Jair acordou a meio da noite. Mandara colocar uma cama dentro do closet e era ali que dormia. Durante o dia tirava a cama, instalava uma secretária e recebia os filhos, os ministros e os assessores militares mais próximos. Alguns estranhavam. Entravam tensos e desconfiados no armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo. Interrogado a respeito pela Folha de São Paulo, o deputado Major Olimpio, que chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: “Não estou sabendo, mas não vou entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.”
Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da Alvorada. Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: “Alvorada é coisa de comunista!” — Esbravejara: “Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.”
O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra, umas vezes saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.
Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trêmulas procurou a glock 19, que sempre deixava sob o travesseiro.
— Largue a pistola, não vale a pena!
A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano. Jair segurou a glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua frente:
— Quem está aí?
Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos. Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos olhos vermelhos e acusadores:
— Porra! Quem é você?
— Tenho muitos nomes. — Disse o velho. — Mas pode me chamar Anhangá.
— Você não é real!
— Não?
— Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!
O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele. Mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelas comissuras dos lábios:
— Em todo o caso, sou seu sonho mau. Vim para levar você.
— Levar para onde, ô paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.
— Vou levar você para a floresta.
— Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que acho da Amazónia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as cores, e não tem reacção alérgica. Nióbio é muito mais valioso que o ouro…
O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado — era uma onça enfurecida, lançando-se contra o presidente:
— Acabou!
Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:
— Você não pode me deixar aqui. Sou o presidente do Brasil!
— Era. — Rugiu Anhangá, e foi-se embora.
Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o presidente. Não havia sinais dele. “Cheira a onça”, assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério. Ao saber do misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio. Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio. Os artistas e escritores soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os cientistas soltaram um fundo suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio. Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas do Recife, soltaram um fundo suspiro de alívio. As mães de santo, nos terreiros, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os índios, nas florestas, soltaram um fundo suspiro de alívio. As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio. O Brasil, enfim, soltou um fundo suspiro de alívio — e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.
* Publicado originalmente na revista “Visão” de Portugal.
As Academias de Sião, de Machado de Assis, dá pano para muitas mangas, apesar de não ser um de seus maiores contos. O pano para as mangas é tecido ao longo de um plot mais do que original para a época: as academias de Sião tentavam resolver um peculiar problema: “Por que é que há homens femininos e mulheres masculinas? O que as induziu a discutir isso foi a índole do jovem rei. Kalaphangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais esquisita feminilidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um cordial horror às armas. Os guerreiros siameses gemiam, mas a nação vivia alegre, tudo eram danças, comédias e cantigas, à maneira que o rei não cuidava de outra coisa”.
Uma das academias venceu, a que declara que a alma é sexualizada. E ela extermina (literalmente) as outras. Kinnara, a mais bela concubina do Sião era uma mulher máscula: “Um búfalo com penas de cisne”. Kinnara convence o rei para que suas almas troquem de corpo por seis meses. Cumprido o prazo, cada uma seria restituída ao corpo original. A fábula de Machado pega emprestado temas orientais, sobretudo hindus. Basta lembrar o parentesco do conto com a “história hindu” de Thomas Mann As Cabeças Trocadas, onde há um personagem belo, mas com um corpo magérrimo, e outro feio, mas de belo corpo. Em Mann, há a troca de cabeças; em Machado, a de almas.
Após a troca, Kalaphangko, ou o corpo do rei agora com alma de Kinnara cuidou da fazenda pública, da justiça, da religião e matou uns tantos que não pagavam impostos. “Sião finalmente tinha um rei”, afirma Machado. Já a alma do rei “espreguiçava-se todo nas curvas femininas de Kinnara”. Sim, Machado de Assis diverte-se sempre conosco. E nós com ele.
O conto parece indicar que a alma masculina seria mais ativa e racional, enquanto a feminina seria passiva e emocional. Mas Machado de Assis não está aqui criando teses e sim controvérsias e boas piadas. Um pouco mais sobre Kinnara. Quando há a troca de almas, ela passa a um plano secundário e Kalaphangko planeja matá-la para não desfazer a troca, porém ela revela estar grávida e o rei sente-se incapaz de matar seu próprio filho, símbolo de sua virilidade e da continuidade da linhagem real. Ou seja, primeiro Kinnara consegue fazer a troca de corpos através de um beijo e depois logra não ser morta pela maternidade, um predicado físico feminino. Neste sentido, a simples Kinnara é mais uma mulher decisiva num mundo machadiano cheio delas. As mulheres de Machado seduzem, escolhem, querem e conseguem, expelindo sensualidade tanto em lentas e inexoráveis secreções ou como em espasmos (ou jatos…).
Tenho vontade, mas reluto em fazer uma interpretação do século XXI sobre um conto que não é mais do que um scherzo de Machado. Mas há outros aspectos intrigantes neste conto cheio de curiosidades que independem do instrumental psi de nossos dias. (1) Machado não cai em momento algum nas piadas fáceis e depreciativas de uma sociedade machista — e estamos em 1884. (2) Diferentemente de Tolstói, por exemplo — um escritor absolutamente contemporâneo de Machado — , o brasileiro não está nem um pouco preocupado em explicar o mundo ou em trazer a Verdade e a Solução a seus leitores. Ele apenas narra brilhantemente os fatos e nos deixa aqui pensando… (3) Os acadêmicos consideram uns aos outros perfeitos estúpidos, mas permanecem academia, inclusive protagonizando o festivo momento final de As Academias de Sião, cantando todos juntos o hino “Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a claridade do mundo!”.
A bela Kinnara — àquele momento já destrocada — não entendia como os membros da academia podiam ser a claridade do mundo quando reunidos e se detestarem separadamente… Mas sabemos que é assim. É notável que o fundador da Academia Brasileira de Letras nos passe uma noção tão bufa e verdadeira do comum das academias — locais que podem ser melhor descritos como cestas de ofídios do que como clarões para o mundo.
