O Politicamente Correto

Se você tem de escrever um trabalho para a escola ou a faculdade sobre o politicamente correto, copie daqui, está pronto e é grátis (free and copyleft)!

Introdução

É possível definir algo que não tem significado? Talvez seja possível caracterizá-lo. A expressão “politicamente correto” é uma triste variação da palavra-valise de Lewis Carrol. Se lá uma palavra agregava duas ou mais, aqui ela se mostra sem conteúdo algum. Então, basta abrir a valise para lá guardar o marxismo, o catolicismo, a boa razão, o motivo inconfessável, o freudismo ou o fascismo. Normalmente, quem utiliza o politicamente correto vê o mundo segundo o seu próprio critério de bom senso – do certo e do errado – , e vê o mundo e a história de forma maniqueísta, sendo o politicamente correto o bem e o politicamente incorreto, o mal. O mundo deixa de ser visto como um longo processo protagonizado por seres e consciências as mais diversas, passando a ser examinado de forma estanque, como se criado ontem. Tal perspectiva foi , evidentemente, concebida pela decadência do espírito crítico coletivo e pela falta de cultura sólida ou refinada.

Como podemos nos livrar desta peste?

Em nosso tempo, a mídia ou quaisquer redes de comunicação adquiriram grande importância e é precisamente ela a responsável por essa epidemia. A profilaxia é simples: a primeira coisa que precisamos fazer é identificar seu vetor, onde ele circula. Ora, ele circula através do vocabulário que utilizamos. Tal fato já demonstra sua debilidade, pois, apesar de se referir a fatos reais, a culpa nos é normalmente inoculada através de um ataque a nosso vocabulário. O contra-ataque que devemos usar é a renúncia à toda terminologia politicamente correta. Por exemplo, devemos dizer “putas” em vez de “profissionais do sexo”, “surdo” em vez de “deficiente auditivo”, “cegueira para cor” em vez de “daltonismo”, “maconheiro” em vez de “usuário de drogas leves”. O mesmo vale para todas as categorias sexuais. E onde inventaram que chamar alguém de negro é agressivo se o próprio movimento autodenomina-se Movimento Negro? (Um amigo de meu filho diz que os gaúchos são grosseiros ao chamar o doce “brigadeiro” de “negrinho” – deveriam chamá-lo “afrodescendentezinho”, claro…).

Abrangência

O politicamente correto é tão mutinacional quanto o cinema americano. Aliás, nasceu nas universidades americanas daquele país e tomou o mundo. Como se faz identificar uma perigosa pessoa inoculada pelo vírus do “politicamente correta”? É difícil fazê-lo rapidamente, requer alguma convivência, pois geralmente são pessoas que se consideram tolerantes. Então, é preciso fazê-las praticar a tolerância. Exato, elas não conseguirão. Sairão dizendo coisas como “Você não entendeu coisa nenhuma”, etc. Sim, o mundo é um local horroroso.

O perigo

A verdade é que o politicamente correto está entre nós e se apresenta sempre com frases pseudo-bondosas e argumentos de fácil assimilação. Temos de rechaçar imeditamente esta falsa inocência e desconstruir a facilidade de assimilação. É necessário, do mesmo modo, prevenir-se contra o mimetismo vocabular. Sempre enfadonho, com necessidades de repetição a fim de ampliar a estupidez dos seres humanos, o vocabulário politicamente correto é o principal veículo de contágio. Porém, trata-se de uma fé débil e, como tal, não resiste a uma aplicação do espírito crítico. É fundamental desconfiar das opiniões generalizadas: o mais tolo espírito contraditório vale mais do que a aceitação daquilo que a mídia nos dá.  Lembre-se sempre da Primeira Lei de Milton: A Ignorância Não Gera Dúvidas, a qual agora adapto para A Convicção Cega Não Alcança Profundidade Alguma (OK, Cioran disse algo parecido).

A desinformação

Na verdade, o politicamente correto prepara o terreno de forma ideal para a desinformação e o crescimento de nossa estupidez.  Quando o politicamente correto vencer, o mundo estará preparado para receber qualquer propaganda através de termos repetidos ad nauseum, os quais consistem em conceitos simples e imbecis. Esta será a nova opinião pública globalizada. Será negar a história e a complexidade, será a  idiotia em seu estado mais puro. E esta opinão pública aceitará qualquer ação, compreendendo e absolvendo seus manipuladores. Opa, mas isso já não ocorre?

Inspiração: aqui.


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O que torna ruins os livros ruins?

Ora, um monte de coisas, mas acho que o pior de tudo é a construção de um conflito desinteressante, piegas ou cheio de clichês. Ou má construção de um conflito, ignorando a seu potencial. Os clichês incomodam muito, mas quando peguei um livro de Ian Fleming (007), o himalaia de clichês era tão impressionante que era divertido… Parecia Tarantino… Aliás, quando assistimos a um filme do 007, esperamos exatamente o clichê e ai do diretor que não nos satisfizer. Não li Dan Brown, mas o filme feito sobre O Código da Vinci é outro interminável e desagradável desfiar de clichês. A falta de charme e de originalidade é uma merda, mesmo.

Eu adoro os inícios dos romances de Balzac. Quase sempre, eles começam com uma calma e elegante apresentação dos personagens. O texto avança e nos açambarca, pois já traz os conflitos grudados a cada um dos personagens como parasitas. Mas ele escreveu o desagradável A Mulher de 30 Anos, um dos maiores exeplos de ruindade que conheço. Ele estava com pressa ao escrever, tinha dívidas e fez uma desgraça de livro.

Nunca uma capa disse tanto sobre um romance

Tenho certeza de que a identificação de uma má redação é intuitiva. A correção gramatical pode ser chata, o tom pode ser chato, o brilhantismo pode ser chatíssimo, Eu não sei porque alguém tem má redação ou é chata, mas há gente muito capaz que é desinteressante. É uma pena quando um desses escritores descobre um bom tema. Dia desses, li um livro que era um porre. Era de um blogueiro. O cara sabe escrever, mas a construção da novela era (muito) periclitante, até paradoxal, e ainda o acompanhava uma nota final – havia outra, a inicial… – em que o sujeito justificava as mancadas ou, em outras palavras, sua ruindade. Insuperável chatice arrogante, pois há pessoas que apenas usam o romance para chamar a atenção das pessoas para suas existências, independentemente do texto produzido. Sei que escrever é vaidade; sei melhor que escrever bem é a vaidade recebendo a admiração alheia. Um bom mutualismo!

Também há os que têm seus modelos literários e tentam desesperadamente alcançá-los (no caso de autores) ou procurá-los (no caso de críticos). “Infelizmente, alguns dos meus colegas da Universidade julgam tudo pela proximidade a Ulisses, de Joyce, o qual releem anualmente”, li num artigo. Se o Charlles Campos, leitor e comentarista habitual do blog, julgasse tudo sob um filtro – o qual seria certamente imaginado por ele – de Faulkner, eu o chamaria de imbecil para baixo. Seria o mesmo que eu, kafkiano de quatro costados, admirar o austríaco que escreve em um só parágrafo por seus incertos e tênues parentescos com o tcheco. Durante anos a literatura brasileira sofreu do Efeito Clarice. Um monte de gente queria ser Clarice Lispector. Houve grandes epígonos que livraram-se em bom momento da sombra ucraniana – Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll e poucos mais – , mas imitar Clarice… Por quê? E para quê imitar a mais pessoal das escritoras? Ah, e céus, como escreveram porcarias!

(um dia qualquer, continuo)

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Dostoiévski ou Tolstói?

Ontem, um comentarista, que se identificou apenas como Pedro, me provocou com esta pergunta clássica. Começo respondendo que não acho lógica uma comparação entre seres humanos e romancistas tão diferentes entre si — seja nas posturas, seja nas vivências de cada um — , ao mesmo tempo que sei que nada é mais lógico do que comparar dois contemporâneos importantíssimos, como hoje fazemos com Saramago e Lobo Antunes, por exemplo. Outra mania que desejo evitar é o elogio de um para desvalorizar o outro. Este gênero de mau elogio fica melhor em jornais de província. Eu posso gostar de Drummond e João Cabral e, se elogiar este, não estarei menoscabando aquele. Talvez as pessoas gostem de comparar os dois russos pelo amor de ambos aos grandes painéis. Seus romances eram tudo: psicológicos, sociais, filosóficos, picarescos, metafísicos (no caso de Dostô) e tão grandes que empurraram as fronteiras dos gêneros para poderem se acomodar dentro delas.

Gosto de ambos por motivos muito diferentes. Tolstói talvez seja o maior de todos os narradores clássicos — por que não recebeu o Nobel se faleceu em 1910, hein? Seus romances são perfeitos, têm ritmo, excelente prosa, envolvem. Se o tivesse de comparar com alguém, seria com Turguênev ou com certa parte da obra de Tchékhov. A Morte de Ivan Illich não seria uma antecipação de Thomas Mann? Em minha opinião, sua grande obra é Anna Kariênina, além dos contos e novelas. Guerra e Paz é uma obra-prima, mas aquele epílogo semi-ensaístico é um saco, atrapalha todo o livro. Porém, enquanto Tolstói chegava ao ápice da forma clássica, Dostoiévki já sinalizava que aquilo estava ultrapassado.

Sim, notem a diferença fundamental de foco narrativo utilizado pelo dois canônicos russos. Tolstói era o típico narrador onisciente que, apesar de detalhista, não era capaz de abandonar sua posição aristocrática, o senso comum de sua época e o certo e errado da concepção cristã do mundo. Já Dostô, quando comparado a Tolstói, parece um alucinado. O narrador de Dostoiévski localizava-se sob a pele dos personagens, saltando de um para outro, deixando-se reger de tal forma por suas lógicas (ou loucuras) que fazia sumir o narrador-julgador. Não se sabe muito bem quem representa Dostoiévski em seus livros. Ele é cada personagem e o livro parece andar por si.

