A isenção tributária sobre os livros é uma garantia constitucional, consagrada no artigo 150, daquela que ficou conhecida como a Constituição Cidadã. De certo modo foi um gesto de um Brasil que, recém-saído de 21 anos de Ditadura, buscou valorizar o papel da educação e da cultura – e dos livros como um de seus instrumentos – para construção de uma sociedade democrática.
Não nos deveria causar espanto um governo odioso como o de Bolsonaro voltar suas armas também contra essa garantia constitucional. Afinal, cultura e educação, já sabemos bem, são um dos principais alvos do bolsonarismo. Nesse caso específico, o argumento utilizado pelo Ministro Paulo Guedes, segundo o qual a leitura de livros seria um hábito de luxo, apenas para ricos, e que a sua taxação seria uma espécie de justiça social ao poder com isso destinar mais recursos aos pobres – ao bolsa família por exemplo – é também típico da hipocrisia e superficialidade do desgoverno federal.
Basta uma rápida ida ao texto da Constituição e veremos, por exemplo, que no mesmo artigo 150, que veda à União, Estados e Municípios a instituição de imposto sobre os livros; também há, algumas alíneas acima, a mesma garantia em relação aos templos religiosos de qualquer culto. Se você que lê essas linhas mora no Brasil, deve ter conhecimento dos verdadeiros impérios construídos com base na exploração econômica da fé.
É de conhecimento público a intensa e diversa atividade econômica que ultrapassa as paredes dos templos. E por óbvio, também sabemos que esses impérios há muito criaram raízes na política institucional brasileira, vide a própria bancada da bíblia no congresso federal com sua Frente Parlamentar Evangélica (FPE) composta de 182 parlamentares. Ao que parece, os únicos que não sabem disso são Paulo Guedes e sua equipe econômica, que ao se debruçar sobre o mesmo artigo da Constituição preferiram centrar fogo nos livros. Sabemos bem o porquê, não é mesmo?
E tem mais, quando alega que os recursos da taxação dos livros poderão ser utilizados para distribuição de renda, Guedes mente desavergonhadamente sobre a natureza da reforma tributária que está sendo planejada. No Brasil, toda a carga tributária está sustentada em cima do consumo, e não da renda ou patrimônio. Isso faz com que, ao contrário do que se pensa, sejam os mais pobres que pagam proporcionalmente mais impostos. É o que se chama de carga tributária regressiva. É justamente esse mecanismo perverso e, considerando as profundas desigualdades sociais e raciais brasileiras, racista, que o governo federal não tem a menor intenção de alterar. Nesse sentido, o discurso de Guedes não passa de um engodo.
Autoritarismo e anti-intelectualismo
Esse episódio da taxação dos livros deve ainda nos fazer pensar sobre outra lição que a História há muito nos ensinou. O Anti-intelectualismo é marcadamente um dos traços dos governos de viés autoritário. Os fascistas, particularmente, abominam a ciência com o mesmo fervor que cultuam os mitos. Num recente e necessário livro publicado em 2018, sob o título “Como funciona o fascismo”, o filosofo estadunidense Jason Stanley sustenta que:
“A política fascista procura minar o discurso púbico atacando e desvalorizando a educação, a especialização e a linguagem. É impossível haver um debate inteligente sem uma educação que dê acesso a diferentes perspectivas, sem respeito pela especialização quando se esgota o próprio conhecimento e sem uma linguagem rica o suficiente para descrever com precisão a realidade.”
Stanley ainda argumenta que, para os fascistas, o debate público deve ser ocupado não com a ciência, ou com formulações balizadas por pesquisas, pluralidade de perspectivas, experimentação e formulação de hipóteses; mas sim pela propaganda doutrinária. E para isso, recorre a ninguém menos que o próprio Adolf Hitler, que escreveu na sua biografia Mein Kampf que:
“A capacidade receptiva das massas é muito limitada, e sua compreensão é pequena; por outro lado, elas têm um grande poder de esquecer. Sendo assim, toda propaganda eficaz deve limitar-se a pouquíssimos pontos que devem ser destacados na forma de slogans.”
Num país que desgraçadamente tornou-se o epicentro mundial da pandemia, estamos experimentando da pior maneira possível a consequência do Anti-intelectualismo, da vulgarização da importância da leitura e negação da ciência. Esse governo genocida negou a gravidade da Covid-19, a apelidou de gripezinha, sabotou as medidas sanitárias e implementou uma verdadeira política anti-vacina. O preço de tudo isso está sendo cobrada em vidas e, com os sucessivos reveses do plano de vacinação que aponta para uma indefinida escassez de vacinas, ainda estamos longe de saber qual será a extensão dessa fatura sinistra.
A Todavia chega com Roberto Carlos, uma figura da qual nem todo mundo gosta, mas que desperta paixões a favor e contra. A Cia. vem com “A Idiota”, um livro cômico que poderia se chamar “Retrato da artista quando jovem”. E temos um belo ensaio sobre a literatura que todos nós amamos: a russa.
Boa semana com boas leituras!
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A Idiota, de Elif Batuman (Cia das Letras, 488 pág., R$ 99,90)
Neste romance finalista do prêmio Pulitzer, acompanhamos o amadurecimento de uma jovem universitária nos anos 1990 que se descobre como escritora enquanto vive as agruras e as delícias do primeiro amor. Selin, filha de imigrantes turcos, começará seu primeiro semestre em Harvard. O ano é 1995 e a internet, uma novidade. Ela se inscreve em matérias de que nunca ouviu falar, faz amizade com a carismática e cosmopolita colega sérvia, Svetlana, e começa a se corresponder por e-mail com Ivan, um estudante de matemática húngaro, mais velho. Selin falou pouco com Ivan, mas a cada e-mail que trocam, o ato de escrever parece assumir significados novos e cada vez mais misteriosos.
Como ler os russos, de Irineu Franco Perpetuo (Todavia, 304 pág., R$ 69,90)
Feito para todos que se interessam por literatura russa, este ensaio busca responder uma pergunta: por que seguimos, ao longo de décadas, lendo, discutindo e admirando os russos? Dos precursores até a literatura pós-soviética e dos emigrados, abordando teatro, prosa e poesia, Irineu Franco Perpetuo nos conduz por séculos de criação artística, iluminando e contextualizando a obra de autores como Púchkin, Dostoiévski, Tolstói e Tchékhov.
Roberto Carlos — Por isso essa voz tamanha, de Jotabê Medeiros (Todavia, 512 pág., R$ 84,90)
Ninguém na música brasileira foi – e ainda é — mais popular do que Roberto Carlos. As dezenas de milhões de discos vendidos, a onipresença na televisão desde os anos 1960, os hits que marcaram gerações, os dramas pessoais, a figura pública reservada, as brigas na justiça – todos esses fatos são públicos e notórios. Mas são poucas as fontes acessíveis capazes de traçar, sem arroubos de tiete ou cores sensacionalistas, o percurso desse artista singular. Publicada no momento em que o artista completa 80 anos, esta biografia de Jotabê Medeiros consegue justamente isso. Autor de consagrados livros sobre Belchior e Raul Seixas, Jotabê se aprofunda na formação musical do artista, desde a infância em Cachoeiro do Itapemirim e os primeiros passos cantando à moda de João Gilberto, até a explosão como líder do incipiente rock nacional e os hits que ao longo de décadas emplacou entre os mais ouvidos do país.
Uma vez, a Elena me mostrou um texto do genial Andrei Konchalovsky, onde ele dizia que invocava Tchékhov para uma conversa cada vez que se via em dificuldades com a escrita. E que Anton o aconselhava.
Desde aquele dia comecei a conversar com Anton. E com Lucia também. A Berlin, claro. Sou íntimo dessa gente. Ou doido varrido.
Deus foi sacana — como sempre é. Ele me disse que, para entrar no céu, eu teria que eliminar da memória da humanidade um autor russo de minha escolha. A listinha seria curta.