Enquanto apoiava a tortura, esqueceu-se de que a filha não se conformava com a derrocada da democracia. Agora não tem nem ao menos um corpo para enterrar. Da moça só restou uma foto no celular. Tão bonita.
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Pai e mãe aprovavam o novo governo. O filho agora mantinha distância da escola, das drogas, dos pervertidos, das vadias, da vida lá fora. Eles podiam ficar 24 horas colados no garoto, que mantinham asseado. A única literatura da casa era a Bíblia Sagrada. O menino não reclamava, embora achasse as historinhas de Jesus meio repetitivas. Aos domingos tocavam teclado e cantavam música gospel sertaneja. Tudo parecia bem para a família longe dos pecados, protegida por Deus e pela Taurus. Até que um dia o garoto tirou a arma do pai do armário e deu um tiro na cabeça. Ao seu lado, boiando em sangue, foi encontrado um papel escrito “eu gosto é de menino”.
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Segundo turno, casa cheia, a fila enorme na seção eleitoral. Ele custou a esperar sua hora. Vestia calça cáqui e blusa amarelo-ouro, a bandeira do Brasil sobre os ombros. Quando chegou a sua vez, entrou marchando na sala. Antes de votar, bateu continência para a urna, lascou um “pela moral e bons costumes” bem alto e saiu de lá olhando por cima das pessoas. Semana passada, sua foto apareceu no jornal. Pederasta, pego em flagrante, quando obrigava o menino a lamber suas bolas, na praça, atrás da igreja. Antes de entrar na cadeia, ouviu do delegado: — Ordinário, marche!
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Só quando o milésimo cidadão-de-bem arrependido foi imolado em praça pública pelo Ministério da Eugenia, as pessoas começaram a apagar as suásticas que haviam pintado em suas casas. A única que permanece é aquela riscada a canivete no corpo da garota gaúcha.
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Do Congresso, só um nome. Do Senado, uma lembrança. O STF, um contexto. Tudo está mais fácil e acessível na surfaceciberespacial de uma rede imersiva de criptografados. A vida integra bolhas meta(in)flexíveis de reação. (Trans)penetração em um trânsito intransitivo de galerias e galerias de informação. Comoção! A biopraticidade de metadados da próxima diversidade. O paraíso em foco. Comoção. Balada do louco. Comoção. Olhar rouco de um povo néscio, integrado em poços (trans)continentais. O cobertor das vaidades. A volta de todos os choques e a (sub)missão opressiva do verde-amarelo.
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E os sonhos? Os sonhos a gente não controla, dizia Seu Zé. Era um homem que sempre devaneou esperança. Mas hoje não, acordou borocoxô, não quis nem comer. Disse apenas não desejar viver tanto para ver tamanha maluquice nesse mundão de meu Pai. Mirou pra longe da janela, ficou um tempo avantajado sem dizer uma única palavra. Comentaram até falta de lucidez. O pobre estava desacorçoado. Acontece com a realidade, ele desenterrou memórias que não gostaria. Tinha também consciência que não viveria para ver calamidade nenhuma findar. Sobre os sonhos? Roubaram, exclamou cansado.
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A unha parecia maior no alicate do que quando ainda era parte do dedo. A cabeça de Chicho pensava esse tipo de coisa inútil quando a dor escoava por um momento. Era a última unha do pé e ele ainda resistia bravamente. Não tinha dito nada para o homem de capuz, que escolhia agora um novo instrumento como quem escolhe um lápis de cor.
– Quem é você?
Era um cabo com presilhas de metal denteadas, os dentinhos a lhe morder os mamilos com força. E então veio a corrente elétrica. Uma vez e outra vez, a pele sofrendo a queimadura de mil cigarros. O torturador deu mais um ou dois choques e voltou para a mesa de instrumentos.
– O que está planejando?
Era um vidrinho de ácido com conta-gotas, e a dor da primeira gota, na coxa, parecia quase suave depois de tudo, mas foi ardendo e espalhando, incontrolável. Na terceira gota a pele parecia borbulhar, dissolver. Pela primeira vez quis confessar. Confessar… o que? Se deu conta que até agora, era apenas ele, torturado, quem tinha feito perguntas. Outra gota caiu e Chicho recomeçou a gritar.
– Me diz o que você quer saber! Eu falo! Eu falo…
– Não precisa falar nada, fique tranquilo, já estamos acabando.
– Então por que? Isso tudo não é pra arrancar a verdade?
– Isso aqui? É só tradição. Eu não preciso arrancar nada de você. Não preciso que você me diga a verdade. A verdade é o que eu disser que é.
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João dizia que tortura era morrer na fila do hospital. Na verdade, nunca tinha enfrentado fila de hospital público. Ele e toda a sua família tinham plano de saúde. Era uma fala de revolta, mas isso foi antes. João agora tinha vergonha de dizer que apoiou ele, que votou nele, que fez campanha para ele. Hoje, João se sente enganado, queria um país melhor, ignorou os avisos e se deixou levar. A primeira coisa que o fez se sentir traído foi o aumento do preço dos planos de saúde. Aumentaram logo antes dele perder o emprego. Com tudo mais caro e ainda por cima desempregado, não tinha mais condições de pagar o plano de saúde do pai aposentado. Cancelaram o plano do pai pouco antes de descobrirem o câncer. Na sua revolta, João começou a participar de grupos de protesto contra o governo. Ele não sabe, mas neste exato momento, enquanto toma café da manhã, dois investigadores da polícia política estão a caminho da sua casa. Hoje João aprenderá na carne a diferença entre tortura e fila de hospital.