Tolstói tinha razão ao chamar os romances de Dostoiévski de mal-acabados. O acabamento era fundamental para clássicos como ele e Mann. E Tolstói não tinha razão ao chamar os romances de Dostoiévski de mal-acabados, pois livros como Crime e Castigo e O Idiota são sôfregos, nervosos e tão viscerais que, sob o filtro de Tolstói, se transformariam em outra coisa. Quem pensa em acabamento quando quer descobrir quem matou o velho Fiódor? E quem criticaria o acabamento absolutamente impecável da Parábola do Grande Inquisidor — apenas para me referir a dois temas de Os Irmãos Karamázov? Ora, Dostoiévski não estava preocupado com o acabamento porque as regras vigentes da beleza literária o atrapalhavam; porém, quando precisou, fez uso delas brilhantemente. Na verdade, uma das últimas preocupações que temos ao ler Dostoiévski é com o acabamento. Os personagens de Tolstói sofrem com dignidade, os de Dostô berram e se escabelam. Não obstante, o horror metafísico que cresce de O Idiota não fica nada a dever ao de Ivan Illich, até pelo contrário.

Enquanto Guerra e Paz é um panorama, Os Irmãos Karamázov aponta para o fim de uma era, como Dostô já fizera em Os Demônios. Tolstói é um burguês, Dostô pensa num apocalipse. Céus, são muito diferentes. E muito bons.

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Os ípsilons de Bolaño

Anteontem, estava lendo 2666 (terceira parte: La parte de Fate), de Roberto Bolaño. Na página 332 o personagem Fate chega a seu quarto de hotel para dormir. Liga a TV. A princípio, Fate fica deitado e vê um desses programas de humilhação de gente gorda, tão comuns na TV inglesa. Marido e mulher batem boca, um deles arranjou uma amante. A(o) amante intervém. Fate dorme.

O notável é que Bolaño segue impavidamente descrevendo o que passa na TV. É inusitado e é maravilhoso para a narrativa. Não tenho grandes pretensões de entender o que Bolaño quis exatamente exprimir, se é que quis. Fico com a opinião de Isak Dinensen (Karen Blixen), que defendia não ser fundamental entender tudo aquilo que os escritos poéticos — pois é poesia o que faz Bolaño com sua TV — podem ou devem significar. Depois, cansado da TV, Bolaño passa a acompanhar um sonho de Fate que, de forma enviesada, tem a ver com a narrativa. É como se a narrativa estivesse subindo, evoluindo, e repentinamente se abrisse num Y. E o Y logo é abandonado, pois Bolãno já está envolvido com outra história. Nós também.

Este insistente uso da fratura, a capacidade que Bolaño tem de sempre nos interessar por outra e mais outra narrativa é a maior característica de 2666 e Os Detetives Selvagens. É uma voz que parece saída de um sonho, sedutora e ao mesmo tempo desinteressada.

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A Mulher do Tenente Francês, de John Fowles (resenha e reconstrução, um show!)

Na Inglaterra, este romance de 1969 possui status de clássico. Quando foi passado para o cinema, recebeu roteiro do respeitadíssimo dramaturgo Harold Pinter (1930-2008), Nobel de Literatura de 2005, e que tem dentre suas maiores influências Samuel Beckett e Frank Kafka. Já John Fowles (1926-2005), o autor do romance, escreveu poucos livros mas tem obra consistente e é até popular.

A Mulher do Tenente Francês é excelente. A história é contada a partir de um curioso foco narrativo: o autor, longínquo, examina os atos de seus personagens vitorianos a partir do instrumental em uso nos anos 60, quando o livro foi escrito. Tal instrumental é basicamente freudiano, marxista e gramsciano. Não, não, nada de discursos políticos. Só observações aqui e ali. Ao estilo de Machado de Assis, o autor às vezes conversa conosco, realizando uma bem-humorada interface entre a ação e o leitor. Costuma também brincar com o fato de estar “perdendo o controle” sobre os personagens e, lá pela página 100, explica que está alterando o planejamento inicial do romance por causa dos personagens, que decidiram outra coisa. Para completar, dá ao leitor a chance de escolher entre três finais distintos. É delicioso investimento ler estas 484 páginas.

Considerando-se a estrutura narrativa, não é de estranhar que Harold Pinter tenha sido convidado para escrever o roteiro cinematográfico. Para alegria da Caminhante (just a private joke), o filme de Karel Reisz, com Meryl Streep e Jeremy Irons, é um fiasco quando comparado com o livro. Ela, a Caminhante, acaba de marcar 2 x 0.

Mas tergiverso. No último domingo, procurando algo inteligente na Internet — ainda que zonzo pelo calor insuportável – , encontrei uma divertida série de Digested Classics no Guardian. Então armei uma espécie de jogo. Tenho certa vergonha de contar, mas vamos lá: copiei o texto no Open Office e escrevi minha versão por cima. Não fiz alterações substanciais, mas mexi num monte de detalhes. O tom destes “clássicos recontados” é mais do que jocoso, é decididamente uma profanação e, como meus sete leitores sabem, profanação das especialidades que mais aprecio.

Arriscaria dizer que ri muito do resultado. E, OK, vou dar a fonte por uma questão de honestidade. Por favor, não cliquem nela!

Observando a baía de Lyme, em 1867, podemos notar um casal muito bem vestido caminhando pela praia, se é que podemos chamar de praia aquela bela paisagem cheia de penhascos que acabavam no mar da Cornualha. Estavam tão à vontade longe de casa que não podemos chegar a outra conclusão que não seja a de que estavam noivos ou eram casados. E então ambos viram uma mulher toda de preto olhando o mar.

– Eu espero que você não tenha falado sobre as ideias tolas do Sr. Darwin novamente — criticou Ernestina. – Você sabe que papai não suporta a ideia de ser descendente de um macaco.

Monotemático, certamente Charles falara em novamente em Darwin, assim como hoje falamos sobre o aquecimento global ou as próximas eleições quando temos pouco assunto com nossos sogros. No entanto, a realidade é que Charles não tem nenhum direito a escolher seus temas de conversação, pois ele é uma construção da minha, apenas existe em minha mente, por isso, agora, quero que ele se fixe na mulher de preto que corre perigo na posição em que está.

– Quem é aquela? – , pergunta ele.

– Chamam-na de A Mulher do Tenente Francês – responde Ernestina. – Ela se apaixonou por um capitão náufrago que a abandonou. Ela caiu em desgraça e agora é empregada da Sra. Poulteney.

– Eu não desejaria saber nada dela nem desta história horrível, mas não creio que ela esteja segura naquela ponta. Pode cair e há pedras lá embaixo.

Charles dirigiu-se à mulher de preto e pediu-lhe que saísse daquele local perigoso, mas o olhar triste, frio e profundo que recebeu de volta avisava-lhe para se afastar.

Mas como este é o meu livro, vamos deixar esta cena introdutória e fazer algumas observações sarcásticas sobre ambos os personagens e seus valores vitorianos. Charles Smithson, podemos concluir, é um homem comum, ainda que nobre. Com uma renda que o libera da necessidade de trabalhar, ele é uma alma perdida de 32 anos, com ideias tão avançadas quanto pode ter um homem que deixa-se torturar pelas lembranças de suas ligações com prostitutas.

Sua noiva, Dona Ernestina Freeman, é o que agora nos anos 1960 chamamos de pequeno-burguesa. Seu pai ganha dinheiro no comércio. Ora, o comércio! Ele é o dono de algumas lojas de departamentos em Londres. Coisa estranha, enriqueceu trabalhando. Sua filha, apesar da baixa extração, pode, portanto, casar com Charles, de maior categoria, mas com menos grana. Está tudo perfeito. São dignos um do outro. O único inconveniente é que Ernestina é, como dizemos agora em 2010, uma cabeça oca ou uma loira burra.

Já Sarah Woodruff, ou A Vagabunda do Tenente Francês, como alguns de Lyme Regis a descreveriam… Bem, falemos dela depois. Há também a Sra. Poulteney, uma viúva que tomou Miss Woodruff para si, a fim de protegê-la das maledicências e assim aumentar suas chances de entrar no reino dos céus.

E depois há Sam e Mary. Como o amor dos empregados era mais alegre! E era mesmo. Livres das contorções românticas de seus chefes, Sam e Mary são personagens encantadores. A chefe de Mary é Ernestina e Sam é mordono de Charles. É um contraste bem útil para o romancista, que pode assim, criar uma superfetação de metáforas.

Mudemos o cenário. Muitas páginas depois, estamos em Undercliff, um mundo pré-histórico onde o desocupado Charles procura um fóssil – coisa de vitorianos confusos, apaixonados por Darwin, imaginem! E lá encontra Sarah Woodruff.

– Miss Woodruff –, diz ele.

– Senhor Smithson – , responde ela.

– Eu me preocupo com sua saúde.

– Minha saúde não significa nada.

Nossa! Após alguns minutos de conversa, ela diz que sua situação com o Tenente Francês desaparecido é o que a define como ser humano. Ela é aquilo. Se tivesse nascido 100 anos depois, Charles poderia ter reconhecido isto como uma expressão da angústia existencial sartreana. Porém, vejam como são as coisas, o que ele sentiu foi um desconcertante inchaço nas calças. Então, beijou-a na pálpebra.

Miss Woodruff olhou para toddos os lados.

Se formos vistos juntos, serei expulsa da casa da Sra. Poulteney.

Mais um discurso sobre a ciência vitoriana e hipocrisia religiosa? Mais encontros entre Charles e Sarah até que alguém os veja e cumpra-se a necessidade freudiana de ser expulsa da casa da Sra. Poulteney?

No entanto, damos mais um salto e vamos agora para Exeter, onde Sarah está hospedada no hotel Endicott. Charles vai até ela e aqui tenho um dilema, pois preciso manter o artifício que os meus personagens têm vidas próprias e que não sei como a história termina. Ousadamente, então, abandono-os.