Se não escolhesse, eu iria queimar no inferno. Bah, dei uma olhada lá e o inferno não dava mesmo.
Apenas ele ouviu minha resposta. Na minha situação, qual você escolheria?
1 Dostoiévski
2 Tchékhov
3 Tolstói
(Se você tem dúvidas, adquira “Como ler os russos” de Irineu Franco Perpetuo, à venda na Livraria Bamboletras. Não vai resolver a questão deste Deus-Satanás, mas você vai aprender muito!).
Hoje, faz 130 anos que Prokofiev nasceu. Ele morreu em 1953 e a coisa que mais me impressiona é que ele morreu no mesmo dia e ano de Stalin. Faleceram com diferença de horas ou ao mesmo tempo. E não sobraram flores nem atenções para o compositor. Sua morte quase não foi noticiada na URSS. Um troço bobo em relação à obra que o cara nos legou, mas que me deixa triste.
Como um amigo disse: “Me lembrou o episódio da morte de Tchékhov, cujo corpo foi transportado num vagão de ostras, e na estação muitos seguiram o cortejo errado, pois que também lá estava o defunto de um oficial, esperado por muita gente, oficiais e uma banda. Tchékhov teria adorado isso.
Torto Arado é uma sinfonia. Todo o Brasil cabe nele em movimentos rápidos e lentos, scherzi e rivolte. Há narrativa cerrada e há também contrapontos — como no final da segunda parte, chamada Torto Arado, onde a história do fundador do quilombo é contada em contraposição à ação. Mas talvez a analogia com a música só se justifique pela linda prosa de Itamar Vieira Junior.
Vamos tentar seguir sem spoilers. O livro de Itamar Vieira Junior é dividido em três partes — Fio de Corte, Torto Arado e Rio de Sangue –, cada uma formada de capítulos curtos, fáceis de ler. Fio de Corte é narrado por Bibiana, Torto Arado por Belonísia e Rio de Sangue alterna narradores.
A ação se passa em uma fazenda do interior do sertão nordestino e se inicia com um acontecimento que envolve duas irmãs, Bibiana e Belonísia. O pai delas tem grande ascendência sobre os moradores da fazenda, sendo uma espécie de reserva moral e líder espiritual do local. As pessoas dali estão fora do mundo do ponto de vista físico e social. vivendo unicamente do escape religioso personificado por Zeca Chapéu Grande, o pai das meninas. Inequívoca e involuntariamente, ele é um dos pontos de apoio da quase-escravidão dos trabalhadores, pois sente-se grato aos donos da terra por ter sido aceito e recebido. Afinal, recebeu uma terra para dela tirar seu alimento e dar lucro ao patrão. Já a nova geração não é tão grata. O modelo que vemos é muito parecido com o da escravidão, com a elite afagando seus negrinhos e levando a produção, muitas vezes deixando o pessoal faminto. A elite também pode ser violenta, mas como aquele é um Brasil esquecido, deixa assim.
O leitor não é informado de quando a história se passa. Sabemos que Zeca nasceu trinta anos após a abolição da escravatura. Porém, o estarrecedor é que, mesmo um pouco perdido no tempo histórico, dá para identificar tudo como uma realidade atual. Os quilombolas moram em casas de barro, sendo proibida a construção de casas de tijolos para que não tivessem nada que cheirasse à patrimônio. Então, de tempos em tempos, tinham que erguer nova casa, pois as chuvas e a ação do tempo derrubavam as paredes das casas. Claro que estas pessoas mal tinham tempo de cultivar a terra para sua própria alimentação… Assim sendo, como sair da escravidão?
Torto Arado conta uma boa história sem ser panfletário ou “urgente”. Tudo se desenrola com naturalidade. Certamente é um livro político — o que não é? –, mas é uma história cheia de humanidade que não faz críticas nem discursa, apenas conta uma boa história de forma bonita e realista. Disse um amigo que, se olharmos nossa realidade com o rigor de um exame clínico, não tem jeito — a conclusão te obriga a ser de esquerda e o resto é lero lero.
O cenário é o de Guimarães Rosa e Graciliano, mas o baiano Itamar não é nem um nem outro. De Guimarães tem o belo texto, mas não o trabalho de linguagem, de Graça tem o absoluto realismo, mas sua indignação é bem mais contida. Claro que a direita já soltou seus traques, pois não gosta de nada que seja vivo, só que vamos deixá-la de lado. Ou talvez ela não tenha lido o livro, o que é mais provável.
Torto Arado mostra uma parte ignorada pelo país. Demonstra claramente os motivos que levam boa parte da população negra e indígena se encontrarem entre os mais pobres da população por motivos que vêm lá da época da colonização. E convence como realidade e literatura.
Torto Arado recebeu os prêmios Leya, Oceanos e Jabuti.
Semana boa para ler! Imaginem que tem um feriado encravado bem no meio dela! Nossas sugestões só incluem livros deliciosos — bons de cama, cadeira, mesa, rede e sofá.
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O Último Processo de Kafka, de Benjamin Balint (Arquipélago, 272 pág., R$ 64,90)
Franz Kafka, pouco antes de morrer, deixou ao seu melhor amigo, Max Brod, também escritor, a tarefa de queimar seus manuscritos — muitos deles inéditos. Para nossa sorte, Max traiu Franz transformando seu amigo em um dos maiores nomes da literatura do século 20.”O Último Processo de Kafka” é um mergulho fascinante na origem, na importância inestimável e no destino de grande parte destes documentos, que por quase meio século, juntaram pó num apartamento pequeno em Tel Aviv. Nos dias atuais, combinando seus talentos de pesquisador, ensaísta, biógrafo e repórter, Benjamin Balint alterna seu olhar entre a grande amizade de Kafka e Brod e a longa batalha judicial de uma velha senhora solitária contra poderosos interesses nacionais.
A Cachorra, de Pilar Quintana (Intrínseca, 160 pág., R$ 39,90)
Desde muito cedo, a vida de Damaris é marcada por tragédias. Ela carrega uma solidão que talvez tivesse sido aplacada pelo filho que nunca conseguiu ter. Cuidar da casa de veraneio há muito abandonada pela família Reyes ocupa seus dias, aliviando sua consciência pelo que sente ter sido uma omissão sua no passado, mas nada disso lhe traz conforto. Quando, num rompante, decide adotar a cachorra da ninhada de uma vizinha, Damaris tem a chance de desviar um pouco o foco das tentativas frustradas de engravidar. A fêmea que agora circula pela casa modesta faz aflorar instintos protetores e violentos, emoções díspares e profundas que supostamente só poderiam ser despertadas pela maternidade.
Ingresia, de Franciel Cruz (P55, 260 pág., R$ 40,00)
Ingresia é um livro de crônicas sobre a província da Bahia lambuzada de dendê e de exclusões. O autor, Franciel Cruz, é um jornalista e personagem deste livro espetacular. São crônicas e mais crônicas, uma melhor que a outra, todas muito bem escritas, todas em rigorosa forma franceliana — uma linguagem barroca e desbocada, irreverente e ateia, altamente pessoal, cheia de surpresas e beleza. Sim, beleza, esta fugidia menina. Tanto que às vezes temos que lê-las duas vezes por pensar que perdemos algo da forma no afã (recebam meu afã no peito) de não perdemos a linha do pensamento original e bêbado do autor que escrevia bêbado, mas editava sóbrio (beijinho no ombro, Hemingway). E a capa? Que capa, senhores!
Teo é um arquiteto de 60 anos em vias de se aposentar. Noa tem 20 anos a menos e é professora. Eles formam um casal que vive em uma pequena cidade do interior de Israel, Tel Keidar, no limite do deserto. Teo é respeitado por suas realizações passadas. Noa passou a maior parte de sua vida cuidando do pai. Quando um aluno de Noa morre, ela recebe uma incumbência do pai do garoto: a de criar uma clínica de recuperação para jovens que se envolveram com drogas. Tudo seria mais ou menos pago por ele.