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2021: uma ilha, cento e cinquenta quilômetros ao sul de uma Barra da Tijuca aniquilada por alguns eleitores arrependidos e uma forte oposição ao presidente da república, todos reunidos para “esvurmar” os culpados, grande parte agora refugiados por medo, vergonha pela situação em si, isolados (até deus sabe quando) naquele aglomerado dos novos miseráveis. O que era uma elite de fato em sua bolha endinheirada, agora está literalmente ilhada em um enorme aterro sanitário decorado com obras de Romero Britto.
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As lojas já oferecem os anacrônicos enfeites de Natal. As famílias de bem já deram início aos preparativos para a chegada do Deus-menino. Esse ano será especial, Papai Noel virá em seu trenó puxado por milhares de bolsorrenas. Surgirá nos céus do Brasil tal qual besta do Apocalipse, o tropel poderá ser ouvido a quilômetros. As criancinhas estarão ansiosas e correrão pelas ruas gritando: Papai Noel, Papai Noel, me dá uma bala, manda bala pra nós, Papai Noel!
Atendendo ao clamor infantil, lá do alto ele enviará suas balas. Calibres 22, 38, 40, 380… Mas,alegrem-se, o Menino-deus está prestes a chegar! Presépio montado, na manjedoura sorri imóvel um menino Jesus embranquecido, cercado por seus pais também imóveis e embranquecidos e alguns animaizinhos também inertes. As ceias finalmente estarão nas mesas: arroz de forno, peru, farofa e maionese, tudo com muita uva-passa (nas periferias); caviar, trufas, folhas de ouro, bife Wangyu, melancia japonesa (na zona sul).
Quando baterem as doze badaladas, todos brindarão efusivos. Desde o delicado tilintar das taças de cristal nos condomínios e mansões até a estridente fricção dos copos de requeijão nos bairros populares.
Mais uns dias e chegará o Ano Novo. Farofa, pernil, chester, champagne, vinho Sangue de Boi, mais champagne, caviar e trufas… O relógio dá meia-noite. Novamente o tilintar das taças de cristal, a estridente fricção dos copos de requeijão, pular sete ondinhas, todos vestindo o branco da paz… o branco da paz? Alguém já disse que a paz é branca. Para Pessoa é uma pomba estúpida.
1º de janeiro de 2019, o Menino-deus se fez adulto; embora continue embranquecido, já tem idade bastante para ser crucificado (por que diabos insistem tanto naquela pele branca e naqueles olhos azuis?).Porém, aqui, no Planalto Central, no coração do Brasil, o Messias é outro. Anunciado pelos grupos de Whatsapp e glorificado pelas fakenews, finalmente ele subirá a rampa. Enquanto o Brasil escorre ladeira abaixo, a parte branca do Brasil permanecerá em seus condomínios e mansões. O resto, o povo, iniciará um calvário e muitos morrerão no Pelourinho de Pampulha(*). Ah, o doce perfume das Pampulhas!
Mas, alegrem-se, hoje é o dia da Confraternização Universal! Trump já tem aqui os seus representantes trabalhando pelo seu bem-estar.
Feliz Ano velho! Bem-vindos novamente a 1964!
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(*) A expressão foi cunhada por Gil Vicente, em A barca do inferno. Quem a diz é o personagem Parvo, que representa o povo. Pampulha é também uma lagoa e um bairro de Belo Horizonte.
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O professor entra na sala e logo pede aos alunos para abrir o livro na página 13. Uma foto do general 4 estrelas ilustra um texto sobre a ditadura no país. Antes mesmo que ele pudesse iniciar a aula, Serafim coloca o 38 sobre a carteira, abre o livro na página indicada e a arranca. É seguido pelos colegas. O professor faz menção de criticar o gesto, ouve-se o estampido. O professor foi alvejado na cabeça, pedaços do seu cérebro colaram no quadro negro, agora colorido de vermelho. O sinal toca, os alunos são dispensados. O conteúdo daquele dia estaria disponível na internet antes que a tarde chegasse.
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Estava feliz com o resultado das eleições, a corrupção havia sido varrida da história. Motivo para tirar a cerveja da geladeira e, ainda que sozinho, brindar.
Acomodava-se no sofá, quando a campainha soou. A correspondência veio selada, com carimbos e assinaturas. A mensagem era clara: “o Estado, agradecido pelo voto, proclama ao exmo. sr. Fulano de Sicrano, homem de bem, que dê fim ao negro abaixo identificado”.
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Douglas e Sheila se despediram de Lucas. Tarde para chorar. O Brasil não se transformava na Venezuela. Transformava-se nas Filipinas. O novo presidente batera continência para a bandeira dos Estados Unidos e não fora à toa. Boas relações, apesar da oposição interna e do asco da comunidade internacional. Em outubro mesmo, já chegavam os primeiros tanques. A ordem era o Brasil invadir a Venezuela e retirar Maduro. Os casais que apoiaram o novo governo experimentavam a dor inédita de enviar um filho para a guerra.
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A bola foi dar, novamente, no milharal do Jeremias. Isso sempre acontecia nos finais de semana, quando os meninos desciam para jogar no descampado. Sempre dois ou três atravessavam a cerca, à surdina, para resgatar o brinquedo. Sempre bêbado e ranzinza, o Jeremias corria atrás, desengonçado, até que tropeçasse nas pernas e estatelasse no chão. Os garotos sempre riam, faziam troça, depois sumiam.
Desta feita, entretanto, o Jeremias havia conseguido adquirir uma arma de fogo, porque, nos registros da repartição, sempre fora um “cidadão de bem”.
Nunca o vilarejo vira um féretro tão pequenino e triste.
