coisas com 50 anos. Dando isto à Biblioteca Britânica, as pessoas podem organizá-los, catalogá-los, fazer sentido deles e também disponibilizá-los a quem esteja interessado em escrever comédia. Eu teria muito interesse em ter visto os cadernos do [influente comediante britânico] Spike Milligan. E isto permite saber como era uma sessão de escrita dos Python.

Têm mais informação sobre os êxitos, mas também sobre as falhas, os erros, os obstáculos que tentavam ultrapassar ao escrever.
Sim, há lá muitos sketches que nunca chegaram à televisão e é muito interessante, olhando para o conjunto de uma obra, descobrir o que não foi usado, o que foi riscado. É quase mais interessante do que o que foi usado.

Não havia dúvidas, mas essa doação é mais uma forma de confirmação do lugar dos Monty Python no Panteão da cultura britânica. Para quem escrevia comédia com leveza, sente-se agora esse peso?
Estava meio à espera que eles dissessem que não era o tipo de coisa que queriam. “Estamos mais interessados em Virginia Woolf ou Kingsley Amis ou whatever”. Mas eles é que tomaram a decisão. Adorariam tê-los porque os Python tornaram-se não só parte da cultura mas também algo que é muito difícil de definir. Quanto mais houver para compreender, mais interessante será.

Os Python ainda são considerados um avanço, uma inovação na comédia. Não víamos isso assim na altura, mas é o que é agora. As frases dos Python são constantemente usadas: “always look on the bright side of life”; “o que é os romanos alguma vez fizeram por nós?”. As pessoas usam-nas a toda a hora, os jornalistas, os políticos. Margaret Thatcher: ela tentou usar o sketch do papagaio morto a propósito de um candidato do Partido Liberal. Alguém do seu aparelho lhe disse para o fazer mas ela não sabia bem o que era. “É de um programa de televisão”; “o que é isso?”. E disseram-lhe “é o Monty Python’s Flying Circus”; e ela disse-lhes “Monty Python… É um dos nossos?”, [do partido]. [risos]

O seu filme mais recente como actor, da autoria do escritor de comédia política Armando Iannucci (Veep, The Thick of It), é The Death of Stalin e centra-se na ambição, no poder e na imagem. Surge numa altura de suspeitas sobre conspirações entre políticos americanos e a Rússia, de tensões entre Theresa May e Donald Trump, de “Brexit” – é particularmente atempado?
A situação hoje é, de muitas formas, diferente. Mas [o filme] é sobre o poder, como se consegue o poder e como se mantém esse poder. Hoje, por oposição ao tempo de Estaline, em que havia papelinhos com os nomes das pessoas e as condenavam por isto ou aquilo, agora há a Internet e pode controlar-se de facto as coisas a partir do centro. Pode-se piratear, pode-se bloquear, ou lançar dúvida como faz Trump. As declarações públicas de Trump são todas tweets, o que é óptimo porque se só se é tido em conta por 140 caracteres, isso significa que não tem de se entrar numa discussão completa. O que é uma forma de manter o poder.

Trump, pelo que sei, ainda não mandou ninguém para as minas de sal, mas está interessado no poder, na forma como se mantém o poder, como se difama as pessoas, o que é muito importante. The Death of Stalin é sobre como o poder e a ambição distorcem e transformam as pessoas, de seres humanos inteligentes e credíveis em apoiantes de actos horrendos e de excessos. Não penso que estejamos nessa situação. Mas por todo o mundo há pessoas a agarrar-se ao poder fazendo coisas muito cruéis, por isso é relevante.