Com Teo e Noa beirando uma surda e educada crise de relacionamento, ela procura de todas as formas concluir o projeto inventado pelo pai do menino. Ela não quer que Teo, o homem que todos consultam e que tudo sabe sobre projetos governamentais, se imiscua em algo que é dela. Só que a clínica dificilmente sairá do campo das boas intenções porque os políticos da cidade não querem drogados na região e não conseguem ver na iniciativa vantagens para a cidade. Quem sabe um memorial para lembrar o menino? Ou um atelier, ou um centro para jovens gênios da computação. Por que logo drogas?
O livro é narrado ora por Noa, ora por Teo. Um e outro revelam um delicado e cansado amor entre pequenas discordâncias. A história parece modesta, Noa e Teo parecem estar atormentados pela pouca importância de seus compromissos comuns e pelo isolamento. Não diga noite descreve-os como duas pessoas que lutam para ficarem juntas, principalmente por meio de rituais domésticos que demonstram a crença resignada, mas romântica, de que tais rituais não são apenas cheios de beleza, mas talvez sejam tudo o que há de prazer na vida.
O enredo consiste em um pequeno conjunto de circunstâncias. É uma história principalmente de boas intenções mal interpretadas. O ex-aluno de Noa morreu de overdose de drogas e o pai do menino, suspeito de ser traficante de armas, aborda Noa com a ideia de um centro de reabilitação de drogas dedicado à memória de seu filho. O pai doará muito do dinheiro necessário para estabelecê-lo. Noa, lisonjeada e surpresa por ser convidada para chefiar o centro, trata de tocar o projeto. Ela organiza um pequeno grupo de pessoas para ajudá-la a planejar a clínica e arrecadar dinheiro. A ideia da clínica torna-se uma oportunidade para o romancista olhar para as tensões e dramas mesquinhos de uma pequena comunidade.
Fiquei mais interessado nas partes da história que se concentram em Noa. Quando a conhecemos, ela é jovem, brilhante e espalha “um rastro de perfume” pelo apartamento. Recentemente, ela foi animada pela ideia da clínica, embora o projeto a tenha afastado de Teo, que observa suas idas e vindas e explosões de entusiasmo com certo ceticismo. Depois de todos os anos juntos, Teo ainda a ama, embora sua condição seja a de um velho sem entusiasmo. Quando ele tenta ajudá-la — como arquiteto, ele está mais conectado aos poderes municipais, especialmente à prefeita de Tel Keidar –, intercedendo por Noa, ela perde o foco, como se tudo tivesse sido estragado para ela pelo interesse e participação de Teo. É uma calma crise.
A verdade é que ela é recebeu a informação de que o estudante morto estava ligeiramente apaixonada por ela. Quem afirma isso é Tali, uma amiga do estudante que diz a ela que o uso de drogas na comunidade não é tão generalizado ou um problema sério na cidade. Isso faz com que Noa perca o foco. De repente, ela começa a passar um tempo excessivo fazendo compras e indo ao cinema com a jovem. Tali é uma filha substituta, é uma negação de sua própria meia-idade ou as duas estão se apaixonando?
Não diga noite é uma melancólica música de câmara. É de um gênero de romance repousante que é regido por uma estética de calma. E é muito bom.
Amós Oz, na época da publicação de ‘Não diga noite’
Numa semana em que a Receita Federal declarou que “só rico lê”, devemos apontar o desconhecimento que esta tem de nossa “elite”.
O estudo ‘Retratos da leitura no Brasil’, realizado pelo Instituto Pró-Livro, mostra que as pessoas leem mais hoje do que em 2007 e 2015.
O interesse crescente pela leitura no conjunto da população apenas cai justamente entre os entrevistados definidos como “classe A”, conforme a faixa de renda.
Nesse grupo, que reúne os mais ricos, os que “gostam muito” de ler eram 48% em 2015, e caíram para 42%. Os que gostam “um pouco” eram 42%, e passaram a 41%. E os que não gostam saltaram de 10% para 17%.
Ademais, se os ricos lessem, não estaríamos na situação em que estamos.
Francamente…
Mesmo aos trancos e apesar do governo, a Bamboletras segue e seguirá. E ainda dando dicas. Confira abaixo.
Boa semana com boas leituras!
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O Jardim dos Finzi-Contini, de Giorgio Bassani (Todavia, 280 pág., R$ 69,90)
Um clássico moderno. O destino de parte dos protagonistas deste livro está anunciado nas primeiras páginas: os campos de concentração nazistas. Mas tudo se passa num enorme jardim na cidade italiana de Ferrara. À medida que a Segunda Guerra desponta, a relação da jovem Micòl Finzi-Contini com o narrador deste livro mostra suas limitações. Mas são essas mesmas limitações que fazem desse caso de amor não correspondido um dos mais pungentes da literatura moderna.
O Patriarcado do Salário, de Silvia Federeci (Boitempo, 208 pág., R$ 49,00)
‘O patriarcado do salário’, da filósofa italiana Silvia Federici, traz ao leitor uma série de artigos que abordam a relação entre marxismo e feminismo do ponto de vista da reprodução social. Retomando diversas discussões presentes nas obras de Karl Marx e Friedrich Engels, a autora aponta como a exploração de trabalhos como o doméstico e o de cuidados, exercido sem remuneração pelas mulheres, teve e tem papel central na consolidação e na sustentação do sistema capitalista. Revisitando a crítica feminista ao marxismo e trazendo para o debate perspectivas contemporâneas sobre gênero, ecologia, política dos comuns, tecnologia e inovação, Federici reafirma a importância da linguagem, dos conceitos e do caráter emancipador do marxismo.
Faltava muita coisa no apartamento 402. Mas sobravam muitas outras: caixas de papelão, bandejas de isopor, cacarecos, baratas, cupins, muriçocas, poeira, copos sujos. Abigail, Berta e Lúcio formam um trio nada convencional. Duas adolescentes dividem o apartamento com o pai, um homem amoroso, idiossincrático, acumulador, pouco afeito à vida prática, que torce para que a morte venha logo lhe buscar e dá conselhos incomuns às filhas: “É muito bom sentir fome”. Os tais caquinhos é um romance de formação trágico e comovente, capaz de arrancar risos nervosos. Ao descrever o dia a dia de uma família simbiótica em meio a uma cordilheira de lixo que só faz crescer, Natércia Pontes desenha um fascinante romance.
Um livro sem rodriguinhos (sentimentalismo barato, em português brasileiro), em que a narradora recorda a sua infância vivida em Moçambique até aos 13 anos e os seus primeiros tempos em Portugal, então já como retornada. Organizado em capítulos, alguns bastante breves e sincopados, são como flashes, diapositivos do colonialismo e da vida colonial.
As personagens centrais deste “Caderno de Memórias Coloniais” são o pai da narradora (uma menina branca) e a própria narradora. O pai é o homem que ela ama e que vai trair (verbo que usa várias vezes ao longo da narrativa) porque renega os comportamentos incompreensíveis, reprováveis e inaceitáveis que ele tinha para com os naturais daquele país de África. Um livro forte, directo, a descascar o complexo colonial de ocupação abusiva e de desrespeito pelo outro, porque o outro é de cor diferente, tem uma natureza inferior, era um animal. “Venham falar-me do colonialismo suavezinho dos portugueses… Venham contar-me a história da carochinha”, diz a narradora quase no final do livro.
Para além de ser um livro desassombrado e honesto, tem honras de prefácios de Paulina Chiziane e de José Gil, já eles dignos de serem lidos e aqui referidos. “Este livro trata das relações de género, do colonialismo e do nacionalismo. Poucas são as obras literárias que tratam destas questões com tanta profundidade.” escreve a escritora moçambicana. E continua: “ Estávamos eu e tu, cada uma no seu lado da barricada, quando o colonialismo aconteceu. Tu, branca, filha de um colono racista e eu, negra, filha de um colonizado, também racista.” Já José Gil assinala, a terminar: “Estas “memórias” são mais do que lembranças, são a própria vida, ontem-agora, a nossa vida de filhos de colonos (ou não) de Moçambique. Neste sentido, o “Caderno de Memórias Coloniais” de Isabela Figueiredo é mais do que um inventário romanceado de factos e acontecimentos: consegue exprimir-nos como se nós, leitores, tivéssemos todos atravessado o que autora experienciou. Nós todos somos “a pequena colona branca” com alma de preta, com a existência estilhaçada e o violento desejo de viver.”