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O mundo sabe que o Brasil acaba de eleger um candidato de extrema direita. Hoje, a ignorância demonstrada sobre a história, a política, a cultura e todas as pautas humanistas passou a ser ostentada como uma bandeira; o culto a elementos há muito dados como danosos à sociabilidade, como a homofobia, o racismo, a xenofobia, o machismo e a misoginia passou a pautar as atitudes das pessoas: amigos, familiares e colegas de trabalho começaram a se estranhar em sua rotina. As instituições todas revelaram conter em suas entranhas quadros corruptos e bastante dispostos a desrespeitar as leis para obter vantagens as mais espúrias possíveis. Por fim, o Estado brasileiro assumiu uma postura antidemocrática e partidária como nunca se viu.
Os artistas não foram insensíveis a este movimento. Muitos se posicionaram claramente e colocaram sua arte e seus corpos à disposição da vida, e assim estamos resumindo vida em sociedade fraterna em uma situação política democrática e justa.
Em setembro, com a iminência da eleição de Jair Bolsonaro, dada pelas pesquisas, a poeta Adriane Garcia criou o projeto “Minicontos para futuro nenhum”: ela própria deu a partida e deixou em aberto que seus amigos, via redes sociais, contribuíssem. O tema deveria ser, claro, como será a vida em um Brasil sob a presidência de um governo excludente, militarista, armamentista e preconceituoso. Aqui estão quatorze autores e suas quatorze previsões para um terrível futuro.
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Adriane Garcia, nascida em Belo Horizonte/MG – Brasil, em 1973. Historiadora, funcionária pública, arte-educadora, atriz. Escreve poesia, infanto-juvenil, crônica, conto e dramaturgia. Venceu o Prêmio Nacional de Literatura do Paraná 2013, Helena Kolody, com o livro de poesia Fábulas para adulto perder o sono. Publicou além deste, O nome do mundo (Armazém da Cultura, 2014) e Só, com peixes (Confraria do Vento, 2015).
Sérgio Fantini, poeta, contista e romancista brasileiro, voz de uma literatura de resistência e de independência das regras de mercado. Publicou em revistas e em antologias como Contos Cruéis, Cenas da Favela, Rock Book, 29 de abril – o verso da violência e 90-00 – cuentos brasileños conteporáneos e Lula livre Lula livro, entre outras. Publicou os livros Lambe-lambe, Diz Xis, Cada Um Cada Um, Materiaes, Coleta Seletiva, A ponto de explodir, Camping Pop, Silas, A Baleia Conceição, Novella e O município de Tormenta.
O excelente Vassily Genrikhovich traduziu para o blog PQP Bach o delicioso texto — obviamente ficcional — em que o alemão Michael Stegemann imagina um diálogo entre o compositor Wolfgang Amadeus Mozart e o pianista Glenn Gould, que tão deliberadamente sabotava as obras do primeiro. O texto foi incluído no encarte do relançamento dessas gravações, mais exatamente na Glenn Gould Edition de 1992. O colóquio baseia-se principalmente nas entrevistas concedidas por Gould ao documentarista Bruno Monsaingeon e nos ataques furibundos de alguns críticos (trechos citados entre aspas).
Vassily pede desculpas por eventuais derrapadas na tradução — ele escreveu que a vida é demasiado curta para se aprender alemão –, fazendo votos de que se divirtam com o texto. São igualmente os meus votos.
P.S. — Algumas ilustrações refletem o medo que Vassily tem das pedradas de vocês, meus sete leitores.
COLLOQUIUM OLYMPICUM (FICTUM)
Dois homens numa nuvem. Um deles usa um pulôver, jaqueta de tweed, capa de inverno, cachecol de lã, boina xadrez, óculos aro de tartaruga, luvas sem dedos, calças bufantes e sapatos marrons surrados. Ele toca piano – o Andante grazioso con variazioni da Sonata em Lá maior, K. 331, de Mozart. O outro usa uma peruca com tranças, lenço franzido, casaca de brocados ricamente bordados (com a Ordem do “Cavaleiro da Espora Dourada”), calças até os joelhos, meias de seda e sapatos com fivela. Ele escuta atentamente. O primeiro deles é GLENN GOULD, o outro, WOLFGANG AMADEUS MOZART.
GOULD: (concluindo o movimento) E…?
MOZART: (perplexo) Desculpe-me perguntar-lhe, meu amigo, mas você sempre senta tão abaixo do teclado quanto está a tocar piano?
G: Sempre.
M: E sempre nessa, er, cadeira?
G: Sempre, sim. Meu pai a fez para mim quando eu tinha vinte, vinte e um anos.
M: (cautelosamente) Mas está quebrada…
G: Eu sei. Um acidente. Um agente de aeroporto subiu nela e foi-se através do assento.
M: (sem compreender) Um agente de aeroporto…?
G: Esquece. (rapidamente e com desconforto evidente) E antes que você pergunte, eu sempre cantarolo junto com a música quando estou tocando piano. Para mim isso não é qualquer vantagem, é apenas algo inevitável que sempre me acompanhou, eu nunca consegui me livrar disso. Desculpe.
M: Não precisa se desculpar. Não me incomodou, em particular. Não isso, de qualquer maneira…
G: O quê, então?
M: (evasivamente) O instrumento que você usa soa estranho… Não é um dos fortepianos de Streicher, é?
G: É um Steinway, número de série CD 318.
M: (sem muita convicção) Aha.
G: Então, o quê, exatamente, incomodou você?
M: (hesitantemente) Bem, como deveria colocar-lhe… foi… Quero dizer, você…
G: … toquei muito devagar?
M: Bem, eu escrevi “Adagio” sobre a quinta variação, e você a tocou como “Allegro”.
G: Você quer dizer, rápido demais?
M: … enquanto o tema do Andante grazioso soou mais como um Largo, tocado por você. (quietamente) Eu quase não o reconheci.
G: (gargalhando) Você não foi o primeiro! Havia pessoas (e espero que elas ainda existam) que descreveram minha gravação como “a mais repugnante jamais feita”.
M: (sem entender) Gravação…?