A comédia é particularmente necessária em momentos assim, ou é um cliché pensá-lo?
Não penso que seja necessária, penso que existe. A comédia é muito importante nas crises. Na Grande Guerra havia muito humor, as pessoas riem-se nas situações mais desesperadas. Há que assegurar que esse riso não é um riso de desespero mas um riso que seja de protesto. É isso que a comédia é, a boa comédia é na verdade um protesto. É dizer “olhem para esta pessoa a dizer estas coisas!”, “olhem para o cão atrás dele a fazer-lhe xixi na perna”. Mostrar quão transiente e quão vazios são muitos dos gestos dos poderosos. A comédia e o ridículo são uma parte muito, muito forte do protesto, para manter as pessoas debaixo de olho. As pessoas verdadeiramente poderosas não têm muito sentido de humor, porque a comédia é sobre rirmo-nos também de nós mesmos, e eles não conseguem fazê-lo.

É algo em que os britânicos têm sido muito bons e penso que é por isso que estamos na confusão em que estamos hoje – porque nos conseguimos rir de nós mesmos. Vamos ter de nos rir bastante nos próximos anos. É a única coisa que podemos fazer.

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Anotações sobre Anton Tchékhov e e-mail recebido

Anotações sobre Anton Tchékhov e e-mail recebido
Anton Tchékhov
Anton Tchékhov

Quando era menor, meu filho Bernardo às vezes perguntava: “Pai, qual é o teu escritor preferido?”. Minha resposta era que meu escritor preferido eram uns 100 caras. Quando ele insistia, citava algo por volta de 10. Quem? Acho que Cervantes, Dostoiévski, Balzac, Kafka, George Eliot, Machado, Rosa, Stendhal, Virginia Woolf, Sterne, Thomas Mann, Tchékhov, mais ou menos isto. Mas, se meu inquisidor fosse implacabilíssimo como Fernando Monteiro em suas listas e me ordenasse escolher um e somente um, eu — talvez estranhamente — escolheria Anton Pavlovitch Tchékhov.

Acho que gosto se discute sim. Em meu caso com Tchékhov, creio saber parcialmente de onde vem meu fascínio por suas histórias e peças de teatro. Estou consciente de algumas coisas que aprovo nele: o realismo, a clareza, o humor, a leveza, a abordagem compreensiva dos personagens, a pouca ênfase a coisas que outros escreveriam cheios de exclamações (ele parece dizer: não te ajudarei, descubra sozinho o que há de importante aqui), a imaginação para criar cenas e situações significantes, uma visão um pouco desencantada do amor — o qual é visto sem muitas ilusões — e a total falta de preconceitos que o permite transitar por toda a sociedade russa do século XIX. Talvez ele não fale a todos da forma como fala a mim. Sei que Dostoiévski, Mann, Cervantes, etc. são melhores, porém insisto: Tchékhov é o meu escolhido. É também uma questão de convivência agradável, preferimos ficar com alguém cuja presença e essência nos seja amiga.

tchekhov1Era o verão de 1978, tinha 20 anos e passava férias na casa de minha irmã, que fazia pós-graduação no Rio de Janeiro. Lembro do dia: manhã chuvosa, temperatura amena, não ia dar praia. Voltei para a cama e peguei O Beijo e Outras Histórias. Pensava que, tendo lido quase todos os livros de Dostoiévski, Tolstói, Gogol e Turguênev traduzidos na época, me restava conhecer aquele Tchékhov. Amava os russos e, naqueles anos, também os soviéticos… Então, comecei a ler O Beijo — uma boa história — indo depois para o conto da cachorrinha Kaschtanka. Gostei. Almocei no centro e, quando passeava pela Cinelândia, resolvi entrar na Biblioteca Nacional e pedir para ver o que eles tinham de meu novo escritor. Eles trouxeram poucos livros, mas, dentre eles, estava O Beijo.