Mas ainda antes dos prefácios, a autora dirige umas palavras prévias a quem a lê, explicando o porquê deste “Caderno”: “Não havia com quem falar sobre as coisas que me interpelavam, nomeadamente as que juntavam e separavam um ser humano de outro. Não existia essa linguagem nem discurso. Ninguém era capaz de me explicar.” (…) “O paradoxo reside no facto de só se ultrapassarem os choques de uma vivência, desenterrando-a, revolvendo os seus restos. O tempo silencioso apenas se abstém de produzir ruído.” (…) “A História enfrenta sempre esse grande óbice, que cabe aos investigadores ultrapassar: o silêncio sobre o que muito se calou ou escondeu. O que não honra. O lixo faz-se desaparecer, os cadáveres emparedam-se e tudo deixa de existir. Não vimos, não sabemos, nunca ouvimos falar, não demos por nada.”
“O “Caderno de Memórias Coloniais” relata a história de uma menina a caminho da adolescência, que viveu essa fase da vida no período tumultuoso do final do Império colonial português. O cenário é a cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, espaço no qual se movem as duas personagens em luta: pai e filha. São símbolos de um velho e de um novo poder; de um velho mundo que chegou ao fim, confrontado por uma nova era que desponta e exige explicações. A guerra dos mundos em 1970.”
“Mas o “Caderno” transcende as questões de poder colonial, racial, social e de género, transformando-se, também, numa narrativa de amor filial conturbado e indestrutível.”
A linguagem é crua, capaz de escandalizar espíritos mais sensíveis. Aliás, o livro foi mal amado por muitos que se viram retratados, mas que não assumem as marcas odiosas do colonialismo e do racismo; mas também foi muito bem recebido “pela crítica, pela Academia e pelos leitores em geral”, tendo sido lido e estudado no mundo inteiro, com várias edições desde 2009, indo já na 9ª edição. Pretas e senhoras (mulheres decentes), pretos e brancos, havia uma clara separação e hierarquização, pelo que embora um branco pudesse casar com uma negra, uma branca assumir uma relação com um negro levaria à inevitável proscrição social. A estratificação estava claramente estabelecida: quem vendia na rua; quem tinha acesso só ao elevador de serviço para ir buscar o lixo do prédio; quem recebia as sobras; quem recebia roupa velha e rasgada; quem se sentava em determinados lugares no cinema e só naqueles.
A filha do electricista que observa tudo e que ouve as conversas do pai com os outros homens e que, quando é mandada para a Metrópole, com a incumbência de contar o que os pretos estavam a fazer aos brancos que só sonhavam transformar África numa Califórnia, sente que traiu o pai porque nunca foi capaz de o fazer. Ou de o fazer, como ele queria. A verdade é que “o tempo dos brancos tinha acabado.”
Há pois, nesta obra, um antes e um depois da independência. A menina branca, filha do colono racista, vai viver para a casa miserável da avó, vai ser a retornada gorda, vai sentir o desenraizamento e o desamor com que é olhada pelos portugueses da Metrópole.
Estes são breves traços do livro e da leitura que faço dele, mas acho que ele ainda fica mais rico com os prefácios com que Paulina Chiziane e José Gil brindaram este livro imprescindível para se fazer a história do colonialismo e racismo português.
Quando Claudio Gatti publicou uma investigação sobre a identidade de Elena Ferrante, há alguns anos, ele levantou protestos na Itália e no exterior. Ele havia invadido a privacidade da autora e violado seu direito de permanecer anônima. Era injusto, era irrelevante, não queríamos saber.
Verdade? Sim e não. Havia uma conclusão importante no artigo de Gatti: quem escrevia os romances de Ferrante era a tradutora Anita Raja, uma mulher.
Isso foi um alívio. Se você não sabe como os acadêmicos e jornalistas italianos podem ser sexistas, fica difícil imaginar a importância do gênero de Ferrante para todos nós que estudamos seu trabalho ao longo dos anos. Antes mesmo de Minha Amiga Genial ser publicado, correram rumores de que a obra de Ferrante tinha sido de autoria de um homem, e eles se intensificaram após o sucesso dos romances napolitanos nos Estados Unidos. Lembro de meu orientador me contando sobre essas especulações quando comecei a trabalhar com Ferrante em 2015; nós dois zombamos da misoginia que esse tipo de fofoca implicava, sentindo-nos como se estivéssemos nas trincheiras de uma mini guerra cultural.
Portanto, quando me deparei com uma série de artigos acadêmicos que, por meio de uma análise estilométrica, identificaram Elena Ferrante como o romancista italiano Domenico Starnone (marido de Anita Raja), não estava pronta para depor minhas armas. Naquela época, eu não tinha lido nenhum dos romances de Starnone. Eu sabia que ele era um autor prolífico, que havia escrito bastante sobre o ensino médio e que seu longo romance semiautobiográfico sobre sua juventude em Nápoles, Via Gemito, ganhara o prestigioso Prêmio Strega. Mas eu realmente não me importava com ele. Quando confrontado com a ideia de que ele poderia ser o autor de meus amados romances napolitanos, meu primeiro impulso foi deixar essa informação de lado, não falar sobre ela, e nem pensar muito a respeito.
Eu não estava sozinha. Embora o primeiro desses artigos estilometricos, de Arjuna Tuzzi e Michele A Cortelazzo, tenha saído em 2018 — exatamente no momento em que as publicações internacionais sobre Ferrante se multiplicavam exponencialmente –, quase nunca era citado fora do campo das humanidades digitais. Nas raras ocasiões em que foi mencionado, foi rapidamente descartado: abordar o problema da identidade de Ferrante, ao que parece, seria bastante prejudicial para qualquer análise séria de seus escritos, na opinião de alguns estudiosos.
É uma boa prática entre os estudiosos de Ferrante declarar que, seja qual for o seu gênero, o que conta é que ela escolheu adotar a persona de uma mulher. Mas permanece o fato de que os críticos frequentemente (embora com reprovação) citam Gatti quando querem discutir as ideias de Anita Raja sobre tradução em relação a Ferrante, enquanto ignoram cuidadosamente Tuzzi, Cortellazzo, Jacques Savoy e os outros nove estudiosos que confirmaram que os estilos de Ferrante e Starnone costumam ser indistinguíveis. Rachel Donadio foi a única que tentou (com sucesso) comparar os romances de Ferrante e Starnone, mas o fez nas páginas do The Atlantic e do The New York Times, pois a comparação é um tabu na academia.
Comecemos do início, então, e vejamos que quadro de Ferrante esses artigos nos permitem traçar. Em primeiro lugar, é útil saber que Tuzzi e Cortellazzo montaram um grande corpus para suas análises: 150 romances de 40 romancistas italianos contemporâneos, equilibrados por gênero e origem regional. Este corpo de textos foi então usado por um grupo de especialistas internacionais que participaram de um workshop de verão na Universidade de Padova em 2017. Eles trabalharam de forma independente e com abordagens metodológicas diferentes, mas chegaram a conclusões semelhantes (os anais do workshop foram publicados pela editora da Universidade de Padova). Georgios Mikros, da Universidade de Atenas, por exemplo, usou o corpus textual para treinar um algoritmo (aplicativo) de aprendizado de computador para criar perfis de autores (ou seja, identificar seu sexo, idade e procedência) com um alto grau de precisão. Este algoritmo concluiu que a pessoa por trás de Elena Ferrante era um homem com mais de 60 anos da região da Campânia, onde fica Nápoles).