G: (benevolamente) Escute, Sr. Mozart, desde que você morreu, um monte de coisas aconteceu, sobre as quais você sequer poderia imaginar. Mas, em termos de nossa conversa, eu não acho que elas sejam importantes e sugiro que as esqueçamos. Por ora, agradeceria se nos mantivéssemos no assunto; quando terminarmos, terei a maior felicidade em falar-lhe de aeroportos, gravações e por aí vai, OK?
M: “OK”, como diz você – seja lá o que signifique.
G: Beleza. Você me falava que achou a quinta variação muito rápida e o tema muito lento, correto?
M: Entre outras coisas. Mesmo com a maior boa vontade do mundo eu não sei por que você…
G: (mantendo-se em seu raciocínio) Veja bem, “de acordo com o esquema que empreguei, a penúltima variação só perde em velocidade para o finale do movimento”
M: (algo perturbado) O esquema que você empregou. Mas, sério, meu amigo, e o meu esquema?
G: (recusando-se a abandonar seu raciocínio) “A ideia por trás da interpretação era, já que o segundo movimento é mais um noturno-com-minueto do que um movimento lento” – você não negará isso – “e já que o pacote é finalizado com aquela curiosa porção de exotismo à moda serralho, estamos lidando com uma estrutura incomum, e virtualmente todas as convenções de sonata-allegro podem ser deixadas de lado”
M: Sério? (sarcasticamente) Bem, muito obrigado por explicar minha própria sonata para mim!
G: (algo constrangido) “Eu admito que minha realização do primeiro movimento [da Sonata K. 331] é algo idiossincrática”
M: (acidamente) Não me diga. (depois de uma curta pausa) O que meu tema fez para merecer esse tratamento?
G: (protestando cautelosamente) É um tema banal!
M: Certamente não do modo em que você o tocou!
G: Exatamente. Queria que as pessoas o escutassem e o experimentassem de um modo completamente diferente, entende? “Eu queria submetê-lo a um tipo de escrutínio em que seus elementos básicos fossem isolados uns dos outros, e a continuidade do tema, deliberadamente corroída”
M: E quando você transpõe as defesas – bum! – você explode tudo pelos ares, ahn?
G: Não, muito pelo contrário. “A ideia era que cada variação sucessiva contribuísse para a restauração daquela continuidade e, absorta nesta tarefa, fosse menos visível como um elemento ornamental, decorativo”
M: (estupefato) Como o quê? Como um “elemento decorativo”?
G: Como um “elemento ornamental, decorativo”. “Parece-me que você simplificou as coisas abusando das figurações; tem-se a impressão de que é tudo puramente arbitrário – um deleite puramente tátil que qualquer outra fórmula poderia igualmente prover”. Nada há de atraente nisso, você entende? Isso sem falar da completa ausência de qualquer interesse contrapontístico. Puro hedonismo teatral, se é que você me entende. (após uma breve pausa) Bem, diga algo.
M: Com toda honestidade, estou sem palavras. Ao ouvir você falar desse jeito, qualquer um pensaria que você não gosta de minha música…
G: (rapidamente e com veemência) Não, de modo algum! Que faz você dizer isso? Sua primeira sinfonia, por exemplo, é uma joia absoluta! Eu mesmo a regi certa vez, em 1959, no Festival de Vancouver. Ou que tal suas seis primeiras sonatas para piano? “Elas têm aquelas ‘virtudes barrocas’ – uma pureza de condução de vozes e cálculo de registro – que nunca foram igualadas em suas obras mais tardias e que as fazem as melhores da série. E ainda que ‘quando mais curta, melhor’ geralmente represente minha postura em relação a sua música, tenho que dizer que sua Sonata em Ré maior, K. 284, que é provavelmente a mais longa delas, é minha favorita”.
M: (desanimadamente) Não sei se devo me alegrar ou não…
G: (confidentemente) Sabe, Sr. Mozart, “você deveria ter congelado seu estilo quando deixou Salzburgo; se tivesse se contentado em não alterar sua linguagem musical nas trezentas e tantas obras que escreveria depois, eu estaria perfeitamente contente”.
M: (pensativamente) Você acha que Viena – como devo dizer? – corrompeu meu estilo?
G: Temo que sim, claro. “Quando gerações de ouvintes acham apropriado atribuir-lhe termos como ‘leveza’, ‘facilidade’, ‘frivolidade’, ‘galanteria’, ‘espontaneidade’, convém-nos ao menos refletir acerca dos motivos para tais atribuições – que não são necessariamente nascidas de desapreço ou de caridade”.
M: (incredulamente) Em outras palavras, nada de “Don Giovanni” e nada de “A Flauta Mágica”?
G: Não!
M: Nenhuma das minhas últimas sinfonias?
G: Enfaticamente não!
M: E presumo que nenhuma de minhas últimas sonatas, também?
G: Essas, muito menos! “Eu as acho insuportáveis” – perdoe-me dizer isso. Elas são “repletas de presunção quase teatral, e posso seguramente afirmar que, ao gravar uma peça como a Sonata em Si bemol maior, K. 570, eu o fiz sem qualquer convicção. (à parte) O mais honesto a se fazer teria sido pular essas obras, mas o ciclo tinha que ser concluído”.
M: (quietamente) E tudo que eu teria escrito se eu não tivesse…
G: (furiosamente, quase abrupto) Que disparate! Imaginemos que você… bem, digamos que você tivesse chegado aos setenta anos; você teria então morrido em 1826, um ano antes de Beethoven e dois anos antes de Schubert, pelo que, se eu pudesse extrapolar seu estilo posterior com base nas suas trezentas últimas obras, você acabaria um compositor entre Weber e Spohr. É uma especulação tão absurda quanto seria imaginar o que eu acabaria por gravar se eu não tivesse morrido aos cinquenta anos (amargamente) Deixe-me dizer uma coisa, Sr. Mozart: eu não teria gravado nada – nada mais! Aliás, eu já planejava abandonar o piano quando completasse cinquenta anos…
M: Se eu o compreendi bem, eu morri tarde demais, em vez de muito cedo…
G: Correndo o risco de exagerar: sim.