Agora Charles nega a si mesmo a noite com Sarah e retorna a Ernestina, com quem viverá feliz para sempre pelos próximos 173 anos. Mas eu não quero fazer isso. Portanto, faremos com que ele retorne ao hotel, onde dou de cara com Charles desabado sobre o corpo nu de Sarah após 17 segundos de cópula intensa.

– Meu Deus, mas você virgem. Então, o tenente francês não…

– Na verdade não, mas eu precisava do mundo para imaginar que eu tinha para mim, para explorar minha vergonha e solidão.

Se Charles tivesse lido algum livro de psicologia moderna, ele teria concluído que Sarah estava precisando de uma terapia urgente. Mas como isso era 1867, ele simplesmente falou: “Eu te amo”.

Tudo se complica quando o mundo descobre a traição. Sam não entrega uma carta de Charles a Sarah e o mal-começado romance é subitamente extinto. Ela, Sarah, some. Charles é instado a terminar seu noivado, cai em ostracismo light e dorme com prostitutas enquanto cria mais mil metáforas em sua busca por Sarah.

Se eu soubesse que me obrigaria a escrever mais de 100 páginas, poderia ter ficado com o primeiro final. Mas não. Vou deixá-los com mais dois. Afinal, quero dormir com Meryl Streep novamente.

Ele a reencontra dois anos depois, vivendo como modelo de Dante Gabriel Rossetti. Aqui, um choque, pois Dante Gabriel Rossetti é um dos pintores preferidos de minha ex e, portanto, é um idiota. Criador de um grupelho que seus fãs gostam de chamar de pré-rafaelitas, mas que se chama Pre-Raphaelite Brotherhood ou Irmandade pré-rafaelita, é autor de pinturas, poemas e de conceitos que alardeavam a arte pela arte. Seu poema mais importante diz uma imbecilidade digna das maiores carolices “.pps”:

O pior momento para o ateu é quando ele realmente está agradecido e não tem ninguém para agradecer.

Você não precisa se preocupar com isso, Dante, eu organizaria uma festa. Mas voltemos. Ele a reencontra dois anos depois, vivendo como modelo de Dante Gabriel Rossetti.

– Eu não posso me casar com você. Ainda quero estar sozinha. Mas nós temos uma filha — diz Sarah.

Ou.

– Eu vou casar com você, mas será apenas platônico.

Você provavelmente vai escolher o segundo final. Eu fico com o primeiro, em que há sexo casual e variado. De qualquer maneira, Charles e Sarah acabaram pós-modernos.

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Brilho Eterno de um Corpo Sem Lembranças, de Vladimir Nabokov

Se em Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind), 2004, Jim Carrey interpreta um marido desesperado pelo fato de sua ex-esposa (Kate Winslet) tê-lo deletado da memória através de um programa maluco, em O Original de Laura Philip consegue que seu cérebro apague partes do próprio corpo enquanto vê sua Flora traí-lo sistematicamente.

Se de um lado temos o roteirista americano Charlie Kaufman e o diretor francês Michel Gondry — pessoas que talvez ainda estejam longe de uma imortalidade –, de outro há o célebre escritor russo Vladimir Nabokov, autor de obras-primas como Lolita, Fogo Pálido e, principalmente, A Verdadeira Vida de Sebastian Knight. Se o filme Brilho Eterno é maravilhoso, O Original de Laura não vale a pena. Não, não farei uma resenha do livro de Nabokov. Eu adoro Nabokov e ele não merece que eu, uma obscura pessoa de um obscuro blog, o desmereça. Nabokov mandou que, em caso de morte, O Original de Laura fosse para o fogo, pálido ou não, mas a esposa Vera não teve coragem de fazer a fogueira e o filho Dmitri igualmente o manteve até que, em 2008, 31 anos após a morte do pai, ressuscitou a ideia de publicação.

Como sói acontecer, são os vivos que julgam os mortos, já que estes têm manifestações mais discretas. Então, dou razão a Max Brod quando ele salva da destruição, para toda a humanidade, obras como O Processo e O Castelo, de seu melhor amigo Franz Kafka. Brod era um bom leitor e logo viu o que tinha nas mãos. Fez bem. Obrigado, Brod. 2666, de Roberto Bolaño, foi publicado num formato diferente e o tempo provou o acerto dos herdeiros e do editor Herralde. Solo de Clarineta, de Erico Verissimo, estava em grande parte pronto. Vale a leitura. A 10ª Sinfonia de Mahler possuía apenas o Adagio inicial, mas que adágio!!! Bach morreu durante a composição da Arte da Fuga, mas o que deixou pronto é embasbacante. Enquanto isso, O Original de Laura é um livro que apenas permite vislumbrar como Nabokov criava seus romances.

O que me deixa contrariado é o fato de que livros grandiosos de Nabokov não receberam tamanho espalhafato e luxo. Trata-se apenas de um mau presente. Nunca vi um Sebastian Knight ser lançado no Brasil em capa dura, papel de alta qualidade, fac-símiles originais com a caligrafia de Nabokov, etc. Tudo por um livro de terceira categoria — pois o que foi publicado é o conjunto das 138 fichas onde o autor escrevera quatro capítulos e anotara ideias e trechos. Seu processo de criação fazia com que escrevesse o romance em fichas separadas, o que permitia a troca de lugar entre os capítulos sem precisar redigitar tudo novamente. O que fazia era uma espécie de Crtl-X / Ctrl-V com as tais fichas, apenas reorganizando-as.

Mas então Vera morreu e Dmitri, com a saúde debilitada aos 75 anos e falto de dinheiros, resolveu publicar a coisa. A crítica está massacrando o livro. Vê nele os sinais de declínio que os últimos romances de Nabokov já demonstravam. Sim, os vivos julgam e resolvem as coisas pelos mortos, mas é bom ter um pouco de bom senso.

Para completar a desgraça, Dmitri quer publicar as fichas em série, num periódico literário, como se fosse uma novela da Globo. A respeitada revista “New Yorker” recusou-se a montar a minissérie. Depois de várias tentativas, Dmitri ofereceu-as à “Playboy” americana — que os publicará a partir de dezembro. O destino de O Original de Laura deveria ter sido o fogo mas, pasmem, será a Playboy. O público americano já viu melhores Lauras, certamente.

Laura: sacanagem post mortem com Nabô.

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Banal, piegas, fake. Paul Auster?!

Marcos Nunes me envia por e-mail uma boa polêmica: uma avaliação sobre a literatura de Paul Auster escrita pelo importante crítico James Wood. Lembro de ter achado — durante a leitura da Trilogia de Nova Iorque e de A Noite do Oráculo — que Auster era uma espécie de Woody Allen: novaiorquino, excelente narrador, cria conflitos interessantes, humanos, mas onde o conteúdo dramático costuma ser sacrificado em nome de uma elegância blasé muito sedutora e hábil para contornar os conflitos criados através de uma pieguice muito bem escondida sob engenhosos artifícios. Ou seja, minha impressão foi a de que estava lendo romances convencionais, sob um filtro agradável. James Wood, porém, é muito mais agressivo. O Charlles Campos é que vai adorar esta polêmica, suponho.

Está na “New Yorker” a leitura-obrigatória/mote-para-discussão-cabeça-em-mesa-de-bar do mundo literário desta semana. Num artigo intitulado “Covas rasas”, o crítico James Wood arregaça as mangas e vai com tudo para cima dos livros de Paul Auster. É provavelmente o mais negativo texto de crítica já dirigido à ficção de Auster na grande imprensa americana, e vai escrito pelo mais influente crítico do mundo anglófono hoje. Por certo que nos próximos dias vai repercutir por toda parte.

Resumindo bastante, o argumento fundamental de Wood é que Auster é um pós-modernista de almanaque, um diluidor que incorpora de modo ornamental e chamativo (“Atenção, eu sou pós-moderno!”) elementos como a narração autorreflexiva, o ceticismo e o pastiche a histórias que no fundo exprimem uma visão de mundo convencional, impregnada de clichê e sentimentalismo.

O livro mais recente de Auster, “Invisible”, acaba de ser lançado nos EUA, e o texto de Wood deve dar um travo amargo à recepção usualmente exclamatória que os críticos reservam ao escritor. Abaixo, os melhores momentos com o cerne dos argumentos de Wood.

Paul Auster é provavelmente o mais conhecido romancista pós-moderno dos Estados Unidos; sua “Trilogia de Nova York” deve ter sido lida por milhares que geralmente não leem ficção de vanguarda. Auster claramente compartilha [com autores modernos e pós-modernos] um compromisso com a mediação e o tomar emprestado – daí seus enredos com jeito de cinema e diálogos de segunda linha – e no entanto ele não faz nada com o clichê a não ser usá-lo.

Isso é surpreendente, a princípio, mas afinal Auster é um tipo peculiar de pós-modernista. Ou será que ele é mesmo um pós-modernista? Oitenta porcento de um típico romance de Auster procedem de modo indistinguível do realismo americano; os 20% restantes fazem uma espécie de cirurgia pós-modernista nos 80%, com frequência jogando dúvida sobre a veracidade do enredo.

(…) O que é problemático nesses livros não é seu ceticismo pós-moderno a respeito da estabilidade da narrativa, algo padrão, mas a gravidade e a lógica emocional que Auster tenta extrair do lado “realista” de suas histórias. Auster é sempre mais solene naqueles momentos de seus livros que são os menos plausíveis e os mais insípidos.

O resultado é que ele com frequência consegue o pior de ambos os mundos: realismo fake e ceticismo superficial. As duas fraquezas estão relacionadas. Auster é um contador de histórias envolvente, mas suas histórias são asserções em vez de persuasões. Elas se declaram; elas perseguem a próxima revelação. Como nada é construído de modo persuasivo, a desconstrução pós-moderna deixa o leitor em boa parte intocado.