E aquele velho napolitano se parece suspeitosamente com Domenico Starnone: na representação visual do corpus de Maciej Eder e Jan Rybicki, os romances de Ferrante e Starnone ocupam o mesmo lugar marginal, distante da maioria dos outros textos e conectados a eles apenas pelos três primeiros romances de Starnone, que foram escritos entre 1987 e 1991. Em outras palavras, Starnone e Ferrante são autores altamente originais, diferentes de todos os outros escritores italianos, mas muito próximos um do outro.
No estudo de Margherita Lalli, Francesca Tria e Vittorio Loreto (Universidade La Sapienza de Roma), um algoritmo de compressão de dados atribui erroneamente Um Amor Incômodo, de Ferrante, a Starnone, e Excesso de Zelo, Via Gemito e A Primeira Execução, de Starnone, a Ferrante. Em sua introdução ao volume, Tuzzi e Cortellazzo também fornecem uma lista muito longa de termos e expressões que podem ser encontrados apenas (e frequentemente) nos escritos de Starnone e Ferrante, mas em nenhum trabalho de outro escritor.
Em seu último estudo, Tuzzi e Cortellazzo também nos permitem delinear uma evolução paralela no tempo: depois de seus primeiros romances relativamente convencionais, Starnone desenvolve um estilo muito reconhecível no início dos anos 1990. Entre 1992 e o início dos anos 2000, diferentes romances são publicados com os nomes de Ferrante e Starnone, mas todos parecem pertencer à mesma família: o romance de Ferrante de 1992 (Um Amor Incômodo) é semelhante aos romances de Starnone de 1993 e 1994 (Excesso de Zelo e Dentes), a Ferrante de 2002 e 2006 (Dias de Abandono e A Filha Perdida) são mais semelhantes ao Starnone de 2005 (Responsabilidade). Então, por volta da década de 2010, vemos um desenvolvimento estilístico: tanto Ferrante quanto Starnone adquirem um certo distanciamento de seus eus mais velhos. Os romances napolitanos são mais semelhantes entre si — compreensivelmente, já que são um longo romance dividido em quatro volumes — e com o romance de Ferrante de 2019, A vida mentirosa dos adultos. Além disso, os romances mais recentes de Starnone podem ser agrupados, pois suas características são mais marcadamente únicas.
Esses dados podem ser interpretados de diferentes maneiras. No início, parece claro que Starnone está usando o nome de Ferrante quando quer adotar uma narradora feminina em primeira pessoa, sem se preocupar em mudar sua voz característica. Mais tarde, ele pode ter trabalhado para uma diferenciação mais acentuada dos dois estilos — ou outra coisa pode ter acontecido. Talvez uma colaboração com Raja. Um autor, Rybicki, que teve experiência anterior em analisar os esforços de escrita de um casal, não exclui essa possibilidade. Tuzzi e Cortellazzo também mostram que os escritos de não ficção de Ferrante — aqueles reunidos no volume Frantumaglia –– não são tão estilisticamente coerentes quanto sua ficção. Seu algoritmo atribui os diferentes ensaios, cartas e entrevistas a três autores diferentes: Starnone, Raja e um autor coletivo que representa os proprietários e materiais de publicidade da editora E/O (a editora de Ferrante desde o início). Em todo caso, parece quase fora de dúvida que Starnone, sozinho ou em dupla com sua esposa sentou-se e datilografou os romances que foram publicados sob o nome de Elena Ferrante.
Mas esta é uma história que vai além de Starnone. Para quem se interessa, como eu, pela história cultural do nosso presente, a criação de Elena Ferrante é um caso notável.
No início da década de 1990, Domenico Starnone tinha contrato com uma das principais editoras italianas, a Feltrinelli, para a qual havia publicado três romances entre 1989 e 1991. Nesse ponto, começou a colaborar com a jovem e pouco conhecida editora a casa Edizioni E/O, onde sua esposa Anita Raja trabalhou como tradutora freelancer de alemão durante os anos 1980. No catálogo da E/O, o nome de Starnone aparece apenas entre 1991 e 1992. Ele escreveu um posfácio para uma coleção de contos de Mark Twain, um ensaio em um volume sobre literatura infanto juvenil, e Sottobanco, uma adaptação teatral de seu primeiro livro, o único que Feltrinelli não publicou. 1992 foi também o ano em que O Amor Incômodo, o primeiro dos romances de Ferrante, saiu pela E/O.
Sandro Ferri e Sandra Ozzola, os fundadores da editora, devem ter feito questão de manter Starnone entre seus autores, mas Starnone — talvez por causa de obrigações contratuais, talvez por escolha — decidiu continuar a publicar em seu nome real para a Feltrinelli e sob o pseudônimo de Ferrante para a E/O. Afinal, uma escritora estava mais de acordo com o projeto editorial de Ferri e Ozzola, e a escolha de Starnone de escrever como homem para uma editora de prestígio e como mulher para uma editora marginal era consistente com a estrutura do espaço literário italiano dominado por homens.
O segundo capítulo dessa história começa em 2005, quando Ferri e Ozzola fundaram a Europa Editions em Londres e Nova York. Sua missão — de publicar autores periféricos e servir como ponte entre diferentes nações e culturas — não encontrou muita ressonância na Itália, mas estava perfeitamente alinhada com o novo entusiasmo pela “literatura mundial” que estudiosos, críticos culturais e editores independentes compartilhavam no mundo anglófono. Para conquistar seu nicho neste mundo, Ferri e Ozzola decidiram apostar em Elena Ferrante: Dias de Abandono foi um dos dois livros que a Europa Editions publicou em seu primeiro ano, e todos os seus outros romances foram traduzidos para o inglês imediatamente depois que eles saíram em italiano.
Foi uma aposta vencedora, mas eles não tiveram apenas sorte. Se ser uma autora era uma desvantagem na Itália, era muito menos nos Estados Unidos. Na década de 2010 a 2019, as mulheres constituíram 60% dos autores selecionados e 60% dos vencedores do National Book Award for Fiction, 52% dos indicados e 60% dos vencedores do Prêmio PEN / Faulkner e 80% dos vencedores do National Book Critics Circle Award, só para citar alguns dos reconhecimentos mais importantes. Enquanto Ferrante levou seus leitores globais a uma “febre”, Domenico Starnone recebeu atenção da crítica nos Estados Unidos apenas com seu romance de 2014, Laços, que pode ser lido como uma sequência de Dias de Abandono, de Ferrante.
Não estou sugerindo que a invenção de Elena Ferrante foi apenas um empreendimento editorial astuto. Um pseudônimo feminino pode ter sido uma forma de evitar críticas: se você pesquisar no Google “escritores masculinos que escrevem personagens femininos”, os primeiros resultados (com títulos como “30 vezes que autores masculinos mostraram que mal sabem alguma coisa sobre mulheres” e “escritores masculinos não têm nenhuma ideia de como escrever sobre personagens femininos”) deixam claro que essa prática sofre de enorme má reputação. Escrever sobre gênero da perspectiva de uma mulher também poderia ter sido uma forma de chamar a atenção para a questão da dinâmica de classe e mobilidade social que muitas vezes esteve no centro da escrita de Starnone. Perto do final do Quarteto Napolitano, a protagonista Elena Greco diz que sem sua brilhante amiga Lila, toda a sua vida “seria reduzida apenas a uma batalha mesquinha para mudar de classe social”.
Poderia ser útil, então, redirecionar nossa atenção do assunto de gênero para o de classe. O último romance de Ferrante, A Vida Mentirosa dos Adultos, tem pouco a acrescentar sobre a questão da identidade das mulheres. Especialmente no início, a história parece se repetir com pequenas variações a todos os tropos de Ferrante: a ideia de não ser nada além de “um nó emaranhado”, o apagamento de mulheres em fotos e na carne, a ideia de mães espiando através de suas filhas, a amizade feminina baseada na emulação e desejo de fusão, o ciúme e possessividade em relação à mãe, a sexualidade dos filhos. Frases de livros anteriores, e especialmente do Quarteto Napolitano, são repetidas quase inalteradas. A única diferença é que desta vez o ponto de vista parece ser o de uma reencarnação mais jovem de Lila em vez de outra Elena.