M: (friamente) Não preciso lhe dizer que, ao manter esse ponto de vista, você está numa minoria de… uma pessoa. Ainda que eu não me inclua entre eles (e tenho certeza de que você entenderá que, por motivos puramente pessoais, não compartilho seu ponto de vista), poderia, com toda modéstia, apontar-lhe milhares, mesmo centenas de milhares de amantes da música que…
G: Mesmo que fossem milhões, não fariam diferença. “Ainda criança, eu não conseguia entender como meus professores, e outros adultos presumivelmente sãos, contavam as suas obras entre os grandes tesouros musicais do homem ocidental. […] Acho que eu tinha em torno de treze anos quando finalmente percebi que o mundo inteiro não via as coisas como eu via. Já que jamais me teria ocorrido, por exemplo,que alguém poderia não compartilhar meu entusiasmo por um céu cinza e nublado, foi então um verdadeiro choque descobrir que havia de fato pessoas que preferiam o ensolarado. Poderia acrescentar que isso continua a ser um mistério para mim, mas essa é outra história.
M: (com pena) Acho que começo a entendê-lo, meu pobre amigo. Escute, há um médico aqui que certamente poderia curá-lo de seu entusiasmo por céus cinzas e nublados. Ele se chama Dr. Freud…
G: (às gargalhadas) Não, obrigado – recusei-me a permitir que qualquer de seus colegas se aproximasse de mim enquanto vivia. Em todo caso, minha preferência por certos fenômenos meteorológicos em particular não está de qualquer maneira conectado com minha crítica a certas inconsistências composicionais em sua música. Tome, por exemplo, o Finale Allegro grazioso de sua Sonata em Si bemol maior, K. 333, ou, para ser mais preciso, a cadenza logo antes do final do movimento. “Para mim, essa página vale o preço do ingresso”.
M: (lisonjeado) Sério?
G: (incensado) Mas como lhe deu na telha a ideia insana de escrever “Cadenza a tempo” sobre ela? “É uma cadenza, não importa o que você diga, e eu simplesmente não posso imaginar como você esperaria que alguém passasse da tônica menor (Si bemol menor) para a submediante (Sol bemol maior) sem reduzir a marcha.
M: Parece-me que, pelo que você diz, você aborda minha música pura e simplesmente dum ponto de vista harmônico.
G: Uma vez que – como já disse – ela é incapaz de despertar o menos interesse contrapontístico…
M: E que tal sua forma?
G: (desdenhosamente) Oh, você sabe, “a forma básica da sonata não me interessa lá muito – a questão de temas tônicos vigorosos e masculinos e temas dominantes femininos e delicados parece-me infestado de clichês, isso para não dizer racista. Além do que, você sabe, muitas vezes sucede o contrário – segundos temas agressivos e masculinos, e aí por diante. Quanto à sua Sonata em Si bemol maior, que mencionamos há um instante, reflita sobre a não-integração entre o primeiro e o segundo temas do seu primeiro movimento, os quais, até onde posso perceber, poderiam ser tocados em ordem reversa e ainda assim prover um contraste perfeitamente satisfatório”.
M: Bem, é certamente uma ideia interessante… e talvez nem um pouco excêntrica, ademais…
G: (exultante) Você vê! (subitamente sério) “Mas o que eu não entendo é por que você ignorou tantas oportunidades canônicas óbvias para a mão esquerda!”
G: Exatamente. Aqui está, por exemplo, o Allegro moderato de sua Sonata em Dó maior, K. 330 (ele começa o movimento com o mesmo andamento frenético de sua gravação de 1970, incluída na postagem)
M: (horrorizado) Pare – é insuportável! “Rápido demais. Tocar assim ou cagar, para mim, é a mesma coisa!”
M: Melhor, sim. Mas as indicações dinâmicas – o contraste entre forte e piano, ossforzandi…
G: “Culpado, meritíssimo!”. Eu nunca toco sforzandi, “já que eles representam um elemento de quase-teatralidade pelo qual minha alma puritana tem vigorosa objeção”.
M: (cautelosamente) Mas o que dizem os críticos? Quero dizer, acerca dos sforzandi que faltam e o resto…
G: (com uma gargalhada) Oh, os críticos! Deveria ler-lhe o que um desses cavalheiros escreveu sobre minha interpretação para sua Sonata em Lá maior? “É muito difícil captar o que Gould tenta provar, a não ser que o boato de que ele realmente odeia essa música seja verdadeiro. Andamentos são dolorosamente lentos, a articulação picotada e destacada viola a estrutura frasal (e muitas das indicações específicas de Mozart) […] isso tudo evoca a imagem de um moleque tremendamente precoce mas muito sacana tentando aprontar uma para seu professor de piano”.
M: (inseguro de si mesmo) E você, er, realmente odeia essa música… minha música?
G: (sinceramente) Não, Sr. Mozart. É verdade que eu a ouço, entendo e interpreto diferentemente da maior parte das pessoas, e sem dúvidas diferentemente de você, “e tenho certeza de que frequentemente você não aprovaria o que eu faço com sua música. No entanto, mesmo que seja cego, o intérprete tem que estar convicto de que está fazendo a coisa certa e que ele pode achar maneiras de interpretá-la das quais nem o próprio compositor estaria ciente”.
M: Poderia pedir-lhe para tocar-me uma de suas interpretações que você acha que eu aprovaria?
G: Que tal o Alla turca de sua Sonata em Lá maior?