(…) As formulações clássicas do pós-modernismo, por filósofos como Maurice Blanchot e Ihab Hassan, enfatizam o modo como a linguagem contemporânea toca o silêncio. Para Blanchot, como para Beckett, a linguagem está sempre anunciando sua invalidade. Os textos gaguejam e se fragmentam, se despedaçam em torno de um vazio. Talvez o mais estranho na reputação de Auster como um pós-modernista é que sua linguagem nunca registre esse tipo de ausência no nível da frase. O vazio é sempre muito dizível na obra de Auster. Agradáveis, algo complacentes, os livros são lançados quase todo ano, tão arrumadinhos e pontuais como selos de correio, e os resenhistas laudatórios entram na fila como colecionadores ansiosos para pegar o número mais recente.

Retirado daqui.

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Reflexões discretamente alcoolizadas sobre o Fausto de Mann

A Augusto Maurer e Ricardo Branco

A obra literária que mais me satisfez até hoje foi Doutor Fausto, de Thomas Mann. Não o defenderia como “o maior romance de todos os tempos”, é apenas o meu maior. Ele tem o formato e as qualidades dos romances do século XIX, mas é o conteúdo é moderno; ele começa como uma serena farsa, mas acaba sendo uma amostra do que se veria num inimigo intransitivo de Thomas Mann: Thomas Bernhard.

Esses dois autores têm em comum o interesse extremo pela música e, mesmo que Bernhard diga que sente desprezo por seu xará, creio que eu e vários leitores apaixonados pela música podem fazer o terceiro vértice entre eles. São estupidamente numerosos os grandes escritores que tinham — e têm — profundo amor à música erudita (bom assunto, Milton, bom assunto, anote aí), porém poucos conseguiram fazer dela personagem ou uma obsessão tão arrebatadora que as lembranças de seus livros chegam ao ponto de “ter som”. Doutor Fausto e O Náufrago. Herbert Caro, em nossos saudosos encontros informais de sábado pela manhã na King`s Discos, entusiasmava-se demais com Auto-de-Fé e Doutor Fausto, parecia conformado com sua elogiada tradução de A Montanha Mágica, e voltava a falar de Fausto e Canetti. E de música. Imagino sem medo de errar que o tradutor preferia Doutor Fausto a qualquer outra obra de Mann.

Leio Doutor Fausto como quem lê uma novela curta. Não noto nada ali que não contribua para compor a narrativa, nada me parece estéril, da primeira a última linha. As interpretações são livres, ou nem tanto. Tenho convicção de que o nazismo é um viés à narrativa. Seu assunto, e Caro falava nisso, é sobre aquilo que Mann chamava de “a crise da arte ocidental”, tanto que quem irritou-se com o livro foi a Segunda Escola de Viena, na pessoa de Arnold Schoenberg, pois o serialismo torna-se coisa do diabo… (Adrian Leverkühn NÃO se orgulharia, pois sua obra inexistente foi maior que a de Schoenberg). Lembram da nota que Thomas Mann teve que acrescentar ao final do livro, atribundo as teorias dodecafônicas ao Harmonielehre de Schoenberg, e dizendo que associou tais teorias apenas a seu personagem fictício em contexto ideacional, etc.?

Leio o livro como algo muito direto e até visceral… É um Mann raivoso e nunca repetido, nem antes, nem depois. Mann, um homem que gostaria de ter sido um compositor como Cesar Frank — palavras suas —, investe contra aquilo que estava sendo criado por sua geração. O romance é um canto de cisne bastante distorcido de toda uma música e literatura (foi mesmo?) que estava sendo abandonada e que serve ao admiravelmente ao narrador Serenus Zeitblom.

Meu respeito e, quem sabe, compreensão do livro de Thomas Mann faz com que eu releia sempre e saiba quase de cor toda a explicação do professor Kretzschmar para a Sonata Op. 111 de Beethoven, o capítulo VIII do livro. Muito mais conhecido é o diálogo com o Demônio (Cap. XXV), onde Adrian Leverkühn faz “alguns pequenos acertos” com o homem. São páginas arrepiantes e é curioso que, a partir da leitura do livro – lido quando tinha… de que ano é a tradução de Caro? … 1984? Então tinha 27 anos — passei a relacionar o diabo como algo que exala frio e não calor. Ah, as “impressões equivocadas” dos católicos… Não, nada de fogo, nada de diabinho infantil, estamos falando de um diabo real, enregelante, meus amigos!

Doutor Fausto é uma história íntima, pessoal, ontológica e só fala ao sociológico a partir desta perspectiva. Aquelas chatas argumentações que veem o livro como político — seria uma metáfora do Nazismo e da Europa pré e pós-guerra — servem para A Montanha Mágica e o pré-guerra. Acho tão complicado reduzir o Fausto a tal modelo que bocejo só de pensar no esforço que alguns comentaristas fizeram para estreitar um romance cujo assunto principal é a mortalidade a uma alegoria política. Como já disse, Doutor Fausto é profundamente ontológico, nada sociológico e, aos que ainda torcerem o nariz, gostaria de perguntar onde o serialismo tem mais a ver com a política do que com a evolução de uma arte que há anos estava passando por rápidas transformações com Wagner, Mahler, etc. e que parecia ter chegado a um estágio onde só especialistas a poderiam fruir.

Deveria seguir mais um pouco, porém, meus caríssimos sete leitores, já é meio tarde, sabem?

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Com o dedo na ferida (e comprazendo-se em mexê-lo)

A última Rascunho toca fundo em problemas da cultura brasileira. Fala sem rodeios sobre a ruindade e o comodismo da produção literária brasileira atual. Os dois articulistas — Nelson de Oliveira e Fernando Monteiro — agem diferentemente. Nelson parece não desejar muita confusão com a nova geração e a exime ao final do artigo, enquanto Fernando não recua ao habitual compadrio que rege as relações entre os escritores, aquele desagradável “eu te elogio e tu me elogias”. Trata-se de dois artigos longos onde, apesar da articulação de ambos, a melhor analogia é a linha reta que vai direto ao ponto, passando por cima de quem está no caminho. Ou uma patrola. Só que Nelson opta por uma curva no último momento. Tal pauta apenas demonstra que a Rascunho não tem o objetivo de fazer coro às bem-humoradas e sorridentes vozes de nossa literatura, quer a dissonância e, puxa, algum desconforto e novidade.

Menos amplo e mais benigno, Nelson de Oliveira escolhe um belo ponto de partida ao dizer que a história da literatura brasileira sempre mostrou conflitos entre o velho e o novo que o substituiria. Segundo ele, tal enfrentamento apenas retornou recentemente. De certa forma, Nelson é otimista, porém não creio que ele se arriscasse deste modo num meio menos efêmero que o da revista ou jornal. Ele recua até os anos 20 e de lá vem, comprovando facilmente sua tese. Fala no conforto e na cautela de nosso tempo, mas acaba por dizer que nunca houve tantas boas estreias como no século XXI. Os anos 90, iniciados por Fernando Collor, teriam sido os mais podres de todos os tempos no Brasil. Não vou entrar em cada argumento e exemplo que Nelson utiliza, mas discordo de alguns “bons autores” citados por ele. Nelson não chega ao absurdo de elogiar Marcelino Freire, por exemplo, ficando em nomes mais aceitáveis, mas escorrega e cai feio ao dizer que tais escritores escrevem para uma elite intelectual da qual fariam parte ele, eu e você, querido leitor. Acho, inclusive, que o termo “elite intelectual” é muito discutível. Estranhamente, o título do artigo é “Entre o perigo e o conforto”.

Entre os autores elogiados por Nelson estão alguns de que gosto, mas que também não são all that literature: Michel Melamed, João Paulo Cuenca, Veronica Stigger, Wir Caetano e Daniel Galera.

Já Fernando Monteiro comemora seus 60 anos no ataque. Seu artigo Acho justo que essa sociedade tenha a arte que merece me parece bem mais realista. Fernando também inicia seu artigo em ritmo adagio, falando sobre poesia e elogiando, entre outros, o site de poesia Sibila, publicações que efetivamente estão à margem, despreocupadas com um mercado que lhe virou as costas há muito tempo. A mim, interessa mais a análise da produção em prosa e aqui Fernando anuncia que perderá a finesse. E perde mesmo, apesar da nobreza do motivo. Porque a prosa está verdadeiramente regida pelo mercado e por seus escritores performáticos. Fernando critica acidamente 4 escritores que, em minha opinião, poderiam ser divididos assim: o performático Marcelino Freire, o neoperformático Fabrício Carpinejar (talvez um desistente da qualidade), o fraquíssimo Xico Sá — autor de uma nova linguagem de rua que é apenas uma boa ideia, não encontrando nenhuma literatura em seus becos sem saída — e, bem, Chico Buarque e seus treinamentos públicos.

Os dois artigos, na minha opinião, tocam fundo na questão primordial que causa todo este marasmo: as editoras e sua insistência na criação do sucesso imediato. Os mecanismos de promoção tornaram o ato público — a entrevista, a postura, a imagem, a maluquice-beleza, a excentricidade — mais importantes do que a redação, a concordância e as boas histórias. São escritores que repetem os modelos do passado. Não há sinais de um Juan José Saer — argentino, renomado professor universário radicado em Paris, um conhecedor de sua arte e da de outros –, de um Roberto Bolaño — chileno que literalmente morreu escrevendo, não que eu queira que alguém morra pela arte, por favor… –, de um Tomás Eloy Martínez!, para ficar apenas nos exemplos latino-americanos de Monteiro. Por favor, basta ver a história destes homens para se pensar que, talvez, gente séria NÃO ESCREVA no Brasil, salvo raras exceções.

E o pior é achar que eles têm razão.

Atualização das 14h15. Como o Marcos Nunes fez um comentário melhor do que o post, aqui está ele:

Volto então a Nelson Rodrigues: acho isso tudo um puta complexo de vira latas, uma herança autodepreciativa lusitana, que gerou a patetice do sebastianismo e, no brasileiro, a certeza de que, como não voltará redivivo Sebastião nenhum, e mesmo se voltasse, só faria arrebentar de vez com o que sobrou do Brasil depois de extintos diamantes e pau brasil, nós estamos fodidos e para sempre, aqui não há arte, sequer algum talento (à parte os que seguem o dito “com engano e arte vivo metade do ano, com engano e arte vivo a outra parte”, sendo a arte só a do engano, sendo o engano nosso estatuto de arte); para comprovar a tese, citamos alguns luminares vizinhos e, principalmente, os menos vizinhos, desancamos nossas editoras, o mercado e, por último e não menos importante, nosso povinho bunda, analfabeto, etc. e tal.

Enfim, todo povo tem a literatura que merece; a que temos tá de bom tamanho.

Conversa fiada.

Além disso, tenho plena certeza que a maioria dos bons autores do país são desconhecidos e até não publicados. Se devemos creditar a alguém nossa carência de bons autores, a princípio é ao “mercado”, esses administradores da indústria cultural, a mídia, que, em tudo que toca, atua como um Midas ao contrário: transforma em merda. Enfim, todo um processo de geração de valores que não deve se opor às ordens constituídas, patrimônios, famas e poderes subtraídos na forma de extração de mais-valia, a tudo transformando em menos-valia, vale-nada, inutilidades confortáveis, vagidos de metafísicos interiores girando em torno de umbigos de gênios da raça.

Não levo a mínima confiança nos “grandes autores” pelo mundo afora; este é um mundo de mediocridades fulgurantes, dependendo do arcabouço publicitário que tá atrás de ti. É como acontece todo ano com o Beaujolais (vinho?), uma bosta de bebida mas que a França exporta para o mundo inteiro como um must, sendo uma fraude. Recebemos aqui umas fraudes e abaixamos nossas cabeças, à vista dos pareceres dos grandes acadêmicos e da crítica mais balizada. O mundo nos chama de periferia, nós acreditamos e nos comportamos como tal, continuando a importar frivolidades e mandar para eles o que é mais substancial, menos nossa literatura, tida por subproduto de uma subcultura. A velha estratégia do mercantilismo se desdobra e se verticaliza: nosso lugar é lá embaixo, e pronto.

Mesmo com todo descaso das editoras, semanalmente são publicados autores brasileiros, não resenhados, não lidos, previamente esquecidos. Nunca saberemos se são bons, razoáveis ou bostejadores. Não os lemos. Eu mesmo não os leio. Tenho uma biblioteca à frente: de 100 livros para ler, uns seis de autores brasileiros. Nada demais, uma vez que o Brasil é só um país, e existem dezenas de outros com seus escritores, suas histórias, suas palavras, a merecer igualmente leitura. Mas a globalização persevera assim: de lá pra cá, muito, no sentido inverso, pouco ou nada.

Aqueles que merecem alguma consideração fazem parte de patotas de nosso mundo corporativo: egressos das mídias, do mundinho acadêmico, compadres, todos circulando no mesmo meio, fazendo fama e deitando na cama uns dos outros. Somos como que obrigados a ler Chico Buarque, por exemplo. De vingança, não lemos mais nada e metemos o pau em todos os outros mesmo assim.

Nas escolas, fingimos formar alunos, mas a má educação que eles recebem, além disso, é direcionada somente para o exercício de uma profissão, mal ou bem remunerada que seja. Com isso, suas leituras não vão além da autoajuda, dos manuais de conduta corporativa, das idéias voltadas para comprar e vender.

Todo esse lamento, no final das contas, é nada indo a lugar nenhum. A literatura no país será melhor produzida e lida quando alcançarmos um nível ao menos médio de desenvolvimento. Somos meia dúzia de pessoas supostamente cultas exigindo dos outros o que não fazemos nós mesmos: boa literatura, boas relações sociais, boa política.

Mesmo assim, insisto: gente, há, o que não há é oportunidade e contingente de leitores que suporte a ascensão de uma produção nacional praticamente submersa. No momento, os poucos que leem o fazem uns para os outros: o resto é o resto, uma maioria cinzenta, indistinta, congestionada pelo subdesenvolvimento, alheia a tudo que não seja a garantia de sobrevivência imediata. Nós os desconhecemos, eles nos desconhecem. É a tônica, uma dicotomia que nos faz utilizar categorias como elite versus povo, nós elite, eles povo, nós não povo, eles não elites.

Nos condenamos, assim, a uma discussão estéril, um método comparativo preparado para nos reduzir a pó, à submissão a critérios tão inconsistentes quanto os nossos, mas de matriz estrangeira, logo superior. O negócio é parar de colocar o rabo entre as pernas, jogar a responsabilidade alhures e sonhar que habitamos um mundo que não nos compreende. Nesse universo, estamos a fazer o papel de manés, mas pagamos por isso e batemos palminha no final, enquanto, reunidos, vaiamos uns aos outros, fazemos alianças efêmeras e ganhamos nosso dia, um depois do outro.

A merda toda é como pular fora da mera constatação. Não refletir só o olhar do outro sobre nós fingindo que é nosso olhar sobre nós mesmos. Vai ver que só com isso já dava para começar alguma coisa.

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Vidas de Santos: São Pedro Claver de Cartagena das Índias

Para A.B.C. e adega de H.O.

São Pedro Claver (1580-1654), nascido na Catalunha, é um grande exemplo para a humanidade. Ele entrou na Companhia de Jesus aos 21 anos a partir da enorme influência que sofreu de Alfonso Rodriguez, porteiro do Colégio de Mallorca. Ordenado sacerdote em 1616, quando já em missão na Colômbia, exerceu até a morte um difícil apostolado entre os escravos negros de Cartagena, importante porto daquele país. Converteu e batizou mais de 300.000 escravos.

Quando os negros chegavam da África nos fétidos porões dos navios negreiros e eram loteados entre os compradores, sempre sobravam alguns que não serviam para nada, na opinião dos clientes. “Muito fraco!”, “Doente!”, “Maus dentes!”, “Gangrenado!”, “Mutilado!”, “Inútil!”, gritavam os senhores adquirentes para os pobres africanos que não os entendiam. Mas São Pedro Claver pensava diferente. Os doentes, os magérrimos e os enlouquecidos pelo sofrimento eram aqueles sobre quem o santo trabalharia para mostrar a grandeza do Deus romano àqueles bárbaros incultos. Eles eram recolhidos pelo dedicado Pedro pelas ruas úmidas de Cartagena. Outros, mesmo lazarentos e magros, eram comprados a baixo custo pelo olho clínico do santo, que lhes antevia um longo porvir.

Primeiramente, Pedro tentava recuperá-los para o trabalho. Muitos, apesar das novidades — alimentação, local seco para dormir e tratamento vip –, morriam e eram lamentados rapidamente em latim antes de irem para a vala comum. Outros, para a felicidade dos missionários e grandeza de Deus, recuperavam-se e podiam voltar a trabalhar. Porém, sobre todos ele, sem exceção, Pedro fazia seu trabalho de evangelização, ensinando-lhes latim e mostrando-lhes os ensinamentos e os caminhos de Cristo. Muitas vezes, ao observar o estranho rebanho de negros agradecidos — muitos seminovos em perfeito estado, alguns mancos e outros com seqüelas piores –, o coração de Pedro Claver confrangia-se.

Havia os que recuperavam inteiramente suas forças. A estes, era imediatamente concedida a graça do retorno ao mercado de trabalho. Ficavam ativos com a finalidade de demonstrar suas qualificações aos compradores potenciais. Orientados pelos padres, trabalhavam na construção de mais Casas do Senhor, pois, na inculta região onde estavam, não havia ainda igrejas belas e ricas através das quais podia-se sentir com maior plenitude a Glória do Deus de Roma. Aquilo funcionava como um grande show-room: os negociantes viam os negros na labuta, examinavam o resultado de seu trabalho conjunto, davam uma rezadinha básica e fechavam ou não a compra. Aquelas transações tinham o claro sentido de aumentar o capital da igreja para a Glória de Deus. Aos outros, mutilados, incapazes ou fracos, eram ministrados maiores latinórios e permaneciam com os missionários. Serviam para muitas tarefas. Alguns, de constituição delicada, serviam a Deus como faxineiros, trabalhavam nos jardins ou tornavam-se assessores pessoais dos padres.

Claro que as maledicências não tardaram. Um português dono de uma pequena frota de navios negreiros, chamado Beonardo Bofe, ficou muito enfurecido com a venda de material recondicionado (que considerava em parte seu) e quis acabar com aquilo denunciando as ações do santo. O único resultado que obteve foi o de ser silenciado pelo fogo santo dos representantes de Roma. Como ganho secundário, viu — aqui, o verbo ver é utilizado de forma severamente metaforica pelo autor destas linhas — o nome de seu opúsculo figurar no Index Librorum Prohibitorum.

Porém, as ruas quentes de Cartagena eram mais difíceis de controlar e irrefreáveis comentários passaram a dar conta de que São Pedro Claver costumava utilizar os negrinhos mais delicados e coleantes numa espécie de harém sem mulheres montado às margens do Caribe. Também as más línguas de Cartagena acusaram os padres de fazerem entrar no recinto “dominado pelo Diabo” — e certamente imaginário, pois gente inculta, ignorante, má e faladora encontra-se em todos os cantos desse mundo dominado por Deus -– os filhos mais bonitinhos dos escravos. Os comentários maldosos diziam que os negrinhos despiam-se para os padres, mas creio seja absolutamente natural o fato de que religiosos analisem detidamente a perfeição da maior criação divina, o homem, representada por seus mais belos espécimes. Estou aqui com toda a documentação necessária para rebater as acusações que se fizerem ao santo. Há registros fidedignos de aulas e mais aulas de religião e latim que os pequenos efebos recebiam. Tenho comprovações de que eles, quando cresciam e terminavam sua formação religiosa, diziam frases em latim, divertindo-se pelas ruas. Anotações autênticas daquele período demonstram que os meninos recitavam ladainhas como Vox Copuli e Pubis Pro Nobis e acabavam trabalhando em casas de reuniões noturnas freqüentadas por navegadores e negociantes daquele mar. Serviam, na verdade, como intérpretes da babel de línguas que aquelas casas recebiam. A apreciável técnica da tradução por chuchotagem principiou naquela época, em plena Colômbia caribenha. Tudo isto é atestado por farta documentação que não mostro aqui por falta de espaço.

A prova maior era que na Casa dos Negrinhos não entravam prostitutas. É óbvio que aqueles bem formados e torneados jovens africanos não tolerariam a presença do pecado morando ao lado.

É, portanto, notável a contribuição de São Pedro Claver no desenvolvimento da região de Cartagena, conforme podemos conferir a seguir através de suas principais realizações, que esquematizo para que nossas crianças possam abordar com maior facilidade a vida deste grande santo:

1. Recuperou milhares de negros doentes e mutilados.
2. Construiu grandes obras que aumentaram o patrimônio da Igreja Católica.
3. Aqueceu a economia local com negros recondicionados.
4. Salvou negros que morreriam por falta de um responsável.
5. Formou como tradutores-intérpretes os negros jovens mais agradáveis que chegavam machucados à Cartagena. Especialidade: a difícil arte da chuchotagem.
6. Converteu e batizou 300.000 escravos.
7. Inventou a sauna.

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Aqueles dois, de Caio Fernando Abreu

Idelber Avelar propõe hoje a leitura de Aqueles Dois, de Caio Fernando Abreu, em seu Clube de Leituras.

O conto narra a história de uma amizade ou amor interrompido. São dois homens — Raul e Saul — que vão trabalhar numa cidade pequena após serem aprovados em um concurso. Não conhecem ninguém na cidade, são solitários, altos, elegantes e ambos vêm de relações frustradas com mulheres. Um dia, Saul atrasa-se para o trabalho. Motivo: ficou vendo um filme até tarde e não conseguiu acordar a tempo. A princípio não deseja comentar o fato, porém, provocado por Raul, fala sobre o filme e abala-se (verbo utilizado por Caio) ao notar que ele poderia ser a exceção naquele “deserto de almas” — lugar comum igualmente utilizado por Caio com medida ironia. Começam a conversar sobre cinema, depois sobre música, artes plásticas; enfim, passam a conhecer-se.

Quando li o conto pela primeira vez, sua lentidão pareceu-me exasperante. Ontem, ao lê-lo, achei-o até rápido. Talvez esta impressão seja causada por uma leitura da qual já se saiba o resultado, da qual já se conheça a história, mas acho que estaria mais próximo da via certa se dissesse que pressenti o que desejava o Idelber. Ora, sei que o conceito de Ricardo Piglia de que todo conto narra duas histórias é muito caro a ele. Eu não discordo, apenas acredito que tal teoria seja algo mais antiga do que Piglia.

A teoria de Piglia é muito semelhante à forma sonata da música erudita. Neste gênero de composição há a apresentação do primeiro tema (a solidão dos dois, o emprego, a disponibilidade, a amizade), depois a apresentação do segundo tema (a possibilidade do amor, da criação de uma situação mais confortável, de “redenção”). Mostrados os temas, eles passam a se relacionar, a se misturar, algumas vezes quase criando um terceiro, mas deixando sempre presentes — em forma resumida — os temas iniciais (as pequenas cenas de trabalho / a continuidade da amizade, a noite dos cigarros / a volta ao emprego e a síntese: os cabelos molhados/a repartição), aos quais se retorna sempre, seja de forma resumida ou não, decidida ou não, ou misturados ou não.

No conto de Caio o primeiro tema invade e mata o segundo quando da intervenção do ambiente da cidade. Ao preconceito não interessa saber se os dois trepavam; o preconceito não discute, apenas exige que o senso comum seja cumprido. Os dois colegas não podem chegar juntos e de cabelo molhado ao trabalho. Você pergunta: eles não deveriam saber disso? Pode ser, só que, enquanto o preconceito já decidiu que aquela amizade com visitinhas aqui e ali não lhe serve, eles ainda não saíram do armário. É-lhes cobrada uma disciplina formal que ambos escamotearam ao ignorarem que aquilo poderia ser finalmente o amor. Por que se preocupariam em esconder o que, afinal, ainda não existia? E sobrevém a punição, com os dois demitidos sob medíocres risos de vingança.

O bom do conto é a armação dos dois conflitos — o interno e o externo. Não há muito além disso. Aliás, também não há muito além disso em Missa do Galo. Machado arma uma situação cujo proveito passa encilhado. É como se diz aqui no sul do Brasil: “Cavalo encilhado não passa duas vezes” ou “Cavalo encilhado só passa uma vez na frente da porteira”. Sim, eu sei, ele pode passar duas ou dez vezes, mas para o casal da Missa e para Estes dois só passou uma vez.

(Dou-me conta agora que Caio não dá destino a seus personagens. Então pode ser que o cavalo tenha sido montado pós-conto. Talvez Aqueles Dois seja pré-coito…).

Idelber chama a atenção sobre como a periferia auxilia a história: os títulos das canções e do filme que os fez conversar (Infâmia), o nome do gato (Gato? Que gato? Só lembro do sabiá Carlos Gardel! Acho que foi um ato falho de nosso mestre: o conto é tão casto que ele, na falta de outros manjares, acabou comendo o passarinho através de um gato imaginário. Falando sério, não lembro de gato nenhum!), etc. Concordo, em qualquer grande obra, o contexto empurra importa e significa e, dentro desta periferia cheia de significados, faço questão de destacar o contexto da primeira conversa mais íntima, o do primeiro café:

aquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais do que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica…

É.

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Uma abordagem pessoal ao Abecedário de Pound

Durante a adolescência, apaixonei-me tão perdidamente pela literatura, que tinha certeza de que o único destino possível para mim era o de tornar-me escritor. Era capaz de ler livros diariamente por mais de 6 horas. Na época não confessaria isto nem sob tortura, mas minha dedicação era uma meticulosa preparação para o futuro. Queria abordar o maior número possível de obras e fazia-o de maneira sistemática, a fim de alargar pouco a pouco meus conhecimentos. Minha família preocupava-se discretamente com aquele filho maluco que só queria saber de livros, mas como eu era manso, minha situação não lhes assustava muito. Kafka dizia que, fora da literatura, pouca coisa o interessava; a mim também, naquele tempo. Depois, muita coisa mudou, mas fiquemos em Pound.

Nunca me interessei muito por poesia, dedico-lhe um tempo ínfimo se comparado àquele que dou a prosa. Fiquei feliz quando soube que Dostoiévski, Balzac, Bellow, Thomas Mann e outros eram assim também. Porém, no âmbito daquela minha preparação para o futuro, li um ensaísta-poeta que foi fundamental para meu entendimento de literatura. Ele havia caído em desgraça nos meios universitários dos anos 70. Vivíamos sob ditadura militar, todos os intelectuais respeitados eram de esquerda; mas, apesar disto tudo, eu precisava conhecer Ezra Pound, um dos escritores que deram apoio ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial.

Seu ABC da Literatura (Cultrix, 1973), traduzido por Augusto de Campos e José Paulo Paes, foi adquirido e lido por mim em agosto de 1976. É um pequeno livro, escrito quase em forma de panfleto, onde Pound prova, através de teoria simples e de muitos exemplos, que a poesia é tanto melhor quanto mais significados contiver. O ABC comprova que a melhor poesia é a mais saturada de significados e nos explica sobre a sabedoria da língua alemã, onde dichten (condensar) é o verbo alemão correspondente ao substantivo Dichtung, que significa “poesia”. “Grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”, escreve Pound. Após curtas explicações teóricas, Pound nos demonstra suas teses com excertos. Estes tomam metade do livro e são a prova cabal de que sua teoria foi criada sobre fatos literários, não sobre fatos imaginados.

Ezra Pound (1885-1972)

Os prosadores também tiraram vantagem da condensação. Alguns, além de utilizarem uma linguagem limpa, quase livre de adjetivações – como Kafka e Borges, por exemplo – se utilizam de situações que falam. Isto é, os personagens são colocados em determinadas situações que auxiliam a narrativa ou a contradizem. Este é mais um elemento a condensar significados, pois acrescenta mais informação àquela que nos chega através dos meios tradicionais: texto e diálogos. Este seria o máximo de condensação em prosa, pois além da linguagem enxuta e multi-significante tomada da poesia, há todo um contexto apoiando a narrativa. Também o cinema, a partir da nouvelle vague, passou a “treinar” o público para este tipo de abordagem, na verdade tão antiga quanto Shakespeare.

Condensar não é tão fácil quanto parece. “A incompetência se revela no uso de palavras demasiadas”, diz Pound. Parece fácil eliminar as excrescências de nossos textos, mas como fazer para que os significados se multipliquem? Pound não nos deixa à deriva e também investiga os modos através dos quais as palavras podem ser carregadas de significado.

Porém, a teoria de Pound tem limites. Se alguém censurasse Dostoiévski, Bernhard ou Stendhal pela incrível profusão de repetições e detalhes que seus livros contêm, poderia ser chamado tranqüilamente de doido. Nestes casos, as minúcias criam o ambiente da ação ou servem para caracterizar o pensamento de alguns personagens. Dostoiévski escreveu no plano de Crime e Castigo: encher a narrativa de detalhes e repetições! O mesmo vale para o ultra-verboso e barroco Saramago. Nestes autores, o excesso trabalha a favor da trama. Que bom que seja assim! Se a boa literatura fosse apenas aquela que melhor adere a cânones pré-definidos, tornar-se-ia uma simples competição entre virtuoses e morreríamos de tédio. É excelente que os bons autores insistam em agir como aquelas cozinheiras talentosas e corajosas que mudam as receitas durante a preparação dos pratos. Agindo assim, acabam por cometer tanto erros lamentáveis como gloriosos acertos.

Ou seja, sei lá. Cada um faz do seu jeito.

COMENTÁRIO EXPOSTO AO MILTON E AOS SEUS LEITORES (por Paulo José Miranda)

Bom, pensei demoradamente antes de escrever este comentário: pensei um minuto. Para mim, um minuto é muito para pensar, quando se trata da minha vida e não de filosofia, de poesia, de literatura ou de arte. Aí, sim, demoro-me a pensar. Julgo que a vida não foi feita pra pensar. Na vida age-se. Talvez por isso tenha vivido em tantas e tão estranhas partes deste mundo. Ao ponto de a minha casa ser a internet. Não é certo encontrarem-me em outro lugar. Por isso agradeço tudo quanto posso ao Senhor Tim Berners-Lee pela sua infinita generosidade, ao inventar ao WEB e não ter registado direitos, isto é, ter feito da WEB um espaço gratuito. Assim, devido a esse senhor, hoje todos me podem encontrar em meu e-mail e sites. De tal modo é assim que, aquando do meu projecto America-is, o senhor e fotógrafo Francisco Huguenin Uhlfelder anunciou os membros envolvidos no projecto e as suas localizações deste modo: A em Munique, B em Itália, C em Nova Iorque, D em Lisboa e E(u) num http://etc. Tudo isto por causa de não pensar mais de um minuto em relação à minha vida, aos acontecimentos da minha vida.

Depois desta explicação acerca do meu minuto, passo ao que verdadeiramente aqui me trouxe: o post do Milton. Não me parece que este post seja melhor do que alguns outros, mas é seguramente pertinente por várias razões: 1) apresenta um cânone poético-literário que se propõe, depois, não a destruir, mas a relativizar; invoca, sem medo, a filiação política de Pound, assumindo que isso nada interfere no seu juízo de gosto, pois se não gosta dos poemas é por razões estéticas, que não impedem de apreciar ao limite o seu ABC; por fim, mas não por último, mostra a angústia de um homem à beira de ser escritor (estamos sempre à beira quando o mundo não nos reconhece). Ninguém é escritor na sua rua, embora possa ser na gaveta. Contrariamente ao Milton, li muito pouco durante a minha infância e durante a minha adolescência. Li, mas li pouco. Nem sequer alguma vez tive alguma vez a ideia exotérica de querer ser escritor. Quis ser músico! Músico como o nosso (meu e do Milton e de muitos outros) muito apreciado Thomas Bernhard. Mais tarde, falhado o objectivo músico (o talento dava pra ser um razoável executante e um pouco menos razoável compositor) quis ser filósofo. Filósofo depois de falhado o projecto de músico, como já tinha acontecido com alguns filósofos. Depois falhei também neste projecto, embora tenha sido um aluno bastante acima da média, o que daria pra ser um professor mediano na faculdade, nunca como os mestres que tive: António C. Caeiro, Mário Jorge Silva Carvalho, Nuno Ferro, Maria Filomena Molder, José Gil. A poesia surgiu nos intervalos da filosofia. Quando acabei filosofia editei um livro de poesia, A Voz Que Nos Trai, que acabou por ser premiado com o Prémio Teixeira de Pascoaes. Por causa de uma mulher comecei ou recomecei ou comecei, não sei, a escrever prosa. Esse primeiro livro Um Prego No Coração acabou por despertar a atenção do melhor poeta português vivo, que me teceu os maiores elogios e que, por causa disso, me levou á publicação de outros livros de prosa. O segundo, Natureza Morta, levou-me a arrebatar o primeiro Prémio José Saramago que, para além do prestígio me concedeu também cerca de 25 mil euros. A partir daqui aceitei que era escritor. Acabei por ser escritor por ter falhado em tudo o que me havia proposto anteriormente. E não foi sem resistência que um dia, ao olhar para o espelho, disse a mim mesmo: “é assim, pá, és escritor, aceita!” E aceitei. Hoje, volvidos 6 ou 7 anos, sei por que sou escritor e não sou poeta, contrariamente ao que alguns amigos julgam. Nós somos qualificados por uma profissão ou um mister quando grande parte do nosso tempo é passado aí. Ora, eu passo quase tempo nenhum na poesia, quase nada, apenas um pouco mais do que passo a pensar na minha vida. Quanto à literatura, passo quase a minha vida toda. Desde que aceitei aquilo que era, escritor, quase não faço mais nada senão pensar, pensar, pensar, pensar. Não penso em escrever. Penso e escrevo. Penso e escrevo. Penso e escrevo. E assim vai.

Em Portugal temos uma expressão antiga que é: De Espanha nem bons ventos, nem bons casamentos. Poderia aplicar a mesma expressão a Pound. Nunca consegui apreciar-lhe os versos, nem a sua inteligência literária. E asseguro que não se trata de preconceito político, pois tal como o Milton também não misturo alhos com bugalhos, embora isto seja uma discussão enorme. Por outro lado, estou bastante longe de ser um intelectual de esquerda. Não há razões políticas a atrapalharem-me o juízo estético, pronto! Serei a última pessoa a pôr em causa o talento poético ou qualquer outro de Pound. Mas não é pra mim. Quanto à sua teoria, é tão ridícula quanto as teorias que orientavam Eça de Queirós quando escrevia os seus romances. As teorias eram ridículas, mas o talento de Eça, não. Eça é um escritor excelente, um escritor que aprecio imenso. Mas não as suas teorias, não aquilo em que literariamente ele acreditava. Provavelmente passa-se o mesmo com Pound, mas eu não sou permeável. Milton expõe sucinta e eficazmente a teoria do senhor Pound, no seu post, mas depois relativiza a sua verdade. O problema, para mim, é que a verdade não é relativizável, se me permitem o neologismo. À primeira leitura, parece que o Milton quer ficar bem com Deus e com o Diabo, com Pound e com Bernhard. Quem já leu Extinção, de Bernhard, sabe que isso não é sequer possível de ser pensado. Nesse livro, a páginas tantas, lá pras trezentas e muitas, pelo menos na minha edição inglesa, ele expõe, através do narrador, a sua teoria literária. Qual a grande diferença? Primeiro porque ela é teoria dentro de um livro de ficção, isto é, não pode ser lida independentemente desse facto. Não se trata de um ensaio, ou sequer de um artigo, trata-se de algo maior: o coração de Bernhard. E o coração do autor é exposto, mostrado em duas linhas: exagero e repetição. Mais: exagero de repetição. Podemos viver uma vida, ou várias, amando Pound e, depois, outras vidas amando Bernhard, mas não podemos amá-los em simultâneo. Peço desculpa a todos, mas não se pode gostar do Grémio e do Inter! Sei, a arte não é futebol. Pois não, pois não, mesmo. É muito mais vital. Jogamos a nossa vida nela. Eu, pelo menos, jogo a minha vida nela. Assim, amar um cânone e desprezar outro é muito mais vital para mim do que amar o Tremendo FC Porto e desprezar o Benfica. Quero que o Benfica perca todos os jogos, apenas isso. Mas quero muito menos ao cânone de Pound: quero que ele se escafede todo; quero que o cânone do senhor Pound não veja sequer a luz do dia; quero que morra (não a sua poesia, mas a sua teoria). Por outro lado, julgo que Milton não está a defender o “convívio” entre teorias irreconciliáveis. Milton está a dizer que não “reconhece” nenhum cânone. E isto, sim, é perigoso. Não há um escritor que seja que não escreva por causa de um cânone, ainda que o modifique, claro. Mas quem é que pode modificar uma receita (para usar o exemplo dado pelo Milton) senão quem sabe cozinhar, quem seguiu, até à modificação da receita, um determinado cânone? Suspeito que só se pode escrever bem contra Deus, contra a ciência, contra a vida, contra si mesmo. E para estarmos contra, temos que estar, erradamente ou não, certos de que há um caminho melhor do que todos os outros. Só assim Bernhard pôde escrever tão bem como escreveu.

Sou leitor assíduo das crónicas do Milton. Algumas são excelsas. Algumas são maçadoras. Mas todas são bem escritas. Se não julgasse assim, não o tinha convidado para fazer parte do Cidades Crónicas. Mas, para ser melhor ainda, aconselho-lhe, se posso, se ele me permite, que se assuma literariamente. Apetece-me dizer-lhe: “Milton, pá, escreve como se tivesses a dizer mal do Grémio!” E dizer mal do Grémio (que eu prefiro ao Inter) não implica não dizer bem. Pois acaba-se por dizer bem nem que seja desses tomatinhos de conserva do Inter. Eu, que nunca quis ser escritor, e que acabei por ser; foi o que restou pra eu ser, estou convicto de que é daqui que vem a força da minha escrita: escrever contra o que não foi a minha vida, isto, contra todos os meus falhanços, escrever contra mim. Eu sou eu mesmo o meu Benfica. Quero ouvir o Milton dizer: “Eu sou eu mesmo o meu Grémio.”

Abraço forte ao Milton e aos seus leitores,
Paulo José Miranda

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Por que Dostoiévski é diferente?

Durante minha adolescência e após, quando era um estudante universitário com bastante tempo livre — ou, como diria Kafka, com mais energia do que necessidade de produzir –, passei um longo tempo lendo clássicos. Houve alguns autores que ataquei de forma sistemática, pois minha expectativa a seu respeito era muito alta. Foi o caso de Dostoiévski. A leitura de todas as suas obras em ordem cronológica constituiu-se numa experiência inesquecível. Como literatura e visão de mundo, foi algo arrebatador, chocante mesmo. Ele era um escritor… diferente, mas eu não imaginava o motivo disto. Se a aventura de lê-lo jovem nos causa profundas marcas emocionais, também tolhe-nos, pela inexperiência, a análise das razões de tal assombro.

Após este período, já aos 24 anos, li um livro que investigava os procedimentos ficcionais do escritor russo e aquilo que neles havia de original. Problemas da Poética de Dostoiévski, de Mikhail Bakhtin, é uma obra complexa, mas que vale o investimento de tempo, pois analisa o tratamento que o autor dá a cada ponto de sua literatura. Procurarei resumir um dos capítulos deste livro: A Idéia em Dostoievski, pois em minha opinião, nele está descrito o que há de mais surpreendente em sua obra e, talvez, o que mais seduz seus leitores.

Primeiramente, Bakhtin nos fala de Sócrates e sobre a natureza dialógica da idéia. Segundo o grego, o habitat natural das idéias é diálogo. A idéia internalizada é algo inútil e morto; porém, se a mera divulgação de uma idéia já a altera pelas limitações da linguagem e de quem a expressa, imaginem as transformações que nela ocorrem quando em choque com outras. O diálogo socrático influenciou tanto Dostoievski que ele direcionou sua arte no sentido de tornar-se principalmente um regente de personagens, retirando de seu texto a voz onisciente (que tudo sabe) do autor. Seu objetivo era o de deixar suas criaturas livres e de colocar-se à altura delas, nunca acima. Para fazer isto, o escritor tinha de converter seu pensamento numa arena na qual as diversas vozes do romance lutavam, sofriam, amavam, decidiam e se debatiam, sempre com lógica interna e verossimilhança – mas sem a aparente mediação do autor. Não é fácil. Com esta disposição, Dostoiévski coloca-se como um criador de biografias pessoais e de situações que falam simbolicamente por si mesmas; mas que, pronto isto, parece deixar seus personagens livres, agindo e opinando de forma independente, enquanto anota o que dizem.

A tal projeto artístico, a esta quase insanidade de tornar sua obra uma arena, temos que acrescentar o fato de que Dostoiévski dá razão a todos e a ninguém, pois NUNCA EMITE JULGAMENTO DEFINITIVOS. O escritor-voz-da-razão, o que elabora belas teses e aforismos infalíveis foi misturado a seus personagens. Dostoiévski não é divino nem definitivo. O realismo o obrigou a isto.

A partir de Crime e Castigo – isto significa eliminar apenas as obras da juventude – só se conhecem as idéias de cada personagem, não a clara opinião do autor sobre elas. E muito menos se saberá quem o representa dentre os personagens. Ele não nos deixa pistas claras, pois permanece não distante, mas eqüidistante. Some-se a isto uma imensa capacidade de observação, um talento artístico ímpar e o fato do homem ser um manancial de preocupações éticas muito a frente de seu tempo, e estaremos no caminho de entender porque Dostoiévski é tão apaixonante.

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Entrevista (Literatura de Mercado)

Abordagem Nº 2 ao fracasso da literatura.

Na próxima sexta-feira, se até lá não descobrirem que sou um embusteiro, uma turma do curso de Letras da PUC-RS fará uma entrevista comigo. Enviaram-me uma série de perguntas para me servir de roteiro e, acho, para que soubesse onde pisaria. Espero que sejam bonzinhos e não me retalhem. O assunto é a chamada “literatura de mercado” versus a “literatura artística”.

1) Qual a sua opinião sobre a literatura de mercado? Ela é literatura?

Antes de responder, acho que devo tentar definir o que é literatura. Na minha opinião, literatura é tudo que é lido como literatura por determinado grupo de pessoas. É aquilo que desperta a imaginação do leitor e lhe provoca emoções de índole literária, sentimental, matemática, lógica, de curiosidade, etc.

Eu, que adoro matemática e até fiz faculdade na área, acho alguns teoremas modelos de concisão e elegância. Para mim, são como poemas. Sei que o tipo de emoção causada por eles é semelhante à poética. Seria literatura? Sim, se forem lidos como tal.

Porém, de forma geral, literatura é a arte que usa a palavra como matéria-prima. Então, considero válida a literatura oral – afinal, foi início de tudo! – mas, para ser literatura, o texto tem que ser escrito com a intenção de provocar efeito estético. Talvez Paulo Coelho provoque efeito estético em seus leitores, certamente pessoas cujos modelos e exigências são muito limitados. Eu preferia dizer que não é literatura, mas, infelizmente, penso que seja, ao menos para aqueles a quem se destina. Mesmo Sidney Sheldon, que talvez escrevesse seus livros sob determinadas fórmulas comerciais, não preocupando-se com nenhum refinamento de forma ou conteúdo, talvez provoque emoção literária em gente idiotizada. A Bíblia também pode ser considerada literatura porque, para quem acredita ou vai acreditar, causa efeito estético, emoção… O que fazer? Tudo aqui, como aliás em qualquer campo do conhecimento, é complexo e depende da interação com o outro, com o receptor.

Mais: a literatura, em minha opinião, engloba tudo, de crônicas do dia-a-dia até a poesia mais diáfana, passando por obras de não-ficção cuja construção textual ultrapasse a simples função informativa. O raso ou o profundo dependem da qualidade do leitor.

2) Quais as razões do sucesso desse tipo de literatura?

Ora, o marketing estuda como chegar à boa vendagem e ao lucro. Eu não entendo de marketing, mas creio que o livro – capa, conteúdo, lançamento e divulgação – obedeça a um cuidadoso esquema pré-estabelecido. O marketing cria a ilusão de necessidade no consumidor. Confunde e funciona.

3) Por que Paulo Coelho é o escritor mais bem sucedido do país? Qual é o valor literário de sua obra? O que falta aos seus romances?

Eu não li Paul Rabbit, só trechos. O mundo me contra-indicou e sou um bom menino. Certa vez, vi o Prof. Cláudio Moreno lendo e indicando erros num trecho de um romance dele. Era uma prosa miserável, não preciso daquilo. Ah, enquanto cortava o cabelo, li numa Playboy que ele sabia como não sair numa fotografia, mesmo que tenha sido clicado. Ou seja, talvez o caso de Rabbit não seja literário, mas médico.

4) Acredita que a literatura de mercado tem como mérito a formação de novos leitores?

Apenas de forma casual. Eu e meus dois filhos, por exemplo, desde pequenos, sempre rejeitamos intuitivamente a literatura de má qualidade. As crianças logo identificaram o que não era bom. Então, não passamos por essa fase. Ao menos a nós, a literatura de mercado não formou.

5) A literatura menor pode ser uma forma de introduzir a população arredia à leitura a obras maiores?

Os livros conversam entre si. Um cita o outro. Talvez alguém chegue a algo maior através de Paulo Coelho, por exemplo, mas depende da sorte ou de si mesmo. Acho que nós temos a tendência a pensar que mandamos nos leitores, que ele tem que ser orientado, mas não é assim. É só mostrar ao leitores potenciais que existem coisas de todo tipo. Ele escolhe o que desejará ler e se desejará.

6) “A cada ano, morrem setenta leitores e apenas dois são substituídos. Eis um modo bem fácil de visualizar a questão”, Roth disse. Por “leitores” ele entende pessoas que lêem livros sérios regular e seriamente. A prova de que “a era literária chegou a seu final está por toda parte”, ele afirmou. “A prova é a cultura, a prova é a sociedade, a prova é a tela, a passagem da tela do cinema para a tela da televisão e para a do computador. Não temos muito tempo, nem muito espaço, e poucos hábitos mentais determinam o modo como as pessoas usam seu tempo livre. A literatura exige um hábito mental que desapareceu. Exige silêncio, algum tipo de isolamento e a concentração continuada na presença de um fator enigmático. É difícil apreender um romance maduro, inteligente, adulto. É difícil saber o que fazer da literatura. Por isso digo que dizem coisas estúpidas sobre ela, pois, a não ser que as pessoas sejam suficientemente educadas, elas não sabem o que fazer dela.”

REMNICK, David. Dentro da floresta: perfis e outros escritos da revista The New Yorker.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Muito apocalíptico este Sr. Remnick. Discordo dele. A boa literatura irá sim recuar, recuar, e virará coisa de especialistas e de gente inteligente, que se diverte com coisas mais complexas e que pode ouvir a música de um texto misturada a múltiplos significados, nem sempre claros. A sensibilidade não irá morrer, mesmo que a educação seja uma porcaria. E, quem conseguir se destacar como autor desta rarefeira confraria, até ganhará dinheiro, penso. Cresci ouvindo falar na morte do romance e do rock n`roll. Mas eles vivem de suas crises e estão aí. O mesmo, penso, ocorrerá com a literatura de arte.

7) Qual é a sua opinião sobre o público leitor sério existente no Brasil: ele está crescendo ou diminuindo? A criação de literatura de qualidade está fadada ao desaparecimento?

Não sei se cresce ou não, mas não desaparecerá. Só se pessoas como nós desaparecerem. E a gente se reproduz…

8. Existe literatura de mercado direcionada a grupos especiais, como indivíduos de um determinado sexo ou nível cultural?

Não sei.

9) Você gostaria de apresentar outra discussão sobre o tema literatura artística versus literatura de mercado?

Sim. A decadência é geral. O cinema é menos do que uma sombra do que foi no passado e nesta área é ainda mais complicado, pois há a intervenção direta de muita grana, de investimento pesado. Pensem que nos anos 70 tínhamos Bergman, Buñuel, Fellini, Visconti, Antonioni, Kurosawa, todos ativos; quem são seus análogos atuais? O cinema foi infantilizado a fim de buscar mais espectadores. Grandes investimentos, grandes lucros – é do capitalismo. O cinema hoje, principalmente o americano, não significa nada em termos de arte. Outra crise? A música brasileira tinha Tom, Chico, Milton, Gil, Edu Lobo, Caetano em pleno auge, no mesmo período. Olhe a cena de hoje: Guinga é um compositor quase secreto, Mônica Salmaso é uma cantora desconhecida. Voltando ao cinema, onde estão Hal Hartley e Kusturica? Estes mal conseguem fazer filmes e, quando conseguem, talvez não tenham distribuição… Ou seja, não adianta a literatura achar que é a única desgraçada, pois o marasmo e a vulgaridade grassam.

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