A principal novidade da história, ao contrário, é o que ela diz sobre classe social. Os romances napolitanos foram construídos na contraposição dos bairros proletários e subproletários de Nápoles ao centro da cidade burguesa. Uma ética de responsabilidade e realização educacional e um grande investimento em status eram as pedras angulares das crenças de Elena Greco. Em A Vida Mentirosa, porém, a protagonista Giovanna e seus amigos abraçam valores pós-materialistas e se atualizam: eles podem viajar livremente e ainda reconhecer a importância das periferias mais pobres de Nápoles, eles não se preocupam com boas notas, mas estão interessados em ler e escrever como um meio de cultivar seu eu autêntico. Eles são a nova classe média cosmopolita e rejeitam as dicotomias de classe da geração mais velha.
Estudar os romances de Ferrante junto com os de Starnone pode nos tornar melhores leitores de ambos e abrir novos caminhos para os estudiosos. Mas reconhecer que Elena Ferrante é provavelmente um homem também pode mudar as coisas para pior. Ela nos serviu bem: as acadêmicas que se dedicam a estudos italianos de repente tiveram um ingresso confiável em conferências internacionais, revistas online, edições especiais, em editoras. Essas vantagens podem chegar ao fim. Mas isso não é motivo para ficar triste; Elena Ferrante ainda é um prazer de ler. E ela também é o maior mistério literário de nosso tempo.
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Elisa Sotgiu é candidata ao doutorado em Literatura Comparada em Harvard. Ela estudou na Scuola Normale Superiore em Pisa e publicou sobre Edoardo Sanguineti, Henry James e Elena Ferrante.
Anita Starnone e Domenico Ferrante? Ou Elena Raja?
As sugestões desta primeira terça-feira de abril são bem ecléticas. Confira abaixo.
Boa semana com boas leituras!
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Carta Aberta ao Demônio, de Ricardo Silvestrin (Libretos, 104 pág., R$ 32,00)
Carta aberta ao Demônio são 73 poemas de Ricardo Silvestrin divididos em quatro partes: Outro tempo, Outros cantos, Errata e Atribuído a mim. O livro ressoa os tempos distópicos em que vivemos, sem abrir mão do relato do horror. O Demônio, espécie de símbolo do tempo presente, é interpelado. Os versos vão da indignação à reflexão, do espaço íntimo à metalinguagem, da tristeza ao humor.
Porto Alegre, Cidade Baixa: um bairro que contém seu passado, de Renato Menegotto (Marcavisual, 136 pág., R$ 45,00)
A leitura de ”Porto Alegre, Cidade Baixa: um bairro que contém seu passado” é resultado de uma minuciosa e elaborada pesquisa do autor, apresenta-se como uma oportunidade ímpar de acesso à complexidade do bairro. Em um criterioso passeio pela história são desvendadas sua urbanidade e suas edificações, dando a conhecer verdadeiros documentos históricos.
O Enigma do Quarto 622, de Joël Dicker (Intrínseca, 528 pág., R$ 64,90)
Joël Dicker retorna com um mistério ambientado na Suíça. Em uma noite de dezembro, o sofisticado hotel Palace de Verbier, nos Alpes Suíços, é palco de um assassinato sem solução, já que a investigação do crime nunca é concluída pela polícia. Anos depois, o escritor Joël decide tirar alguns dias de férias e se hospeda nesse mesmo local. Lá, uma surpresa o aguarda: seu quarto é o 621 bis, a nova nomenclatura do agora estigmatizado 622, e a curiosidade o leva a mergulhar em uma investigação sobre o caso emblemático.
Como de costume, segue a lista dos mais vendidos do mês de março na Livraria Bamboletras. Alguns títulos seguem na lista, mas o mês passado trouxe novidades!
1. Torto Arado, de Itamar Vieira Junior (Todavia)
2. Os Supridores, de José Falero (Todavia)
3. O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório (Companhia das Letras)
4. As Inseparáveis, de Simone de Beauvoir (Record)
5. Marrom e Amarelo, de Paulo Scott (Alfaguara)
6. O ar que me falta, de Luiz Schwarcz (Companhia das Letras)
7. E fomos ser gauche na vida, de Lelei Teixeira (Pubblicato)
8. D’ale: Meus sonhos, meu futebol, minha vida, meu legado, de Diego Borinsky (Sulina)
9. A Estrangeira, de Claudia Durastanti (Todavia)
10. A Vida Mentirosa dos Adultos, de Elena Ferrante (Intrínseca)
É claro que temos todos! É só entrar em contato ou vir até nossa porta!
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Caros, eu já expliquei algumas vezes o “Caso Rubens Enderle”, mas vamos lá uma vez mais. Rubens chegou à Boitempo há cerca de vinte anos, recomendado por uma professora marxista, de nossa inteira confiança. Ele era à época um jovem estudioso de Marx, com amplo conhecimento da língua alemã. traduziu boa parte da obra marxiana e também a de alguns marxistas, todos de forma competente e séria. Foi sempre elogiado pelos especialistas que melhor conhecem os dois idiomas. Ganhou o Prêmio Jabuti de melhor tradução com O Capital, livro I (prêmio raramente dado a livros de não-ficção) e diversas outras menções honrosas. Em determinado momento, creio que quando traduzia o livro II, passamos a ter noticias de manifestações dele nas redes sociais em favor de Olavo de Carvalho e outras causas indefensáveis. Num primeiro momento, não demos atenção a elas, afinal importava que ele era um bom tradutor. Mas a coisa cresceu, se agravou (tenho apenas noticias, nunca vi nenhuma de suas postagens, nem pretendo) a ponto de decidirmos não mais contratá-lo para novas traduções, por suas posições ferirem nossa linha e posicionamentos públicos. Isso, entretanto, não significa que qualquer de seus trabalhos devam ser colocados em dúvida. O que ele traduziu foi bem feito e seguirá em nosso catálogo. Agradeço se puderem transmitir esta explicação quando e se esse assunto voltar à baila. Obrigada e abraços.
Basta ler as sinopses abaixo para se notar estamos diante de três livros muito originais. Mas há muito mais. Consulte-nos! Fique à vontade para compartilhar esta newsletter com outras pessoas, e faça seu pedido com a gente!
Boas leituras!
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O Som do Rugido da Onça, de Micheliny Verunschk (Cia. das Letras, 166 pág., R$ 54,90)
Em 1817, Spix e Martius desembarcaram no Brasil com a missão de registrar suas impressões sobre o país. Três anos e 10 mil quilômetros depois, os exploradores voltaram a Munique trazendo consigo não apenas um extenso relato da viagem, mas também um menino e uma menina indígenas, que morreriam pouco tempo depois de chegar em solo europeu. Em seu quinto romance, Micheliny Verunschk constrói uma poderosa narrativa que deixa de lado a historiografia hegemônica. Com uma prosa embebida de lirismo, este é um livro sem paralelos na literatura brasileira ao tratar de temas como memória, colonialismo e pertencimento.
Klara e o Sol, de Kazuo Ishiguro (Cia. das Letras, 336 pág., R$ 59,90)
Do ganhador do Nobel Kazuo Ishiguro, autor dos livros ‘Não me abandone jamais’ e ‘O gigante enterrado’, um novo romance sobre o que significa ser humano. Klara tem habilidades de observação impressionantes e estuda com cuidado o comportamento de todos que passam pela vitrine. Do lugar onde foi designada para ficar na loja, ela espera que uma dessas pessoas a escolha como companheira. Contudo, quando surge a possibilidade de sua vida mudar para sempre, Klara é aconselhada a não apostar suas fichas na bondade humana.
A Visão das Plantas, de Djaimilia Pereira de Almeida (Todavia, 88 pág., R$ 49,90)
Com esta meditação sobre o bem e o mal, e como a natureza parece indiferente à nossa moralidade, Djaimilia Pereira de Almeida construiu um romance que encanta pela beleza de suas frases e fascina pela profundidade com que Celestino, este homem a um só tempo brutal e delicado, é desenhado. Um livro arrebatador.
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Morte na Água, de Kenzaburo Oe (Cia. das Letras, 456 pág., R$ 99,90)
Conhecido pela profunda humanidade de seus personagens, Kenzaburo Oe (Nobel de Literatura de 1994) é um dos principais romancistas contemporâneos. Em “Morte na Água”, acompanhamos o escritor Kogito Chōkō — alter ego do próprio Oe — em sua busca de inspiração para seu próximo livro, que o leva de volta à sua cidade natal em busca de informações que expliquem melhor a morte de seu pai. A intenção de Kogito é escrever um romance a partir do que coletar, mas ele acaba se vendo em meio a questões muito mais complexas que envolvem desde traumas pessoais até descobertas que remontam à Segunda Guerra Mundial.
A Nota Amarela, de Gustavo Czekster (Zouk, 238 pág., R$ 50,00)
A cellista Jacqueline du Pré sobe ao palco para o concerto mais emblemático de sua vida. Enquanto executa o Concerto para Violoncelo de Elgar – regido pelo maestro Daniel Barenboim, com quem recém havia se casado –, Jacqueline mergulha no labirinto da própria mente, atravessando claridades e escuridões à procura da perfeição. O cello, vivo junto ao corpo, por vezes é a tábua de salvação que a impede de se afogar; por outras, o traidor que aponta o caminho mais perigoso entre as pedras e as ondas. O livro cumpre uma das mais importantes funções da literatura: trazer a palavra para dentro do vazio das imagens. Depois daquela tarde em 1967, a violoncelista mais famosa do mundo, que tocava para reis e presidentes, entenderia as consequências de sua busca pela nota impossível.
A Era do Capitalismo de Vigilância, de Shoshana Zuboff (Intrínseca, 800 pág., R$ 99,90)
Obra-prima em termos de pensamento original e pesquisa, “A era do capitalismo de vigilância”, de Shoshana Zuboff, apresenta ideias alarmantes sobre o fenômeno que ela nomeia capitalismo de vigilância. Os riscos não poderiam ser maiores: uma arquitetura global de modificação comportamental ameaça impactar a humanidade no século XXI de forma tão radical quanto o capitalismo industrial desfigurou o mundo natural no século XX. Zuboff chama a atenção para as consequências das práticas de empresas de tecnologia sobre todos os setores da economia. Um grande volume de riqueza e poder vem sendo acumulado em sinistros “mercados futuros comportamentais”, nos quais os dados que deixamos nas redes são negociados sem o nosso consentimento e a produção de bens e serviços segue a lógica de novas “formas de modificação de comportamento”. A ameaça não é mais um estado totalitário simbolizado pelo Grande Irmão da literatura de George Orwell, mas uma arquitetura digital presente em todos os lugares, agindo em prol dos interesses do capital de vigilância.
Não é um momento de sutilezas, nada é propício para reforçar nuances, a se deter nos detalhes, desfrutar da imensa variedade de coisas. O que se impõe hoje é colocar as mãos no esterco, construir um registro de ofensas, brincar de ser vítima permanente de uma conspiração remota, procurar aliados para se fortalecer em uma batalha que se trava entre as trevas e os claros. Por isso é estimulante conhecer o Professor Borges e meter o nariz em seu Curso de Literatura Inglesa na Universidade de Buenos Aires, que desembarcou nas livrarias no ano passado e que lembra algumas aulas que deu em 1966. Jorge Luis Borges, já cego, se oferece como guia para explorar alguns momentos que o emocionaram, e tenta explicar o que lhe aconteceu quando foi cativado por uma frase, um fragmento, os sons de uma língua, suas expressões. “É como se ouvíssemos o barulho das espadas, o golpe das lanças nos escudos, o tumulto dos gritos na batalha”, diz ele a seus alunos ao lidar com os poemas épicos que os anglo-saxões escreveram na Idade Média.
Borges tem se mantido como referência dos mais sofisticados e elitistas, como quem faz parte do denso e severo mundo das biblioteca e que perdeu qualquer contato com a vida. Descobriu-se então que era um cara que se misturava com o barulho de sua época, que divulgava boa parte de seus textos em publicações para o grande público, que gostava muito do que acontecia na rua, que gostava de andar. e bisbilhotar os assuntos do dia-a-dia. Ele dava a máxima atenção aos subúrbios, aos duelos de faca, às armadilhas das favelas, ao lado mais selvagem daquela Buenos Aires que crescia de forma caótica. E, bem, sempre havia o outro. Aquele que percorre toda a extensão de todas as culturas ao longo dos séculos, e que o faz como se fosse contemporâneo de um velho sábio chinês, de um escocês esclarecido, do próprio Cervantes.
“Tigres, labirintos, duelos, ruas, livros, séculos, vozes”: tudo está à disposição de Borges para construir sua literatura, afirma o escritor argentino Alan Pauls em livro que publicou anos atrás – O fator Borges – e que talvez constitua o melhor ferramenta para voltar a mergulhar em seus trabalhos. A certa altura, ele se pergunta se não é nada mais do que um artista de cópias e falsificações. “Ler, glosar, revisar e traduzir são apenas algumas formas óbvias desse parasitismo”, ressalta. “É como se escrever fosse isso, nada mais e nada menos que isso: mover coisas, cortar e colar, extrapolar e enxertar, desalojar e recolocar, expatriar e enraizar, separar e inserir”.
“Tento passar o mais despercebido e invisível que posso; Talvez a única maneira de passar despercebido seja se vestir com um pouco de cuidado, certo? ”, Disse ele em entrevista. No meio do barulho e quando tantos esticam o peito para rasgar a roupa, talvez seja útil operar à maneira de Borges. Torne-se invisível e possa ouvir “o golpe das lanças nos escudos”.
Um livro de cartas escritas por uma doméstica antilhana para a brasileira Carolina Maria de Jesus no início dos anos 60, uma biografia da Depressão e um caso de violência sexual ocorrido no Rio de Janeiro. Podem não ser temas fáceis, mas o que está fácil?
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Cartas a uma Negra, de Françoise Ega (Todavia, 252 pág., R$ 59,90)
Antilhana, Françoise Ega trabalhava em casas de família em Marselha, na França. Um de seus pequenos prazeres era ler a revista Paris Match, na qual deu de cara com um texto sobre Carolina Maria de Jesus e seu clássico “Quarto de Despejo”. Identificou-se imediatamente e passou a escrever “cartas” — jamais entregues — à autora brasileira. Cartas a uma Negra, publicado postumamente, é um dos documentos literários mais significativos e tocantes sobre a exploração feminina e o racismo no século 20.
Uma Biografia da Depressão, de Christian Dunker (Paidós, 240 pág., R$ 41,90)
A Depressão tem uma história, e a compreensão dessa história nos ajuda a descobrir a melhor forma de entendê-la, tratá-la e controlá-la hoje. Refazendo os passos genealógicos da Depressão a partir de seus parentes distantes nas famílias da tristeza e da melancolia, Dunker descreve como ela se tornou um personagem decisivo na Idade Moderna, notadamente com os grandes trágicos da virada do século XVI e XVII, como Shakespeare e Molière, e como ela emergiu como personagem secundário na psicopatologia do século XIX e na psicanálise do século XX, ganhando um inesperado reconhecimento a partir da segunda metade do século passado.
Vista Chinesa, de Tatiana Salem Levy (Todavia, 110 pág., R$ 54,90)
Estamos em 2014. Euforia no Brasil e especialmente na cidade do Rio de Janeiro. A Copa do Mundo estava prestes a acontecer e as Olimpíadas de 2016 estava no horizonte. Tempos de esperança e construção. Júlia é sócia de um escritório de arquitetura que está planejando alguns projetos na futura Vila Olímpica. No dia de uma dessas reuniões com a prefeitura, Júlia sai para correr no Alto da Boa Vista. A certa altura, alguém encosta um cano de revólver na sua cabeça e a leva para uma área baldia. É estuprada. O rosário de dor é descrito com crueza e qualidade literária.
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Já se passaram muitos anos desde aquela vez em que fui expulso de uma instituição católica de ensino. O motivo me deixa tranquilo. A ferida interna que ficou, não.
A tal instituição é uma tradicional escola particular porto-alegrense. Um colégio que pode receber quaisquer alunos, mas que tem a característica de, há muitos anos, manter turmas para deficientes visuais. Está preparada para a missão e tem professores especializados. Eu ficava no meu canto, tranquilo, na biblioteca. Gostava de lá e era bastante amigo da bibliotecária que trabalhava à tarde. Ela conhecia seu ofício e era a responsável pela Hora do Conto. Conversávamos antes de ela contar as histórias e lendas para as crianças pequenas, despertando-lhes o interesse com seu talento. Ela também costumava pressionar a bibliotecária titular para que esta cumprisse seus horários de forma a que pudéssemos recolocar mais rapidamente para empréstimo os livros que retornavam e os que chegavam. Chegava muita coisa boa. Eu carimbava os livros, colocava-lhes etiquetas e ajudava na restauração dos muitos que voltavam quase destruídos da casa de crianças e pais descuidados. Quando vieram as férias dos alunos, fui deslocado para a digitação. O que se digitava lá? Ora, livros. Digitávamos os livros que depois seriam impressos em Braille para os deficientes visuais.
Então, em julho, me passaram o livro Porteira Fechada, de Cyro Martins. Ele já fora digitado até a página 50 e faltavam 103. Como tratava-se de leitura obrigatória para o Vestibular da UFRGS, havia a necessidade de passá-lo com urgência para Braille. Era uma atividade que me dava prazer. É um excelente livro, conta uma boa história e dei o meu melhor. E então começaram os problemas.
Conversei com a funcionária que receberia meu trabalho e ela ficou encantada com minha disposição de não apenas terminar a digitação de cada página, como com minha vontade de revisar as 50 páginas iniciais que eu constatara estarem cheias de erros. Haviam permanecido erros de pontuação e palavras não corrigidas, apesar da gritaria do corretor ortográfico do Word. Na curta biografia de Cyro que abre o volume, as únicas letras maiúsculas eram as que iniciavam as frases. O nome dos pais de Cyro, o de sua cidade, o das universidades onde estudou, o das cidades por onde andou, o nome de seus amigos, etc. estavam todos em minúsculas. Pior: como em Braille não há itálicos, os nomes das obras do autor teriam que figurar entre aspas. E não havia aspas no texto. Tinha até uma frase onde parecia que Estrada Nova era parte da frase e não nome de um romance de Cyro. Eu mostrei tudo aquilo para a responsável e ela então pediu que eu fizesse a revisão completa. OK, sem problemas, tinha tempo de sobra.
Quando relatei os acontecimentos para minha chefe, uma religiosa, ela disse que a responsável pelo Braille estava querendo que eu fizesse um trabalho que era de outro setor, não do meu. Completou dizendo que se tratava de uma inútil. Sinceramente, não me parecera. De forma débil, pois sei que tudo o que não tinha lá era “espaço”, “direitos” e “poder”, solicitei educadamente fazê-lo, pois o nome do digitador vai na capa da obra e será lido tanto por quem o vê quanto por quem o lê com as mãos. Ela recusou terminantemente. Disse-me que eu estaria fazendo o trabalho que um setor coalhado de preguiçosos (expressão dela) não fazia. Esta religiosa é uma patética personagem de romance: uma espécie de faz-tudo que anda entre os setores supervisionando o trabalho de cada funcionário, espalhando sorrisos e pequenas maldades. Seu problema era o de ser acatada apenas por quem precisava acatá-la: pelos que tinha medo dela. O restante, os funcionários, riam da figura ou simplesmente a ignoravam. Em quatro meses, nunca tivera nenhum problema. Aquele era o primeiro e não era grave.
Decidi fazer a revisão em casa e entreguei o arquivo ao setor de Bralle num final de manhã através de outra pessoa, para que a freira não tivesse a oportunidade de questionar nada. O meu nome estaria lá, pô. Por volta daquele dia, a freira faz-tudo anunciou que estava estressada — puxa, estressada é tudo o que ela NÃO parecia — e que iria para um retiro. Os tais retiros são motivos de piada entre os funcionários. Quando um religioso se incomoda, ser superior que é, vai para uma espécie de Spa de Cristo; quando o mesmo acontece com um funcionário, ele segue trabalhando. Acontece muito neste gênero de empresas livre de impostos, administradas por deus: quando ninguém suporta mais uma freirinha, ela vai para um retiro e depois é destinada a um novo paradeiro, de onde será novamente chutada entre padre nossos. Certamente ela estava de malas prontas, pronta a enobrecer com suas fofocas a obra de deus em outras plagas, mas antes tinha que me sacanear.
E, antes de viajar, ela, que sempre vinha conversar sorridente comigo, subitamente me acusou de trabalhar em outros “arquivos”. Quis responder, mas ela me mostrava sua mão espalmada, sinal inequívoco de “Não quero ouvir”. Então, eu calava. Sim, era verdade, ela tinha razão, eu mexia em outros arquivos. É que o pessoal do Braille me perguntara se eu poderia apressar a digitação de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que já andava lá pela página 300 com outra pessoa. Eu vira a qualidade da digitação já realizada e sabia que era apenas razoável, principalmente em razão da dificuldade e da aridez do texto em muitas partes. O que fiz? Busquei o livro inteiro no Portal Domínio Público. Busquei a mesma edição digitada, pois o pessoal do Braille me alertara que a transcrição tinha de ser similar ipsis litteris igualzinha cara de um focinho de outro à edição que a escola possuía. Eu queria repassar aos cegos a melhor cópia possível. E que eu fazia com meu pecaminoso arquivo disponibilizado pelo Governo Federal em seu site? Ora, procurava passar o “.pdf” para “.doc” a fim de deixar Os Sertões no formato ideal antes de ir para a impressora Braille. Ficou logo pronto, com suas letras grandes, com underline no lugar dos travessões das falas, travessões onde havia travessões, etc.
Como punição por me preocupar com a qualidade da leitura dos cegos, fui devolvido à Biblioteca. OK, problema nenhum. Lá fui eu, bovinamente. No dia seguinte, recebi a folha de avaliação. Havia várias perguntas e um espaço para que pudéssemos dar nossas opiniões. E então, certamente por raiva, cometi um erro grave. Expliquei o que fizera para o setor de Braille. Falei de Euclides e seus adjetivos arrevesados. Escrevi sem nenhuma ironia, cheio de boas intenções. Uma hora depois, a freirinha voltou com a folha na mão. Sua primeira pergunta foi inacreditável. Ela perguntou sobre minha crença em deus. Mesmo sabendo que meu trabalho era bom e necessário, sabia que me atirava no precipício ao responder: sou ateu. Fui bruscamente solicitado a me retirar dali para sempre.
Nos dias seguintes, recebi diversas ligações do setor de Braille. Queriam que eu voltasse. Eu disse que tinha sido expulso. Fodam-se os cegos, né? Obedeça-se a quem acha a disciplina formal mais importante do que a disciplina cabal de fazer as coisas. Três meses depois, a funcionária do setor de Braille ainda queria que eu voltasse, principalmente porque a freirinha tinha sido finalmente transferida, mas já estava outra em seu lugar que… Já sabia que eu era ateu. Como a responsável pelo setor de Braille também era, mas não dizia.
(Meus sete leitores, digo-lhes: que romance não daria a vida naquele inferno com Cristo, quanto ciúme, quantas querelas, quantos olhares… E quanto conforto, meu deus! Deveria pensar mais nisso e dedicar o resultado às manas servas de deus!).
Obs.: Texto revisado hoje. Prova de que ainda é um problema.