M: (nervosamente) Er…
G: (com uma gargalhada) Não se preocupe, não o tornarei um Presto, quanto menos um Prestissimo. Muito pelo contrário: vou tocá-lo como um Allegretto, como você mesmo indicou (e como, acrescento, ele é raramente ouvido).
M: (com dúvidas) E também com os contrastes entre piano e forte?
G: Esses, também! (com uma gargalhada) Ainda mais porque não há sforzandi neste movimento!
M: Nota por nota, então, como eu o escrevi?
G: Nota por nota – exceto por alguns pequenos arpejos na coda, que dá ao movimento seu toque “turco”.
E-mail recebido de Marcelo Backes, no dia 12 de janeiro:
Querido Milton!
Tudo bem?
Espero que 2014 tenha começado maravilhosamente bem pra ti, pra Elena, pra Bárbara e pro Bernardo.
Aqui na Alemanha, o inverno tá com a maior cara de primavera, a temperatura mal baixou de nove graus positivos.
Mas escrevo para dizer que na Ilustríssima da Folha de S. Paulo de ontem saiu um troço bem bacana que eu fiz, contracapa inteira – um texto do Musil que descobri, traduzi e comentei brevemente. Trata-se de uma das coisas mais terríveis e mais incríveis que eu li nos últimos tempos – é chocante e genial; acho que vais gostar.
O texto tá fazendo o maior escarcéu — pelo mal-estar que causa, inclusive.
Beijos, saudades e, mais uma vez, um ótimo 2014 pra ti e pros teus
Marcelo
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SOBRE O TEXTO: O austríaco Robert Musil (1880-1942) é o autor de O homem sem qualidades, um dos – digamos quatro – romances mais importantes do século 20. O presente texto foi escrito exatamente há 100 anos, em 1914, e é parte de uma seção chamada “Quadros” do chamado espólio, publicado ainda em vida, em 1936.
O ano de 1914 assinalou o começo da I Guerra Mundial, da qual Musil participou como oficial, a primeira em que homens foram mortos como moscas, vítimas de armas químicas. Indiretamente, isso aparece referido nos signos dos militares, dos aeroplanos, dos cavalos mortos. Genial, o texto menciona os tábidos, vítimas da sífilis que lhes degenera a medula espinhal (a doença chama-se tabes), fala em ídolos negros, que a correção política exigiria que fossem traduzidos por divindades africanas, e menciona o tour de force clássico de Laocoonte. Aponta ainda para o comércio, a importância da marca registrada, assinalando por tabela a globalização do veneno. Reunindo Josef K. e Gregor Samsa numa mosca, investiga o sentido da vida num existencialismo levado às últimas consequências, antes mesmo de este ser batizado (por Gabriel Marcel, ao que parece) e depois divulgado sobretudo por Sartre e Camus.
Primeiro distante, e frio na expressão, parecendo até esboçar um manual de instrução para trocar pneus, o narrador logo humaniza as moscas, participa de seu destino e torna o texto profundamente angustiante. Corpo e espírito se retroalimentam no caminho à concretude do abismo. Nós viramos a mosca, uma mosca muito além daquela que ainda estraga a sopa dos outros.
A parábola de Musil talvez indigite tudo aquilo que nos controla e nos mata, que nos transforma em moscas da convenção, nos faz aceitar as armadilhas da lei e da civilização. Tudo aquilo que nos limita, nos cerceia e não nos larga mais, às vezes sem que nem mesmo saibamos (embora até nos revoltemos provisoriamente, o que só nos aprisiona ainda mais), esquecendo a liberdade em algum lugar distante daquilo que poderíamos chamar de alma, nosso único órgão que continua vivo. O quadro é uma releitura muito mais terrível do grande inquisidor de Dostoiévski, o tribunal de Kafka antecipado ou a metáfora eventual de uma agência de segurança em Maryland.
O texto de Musil:
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O papel mata-moscas
O papel mata-moscas Tangle-foot tem mais ou menos trinta e seis centímetros de comprimento e vinte e um centímetros de largura; é coberto por uma cola amarela e tóxica e vem do Canadá. Quando uma mosca pousa sobre ele -sem demonstrar qualquer avidez especial, mas seguindo uma convenção, afinal de contas já há tantas outras ali-, fica colada primeiramente apenas pelas extremidades dobradas de todas as suas perninhas. Uma sensação bem suave e estranha, como quando andamos no escuro e pisamos descalços sobre alguma coisa que ainda não é nada a não ser algo que oferece uma resistência mole, morna, confusa, para dentro do que a humanidade já vai jorrando terrivelmente aos poucos, o reconhecimento de uma mão que de algum modo ali jaz e nos segura com cinco dedos cada vez mais nítidos em seus propósitos.
Então todas as moscas fazem força e se levantam, eretas, semelhantes a tábidos que não querem ser notados, ou como militares velhos e alquebrados (e de pernas ligeiramente arqueadas, como quando se está sobre um monte inclinado). Elas se endireitam, reunindo força e concentração. Depois de poucos segundos, estão decididas e começam a fazer o que podem, zumbir e tentar se erguer. Executam essa ação furiosa por tanto tempo até que a exaustão as obriga a parar. Segue-se uma pausa para respirar e uma nova tentativa. Mas os intervalos se tornam cada vez mais longos. Elas estão paradas ali e eu sinto como estão desnorteadas. De baixo sobem vapores desconcertantes. Como pequenos martelos, suas línguas tateiam fora da boca. Suas cabeças são marrons e peludas como se fossem feitas de casca de coco; como ídolos negros antropomórficos. Elas se curvam para frente e para trás sobre suas perninhas enlaçadas e presas, se dobram sobre os joelhos e avançam se erguendo, como fazem seres humanos que tentam movimentar de qualquer jeito uma carga pesada demais; mais trágicas do que trabalhadores, mais verdadeiras na expressão atlética do esforço extremo do que Laocoonte. E então chega o estranho e recorrente instante em que a necessidade do segundo que passa triunfa sobre toda a poderosa constância da existência.