Peguei o livro e continuei a lê-lo na BN. Passei a uma história que estava no final do livro: Enfermaria Nº 6. Em minha vida, li-a umas 4 vezes, a última deve fazer uns 15 anos. Talvez tenha sido minha maior experiência literária. Fiquei estupefato com a quantidade de humanidade que me era repassada, com a economia do autor, com a poesia condensada de sua prosa. Ali não havia teses a defender, nem grande enredo, mas havia uma sinceridade, uma nitidez nos personagens que me causou enorme impressão. Continuei a ler as histórias de trás para diante e conheci a irônica Uma História Enfadonha, na qual descobri que Tchékhov podia criar diálogos tão bons quanto os de Jane Austen.

tchekhov2Tchekhov viveu apenas 44 anos e era médico. Até os 26 anos, publicou 300 histórias em jornais russos, quase todas cômicas. Vivendo em Moscou, era obscuro. Porém, sem que soubesse, estava tornando-se famoso em São Petersburgo, onde tinha numerosos leitores. Isto perdurou até o dia em que recebeu uma carta do severíssimo crítico Grigorovitch:

“Os atributos variados de seu indiscutível talento, a verdade de suas análises psicológicas, a maestria de suas descrições (…) deram-me a convicção de que está destinado a criar obras admiráveis e verdadeiramente artísticas. E o senhor se tornará culpado de um grande pecado moral, se não corresponder a estas esperanças. O que lhe falta é estima por este talento, tão raramente conhecido por um ser humano. Pare de escrever depressa demais…”

Tchékhov mudou e, sem perder a graça e a leveza mozartiana de seu texto, tornou-se realista. O novo estilo custou-lhe críticas violentas, que o acusavam de “mau gosto” e de utilizar “detalhes sujos e grosseiros”. Ele respondeu: “Pensar que a literatura tem como finalidade descobrir as pérolas e mostrá-las livres de qualquer impureza, equivale a rejeitá-la.”

Rubens Figueiredo, tradutor e prefaciador de O Assassinato e outras histórias faz outras observações sobre Tchekhov:

“No ambiente intelectual russo, o debate só parecia fazer sentido quando tomava formas extremadas. A fama crescente de Tchékhov e a expectativa em torno de seus textos obrigaram-no a defender-se dos mal-entendidos, cada vez mais numerosos.”

“Os leitores russos se haviam acostumado a tomar os escritores como campeões de credos políticos e religiosos mas, no caso de Tchékhov, esbarravam em textos obstinadamente inconclusivos. Mais grave ainda, suas entrelinhas pareciam indicar que tanto as grandes sínteses intelectuais quanto os padrões de pensamento herdados pelos costumes serviam antes para encobrir a realidade.”

“O desconcertante é que Tchékhov consegue munir sua prosa de uma sutileza capaz de sugerir outras camadas de experiência, como se a realidade nunca se esgotasse.”

E, mais desconcertante, para um autor do sáculo XIX: “Para Tchékhov, a religião era moralmente indiferente. Ou seja, a crença, seus conceitos, seus símbolos e rituais eram ineficazes para deter a crueldade e o egoísmo, mas tampouco constituíam suas causas.”

Tchékhov: “Não cabe ao escritor a solução de problemas como Deus ou o pessimismo; seu trabalho consiste em registrar quem, em que circunstâncias, disse ou pensou sobre Deus e o pessimismo.”

tchekhov3Há muitos livros de Tchekhov que indicaria. Tenho 22 na minha frente. Como ele era contista, novelista e dramaturgo, há muitas coletâneas e, nelas, muitos contos e novelas repetidas. Vamos começar pelas peças teatrais: acho que As Três Irmãs, A Gaivota, Tio Vânia e O Jardim das Cerejeiras são tão extraordinárias que prescindem dos atores e podem ser lidas como uma novela de diálogos. A novela Enfermaria Nº 6 está em vários livros, assim como os contos Inimigos, A Dama do Cachorrinho e um conto clássico que os tradutores deveriam se reunir a fim de estabelecer um nome, pois ele pode se chamar Queridinha aqui, O Coração de Olenka ali, Dô-doce (?) acolá, assim como Amorzinho ou qualquer outra coisa.

Os melhores livros são as duas traduções de Bóris Schnaidermann:

A Dama do Cachorrinho e outros contos. Editora 34. 1999 Trad. de Bóris Schnaidermann ou
Contos. Civilização Brasileira. 1959.
(O segundo é o mesmo livro reeditado e revisado por Schnaidermann 40 anos depois. Mas quem encontrar a edição de 59 num sebo pode comprá-lo de olhos fechados. As duas versões são espetaculares.)

Outros livros que indico:
Contos e Novelas. Edições Ráduga (Moscou). 1987. Um primor de tradução para o português realizada por Andrei Melnikov.
O Assassinato e outras histórias. Cosac & Naify. 2002. Trad. de Rubens Figueiredo.
O Beijo e outras histórias. Círculo do Livro. 1978. Trad. de Bóris Schnaidermann.
A Enfermaria Nº 6 e outros contos. Editorial Verbo. 1972. Trad. de Maria Luísa Anahory.
Os mais brilhantes contos de Tchekhov. Edições de Ouro. 1978. Trad. de Tatiana Belinky.
Histórias Imortais. Cultrix. 1959. Trad.de Tatiana Belinky.
– E ler suas peças de teatro é um deleite só.

Filmes:
Há dois esplêndidos filmes de Nikita Mikhálkov baseados “em qualquer coisa de Tchekhov” (palavras do próprio diretor e roteirista): Peça Inacabada para Piano Mecânico (1977) e o famoso Olhos Negros (1987) com Marcello Mastroianni detonando no papel principal atrás da Dama do Cachorrinho.

tchekhov4Em vida, Anton Tchékhov já era conhecido, respeitado e até popular, mas não era uma celebridade. Após sua morte, Tolstoi disse: “Creio que Tchékhov criou novas — absolutamente novas — formas de literatura que não encontrei em parte alguma. Deixando de lado falsas modéstias, afirmo que Tchékhov está muito acima de mim”.

Naquele tempo, os contemporâneos não deram atenção a esta opinião. Pensavam que o conde já idoso estava a superestimar Anton Tchékhov, atribuindo-lhe características acima das que merecia. Passados cem anos, vemos agora que Tolstoi não estava tão equivocado. Atualmente, na Rússia, Anton Tchekhov encontra-se ao lado dos grandes clássicos: Púchkin, Gogol, Dostoiévski e Tolstói. E, como dramaturgo, está entre os mais célebres e montados autores mundiais.

“Anton Pavlovitch Tchekhov sentou-se na cama e de maneira significativa disse, em voz alta e em alemão: ´Ich sterbe´ – estou morrendo. Depois, segurou o copo, voltou-se para mim, sorriu seu maravilhoso sorriso e disse: ´Faz muito tempo que não bebo champanhe´. Bebeu todo o copo, estendeu-se em silêncio e, instantes depois, calou-se para sempre. E a pavorosa calma da noite foi apenas alterada por um estampido terrível: a rolha da garrafa não terminada voou longe.”
Olga Knipper, esposa de Anton Tchekhov.

Faz pouco mais de 100 anos que o fato narrado acima ocorreu. Tchekhov faleceu em 15 de julho de 1904 em Badenweiler, Alemanha.

E-mail do Fernando Monteiro:

Você tem toda a razão sobre Tchékov: ele tem uma “redondez”, uma satisfação tão total e plena do que esperamos encontrar num escritor… que mereceria, sim, ser o escolhido, entre todos, como o preferido de um leitor super-exigente.

Das histórias de AT, eu gosto especialmente de “A Estepe”, uma novela relativamente curta e genial, que narra a viagem de uma criança como uma metáfora (a novela toda) da viagem que atravessamos sem saber porque e para quê.

Assim é que o meninozinho russo (o próprio Anton, é claro) viaja — e a travessia da estepe vasta, com todos os seus incidentes, se torna o núcleo mesmo da impressão estranha da novela, como naquele filme (Olhos Negros) de Michalkov, em que Mastroianni recorda “as névoas da Rússia num passeio de carruagem, na infância, há muito tempo”…

Creio até que Nikita Michalkov faz uma alusão mais ou menos direta à novela, porque o argumento de “Olchie Chiorne” foi criado a partir da fusão duas narrativas clássicas de AT.

Para mim, Tchékov é o Machado de Assis da pátria de Dostoiévski.

Bom final de semana!
Fernando

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