É o instante em que por causa da dor um alpinista abre voluntariamente a mão cujos dedos ainda se agarravam, em que um homem perdido na neve se deita no chão como uma criança, em que um homem perseguido com os flancos em brasa para de correr. Elas já não têm mais forças para manter-se em pé, elas afundam um pouco e nesse instante são totalmente humanas. De imediato são agarradas por uma nova parte, mais acima na perna ou na parte traseira do corpo ou na extremidade de uma asa.
Quando elas superaram a exaustação anímica e depois de um breve instante voltam a lutar por sua vida, já estão fixadas numa posição desfavorável, e seus movimentos se tornam pouco naturais. Então elas jazem com as pernas dianteiras esticadas, apoiadas sobre os cotovelos, e tentam se levantar. Ou estão sentadas no chão, empinadas, de braços erguidos, como mulheres que tentam em vão escapar aos punhos de um homem. Ou jazem sobre a barriga, com a cabeça e os braços estendidos à frente, como se houvessem desabado em meio à corrida, e continuam erguendo apenas o rosto. Mas o inimigo sempre e desde o princípio é passivo e vence apenas devido aos instantes de desespero e confusão. Um nada, um isso as puxa para baixo. Tão devagar, que mal se consegue acompanhar o que acontece, e na maior parte das vezes com uma aceleração brusca ao final, quando o último colapso interno as abate. Então elas se deixam cair de repente, para a frente, de rosto, sobre as pernas; ou de lado, todas as pernas esticadas para longe do corpo; muitas vezes também de lado, com as pernas remando para trás. Assim elas jazem. Como aeroplanos caídos, que apontam uma das asas para o ar. Ou como cavalos mortos miseravelmente. Ou com infinitos gestos de desespero. Ou como adormecidos. Ainda no dia seguinte uma delas às vezes desperta, tateia por um momento com uma das pernas ou zumbe com a asa. Às vezes um desses movimentos perpassa o campo inteiro, então todas afundam ainda um pouco mais em sua morte. E só do lado do corpo, na região em que estão fixadas as pernas, elas têm algum órgão diminuto e cintilante que ainda vive por bastante tempo. Ele se abre e se fecha, não se pode caracterizá-lo sem lente de aumento, ele se parece com um minúsculo olho humano, que se abre e se fecha sem cessar.
ROBERT MUSIL (1880-1942), escritor austríaco, autor de “O Homem Sem Qualidades”. MARCELO BACKES, 40, é escritor e tradutor. Lança neste ano, pela Companhia das Letras, o romance “A Casa Cai”. ROBERT HOOKE (1635-1703), cientista inglês.
2014. 18 de junho. Dia do quarto jogo a ser realizado no Beira-Rio, cujas obras foram entregues à Fifa e ao mundo faz um mês. Era um dia estranhamente quente para aquele finalzinho de outono. A partida reúne — reúne… — Argentina e Inglaterra. A cidade está tomada pelos hermanos, mas também, em menor número, pelos polidos e simpáticos invasores das Malvinas. Após duas greves, a Brigada Militar está de prontidão e as rádios “de sucesso” anunciam que o Rio Grande do Sul será palco do confronto do século e que um gaúcho-úcho-úcho, Leandro Vuaden, será o quarto árbitro. Todas as preocupações se voltam para a situação nas ruas, ignorando o que ocorre nos céus. Só a Defesa Civil do governador olham para lá. É que lá formam-se nuvens e mais nuvens e, no final da manhã do grande jogo, começa um toró de varrer Malvinas, Margarets e Cristinas do mapa.
Logo falta luz na Zona Sul, claro. Todos os ingleses que tomavam banho nas águas do Guaíba são direcionados para o BarraShoppingSul, onde há energia elétrica e argentinos que, à princípio, apenas os observam silenciosamente. Nas ruas, instala-se o caos com 35 pontos de alagamentos. Para piorar, ocorre um acidente entre dois ônibus dentro da Túnel da Conceição, formando um engarrafamento verdadeiramente inesquecível, pois os argentinos saem dos seus carros para beberem cerveja e quebrarem qualquer coisa coisa que encontram, no que são imediatamente imitados por ingleses e gaúchos. Uma árvore cai sobre um inglês e a Embaixada do país cobra explicações do governo brasileiro.
Tudo se torna muito mais divertido quando os torcedores notam que será impossível chegar ao estádio no horário, digamos, aprazado. Na Zona Sul, a muito custo, a Brigada consegue criar dois corredores que levam separadamente ingleses e argentinos a pé, sob forte chuva, para o estádio, aproveitando a proximidade. Os que estão no resto da cidade… Bem, estes não vão chegar a lugar algum. Então, brigam. Como um jogo de futebol que se torna mais violento conforme a chuva, a coisa fica cada vez mais descontrolada. Três ingleses são afogados hasta la muerte por grupos argentinos na Av. Osvaldo Aranha, enquanto comandos ingleses perseguem hemanitos com paus e pedras. Gremistas trajados com seus típicos pijamas são confundidos pelos ingleses — as camisetas são quase iguais, lembram? — e entram no bolo para apanhar. Os colorados aproveitam para tirar uma casquinha.
(Putz, 7h, dia cheio, tenho que cobrir a abertura da Semana de Porto Alegre. Desculpem, vou para o trabalho agora. Nem revisei, só achei a ideia divertida, tá? Talvez dê continuidade mais tarde a este verdadeiro drama gaúcho).
Filme de 2009 no Arroio Dilúvio:
Esse diz que é de ontem, mas é o mesmo surfista de 2009. Acho que é outra filmagem do mesmo fato, pois encontrei esta filme ainda ontem, durante o toró: