Neste momento, há dois exemplares de O Anão à venda na Estante Virtual. A única edição nacional é da Civilização Brasileira, dos anos 70. Não é um livro grande, é um volume de 150 páginas. O valor mais barato praticado é de R$ 290,00; o mais caro, R$ 300,00. Não me surpreende. Tornou-se raro e é uma obra-prima daquelas que tem de ser levadas para a ilha deserta.
(Tenho certeza que meu exemplar está em minha biblioteca. Mas agora, sabedor do que ele vale, vou dar uma conferida).
O Anão, do sueco Pär Lagerkvist, é a história de Picolino, o bobo da corte de um príncipe italiano da Renascença. Sua função é a de divertir e ele a cumpre; só que ele odeia minuciosamente a todos os seus amos e quase todos são seus amos, claro. A repugnância que sente, a repulsa que Picolino dedica a todos é descrita de forma estupenda — com um foco narrativo que tentaremos explicar à frente — pelo Nobel de 1951, assim como também a forma como passa a influenciar os assuntos políticos da corte, sempre com a única e exclusiva intenção de prejudicar a todos. É um romance originalíssimo sobre o mal, a inveja e o desprezo.
A cidade-estado renascentista onde ocorre a ação não é clara, mas há um personagem chamado Bernardo, que é sem dúvida inspirado em Leonardo da Vinci, o que nos faz pensar no final do século XV. Também há referências a igrejas que se encontram na região de Florença. Ao mesmo tempo, o anão, narrador do romance, fala em criações como A Última Ceia e a Mona Lisa, a primeira delas pintada em Milão e segunda provavelmente em Florença. Além disso, o príncipe parece ser César Bórgia, que empregou Leonardo da Vinci como arquiteto militar… Desta forma, há muitas referências históricas dançando incontrolavelmente no contexto do romance.
Como disse, o anão é o narrador e tudo é contado retrospectivamente alguns minutos, horas ou semanas após a ocorrência dos fatos e antes dos seguintes. Tal artifício faz com que todos os acontecimentos sejam quentes, contados com emoção, mostrando O Anão planejar no papel seus próximos passos. Ou seja, a colocação do foco narrativo é muito inteligente, fazendo com que o leitor sinta a respiração do anão-monstro arquitetando suas vinganças, incorporando o mal e curtindo seu ódio de misantropo.
Ele ama a guerra, claro, e quando lhe pedem para cometer um crime, ele o expande sob o pretexto de beneficiar o príncipe… Todos mudam durante o romance, todos mudam na cabeça do narrador, menos ele, que se mantém coerente da primeira à última página. Curiosamente, é profundamente religioso, mas sua crença inclui um Deus que nunca perdoa. Mesmo impressionado com a ciência de Bernardo, sente repulsa pela busca que este empreende para chegar à verdade e ao âmago das coisas.
Por tudo isso e muito mais, este clássico de 1944 é de leitura obrigatória, o que justifica (ou não) seu preço (abusivo).
Lembrei hoje de um extraordinário livro do jornalista argentino Ricardo Gotta. O livro é Fuimos Campeones. Gotta foi o cara que descobriu como o Peru entregou o jogo para a Argentina em 1978. São 300 páginas de história do futebol e de investigação, tendo por pano de fundo a ditadura militar argentina.
O livro é uma joia. Pouco a pouco, vamos montando o cenário até que o zagueiro peruano Rodolfo Manzo confessa, mais de 20 anos depois dos fatos.
Manzo era o principal suspeito. Afinal, logo após a Copa, ele assinou um lindo contrato com o Velez Sarsfield e depois com futebol italiano. Logo ele, um zagueiro modesto. Inexplicável. Ele mora até hoje na Itália, pois, em qualquer lugar que vá no Peru, as pessoas lhe dizem:
– Eres tu que te vendiste.
Ele e mais cinco. Só. Ninguém mais. Não lembro mais o motivo, só que Manzo ficou mais marcado. Seu companheiro de zaga, Velásquez, acusava o sexteto desde 1978.
Revendo os gols da partida, nota-se como Manzo abandona a marcação dos atacantes argentinos. Como escorrega no momento de enfrentar Kempes num dos gols, cai, pula em branco, uma doidice só.
Na época do lançamento do livro, fiquei amigo de Gotta, pois fiz uma pequena correção sobre um detalhe do futebol brasileiro em seu texto. Passamos a conversar por e-mail e ficamos de “charlar” um dia, coisa que nunca aconteceu. Em Fuimos, Ricardo também conta casos espetaculares de subornos, entregas e vendas em Copas do Mundo. O caso mais sensacional é o que segue.
1974. Final da primeira fase da Copa da Alemanha. A Argentina precisava imperiosamente vencer de goleada o Haiti, mas a Polônia, já classificada em primeiro lugar, tinha que ganhar da Itália. Para que, se já era a campeã do grupo? Um empresário argentino com negócios na Polônia foi escalado para abordar alguém da delegação polonesa. O escolhido foi Gadocha, outro bom negociante. O argentino perguntou a Gadocha se “Polonia iba salir a ganar”.
Ouviu o a seguinte resposta: “Isso dependerá dos argentinos”. Como a AFA não tinha cash, cada jogador argentino deu US$ 1.000,00, uma fortuna para jogadores que atuavam atrás do Muro. Sim, fizeram uma vaquinha. Os polacos foram com tudo e ganharam da Itália, enquanto a Argentina fazia 4 x 1 no Haiti. Tudo certo. No dia seguinte, Gadocha avisou a seus companheiros que a grana viria quando a Copa finalizasse para eles, antes da viagem de volta, para não dar na vista. Após vencerem o Brasil por 1 x 0 e de conquistarem o terceiro lugar, Gadocha simplesmente desapareceu. Com o dinheiro.
Quando o João Perassolo, assessor de imprensa da extinta Cosac Naify, me escreveu pedindo um texto sobre o Assim na Terra, pensei: que estrada trilhar? Como não sou especialista na obra do autor do livro, Luiz Sérgio Metz (meu pai), decidi contar algumas histórias envolvendo a vida dele que me parecem explicar de onde surgiu a obra. Há um texto do pai, publicado pela Zero Hora no caderno de Cultura, que defende que todos deveríamos nascer com o propósito de desvendar uma lenda. Não lembro bem se era uma lenda apenas, ou lendas, mas a ideia é essa. Nascer para desvendar algo. Com essa referência, escrevo três lendas a seu respeito:
Lenda Um – infância em Santo Ângelo
Meu pai tem três irmãs, Lourdes, Carmen e Bernadete. Juntas elas me contaram essas histórias.
Ele não conseguia ficar na sala de aula. Na época do colégio, ele dava um jeito de fugir para brincar com os amigos pelas sangas de Santo Ângelo. Gostava de estar em contato com a natureza e enfiar os pés descalços no barro vermelho típico das Missões. Meu avô, Arlindo, era uma alemãozão brabo, artesão marceneiro. As tias me contaram que, para não apanhar quando chegasse em casa, as mães dos amigos lavavam a roupa do meu pai, davam jeito de secar e ele chegava em casa como se nada tivesse acontecido. A escola Onofre Pires não estava preparada para ele, me conta uma professora que lecionava lá na época em que o pai foi aluno. “Gostaria que ele tivesse sido meu aluno, as outras professoras não sabiam o que fazer com o Jaca”, disse ela.
Me parece que o surgimento do Assim na Terra está justamente aí. Nas brincadeiras de rua. Elas foram transferidas para a lida com a palavra. Da maneira como o livro foi concebido, penso que não é possível que alguém trabalhe de forma tão livre com o vocabulário e as ideias se não estiver brincando, guardadas as proporções. Sempre me chamou atenção quando passava as férias em Santo Ângelo, a maneira como as histórias eram contadas pelas minhas tias, o modo como falavam sobre as pessoas com as quais conviviam. Não era algo simples do cotidiano, mas sim como se estivessem se referindo a personagens de uma história, que era real, mas dita daquele jeito, virava literatura. Me lembro delas me contando do Sete Camisas e do Sete Sacolas, uma brincadeira genial com a linguagem e, de certa forma, uma criação de personagens que, para mim, são da ordem do fantástico. Meu pai internalizou tudo isso e transferiu essa vivência e aprendizado para o “fazer” da linguagem e da produção poética.
Elas me contaram, por exemplo, o causo (vou chamar aqui de causo por que minha relação com essa contação é afetiva, enfim) do dia em que o pai tinha que mostrar as tarefas de casa demandadas pelo colégio ao meu avô. De novo, para que não apanhasse do vô Arlindo, minhas tias deram um jeito para que ele cumprisse o dever antes que o caderno fosse averiguado. Sentaram-se os quatro na mesa, minhas tias e meu pai, que deveria estar lá pela segunda série. Uma das perguntas escrita aos garranchos no caderno era: o que se deve fazer antes do almoço? Imagino que a situação devia ser tensa. O vô já estava quase chegando e o meu pai larga o seguinte no papel: sicová e silavá. Sim, diante do não cumprimento do dever de casa, da possibilidade de levar uma sumanta de pau e ainda ficar de castigo, o pai subverte a linguagem e responde a um questionamento simples brincando, numa ironia fina, e experimentando com a linguagem.
Lenda Dois – os cavalos e a Adélia
O pai sonhava estar em contato com os cavalos. Não lembro quem me contou essa história, mas vamos a ela. Na época em que entrou para o Exército, ainda em Santo Ângelo, o Jaca deu um jeito de ser transferido para São Gabriel, onde havia Cavalaria e a possibilidade de aprender a lida com os cavalos. Era o único jeito que dispunha para se aproximar desse animal que o fascinava tanto. Conseguiu a transferência e finalmente iria estabelecer uma relação com o que antes era distante. Então minha avó Adélia caiu doente. Ficou acamada durante muito tempo, o que acarretou na retransferência do pai para Santo Ângelo. Imagino o rebuliço dentro de uma instituição como o Exército para conseguir tais encaminhamentos. É óbvio, após o retorno do pai, minha avó voltou a se sentir saudável. O amor pelos cavalos teve de esperar.
Lenda Três – o relatório e a criação do Uvizinho
Nos anos 70, o pai foi estudar Filosofia em Santa Maria. Acabou trocando para o Jornalismo. Aí novamente, história que minhas tias me contaram e para a qual existe a prova. Ao final do curso, meu pai tinha de fazer um estágio e, ao final do estágio, apresentar um relatório. Algo bem burocrático. Isso era necessário para que se formasse. Ao invés de fazer o que todo formando faz, o pai escreveu um texto sobre a relação que estabeleceu com os passarinhos que habitavam/visitavam o local onde acontecia o tal aprendizado prático. Deu apelidos aos passarinhos, para um deles, Uvizinho. Experimentou novamente com a linguagem, subvertendo a seriedade burocrática exigida por um relatório. Essas coisas não eram para ele. Para o pai, a vida em si era bem mais do que um relatório emparedado sobre os aprendizados técnicos no tal estágio. Esse texto acabou dando origem ao conto “Uguino, o inventor de passarinhos”, que foi publicado posteriormente no livro de contos “O primeiro e o segundo homem”. É claro que o pai foi reprovado e teve de cursar a cadeira novamente para conseguir o diploma. A Universidade não estava preparada para ele.
O ar está cheio de nossos gritos, mas o hábito é uma grande surdina.
Samuel Beckett
Teatro vale? Mas é claro! No planejamento desta série, que não existe e que teria sido feito por mim enquanto caminhava pela rua, há também Macbeth ou A Tempestade, peças de estupenda qualidade literária escritas por Shakespeare. Beckett detestava aparecer e foi por este motivo que não foi receber o merecido Nobel em 1969. Ele preferiu ficar em casa. Uma frase atribuída a ele é a seguinte: “Eu nada tenho a dizer, mas só eu sei exprimi-lo”. Beckett teve o bom gosto de jamais explicar o significado simbólico de Esperando Godot, apenas veio à público para afirmar que Godot, não era deus (god).
Vladimir e Estragon são dois vagabundos de vaudeville que aguardam inutilmente a chega de Godot, uma coisa ou alguém que não se sabe o que ou quem é. Enquanto esperam, tagarelam a respeito de tudo, desde seus calçados, até a opção pelo suicídio e a existência de deus. Sem traços ideológicos, a peça não tem um enredo ou conflitos definidos e se passa ao lado de uma árvore. Pode-se dizer que se trata antes de um portal onde são vistos em sequência temas fundamentais da humanidade, vindo todos num ritmo alucinado de cinema mudo: o desejo de afeto, a necessidade de companhia, o ressentimento, o medo da velhice e da solidão, a salvação e o vazio. O destino em Beckett é um carro alegre e brincalhão que atropela indiferente (lembram da música?) personagens que procuram escapar dele divertindo-se de forma nada monótona. O que dizer da qualidade dos diálogos Allegro Scherzando do irlandês? Talvez devamos nos recolher como Beckett faria. Paremos aqui.
Em uma crônica, o escritor Ernani Ssó voltou a falar sobre um de seus assuntos preferidos: o humor ou a falta de. Eu acho curioso que um dos livros mais engraçados já escritos — Viagens de Gulliver (1726, revisado em 1735) — tenha sido sequestrado pela literatura infantil como se dela fizesse exclusivamente parte. Nada contra as crianças, mas este livro de Swift não foi de modo nenhum apenas dedicada a elas. Assim como também não foi a Modesta Proposta, onde o autor explica com clareza exemplar como a Irlanda poderia livrar-se da fome… O que ocorre com Gulliver é curioso. Por exemplo, o personagem principal vai a uma terra onde só há intelectuais e o nome do país é Laputa, singela homenagem àqueles que estão sempre prontos a vender sua pena e ideias a quem lhes pagar melhor… Acho que nem todas as crianças conhecem tal característica, tão nossa.
A narrativa inicia com o naufrágio do navio onde Gulliver estava. Após o naufrágio, ele é arrastado para uma ilha chamada Lilliput. Os habitantes da ilha, que eram extremamente pequenos, estavam constantemente em guerra por futilidades. Foi através dos lilliputianos que Swift demonstrou a realidade inglesa e francesa da época. Na segunda parte, Gulliver conhece Brobdingnag. Em contraposição a Liliput, é uma terra de Gigantes e lá Gulliver percebe a enorme dimensão da mediocridade da sociedade inglesa. A terceira parte, na ilha flutuante de Laputa, é uma feroz crítica ao pensamento cientifico que não traz benefícios para a humanidade e aos intelectuais. Na última viagem, Gulliver encontra os Houyhnhm, uma raça de cavalos que possuía rara inteligência e bom senso, representando os ideais iluministas da razão. Os Houyhnhm temiam que alguém dos Yahoo, a raça imperfeita de “humanos”, movidas por instintos primitivos, se tornasse culta.
Swift foi o mais pessimista dos humoristas e um dos mais brilhantes deles. Foi sistematicamente trucidado por críticas a cada lançamento obra. Os críticos encararam seus trabalhos como resultantes de um misantropo, como se fossem parte da vingança de um homem amargurado e frustrado em suas ambições poéticas, políticas e eclesiásticas.
O fato de ser entendido pelas crianças — certamente de outro modo — apenas o engrandece. Agora, a forma como superou as adaptações e os abusos cometidos há quase 300 anos, chegando até nós, isso eu não imagino como possa ser explicado. A última tentativa foi um filme de Hollywood que vou te contar…
Estou lendo O Fim, de Karl Ove Knausgård. É um romanção de 1056 páginas. Estou lá pela 430. Faz umas 50 páginas que ele iniciou uma furiosa incursão ensaística. Parece que a coisa tem mais 300 páginas. Não gosto.
Se os livros de ficção trazem teses, prefiro que estas sejam demonstradas por situações e impasses. As situações podem falar e creio que são elas que mais arranham a realidade. Além disso, filosofia em excesso me chateia, não tenho muita inteligência para ela e preferiria até voltar a estudar matemática. Falo sério.
Neste momento, Knausgård afasta- se tanto da história que conta quanto Musil faz em seu calhamaço-mor O Homem Sem Qualidades. Acho que é roubar no jogo ficcional, ainda mais após Thomas Mann demonstrar como ficção, personagens e filosofia podem se entrelaçar, como os personagens podem representar ideias, como Dostô também fazia em O Idiota e Os Irmãos. Saudades de Settembrini, Naphta e Míchkin.
Mas sou um cara dedicado e vou tentar atravessar as 300 páginas sem pensar em outra coisa.
Importante: eu ADOREI os 5 primeiros volumes da hexalogia. Resolvi encrencar no último…
Road book gaúcho, mas não gaudério | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Cora e Julia foram mais do que simples amigas durante a faculdade. A relação foi subitamente interrompida pela partida de Julia para Montreal. Tempos depois, Cora também foi ao exterior a fim de estudar moda em Paris. Certo dia, Cora liga seu computador e lá está um “Oi, tudo bem?, há quanto tempo” de Julia. Cora responde e logo está passeando pelo quarto de Julia através do Skype. Numa das cenas mais belas de Todos nós adorávamos caubóis, Julia caminha pelo apartamento, mostrando à Cora suas coisas e a neve de Montreal. Entre outras coisas, ela mostra, através da janela, o semáforo da esquina, que passa do vermelho para o verde, permitindo aos carros se moverem entre as árvores secas da cidade.
Elas combinam o reencontro. Pretendem fazer a viagem sempre adiada pelo interior do Rio Grande do Sul. A viagem seria feita sem planejamento, apenas com um mapa levando-as de uma cidade a outra. As duas trazem bagagens e expectativas distintas. Cora viera para assistir o nascimento do irmão — seu pai recém casara com uma jovem de sua idade, algo que Cora parece aprovar com reservas –, enquanto Julia parece estar ambivalente em relação ao namorado estrangeiro. O que uma espera da outra?
Enquanto isso, vagam sem objetivos pelo interior gaúcho. Um interior que não aparece da forma gaudéria, alegre e hospitaleira das histórias do 20 de setembro. Não que apareça hostil, apenas mostra-se estranho, sem pontos de contato com a urbanidade das moças. Mesmo que Julia tenha nascido em Soledade, elas são e estão de fora.
Após Pó de Parede e Sinuca embaixo d`água, o excelente Todos nós amávamos caubóis é o terceiro livro publicado pela porto-alegrense Carol Bensimon. Ela falou ao Sul21 no bar Tuim, tradicional local da Gen. Câmara. Por algum motivo, o formalismo habitual das entrevistas foi logo abandonado, tanto que a primeira interrogação foi desferida por Carol e não pelo entrevistador, o que transformou tudo numa agradável conversa.
Road book gaúcho, mas não gaudério | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: A ideia de falar contigo surgiu quando Todos nós adorávamos caubóis chega a Antônio Prado. Mais exatamente quando Cora e Julia saem da cidade e vão até aquela estátua, a dos caras que introduziram a bateria na música gauchesca.
Os Irmãos Bertussi incorporaram a bateria ao baile gaúcho
Carol Bensimon: Não é que outro dia um cara no Facebook me compartilha uma foto com o monumento, botando: “Ah, a Carol fez uma bela homenagem” e daí os caras da música gaudéria começaram a comentar. Mas a ideia da entrevista veio dali por quê?
Sul21: Porque a literatura e o jornalismo gaúcho não costuma ser irônico. A tua referência não é especialmente ácida, mas também não é nada laudatória. Naquela cena tu achas graça da estátua, isso está na cara. Mas comecei a entrevista respondendo uma pergunta tua…
Carol Bensimon: Sim, a personagem faz gracinha com a história da bateria na música gaudéria. Meus personagens têm claramente uma visão urbana que estranha o interior, disso eu não tenho dúvida. Um jornal do Recife escreveu algo sobre “uma visão muito elitizada, uma visão muito burguesa”, me acusou de estar tripudiando sobre aquelas pessoas. Não é nada disso, mas é óbvio que minhas personagens são essencialmente urbanas, sentem-se mais ligadas e melhor numa grande capital do mundo do que propriamente no interior do seu estado. Trabalhei esses estranhamentos. Acho que, excetuando-se o romance histórico, a literatura das últimas décadas não está olhando muito pro interior.
“As pessoas do interior não estão interessadas em ‘serem do interior'”| Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: Na verdade, eu andei lendo Assim na Terra, do Metz. Ele fala de forma muito poética do homem do campo, é uma viagem de toda a vida sobre um cavalo, por assim dizer. O teu livro contrasta muito neste aspecto. Há a estátua, depois tu falas de toda a energia posta na customização de carros, da baixa qualidade dos vinhos brasileiros, de Cambará — “onde as pessoas caminham entorpecidas” –, do deserto de Minas de Camaquã, há a briga entre a Julia e o irmão fazendeiro.
Carol Bensimon: Uma coisa que descobri, quando me dispus a fazer essas viagens é que, na verdade, as pessoas destas cidades do interior não estão muito interessadas em “serem do interior”. Seu ideal é o de se afastar da aura de bucolismo. Para elas, quanto mais urbanas elas parecerem, melhor. Por exemplo, as casas históricas de Antônio Prado… Lá, houve uma grande polêmica que não está no livro. Nos anos 90, aquelas casas foram tombadas. São casas de madeiras enormes, bem típicas. As pessoas não queriam mantê-las. Teve gente que botou fogo na própria casa. O mesmo não aconteceu há pouco em Santo Ângelo? Queriam tombar várias casas e as pessoas estavam revoltadíssimas. O pessoal não tem muita consciência histórica. Querem derrubar e “modernizar” tudo.
Sul21: Acabam destruindo também uma possibilidade de turismo.
Carol Bensimon: Sim, a maioria das cidades é feia. São piores que Porto Alegre. Porto Alegre pelo menos é em parte arborizada. Essas cidades médias, como Santa Maria, não tem uma grande identidade visual.
Sul21: Qual é teu grau de interesse em urbanismo? Tu me escreveste no Facebook que estava lendo apenas livros de urbanismo.
Carol Bensimon: É uma coisa pessoal. Tanto que apareceu no meu primeiro livro (Pó de parede, 2008). Não urbanismo, mas arquitetura. Todos os contos eram centrados em coisas arquitetônicas. Meu interesse mais em cidades deve ter vindo da minha experiência em Paris. Lá há um pensamento, um planejamento que está ausente no Brasil.
“As memórias de cada capítulo estão relacionadas com acontecimentos presentes” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: Vamos voltar ao livro. A questão da estrutura.
Carol Bensimon: A estrutura é mais ou menos linear. É a viagem, mas dentro disso tem rememorações o tempo todo. Acho que é um pouco do meu estilo. Eu queria que ficasse essa coisa para a frente e para trás. Não estou inventando nada de novo. É mais ou menos como funciona a memória, apesar de não ser como um fluxo de consciência. Vou montando.
Sul21: Como um mosaico?
Carol Bensimon: Tu achas que funcionou como um mosaico? Onde tudo fecha?
Sul21: Não é que feche. É um livro construído com cuidado. Eu queria saber se tu organizas a colocação dos mosaicos ou se tu os joga por livre-associação.
Carol Bensimon: Via de regra, as memórias de cada capítulo estão relacionadas com os acontecimentos presentes. Mas algumas coisas foram por tentativa e erro. Por exemplo, onde colocar a parte do pensionato? A festa à fantasia também foi uma cena que eu não sabia muito bem em que ponto ela deveria ser revelada.
“Acho que o livro tem um quê de esperança” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: E Thelma e Louise?
Carol Bensimon: Quando eu estava escrevendo o livro, li uma obra teórica sobre road movies. O livro é Driving Visions, de David Laderman. Ele fala que essas narrativas de estrada foram inauguradas com On the road, de Kerouac. Mas aí o cinema se apropriou do gênero. São analisados vários filmes divididos por décadas e vai mostrando como o gênero muda. O fato é que raramente as mulheres protagonizam esse tipo de narrativa. Thelma e Louise é quase inaugural nesse sentido. Mas fico muito intrigada com o final do filme. Dá pra fazer uma leitura feminista e também o contrário. E vários desses filmes acabam em morte. Eu tinha preocupação em não fazer um final assim.
Sul21: Mas não é um livro alegre, na minha opinião.
Carol Bensimon: Não sei. Acho que ele tem um quê de esperança. Tem a coisa da viagem, do movimento e da ideia de liberdade. Acho luminoso. Mas, também concordo, lá tem uma coisa melancólica: a questão de que a viagem acontece com anos de atraso.
” Quando escrevi, não existia ‘Azul é a cor mais quente’ | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: Sim, há muita coisa fora do lugar. A hora escolhida para a viagem não é adequada, segundo a família. Quando Julia encontra sua família é um horror completo. Mas me fala sobre isso aqui na página 19. “Era como se você passasse meses cogitando pintar o cabelo de azul, e de repente percebesse que tanto tempo cogitando, analisando, imaginando, tinha acabado por satisfazer por completo seu desejo de rebeldia”. Tu já tinhas visto Azul é a cor mais quente quando escrevesses isso?
Carol Bensimon: (risadas) Hoje eu pensei nisso. Quando escrevi, não existia o Azul cor mais quente. O filme apareceu em maio em Cannes. Ele ganhou o festival, li a história e fiquei muito empolgada para ver o filme. Mas nessa época eu já tinha terminado o livro. Então é casual. Pura coincidência. Mas mesmo se não tivesse isso do Azul, já daria pra fazer uma certa conexão com o filme. Eu achei muito universal, me identifiquei. Se tu não tiveres preconceito, é uma história de amor. Por exemplo, aquela cena das duas no café, a tentativa de reconciliação. Aquilo é foda. E quem nunca vivenciou uma cena daquelas? Tu vais lá com a pessoa e suplicas mesmo.
Sul21: Onde entra, na tua opinião, a questão da militância gay?
Carol Bensimon: Não sei se ele entra na militância gay. Eu acho que ele entra mais na experiência particular de quem vai pegar o livro e se identificar com aquilo em termos de sexualidade feminina ambígua. Acho que a gente está num momento posterior a isso, desse rótulo de literatura “gay”. Talvez fosse um escândalo lançar o livro há 10, 15 anos. Eu tenho uma pequena lista de filmes onde duas gurias se envolvem. Pequena lista de três. (risadas). Tem um filme argentino chamado El niño pez, de Lucia Puenzo. Ela também fez aquele filme que se chama XXY. Nos dois filmes, ela trabalha essa questão da sexualidade, de gênero. Depois tem um filme ótimo, francês, chamado Lírios d’água, de Céline Sciamma. É um universo curioso porque são duas meninas que fazem nado sincronizado e uma delas está meio em negação e a outra sofre.
“Ela fala num determinado momento que talvez se sinta mais atraída por meninas supostamente heterossexuais do que por lésbicas, e isso cria um certo problema” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: Queria que tu comentasses a frase: “Minha atração pelo sexo feminino era uma doce aventura e ao mesmo tempo uma condenação ao mais claustrofóbico dos universos”.
Carol Bensimon: Vamos lá. Acho que a personagem vê o exercício de seu lado gay como uma certa transgressão. Ao mesmo tempo há uma limitação, prisão, sei lá como diz, um universo claustrofóbico. Ela fala num determinado momento que talvez se sinta mais atraída por meninas supostamente heterossexuais do que por lésbicas, e isso cria um certo problema. Ela fala nisso. Ela queria ter uma chance com qualquer pessoa que encontrasse na rua. Com a frase, ela também se refere à questão familiar. Não chega a ser o drama do livro, mas a família não encara os fatos. O livro fala mais das questões mal resolvidas entre Cora e Julia. Em nenhum momento a Cora chega a confrontar a Julia. Nem no passado, nem na viagem. Não há do tipo ”Tá! O que é isso que a gente tá tendo?”. Mantém-se uma ambiguidade que tem o seu lado aventureiro e seu lado angustiante.
Sul21: Tu falaste numa sexualidade mais fluida que seria uma característica de nosso tempo. Tu achas que esse tipo de sexualidade fluída pode ocorrer entre homens, assim como ocorre entre mulheres?
Carol Bensimon: Não, é mais difícil. Porque o papel está mais delimitado no gênero masculino. É uma coisa cultural. As gurias experimentam. Namorar uma guria e daqui dois ou três anos ela estar casada, com filhos… Ninguém vai achar isso tão estranho assim. Com caras não acontece isso. É uma coisa cultural, simplesmente. Dia desses, assisti a um documentário francês sobre bissexualidade. A maioria das entrevistas eram feitas na França, e aí já temos uma dimensão totalmente diferente, por exemplo, da bissexualidade masculina, até porque vários caras que participavam eram pessoas do ramo das artes e se declaravam bissexuais. Eram figuras públicas e tal. Certamente isso ainda não chegou ao Brasil. A noção de masculinidade varia de país para país. O francês pode parecer efeminado e ser hétero.
Sul21: Há preconceito das lésbicas contra as bi?
Carol Bensimon: Sim, bá, total. A gente tem essa sigla LGBT e, nos anos 90, lembra que era só GLS? O B está ali só como uma letra. Acho que há um preconceito forte dentro da comunidade, em vários sentidos. Primeiro, parece que os bissexuais são meio que “traidores” do ponto de vista das feministas. Então podem ser mais ainda entre as lésbicas feministas. Que mais posso dizer sobre isso? Há também este rótulo de promiscuidade… Vários gays e lésbicas acham que bissexuais são gays enrustidos que não saíram do armário.
Sul21: Há meninas que ficam com gurias em festas, mas se dizem hétero…
Carol Bensimon: Aí acho que entra outro fator que é muito contemporâneo, que é a coisa das gurias ficarem para chamar atenção dos homens. Aí é muito confuso. Há diferenças sobre como são vistas as mulheres bi e os homens bi. O senso comum acha legais mulheres bi – tem a ver com a pornografia. Parece que as mulheres estão fazendo um espetáculo pros caras. São como nos filmes pornô. As mulheres ficam se pegando, mas só enquanto o cara não chega pra comer. É sempre uma questão de preliminares. A meninas a que tu te referiste são chamadas pelo termo heteroflexíveis. A pessoa se considera hétero mas as vezes ela fica com o mesmo gênero. Então, várias dessas meninas das festas podem ser heteroflexíveis, mas não se consideram assim.
Sul21: Evidentemente, o nome da narradora, Cora, é uma brincadeira com teu nome, né? Coloca o L e muda o lugar da vogal e chegamos à Carol.
Carol Bensimon: Não, não foi de propósito. É sério.
Sul21: Tu vais querer me vender essa??
Carol Bensimon: É que se eu contar a história de verdade vai ser pior ainda.
Sul21: Vai ter que contar!!!
O mistério do nome Cora… | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Carol Bensimon: Em off só, realmente não tem nada a ver.
(…)
Sul21: Tu me falaste, também em off, que tinha algum plano pro livro de virar mini-série ou filme.
Carol Bensimon: Eu vendi os direitos. Eu vendi para a RT Features do Rodrigo Teixeira. Ele compra bastante coisas contemporâneas. Ele comprou o Sinuca embaixo d`água.
Sul21: Não o Caubóis?
Carol Bensimon: O Caubóis também. Mas primeiro ele comprou o Sinuca. Ele comprou Caubóis antes do livro ser escrito.
Sul21: Isso tem tempo de validade?
Carol Bensimon: Se não me engano é um contrato de dez anos. É um pouco angustiante, porque não sei se virar mesmo filme. As pessoas dizem que daria um puta filme. É difícil saber quando vai sair. O Sinuca ainda não saiu. Mas tu viu o book trailer?
Sul21: Não.
Carol Bensimon: Sério?
Sul21: Eu vi só o book trailer do livro do Marcelo Backes, O último minuto, muito bom.
Carol Bensimon: Tu tens que ver. É incomparável, é uma coisa muito foda que a Liliana Sulzbach fez. É um filme. É um trailer de filme. E vê-lo deu ainda mais vontade de ver em filme. Até porque não sei até quando aqueles lugares vão durar.
Sul21: Como é que é Minas de Camaquã? O que é aquilo? É abandonado? Tipo a Paraty de antes dos anos 70?
Carol Bensimon: A comparação não é muito válida. Era uma cidade de mineração que tinha vivia da exploração de cobre desde o século 19, com os belgas.
“A impressão que eu tenho é que todas as cidades do interior seriam daquele jeito se elas não tivessem se descontrolado completamente em termos de planejamento urbano, sabe?” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: Onde fica isso?
Carol Bensimon: Entre Bagé e Caçapava. O Baby Pignatari era o dono das minas da Companhia Brasileira do Cobre (CBC). Eles construíram essa cidade pros mineiros e pras pessoas que trabalhavam. Então foi uma cidade planejada. Toda ela é circular, as ruas são circulares. Então num primeiro raio tu tens as casas dos engenheiros, depois as dos mineiros, etc. As casas vão ficando mais simples. Acho que a população era maior do que a de Caçapava. Lá tinha cinema, Caçapava não. E então acabou o cobre. Quebrou a Companhia. Daí, nos anos 2000, houve um leilão e eles venderam aquelas casas por um preço ridículo, 500 reais cada uma. Então essas casas voltaram a ser ocupadas como casas de fim de semana das pessoas que moram em Caçapava ou Bagé.
Sul21: Mas tem alguma coisa de atrativo lá?
Carol Bensimon: Sim. São aproximadamente 500 habitantes. A impressão que eu tenho é que todas as cidades do interior seriam daquele jeito se elas não tivessem se descontrolado completamente em termos de planejamento urbano, sabe? O local tem uma aura, uma personalidade. Irei novamente para Minas de Camaquã agora no final de janeiro.
Sul21: Como é que tu descobriste?
Carol Bensimon: Uns amigos me falaram. Porque ali perto tem umas formações rochosas que chamam de guaritas. Eles começaram a falar desse lugar. E daí eu conheci uma leitora de Caçapava que entrou em contato comigo e quando eu falei das Minas ela disse que a família dela tinha casa lá e que poderíamos fazer uma visita. Foi a primeira vez. No book trailer, fomos pra lá. Tu me perguntaste sobre os atrativos. O atrativo é a paisagem que é muito massa, tem lugares pra subir. Há o rio Camaquã que passa ali e tem toda essa estrutura abandonada. As casas têm certa manutenção, mas os prédios da mineração estão bem detonados.
“Antes tu mostrava pra mãe, pro namorado, pro irmão. Nesse sentido as oficinas são importantes” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: E os OVNIs de lá…?
Carol Bensimon: Ah, sim, tem a sede do projeto Portal lá.
Sul21: Tem mesmo?
Carol Bensimon: Sim. É enorme. Pavilhões.
Sul21: Tu conversaste com os caras?
Carol Bensimon: Não. Nunca vi ninguém lá.
Sul21: Mudando utra vez de assunto, me diz uma coisa, o que tu achas das oficinas literárias? Tu participaste da oficina literária do Assis Brasil, tu achas que ela acrescentou algo pra ti?
Carol Bensimon: É sempre meio que clichê essa resposta, sabe? Porque encurtou caminhos talvez. Indicou leituras, apresentou teorias. Eu poderia ter intuído tudo, mas talvez demorasse mais tempo assim. E, depois, talvez o mais importante seja a troca com o Assis e com os colegas, porque chega um momento em que uma pessoa escreve um conto e todos têm que analisar aquele conto. A aula inteira debatendo. Antes disso tu mostrava pra mãe, pro namorado, pro irmão. Nesse sentido é importante.
“Um cara me detonou da Folha de São Paulo. Falou que era previsível” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: Como tem sido a repercussão do livro?
Carol Bensimon: Não sei se tu conheces o Skoob, aquela rede social? Às vezes entro pra olhar. Primeiro tem uma discrepância absurda entre o número de homens e mulheres que estão lendo o livro. Mulheres são mais de 80%. Se pegar meus outros livros, é mais equilibrado. E tem esses blogs com resenhas. Blogs sobre livros, muitos de fantasia. Eles leem o livro e gostam, é curioso. Mas um cara me detonou da Folha de São Paulo. Falou que era previsível. Tudo bem.
Sul21: Eu fico surpreso de alguém achar previsível, porque o previsível é quando tu provocas um conflito e dá um final esperado. Não é o caso do teu livro. E esse negócio da música no livro? Tu usas como recurso expressivo ou o quê? A Cora num momento diz “que as músicas gaudérias estão tão longe dela quanto a música celta, batuques aborígenes “.
Carol Bensimon: Eu acho que eu uso a música um pouco como frustração, porque eu queria que o livro tivesse trilha sonora. Então cito uma série de músicas. Inclusive dou opiniões do tipo: “essa música abre o melhor disco do Led Zeppelin”. Tem um pouco a ver com o processo criativo. Eu postei uma playlist no Facebook e fez um tremendo sucesso, não sei por quê.
Este é o segundo livro de minha biblioteca que vem direto de Moçambique. Ambos foram presentes do amigo e cliente da Bamboletras Jonas Fernando Pohlmann, que mora na capital Maputo. O primeiro foi este. E, se o primeiro foi ótimo, não sei nem bem o que dizer desta, sem exagero, obra-prima de Mia Couto.
Quando recebi o volume, pensei que se tratasse de um livro de memórias. Bem, ele é, mas de memórias ficcionais trabalhadas dentro de um romance de grande fôlego.
(…) tenho demasiada história, sofro de um excesso de passado. Quero livrar-me desse tempo que não me deixa existir.
Mia Couto
Mia Couto (1955) é António Emílio Leite Couto. A razão de tal pseudônimo é bem simples e curiosa – desde criança, Couto amava os gatos. Foi com tal pseudônimo que o autor construiu uma extensa obra que inclui poesia, contos, romances e crônicas.
Podemos dizer que O Mapeador de Ausências são memórias ficcionais trabalhadas dentro de um romance de grande fôlego. A ação decorre na Moçambique de antes e de depois da descolonização e conta a história de Diogo Santiago, escritor e poeta de Maputo, que viaja após muitos anos à sua terra natal, a cidade da Beira, às vésperas da chegada do ciclone Idai, que efetivamente arrasou a cidade em 2019. Diogo vai até Beira com a finalidade de receber uma homenagem, mas também pretende descobrir detalhes acerca da história de seu pai, também poeta, que morrera na cidade ainda nos tempos coloniais. Trata-se de um regresso à juventude de Diogo.
A trama de O Mapeador de Ausências não se completa até a última página. À medida que vamos lendo o livro, as lacunas que Mia deixa abertas vão sendo preenchidas com conteúdos muitas vezes inesperados.
Na Beira, Diogo conhece Liana, que lhe repassa um verdadeiro dossiê da PIDE (a terrível Polícia Internacional e de Defesa do Estado, espécie de DOPS português) a respeito das atividades “subversivas” do pai de Diogo. Mia Couto vai empilhando documentos — inacreditáveis, tal a qualidade de sua prosa — e narrativas que vão e voltam no tempo.
Diogo é branco, filho de Adriano Santiago – que, além de poeta, foi jornalista — e de Virgínia, uma daquelas mães cheias de amor e senso prático. Do pai, ele recorda as duas viagens a Inhaminga — local de inacreditáveis massacres cometidos pela tropa colonial –, a perseguição e prisão pela PIDE e, sobretudo o amor pela poesia. Na Beira, fica sabendo da misteriosa Ermelinda (ou Almalinda), quem sabe uma das (muitas) amantes do pai, reencontra o criado Benedito (agora dirigente da FRELIMO, Frente de Libertação de Moçambique), o inspetor da PIDE Óscar Campos, a triste Camila Sarmento, o farmacêutico Natalino Fernandes e a poderosa Maniara.
“É uma homenagem à cidade da Beira, que é mãe desta história”, disse Mia. “É um romance que se desenvolve a partir da minha memória sobre minha cidade”. O Mapeador mostra um poeta que vai à procura da sua adolescência e percebe que aquilo que lhe é presente nasce da ausência de muitos. “A vida aqui é outra guerra. A gente chega a ter vergonha de ser um sobrevivente”, diz um coveiro no livro.
No cenário, há não apenas a chegada do ciclone que destruiu Beira, mas a destruição de Inhaminga, cidade que foi praticamente riscada do mapa durante a guerra civil moçambicana. As descrições de Mia sobre o que restou da cidade são soberbas.
Seja pela violência dos colonizadores, seja pelos desastres naturais — tanta gente morreu em Moçambique e sabemos tão pouco a respeito –, este melancólico livro de Mia Couto está plenamente justificado. Tudo é catalisado pela arte com que Mia Couto conta sua excelente trama. Moçambique é a morte onipresente, e também a alegria, a saudade, deus, o mal, o destino.
Te recuerdo Amanda
La calle mojada
Corriendo a la fábrica
Donde trabajaba Manuel
La sonrisa ancha
La lluvia en el pelo
No importaba nada
Ibas a encontrarte con él
Con él, con él, con él, con él, con él
Son cinco minutos
La vida es eterna en cinco minutos
Suena la sirena
De vuelta al trabajo
Y tu caminando
Lo iluminas todo
Los cinco minutos
Te hacen florecer
Te recuerdo Amanda
La calle mojada
Corriendo a la fábrica
Donde trabajaba Manuel
La sonrisa ancha
La lluvia en el pelo
No importaba nada
Ibas a encontrarte con él
Con él, con él, con él, con él, con él
Que partió a la sierra
Que nunca hizo daño
Que partió a la sierra
Y en cinco minutos quedó destrozado
Suena la sirena
De vuelta al trabajo
Muchos no volvieron
Tampoco Manuel
Te recuerdo Amanda
La calle mojada
Corriendo a la fábrica
Donde trabajaba Manuel
As regras de cortesia mandam: quem se reencontra, depois de uma longa ausência, precisa saber de tudo e de todos. É vital perguntar se o milho nasceu com fartura, se a chuva veio no tempo certo, se os parentes estão de boa saúde. Só depois de cumprir todo esse cerimonial, o visitante anuncia: “Pronto, agora já cheguei”. Nesse longo desfilar de novidades, não há lugar para más notícias. Está sempre tudo bem. Os infortúnios só são revelados depois que a conversa tenha firmado confiança. Em nenhum lugar do mundo um “bom dia” é mais verdadeiro.
Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, foi eleito o melhor livro-reportagem pela Associação Paulista de Críticos de Arte em 2013 e o segundo melhor pelos jurados do Prêmio Jabuti de 2014. O tema do livro é o Hospital Colônia de Barbacena (MG), manicômio onde milhares de pacientes foram internados por problemas muitas vezes sem diagnóstico. Ali, eram internadas tanto pessoas com problemas mentais reais, como alcoolistas, homossexuais, prostitutas, meninas engravidadas por patrões, moças que haviam perdido a virgindade antes de casarem, ex-amantes de políticos, inimigos políticos da elite local, vítimas de estupros, pessoas contestadoras, filhos indesejados e muitos negros, claro. No Colônia, eram mal alimentados, passavam seus dias em pátios abertos — nus ou em andrajos –, sofriam com o frio e muitas vezes eram torturados, violentados e mortos. O hospital, na verdade, servia para estocar pessoas não que cometeram crimes, mas que a sociedade ou alguém não queria ver ou conviver. Não há exagero no termo holocausto, ainda mais se considerarmos que morreram 60 mil pessoas no Colônia, dos anos 20 até o início dos anos 80.
O trabalho de Arbex é muito poderoso e completo. Fartamente documentado e com muitas fotos, a jornalista não somente conta a história do hospital como relata casos isolados de sobreviventes — e de suas situações atuais — e de internos que sucumbiram. Também traz depoimentos de psiquiatras e autoridades, muitos dos quais trabalharam no local. Através de um texto elegante e informativo, vemos a enorme violência cometida contra pessoas que eram obrigadas e beber água em esgotos, a dormiram sobre palha — pois as camas ocupavam excessivo espaço — e a viverem como não merecem os animais.
Os mortos? Ora, com o decorrer doa anos e como o índice de mortalidade era altíssimo, o cemitério ao lado já tinha mais espaço. Então, os funcionários criaram um lucrativo negócio. Passaram a vender os corpos para as Faculdades de Medicina do país. Quando a procura era baixa, os corpos eram dissolvidos em ácido.
A narrativa é tão dantesca que a imaginação do mais sádico dos escritores dificilmente alcançaria. O psiquiatra italiano Franco Basaglia, que teve a chance de visitar o Colônia em 1979, comparou o local a um campo de concentração nazista e exigiu seu fechamento imediato. O fechamento do Colônia ocorreu durante a década de 1980.
Além de serem forçados a trabalhar manualmente e dormir sobre palha ou folhas, os internos ainda precisavam lidar com estupros e com as torturas físicas e psicológicas que eram frequentes dentro do Hospital. Muitos pacientes eram submetidos à terapia de choque e à duchas frias sem nenhuma razão aparente. A tortura era aplicada com o propósito de servir apenas como castigo ou devido à perseguições.
Devido a superpopulação, havia falta de roupas e os internos andavam parcialmente ou completamente nus, expostos às baixas temperaturas de Barbacena durante a noite. Em uma tentativa de sobreviver, muitas vezes buscavam aquecer-se dormindo abraçados em círculos concêntricos, trocando periodicamente de lugar a fim de colocar as pessoas das bordas no meio. Ainda assim, muitos morreram por hipotermia.
Além da comida insuficiente, não existia um sistema de água encanada. Muitos banhavam-se ou bebiam de um esgoto a céu aberto. Para proteger seus bebês — que eram separados das mães após algum determinado tempo — grávidas cobriam a si mesmas com fezes, evitando que funcionários e outros pacientes se aproximassem. Doentes eram abandonados em seus leitos para morrer. Ele ficavam cobertos de moscas. Nos telhados, urubus esperavam e muitos mortos foram comidos por eles.
Crianças que cresceram dentro do Colônia jamais aprenderam a falar, ler ou escrever e contavam com a ajuda de outros internos para as atividades mais básicas.
Em 1961, o fotógrafo Luiz Alfredo, da revista O Cruzeiro, retratou a realidade dentro do Hospital, trazendo a público o que ocorria no interior dos muros do Colônia. A reportagem causou impacto, mas foi esquecida.
Em 1979, o jornalista Hiram Firmino, publicou diversas reportagens intituladas Nos porões da loucura, que revelavam a verdadeira loucura que se passava no Hospital Colônia e Helvécio Ratton realizou um filme sobre o mesmo tema intitulado Em Nome da Razão.
Mas quem acabou com tudo isso foram os médicos e suas associações.
Nosso país é assim: extremamente violento, um lugar onde os pobres são indesejados e tão mal informados que votam para eleger seus próprios algozes. O Colônia é apenas uma hipérbole, é o paroxismo da realidade que vemos nas ruas.
Clarice Lispector (1920-1977) foi uma escritora, contista e cronista brasileira cuja obra — estranha, difícil, experimental, mas fascinante e de excepcional qualidade — ganha cada vez admiradores. Prova disso são as mais variadas homenagens que ela recebe neste 9 e 10 de dezembro, além das que recebe diariamente em nossos memes… Motivo: Clarice faleceu num 9 de dezembro e nasceu num 10 de dezembro. Seu nascimento completa 100 anos hoje. São, pois, dias de Clarice. Como suas preocupações literárias nunca incluíram a narração linear de uma história, seus textos exigem uma postura mais meditativa para receber um leque de ideias e impressões que se multiplicam. Mesmo seus críticos mais hostis dobraram-se à qualidade de sua prosa, ela seria “uma grande escritora à procura de um tema”. E daí? Porém, tais reservas são fartamente compensadas e ultrapassadas por uma legião crescente de leitores. Infelizmente, há ainda outro lado: ela é uma das escritoras preferidas por quem gosta de colocar uma grife em suas postagens com frases falsas de Clarice.
“Naquela terra eu nunca pisei: fui carregada no colo”, dizia Clarice sobre a Ucrânia. Ela foi a terceira filha do casal de judeus Mania e Pinkouss Lispector e, quando nasceu em Tchetchelnik no dia 10 de dezembro de 1920, seus pais percorriam várias aldeias do país em razão da perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa de 1918-1921. Ela chegou ao Brasil aos dois meses de idade ainda com o nome de Haia. Aqui quase toda a família de cinco mudou de nome: o pai Pinkouss tornou-se Pedro; Mania virou Marieta; a irmã Leia, Elisa; Haia, Clarice; apenas a outra irmã, Tania, manteve o nome.
Primeiro foram para Maceió, depois, em 1924, para Recife. “O Brasil é minha verdadeira pátria”, sempre afirmava a escritora de beleza eslava. A literatura parece sempre ter estado dentro dela e Clarice começou a escrever logo após aprender as primeiras letras. Fora de casa ouvia e falava português, em casa, o ídiche. A vida era sofrida. A mãe sofria provavelmente de sífilis e não conseguia realizar as tarefas domésticas, papel em que era substituída pelas irmãs, principalmente por Elisa, que cuidava da casa e de todos. O pai tinha dificuldades para manter-se nos empregos. Em 1930, quando Clarice tinha 9 anos, a mãe morreu. Aos 12, pegou emprestado de uma amiga o livro “Reinações de narizinho”, de Monteiro Lobato, e apaixonou-se definitivamente pela literatura. Em 1935, ano em que Clarice completaria 15 anos, a família mudou-se para o Rio de Janeiro. O motivo parece ter o sido o fato de que Elisa conseguira um emprego público na capital por intervenção de Agamenon Magalhães, então ministro do Trabalho, Indústria e Comércio de Getúlio Vargas. O pai continuava atrás de oportunidades na capital, enquanto Clarice seguiu estudando até formar-se em Direito em 1943: “Me formei por pirraça, só para provar que era capaz de levar até o fim”.
Em 1942, ocorreu a morte do pai, a qual teve consequências traumáticas para Clarice e as irmãs. O fato, causado por uma simples retirada da vesícula biliar com complicações no pós-operatório, deixou Clarice arrasada e acabou por afastá-la definitivamente da religião. No mesmo ano, conhece e apaixona-se pelo escritor Lúcio Cardoso, de quem se torna amiga íntima.
No ano seguinte, aos 23 anos, Clarice casaria com o colega e futuro diplomata Maury Gurgel Valente e, em 1944, publicou Perto do Coração Selvagem. O livro causou espanto e nele foram encontradas pelos críticos influências de James Joyce e Virginia Woolf, autores que Clarice desconhecia… A epígrafe de Joyce e o título, inspirado em citação do livro de Retrato do Artista quando Jovem, também de Joyce, foram sugeridos por Lúcio Cardoso após o livro ter sido escrito.
Em 1944, recém-casada, viajou para Nápoles, onde serviu num hospital da Força Expedicionária Brasileira. De volta ao Brasil, publicou em 1946 O Lustre e, depois de uma longa estada na Suíça e Estados Unidos, fixou-se no Rio de Janeiro.
A partir de então, Clarice passa a surpreender e surpreender. Em seus romances e contos, os acontecimentos e circunstâncias, assim como a própria trama perdem importância. A escritora investe cada vez mais em um radical trabalho de linguagem que busca expressar impressões, detalhes, paixões e estados de espírito, utilizando não apenas os recursos de análise psicológica e do monólogo interior, como também subvertendo a própria língua. Tudo muito, mas muito poético e bem escrito. Costumava partir de livres-associações que vão lentamente à transcendência. Sua ficção não se localiza no tempo e no espaço; as personagens normalmente são mulheres que se colocam em situações limite.
A melhor prosa da autora talvez esteja nos contos de A Legião Estrangeira (1964) e Laços de Família (1972) e em romances como A Paixão Segundo G.H. (1964) e Água-viva (1973). Seus personagens aceitam um universo arbitrário, sem Deus, e permanecem atônitos diante da existência. Outros grandes romances são A Cidade Sitiada (1949), Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (1969) e A Hora da Estrela (1977), talvez o mais famoso de seus livros – ao lado de Laços de Família – e que conta a história de Macabéa, moça do interior em busca de uma vida na cidade grande.
Evitamos o fácil termo “intimista”. Ele parece ser fraco pois a literatura de Clarice não apenas reflete a intimidade de suas personagens, mas uma indireção que a torna-se íntima de quem a lê. O leitor me é ou torna-se eu, poderia ter escrito Clarice. Longe dos padrões estabelecidos, temos de abdicar da segurança das convenções da literatura tradicional para deixar sua maravilhosa invenção nos levar. A palavra é protagonista tão importante em sua criação que temos a sensação de que vem antes do pensamento: Como poderei saber o que penso até que veja o que digo? (*) Sua arte é de tal forma envolvente, que quando relemos nossas anotações anos depois, não compreendemos mais do que se trata. É melhor recomeçar o livro, reentrar em seu espaço, é melhor ir direto a Clarice de, por exemplo, “Água Viva”: Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio. Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas – escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio.
(*) Os Moedeiros Falsos, André Gide
.oOo.
Livros de Clarice Lispector:
Perto do coração selvagem (1944)
O lustre (1946)
A cidade sitiada (1949)
Alguns contos (1952)
Laços de família (1960)
A maçã no escuro (1961)
A legião estrangeira (1964)
A paixão segundo G.H. (1964)
O mistério do coelho pensante (1967)
A mulher que matou os peixes (1968)
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969)
Felicidade clandestina (1971)
A imitação da rosa (1973)
Água viva (1973)
A vida íntima de Laura (1974)
A via crucis do corpo (1974)
Onde estivestes de noite (1974)
Visão do esplendor (1975)
A hora da estrela (1975)
Póstumos
Para não esquecer (1978)
Quase de verdade (1978)
Um sopro de vida (pulsações) (1978)
A bela e a fera (1979)
A descoberta do mundo (1984)
Como nasceram as estrelas (1987)
Cartas perto do coração (2001) (cartas trocadas com Fernando Sabino)
Correspondências (2002)
Correio Feminino (2006)
Entrevistas (2007)
.oOo.
Abaixo, a última entrevista de Clarice, concedida para a TV Cultura de São Paulo no ano de sua morte:
Vou iniciar a resenha pelo final, falando de meu enorme entusiasmo com o livro após a leitura. O Drible é um grande livro. Nunca é leve, mas o final é arrebatador de um modo shakespeareano. Sim, sei do tamanho do elogio.
Vamos a ele. Neto tem por volta de cinquenta anos, trabalha como revisor e é filho de Murilo Filho, célebre cronista esportivo carioca dos anos 60 e 70, que foi amigo de gente como Nelson Rodrigues, Mario Filho, João Saldanha, etc. Neto tem uma relação difícil com o pai, tanto que não se veem há décadas.
Também chamado de Dickens de Campos Sales por seu estilo de escrita e por ser torcedor do América-RJ, time de Campos Sales, Murilo era reverenciado em público, mas odiado em casa. Além da péssima e violenta relação com o filho, sua esposa Elvira jamais suportou sua vida de mulherengo autoritário. O pai sempre ignorou as vontades do filho único e o desprezou sem piedade. As desavenças dos dois começaram na infância e foram se prolongando até a idade adulta, quando, enfim, ambos cortaram relações. Neto nunca obteve a contrapartida de seu amor pelo pai e, agora que o velho passou a pedir por sua presença, espera um pedido de desculpas.
Como disse, um dia, ele recebe uma ligação de Murilo. O velho diz que está morrendo e que deseja voltar a vê-lo. Neto então viaja para o interior do estado do Rio onde o pai mora com o caseiro e sua mulher. Tudo o que Murilo faz é evitar os assuntos pessoais e familiares, desviando o assunto para o futebol. De início, Neto pensa que o homem está gagá, mas a maravilhosa descrição de drible de Pelé em Mazurkiewicz, por exemplo, e a rápida disposição de mudar de assunto quando a conversa fica mais séria, negam a demência.
Murilo então pede ao filho que leia um livro seu, o último que escreveu e que se chama Porque Peralvo não jogou a Copa e, em meio a história do jogador que nasceu na mesma cidade que Murilo, Neto irá descobrir algumas coisas de seu passado e de sua família.
O Drible mistura vozes narrativas e personagens ficcionais a personagens reais. O pai é amigo do grande mundo das celebridades cariocas da época. O filho é absolutamente anônimo e participava de uma dupla pop chamada Kopo Deleche & Kopo Derrum. Neto é tarado por música e faz constantes referências a seriados dos anos 70 — Perdidos no Espaço e O Túnel do Tempo, principalmente — enquanto Murilo Filho é 100% futebolista. De modo totalmente diverso, ambos são passadistas. Só falam de seus assuntos prediletos, preferindo ocultar seus dramas de uma forma muito masculina, sofrendo com eles internamente.
Escrito com um notável trabalho de linguagem, O Drible tem final decididamente grandioso com uma orquestração que leva a verdade a ser espreitada. A inesperada e incrível verdade. Um outro drible.
O livro foi finalista do Jabuti, do Prêmio São Paulo de Literatura e do Portugal Telecom. Acho que não ganhou nenhum deles. É inacreditável, mas há que considerar que existe muito preconceito de intelectuais contra o futebol. Pobres deles.
Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, criador de Juó
A artograffia muderna é una maniera de scrivê, chi a gêntil scrive uguali come dice.
Juó Bananére
Hoje, se poucos sabem quem foi Juó Bananére, o que dizer de sua obra magna La Divina Increnca? Porém, durante as primeiras décadas do século XX, Juó foi um dos nomes mais famosos da imprensa paulistana e brasileira. Ele foi um personagem fictício, imigrante italiano criado por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (1892-1933), e que era assunto tanto nas feiras e ruas quanto nos salões da alta sociedade.
Formado em engenharia pela Escola Politécnica da USP, alto e elegante, Alexandre em nada correspondia à imagem de Bananére que o caricaturista Voltolino imortalizou: um sujeito de meia-idade, baixo, gordo e maltrapilho. Bananére escrevia textos que parodiavam o sotaque da grande colônia italiana de São Paulo. Como quase todo imigrante, os italianos recém-chegados eram obrigados a aceitar quaisquer trabalhos. Um deles era o de puxar carroças de frutas para vendê-las. Daí o pseudônimo: um João Bananeiro qualquer virou Juó Bananére. Ele era o autor de versos como estes:
Migna terra tê parmeras,
Che ganta inzima o sabiá.
As aves che stó aqui,
Tambê tuttos sabi gorgeá.
A abobora celestia tambê,
Chi tê lá na mia terra,
Tê moltos millió di strella
Chi non tê na Ingraterra.
O leitor certamente reconhecerá neles uma paródia ao poema Canção do exílio de Gonçalves Dias. Além de brincar com poemas famosos, Juó escrevia os também os seus próprios, além de crônicas satíricas que narravam a vida dos imigrantes e faziam piadas com figuras da época, como os presidentes Venceslau Brás, Hermes da Fonseca, o jurista Ruy Barbosa e muitos outros. Também há paródias inspiradas em romances de Machado de Assis, mantendo sempre a mistura dos idiomas italiano e português.
Por mais de 20 anos, Juó se fez presente nos meios culturais e jornalísticos paulistas. Eterno Gandidato á Gademia Baolista de Letras, ele, infelizmente, nunca obteve uma cadeira para si, apesar dos imensos e macarrônicos elogios que fazia a si mesmo.
Nomes ilustres não lhe pouparam elogios. Oswald de Andrade referiu-se a ele como “o mestre da sátira no Brasil”. O escritor Antônio de Alcântara Machado não deixou por menos: o personagem teria sido “o melhor cronista” de São Paulo.
Apesar de não ter ascendência italiana, Alexandre apaixonou-se pela cultura surgida nos bairros operários que se expandiram na capital paulista, como Brás, Barra Funda, Belenzinho, Mooca e Bexiga — bairro de Adoniran Barbosa, que adorava e deixou-se influenciar por Juó –, após a grande onda imigratória que fez com que a população da cidade passasse rapidamente de 130 mil habitantes em 1895 a 580 mil em 1920. Metade destes habitantes consistiam de imigrantes estrangeiros e outro quarto de seus filhos já nascidos no Brasil.
Como jornalista, Alexandre escrevia artigos para o jornal O Estado de S. Paulo e, em outubro de 1911, começou a assinar uma coluna na revista semanal O Pirralho, um periódico literário, político e de humor recém lançado por Oswald de Andrade. É lá que ele passa a usar o pseudônimo Juó Bananère. O novo jornal tinha uma proposta pré-modernista, movimento literário precursor do Modernismo.
Após a morte de Alexandre, o personagem Juó Bananère ficou esquecido por décadas, sendo eventualmente lembrado pela coletânea La Divina Increnca. Atualmente, reeditados, seus textos têm sido objeto de estudos de historiadores, críticos e teóricos da literatura.
Poema publicado na revista O Pirralho. Criação de Oswald de Andrade. Poema de Juó Bananére
Apesar das colunas nos jornais, a principal obra de Juó foi mesmo o livro La Divina Increnca, paródia de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, editado pela primeira vez em 1915 e reeditado em 1924, 1966 e 1993. Atualmente a editora Livronovo está procurando viabilizar uma nova edição através de financiamento coletivo.
Juo Bananére
Com efeito, críticos consagrados, como Otto Maria Carpeaux, atribuíram a ele o papel de precursor do modernismo. A inventividade linguística do personagem seria o equivalente tupiniquim às ousadias de James Joyce e ao movimento dadaísta europeu. O professor Carlos Eduardo Capela, de teoria literária da Universidade Federal de Santa Catarina e autor da obra Juó Bananére — Irrisor, Irrisório (2009, Nankin Editorial/Edusp, 538 páginas), não encara as comparações como piadas, mas acredita que tais teses sejam absurdas.
“Há coisas em comum, como o humor. Mas o modernismo é um movimento literário, articulado, tem um manifesto. Já o Bananére é um piadista, nunca quis ser nada além disso. O espaço dele é o efêmero, a coisa pequena, o cotidiano.” Mais apropriado, acredita ele, é enxergar em Alexandre/ Bananére um rico caso de testemunho histórico e de criação de um personagem.
“Ele confronta um ambiente intelectual conservador e projeta, por via paródia, o desclassificado, os tipos marginais. Hoje se fala muito em dar voz às minorias, mas ele já fazia isso há quase cem anos.”
Sua coluna em O Pirralho chamava-se O diário do Abax’o Piques. Abaixo Piques era o nome da atual Ladeira da Memória, local tombado em 1974 na cidade de São Paulo. Mais tarde, após romper com Oswald de Andrade, Alexandre fundou o Diário do Abax’o Piques — Diario Semanale di Grande Impurtanza, em associação com o ilustrador Voltolino (1884 – 1926). Nele, Juó se intitulava poeta, barbieri i giurnaliste e, em sua logomarca, estava escrito Lasciate ogni speranza.
Lasciate ogni speranza, voi che entrate (“Deixai qualquer esperança, vós que entrais”) é o famoso verso que se encontra na porta de entrada do Inferno, a primeira parte de La Divina Commedia, a obra-prima de Dante, da literatura italiana e da cultura da Idade Média.
O jornal caracterizava-se por apresentar temas essencialmente políticos, discutidos em tom satírico, por meio de uma linguagem humorística escrachada. O periódico apresentava duas seções fixas Taka – Shumbo Shimbum e um “sumplemento” esportivo – Sport que finalizava cada edição. Os colaboradores usavam pseudônimos para assinar suas colaborações. Ali, Juó Bananére registrava uma linguagem própria à mesclagem cultural que gerou paulistano.
Tal como aconteceu com o Barão de Itararé e seu inventor Aparício Torelly, o Juó Bananére inventado por Alexandre Marcondes Machado acabou por reinventar seu inventor como escritor. Hoje, pode-se dizer que existe Juó Bananére e não Alexandre Marcondes Machado. Juó, com seu italiano de imigrante pobre em São Paulo, aparecia como uma voz viva e afrontosa dos despossuídos do país.
A principal fonte de inspiração de Alexandre Machado estava nas ruas, e era para essas mesmas ruas que retornava a obra pronta, de enorme sucesso, tendo em vista as repercussões em textos de outros autores e relatos de pesquisadores. Está mais do que hora de recuperarmos Bananére como parte de nossa história literária.
“Não sou nada (…) À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”
Fernando Pessoa são muitos poetas. Se o Pessoa original nasceu em Lisboa no dia 13 de junho de 1888 e faleceu na mesma cidade, aos 47 anos, em 30 de novembro de 1935, seus heterônimos têm diferentes datas de nascimento e de morte, à exceção de Ricardo Reis, que não tem data de morte. A invenção de tais heterônimos atravessa toda a obra de Pessoa. Heterônimos são autores fictícios que possuem personalidade própria, ao contrário dos pseudônimos. Sendo assim, o autor assume outras personalidades. Cada uma delas seria uma pessoa real, com manifestações artísticas próprias e diversas do autor original, que é chamado de “ortônimo”.
No caso de Pessoa, com o amadurecimento de cada uma das outras personalidades, o autor original tornou-se apenas mais um heterônimo. Os três heterônimos mais conhecidos de Pessoa (e também os de maior obra poética) são Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Um quarto heterônimo importante é o de Bernardo Soares, autor do Livro do Desassossego. Bernardo é considerado uma espécie de semi-heterônimo por ter muitas semelhanças com Pessoa e não possuir uma personalidade distinta, contrariamente aos três primeiros, que possuem até mesmo data de nascimento e morte — à exceção do citado Ricardo Reis.
“Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”
Álvaro de Campos era um engenheiro de educação em língua inglesa e origem portuguesa. Aliás, como o próprio Pessoa. Tinha a sensação de ser estrangeiro onde estivesse. Foi um decadentista influenciado pelo simbolismo que aderiu ao futurismo. Álvaro é o poeta da modernidade, da euforia e do desencanto, é o poeta da irreverência a tudo e a todos. Alguns de seus poemas:
Tacabaria
Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
(…)
Poema em linha reta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo. Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado [sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
(…)
Lisbon Revisited
Não: não quero nada. Já disse que não quero nada. Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas! Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica! Não me apregoem sistemas completos, não me [enfileirem conquistas] Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) – Das ciências, das artes, da civilização moderna! Que mal fiz eu aos deuses todos? Se têm a verdade, guardem-na
(…)
“Tinha fugido do céu / Era nosso demais para fingir”
Outro era Alberto Caiero. Nascido em Lisboa, Caeiro teria vivido quase toda a vida como camponês, sem maiores estudos formais. Teve apenas a instrução primária, mas é considerado o mestre entre os heterônimos. Depois da morte do pai e da mãe, permaneceu em casa com uma tia-avó, vivendo de modestos rendimentos e morreu de tuberculose. Também é conhecido como o poeta-filósofo, mas rejeitava este título e pregava uma “não-filosofia”. Acreditava que os seres simplesmente são, e nada mais: irritava-se com a metafísica e qualquer tipo de simbologia para a vida.
Poema XX de ‘O guardador de rebanhos’
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios E navega nele ainda, Para aqueles que veem em tudo o que lá não está, A memória das naus. O Tejo desce de Espanha E o Tejo entra no mar em Portugal. Toda a gente sabe isso. Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia E para onde ele vai E donde ele vem. E por isso porque pertence a menos gente, É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
(…)
Poema do Menino Jesus
Num meio dia de fim de primavera Tive um sonho como uma fotografia Vi Jesus Cristo descer à terra, Veio pela encosta de um monte Tornado outra vez menino, A correr e a rolar-se pela erva E a arrancar flores para as deitar fora E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu, Era nosso demais para fingir De segunda pessoa da Trindade. No céu era tudo falso, tudo em desacordo Com flores e árvores e pedras, No céu tinha que estar sempre sério E de vez em quando de se tornar outra vez homem
“Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / No mínimo que fazes”
Pessoa também era Ricardo Reis, um médico que se definia como latinista e monárquico. De certa maneira, simboliza a herança clássica na literatura ocidental, expressa na simetria, na harmonia e num certo bucolismo, com elementos epicuristas e estoicos. O fim inexorável de todos os seres vivos é uma constante na sua obra, clássica, que é finamente depurada e disciplinada.
Para ser grande, sê inteiro: nada
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Anjos ou Deuses
Anjos ou deuses, sempre nós tivemos, A visão perturbada de que acima De nos e compelindo-nos Agem outras presenças. Como acima dos gados que há nos campos O nosso esforço, que eles não compreendem, Os coage e obriga E eles não nos percebem, Nossa vontade e o nosso pensamento São as mãos pelas quais outros nos guiam Para onde eles querem E nós não desejamos.
“O coração, se pudesse pensar, pararia”
Bernardo Soares é, dentro da ficção de seu próprio Livro do Desassossego, um simples ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Conheceu Fernando Pessoa num pequeno restaurante frequentado por ambos. Foi aí que Bernardo deu a ler a Fernando seu livro, que, mesmo escrito em forma de fragmentos, é considerado uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no século XX. Bernardo Soares é muitas vezes considerado um semi-heterônimo porque, como o próprio Pessoa explica: “Não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade.”
Do Livro do Desassossego:
“O coração, se pudesse pensar, pararia.”
“Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
“O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”
Também era Fernando Pessoa:
Autopsicografia
O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.
(…)
Mar Português
“Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu”
Todas as cartas de amor…
Todas as cartas de amor são Ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor, Como as outras, Ridículas.
As cartas de amor, se há amor, Têm de ser Ridículas.
Mas, afinal, Só as criaturas que nunca escreveram Cartas de amor É que são Ridículas.
(…)
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Fernando Pessoa publicou quatro obras em vida, três em língua inglesa. Mensagem foi o único publicado em língua portuguesa. Ele ocupou diversas profissões. Foi editor, astrólogo, publicitário, jornalista, empresário e crítico literário. Ficou órfão de pai aos 5 anos de idade, o que obrigou a mãe a vender parte de seus bens e mudar-se para uma residência mais modesta. Ela se casou pela segunda vez em 1895, por procuração, com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban (África do Sul), que havia conhecido um ano antes. Foi na África que o poeta passou a maior parte da juventude e recebeu educação inglesa, primeiro num colégio de freiras e depois no Durban High School.
“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”
Em 1901, escreveu seus primeiros poemas em inglês. No ano seguinte, voltou com a família para Lisboa. Porém, em 1903, Fernando retornou sozinho para a África do Sul, mais exatamente para a Durban High School, onde fez um curso de contabilidade e comércio, após ter sido um aluno brilhante no liceu nas disciplinas de Humanidades. Se a sua educação havia sido essencialmente humanista, o que o levou ao comércio? Provavelmente quis munir-se de conhecimentos práticos para ganhar a vida. Em 1905, de volta à Lisboa, matriculou-se na Faculdade de Letras, onde cursou Filosofia. Dois anos depois, abandonou o curso e, em 1912, estreou como crítico literário.
No campo profissional, do comércio, Fernando Pessoa nunca tentou ir muito longe. Foi um conformado empregado de escritórios, um guarda-livros como o seu heterônimo Bernardo Soares. Durante um período de sua vida, produziu textos sem grande brilho para a “Revista de Comércio e Contabilidade”. Na verdade, Pessoa ganhava a vida mais como tradutor de inglês de cartas comerciais. Desempenhava esta atividade para várias casas comerciais, aproveitando-se da dependência de Portugal em relação a Inglaterra.
Em 1925, passou a trabalhar também na área de publicidade e propaganda. Mas a experiência não foi bem sucedida. Em 1927, o poeta criou um slogan para a Coca-Cola, que estava sendo lançada em Portugal. O slogan dizia: “Primeiro estranha-se. Depois entranha-se”. Foi rejeitado.
“Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena”
Considerado hoje um poeta genial, colocado na lista de Harold Bloom como um dos 26 melhores e mais influentes escritores de todos os tempos, não mereceu a atenção de seus contemporâneos. Teve dificuldades para publicar seus versos, o que o levou a encher um baú de escritos, tesouro inestimável da literatura mundial.
Este baú, — de mais de 27 mil folhas — foi comprado pelo Estado português em 1979 e depositado na Biblioteca Nacional. Eles vêm sendo estudados e divulgados por uma equipe coordenada por Teresa Rita Lopes, com o apoio da editora Assírio & Alvim. São ensaios, mais de mil poemas dos três grandes heterônimos, um semi-heterônimo desdobrado em dois (Vicente Guedes e Bernardo Soares), mais de setenta pequenos heterônimos sem obra consistente, cartas, contos, teatro, textos políticos, notas, etc. É a obra do fingidor, do polêmico, do criador de vanguardas, do ocultista, do poeta dramático, do poeta das quadras populares e do questionador em busca de ser, que foi tanto a sua criação que se perdeu de si mesmo.
“As cartas de amor, se há amor, / Têm de ser / Ridículas”
A importância de obra de Pessoa é inequívoca e está comprovada pelas inúmeras reedições, citações, trabalhos acadêmicos, biografias e homenagens. A maior deles talvez tenha sido prestada por José Saramago, autor de O ano da morte de Ricardo Reis, baseado livremente na “vida” deste heterônimo. O poeta mexicano Octavio Paz disse que nada na vida de Pessoa é surpreendente, nada, exceto seus poemas. Na comemoração do centenário do nascimento de Pessoa, em 1988, o seu corpo foi trasladado para o Mosteiro dos Jerônimos, dando-lhe o reconhecimento que não teve em vida. Em Pessoa, coexistem duas vertentes: a tradicional e a modernista. Algumas das suas composições dão continuidade ao lirismo português, com marcas de saudosismo. Outras iniciam o processo de ruptura do modernismo, o que se concretiza nos heterônimos, mesmo que a música da poesia de Fernando Pessoa esteja tanto no tradicionalista como no modernista.
Logo após a morte do poeta, seu irmão João fez uma conferência e afirmou que ninguém na família adivinhava que Fernando Pessoa, “uma pessoa muito inteligente e muito divertida”, “resultaria em génio…”. A verdade é que o mundo também levou muito tempo para descobrir.
Na tarde da última segunda-feira (14), a Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul foi devolvida à população. Antes, pela manhã, conversamos longamente com sua diretora Morganah Marcon. O clima era de entusiasmo. Afinal, os funcionários e os livros estavam finalmente voltando para a bela casa cuja construção começou em 1912 e aberta ao público no formato atual em 1922. Há 93 anos, portanto. Ela ainda não está 100% pronta, mas já é perfeitamente habitável para eles e mais 250 mil volumes.
É um dos prédios mais bonitos do RS. Há mármores, parquês e mobiliário requintado, além de pinturas e esculturas. O revestimento das paredes internas tem pinturas decorativas. Quando foi inaugurada em 1922, a imprensa da época saudou o prédio como “do mais alto gabarito e elegância”. Quem entrar hoje na renovada Biblioteca não terá dúvidas disso.
A Biblioteca nunca deixou de funcionar, mas o prédio principal, na esquina da Riachuelo com a Ladeira, estava fechado ao público desde 2008.
Morganah Marcon falou-nos sobre a história, as várias funções e os problemas da instituição que começou sua vida em 1871, através da Lei Provincial nº 724, que autorizou o gasto de até oito contos de réis para aquisição de livros, ao mesmo tempo que criou um cargo de bibliotecário e outro de contínuo.
A querida Biblioteca já teve 40 funcionários, hoje conta com apenas 18. Mas não pensem que eles não têm grandes planos. “Somos um lugar de formação de memória, de disseminação do que é produzido”.
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14/12/2015 – PORTO ALEGRE, RS, BRASIL – Coordenadora da Biblioteca Pública, Morgana Marcon, fala sobre a e reabertura ao público novamente | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Sul21 – Tu és diretora da Biblioteca Pública desde 2003. Quando entraste, trabalhavas neste prédio. Quais eram as condições?
Morganah – Sim, eu assumi por convite de Roque Jacoby, Secretário de Cultura na época. O prédio tinha as aberturas, os pisos e os entrepisos bastante comprometidos. Havia também muitos vidros quebrados, outros estavam fora do padrão, enfim, tinha coisas inaceitáveis em um prédio histórico. Também os ornamentos da fachada corriam o risco de cair na calçada. Era um prédio de 1912 que exigia uma grande reforma, um restauro e os recursos disponíveis eram muito pequenos, em torno de R$ 465 mil reais, viabilizado pelo Projeto Monumenta. Não dava para fazer grande coisa, só o mais urgente. Isso foi entre 2006 e 2007, até nem houve a necessidade de sairmos do prédio. Porém, nesse meio tempo, nós montamos um projeto da Lei Rouanet, um projeto na época orçado em R$ 14 milhões e que incluía tudo, inclusive o restauro das pinturas murais. Deste projeto, nós conseguimos captar, em 2008, com o BNDES, R$ 2 milhões e 556 mil. E fizemos algo fundamental, que era a substituição dos entrepisos de madeira. Sob o piso de parquê tinham tábuas e estas estavam comprometidas. Elas pesavam como papel, cheia de cupins. O entrepiso foi substituído por um painel wall, que é um material que não pega cupim e que deve durar o resto da vida. Os parquês originais foram restaurados com um aproveitamento de 99%. Isso foi feito em todo o prédio, com exceção de duas salas.
Sul21 – Vocês ficaram quanto tempo fora daqui?
Morganah – Sete anos, desde 2008. No final de 2007, nós tivemos que sair, lá por outubro ou novembro, porque iam ter que mexer num dos pisos lá embaixo. Então nós saímos para a Casa de Cultura Mario Quintana.
Sul21 – E como é que sobrevive uma biblioteca fora da biblioteca?
Morganah – Foi difícil, foi muito difícil, porque tu perdes um pouco tua identidade, tu perdes a referência. É uma instituição dentro de outra instituição e esse monte de prédios públicos estaduais não tem condições de abrigar uma biblioteca. Ou requer um reforço estrutural muito grande, com investimento de vulto, ou é muito pequeno. Eu vasculhei todos os prédios do estado disponíveis. Todos os setores, mas não todo o acervo, foi para a CCMQ. Na época, ela tinha alguns espaços pouco utilizados. Ao longo desse tempo, nós fizemos outros projetos também, fizemos a higienização do acervo de obras raras, por exemplo. Enfim, a biblioteca sobrevive assim, porque entra governo e sai governo, as verbas para cultura sempre são escassas. Quando abre edital, a gente manda projeto.
14/12/2015 – PORTO ALEGRE, RS, BRASIL – Coordenadora da Biblioteca Pública, Morgana Marcon, fala sobre a e reabertura ao público novamente | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Sul21 – Para muita gente, a Biblioteca Pública tinha fechado para sempre.
Morganah – Pois é, mas nós nunca estivemos fechados. Esses dias eu quase dei um beijo num rapaz ali na ferragem… É uma empresa familiar. Eu fui comprar umas lâmpadas e estavam presentes o pai, a mãe e o filho. Eu falei que era diretora da biblioteca, que a gente estava reabrindo e a mãe disse: ‘Ah, a biblioteca estava fechada’’, aí o filho disse ‘Não, a biblioteca nunca esteve fechada’. Aí eu pensei: meu Deus, é a primeira pessoa que eu falo e que tem essa interpretação, que é a correta. Nós nunca fechamos. Nós levamos os serviços todos, o setor de empréstimo de livros, toda a parte de pesquisa no acervo geral, no setor do Rio Grande do Sul, levamos o setor Braille, o acesso à internet gratuito, levamos tudo para a CCMQ.
Sul21 – Já disponibilizavam internet antes de sair?
Morganah – Sim, antes de sair. É algo bastante procurado. Temos Wi-Fi agora, que é uma novidade. Nós levamos todos os setores para a CCMQ. O que nós não levamos foi todo o acervo. Do acervo do RS levamos uma pequena parte, porque ele é muito grande, e deixamos o restante nas estantes aqui, organizados. Então, quando havia a necessidade de um livro que estava aqui, a gente vinha buscar para o pesquisador examinar na CCMQ. Por todo este período, nós nunca deixamos nossos leitores desatendidos. Mas a maioria ficou com essa impressão: a de que a biblioteca estava fechada esse tempo todo. Eu perdi a conta de quantas entrevistas eu dei para rádios, TVs e jornais avisando que nós estávamos na Casa de Cultura Mario Quintana. Eu chego à conclusão que as pessoas não leem, ou só leem o que querem, porque não houve falta de informação. Claro, a biblioteca perdeu visibilidade, é diferente de estar nesse prédio belíssimo, com menos lugares para pesquisar. O público com deficiência visual caiu bastante. Eles talvez não enxerguem a beleza do prédio, mas eles sabem, têm o tato e viviam perguntando: ‘Quando é que vai voltar a biblioteca pra lá?’. Para tu veres a sensação de pertencimento que as pessoas têm por este prédio, por este espaço. Hoje, está tudo aqui novamente.
Sul21 – Quais são os serviços da biblioteca?
Morganah – Além do empréstimo de livros para pesquisa no local, a gente tem também o acervo de pesquisa de documentação do Rio Grande do Sul. A Biblioteca Pública do estado tem a função de ser a guardiã, de preservar e disseminar a memória de tudo o que é produzido no estado do Rio Grande do Sul. A literatura gaúcha, a história, a geografia, tudo deve ficar aqui. Nós temos, por exemplo, documentos de governo, temos a função de preservar e muitos pesquisadores, historiadores e escritores utilizam nossa documentação pra compor suas teses e seus romances históricos. É um acervo de grande porte e com bastante valor sobre o estado do Rio Grande do Sul.
14/12/2015 – PORTO ALEGRE, RS, BRASIL – Coordenadora da Biblioteca Pública, Morgana Marcon, fala sobre a e reabertura ao público novamente | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Sul21 – A produção literária atual vem para cá de alguma forma?
Morganah – Nem tudo. Nós temos a Lei Estadual do Livro, que foi regulamentada em 2003, que obriga as editoras gaúchas a mandarem pelo menos um exemplar do que é publicado, mas quem cumpre realmente são as editoras universitárias e as pequenas editoras. Nós temos também um serviço que a gente oferece e que é cobrado via associação de amigos: a elaboração da ficha catalográfica dos livros. Para algumas editoras, a gente faz de graça e em troca ela nos dá os livros, dois exemplares. Nós também assessoramos a questão do direito autoral, pois não temos escritório de direitos autorais aqui no RS, mas damos toda a orientação sobre como registrar o direito autoral de uma obra. A equipe é pequena, mas a gente se vira.
Sul21 – E as doações?
Morganah – Sim, a gente recebe muitas doações. Claro, no meio dessas doações vem aquilo que não serve… Alguns acham que qualquer coisa dá pra mandar para a Biblioteca. Às vezes é uma Enciclopédia Barsa que o pai tinha na década de 80. Bem, sinto muito, mas o material está desatualizado, então a gente agradece… Mas nas doações vêm muito material precioso, raro. Só com doações, já conseguimos triplicar o número de obras raras. Visitamos as bibliotecas particulares que as pessoas desejam doar e avaliamos. A gente conseguiu muita coisa boa para o setor de obras raras, principalmente de autores gaúchos, primeiras edições fantásticas.
Sul21 – Qual é o tamanho do acervo aqui na Biblioteca?
Morganah – Juntando todas as obras, temos 250 mil livros. De obras raras temos 1.100 títulos já catalogados, mas já vai virar 3.000, contando com o que está sendo catalogado. As obras raras não saem daqui, as pesquisas são locais e usa-se luvas. A parte do Rio Grande do Sul também não sai, porque pode se perder algo. Agora, o público e os pesquisadores poderão entrar e usar o acervo geral para pesquisar com orientação de um funcionário. Antes, quando a gente saiu, o acervo ficava no segundo andar, então o usuário pedia o livro lá embaixo, o funcionário encontrava no catálogo, manualmente, e o livro descia pelo elevador. Ou seja, o usuário não circulava nas estantes e isso é ruim, porque tem muito livro que nunca foi aberto por ninguém. Caminhando pelas estantes, tu podes ver outros títulos que te interessam. No meu entendimento, a biblioteca não serve se não chegar ao seu leitor, então a ideia é abrir o acervo, ao mesmo tempo que o preservamos.
Sul21 – Um acervo que é sempre crescente.
Morganah – O acervo cresceu muito. São muitas doações. A gente tem um público com grande carinho pela biblioteca. Há um pessoal fantástico que compra os livros, lê e traz pra biblioteca, então nós temos obras recentíssimas, que o estado não compra. A última vez que compramos foi em 2006 e dentro daquele limite que não exige licitação. Na época, o estado não pagava os fornecedores em dia e chegamos a fazer um pregão, só que ninguém se apresentou… Aí eu fui me queixar com o presidente da Câmara Rio-grandense do Livro e com o clube dos editores. Eles me disseram que o problema era o estado estava demorando mais de um ano para pagar e ninguém queria esperar todo esse tempo. Eu já passei por vários governos e nunca a cultura foi prioridade. Então sobrevivemos de doações particulares. A Associação de Amigos também compra alguma coisa, principalmente os livros de leitura obrigatória para o Vestibular.
14/12/2015 – PORTO ALEGRE, RS, BRASIL – Coordenadora da Biblioteca Pública, Morgana Marcon, fala sobre a e reabertura ao público novamente | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Sul21 – Algum autor vem aqui entregar?
Morganah – Sim, alguns sim, mas normalmente é a gente que tem de correr atrás. Muitos querem só vender, mas outros têm reconhecimento pela biblioteca e trazem suas obras.
Sul21 – O ex-secretário Assis Brasil me deu a informação de que a biblioteca teria sido o último prédio público construído para cultura no estado, mas acho que foi o Araújo Vianna em 1964. De qualquer maneira, se 1912 ou 1964, é muito tempo.
Morganah – É triste ver isso. Eu sou funcionária estadual há 23 anos, vou fazer 13 aqui na biblioteca, então já passei vários governos.
Sul21 – Como entraste no Estado?
Morganah – Como concursada. Fiz o concurso ainda sem me formar, porque não era exigida formação em Biblioteconomia, mas até que fui bem classificada. Então fui para uma biblioteca de bairro. Fiquei lá até 95, quando fui para a Biblioteca Pública.
Sul21 – Qual é o tamanho da equipe da BP?
Morganah – Hoje eu tenho umas 18 pessoas. Quando assumi a direção em 2003, éramos 40. As pessoas vão se aposentando e não são repostas. Tem gente que quer vir trabalhar de bibliotecário, mas só viriam se tivessem função gratificada e a secretaria não tem como disponibilizar.
Sul21 – Quais são as funções do pessoal que trabalha aqui?
Morganah – São cinco setores que atendem o público, dez horas por dia, das 9 às 19h, de segunda à sexta e no sábado das 14 às 18h. Então eu preciso de pelo menos duas pessoas por setor, todos os dias. Esses setores são o multimeios, o braille, a referência, que é a pesquisa no local, o setor do RS e o de empréstimo de livros. Esses atendem o público 10h por dia. Como o funcionário não tem carga de 10h por dia, eu tenho que revezar. Dividimos os horários. Alguns entram cedo e saem às 15h, outros entram às 12h e ficam até as 19h. O horário de 12h é complicado, porque há o almoço. É pouquíssima gente mesmo e bibliotecários então nem se fala: nós somos três. Eu na administração e cuidando de tudo, sistema e biblioteca, duas catalogando e uma voluntária, uma eterna voluntária bibliotecária que eu tenho, graças a Deus, e que é aposentada da UFRGS. Ela nos ajuda muito. Mas é uma equipe reduzida. O acervo cresceu muito, nós fomos para lá com 40 mil livros e voltamos com 60 mil. Conclusão: tenho um acervo de quase 20 mil livros encaixotados que estamos lutando para catalogar. Porque catalogar não é só botar o título, tem que analisar a obra, determinar o assunto. É um trabalho moroso, que tem que ser feito por técnicos e nós não temos técnicos em número suficiente. Eu tenho dois historiadores no setor do RS e duas estagiárias de história. Estagiários nós temos quatro: dois de história e dois de biblioteconomia. São poucos também.
14/12/2015 – PORTO ALEGRE, RS, BRASIL – Biblioteca Pública recebe restauração e abre ao público novamente | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Sul21 – E há os eventos.
Morganah – Eventos e também parcerias. Eu trouxe para cá o Clube de Leitura, que é quinzenal, e os recitais da Escola da Ospa. O Clube de Leitura são encontros quinzenais onde se discute literatura. Por exemplo, a cada segundo semestre nós damos prioridade para as obras do vestibular, vem muito estudante que precisa saber delas. Há os saraus do braille, etc. Há também apresentações musicais e as palestras no Salão Mourisco. Tudo isso é serviço, ma nada disso traz dinheiro. O que traz um dinheirinho é uma locação através da Associação de Amigos para alguma filmagem, algum comercial. Até a reforma dos banheiros e o Wi-Fi quem pagou foi a Associação de Amigos, com recursos que conseguimos através da gravação de um comercial e de parte de um filme. Claro, sempre um ou dois funcionários acompanham, não se pode arrastar nada, não pode encostar nada na parede, não pode pendurar nada, não pode beber, não pode fazer refeição. Nós estamos num prédio que deve ser preservado.
Sul21 – A Associação de Amigos, como é que funciona?
Morganah – Ela não é tão forte como a do Theatro São Pedro ou a do Margs. O associado paga uma anuidade de R$ 60. Agora poderemos dar um retorno melhor para os associados, inclusive no uso do Salão Mourisco, que pode ser utilizado mediante agendamento. Nós temos uns 60 pagantes, menos até. No ano passado fizemos uma campanha, mas ainda são poucos, bem poucos. A gente fatura alguma coisa através das fichas catalográficas, pelas quais cobramos R$ 30, bem abaixo do preço de mercado. Temos também a taxa de empréstimo anual de R$ 5 de cada sócio, para retirar livros. No multimeios, se o usuário quiser imprimir alguma coisa, cobramos centavos pela impressão, não pelo uso. O uso é gratuito. São vários produtos que geram alguma entrada de dinheiro para a Associação e que reverte para a biblioteca. E as locações que eventualmente acontecem. Nós recebemos recentemente uma escola de música. Locamos o espaço por R$ 200, o que também não é uma fortuna.
Sul21 – O que não está pronto ainda?
Morganah – O restauro da pintura mural é um projeto à parte, é um projeto caro e demorado. Orçaremos com especialistas. Isso é um projeto à parte, é uma coisa que eu acredito que vá demorar uns quinze anos e que será feito com a Biblioteca em funcionamento. Isola uma parede, trabalha ali, depois vai para outra e assim por diante. Além disso, o que falta fazer ainda: o restauro da fachada interna, que não foi feito, e a climatização. As esperas estão prontas, mas temos que adquirir os equipamentos e esse prédio precisa ser climatizado, porque tem muita poeira, muita poluição dos veículos que trafegam ao redor, o que prejudica o acervo. E está pendente a acessibilidade. Nós temos um elevador que dá acesso às pessoas de idade, mas onde não cabe uma cadeira de rodas. Então precisamos de um elevador para cadeirantes. Tudo vai bater lá pelos 8 milhões, que é o que nos falta. Precisamos também de segurança para o acervo, do restauro dos ornamentos, das escadarias, das colunas de mármore e do mobiliário. Há partes do mobiliário que foram comprometidas pelos cupins. O mobiliário precisa ser restaurado. Mas os ornamentos das cadeiras estão todos recuperados, são detalhes caros. E a infraestrutura está toda OK, não há problema de umidade nem de infiltração, o cabeamento idem. A sustentação dos tetos também. Havia problemas graves neste aspecto, como disse antes.
Sul21 – Eu dei uma olhada no site de vocês e ele fala em anexo.
Morganah – Não, o anexo era uma proposta do governo anterior, que era esse prédio da Andrade Neves, onde os Lanceiros Negros estão. Eu tinha conseguido o prédio com recursos do governo federal, mais R$2 milhões e 600 mil de contrapartida do estado. Assim, criaríamos esse anexo. Era o nosso sonho, só que essas coisas de governo…
14/12/2015 – PORTO ALEGRE, RS, BRASIL – Biblioteca Pública recebe restauração e abre ao público novamente | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Sul21 – Qual é a importância da Biblioteca Pública para o estado?
Morganah – Bom, em primeiro lugar não existe prédio mais belo aqui na cidade, com detalhamento de pinturas, de murais, de mobiliário. É também é um dos templos positivistas de Porto Alegre. Além disto, somos um lugar de formação de memória, de disseminação do que é produzido no estado. Mas eu acho que o mais importante é que as pessoas têm enorme carinho por esse prédio. Todo mundo diz ‘’Ah, que bom que a biblioteca voltou’’. Os funcionários estão radiantes. A gente carregava caixas pesadas neste calor de verão, suava e não se importava. Eu ouço o pessoal daqui dizer “Ah, eu não me importo, eu tô voltando pra casa’’. Aqui é um prédio que, além da história do RS, oferece o acesso à informação, o acesso ao livro gratuitamente. É a maior do estado, a mais representativa, então tínhamos que estar de volta para o nosso público. E eu tenho certeza que, agora, com o retorno, nós vamos resgatar todo aquele público que perdemos com nossa saída e muito mais. A gente espera que as pessoas se apropriem desse espaço, para que ele se torne pequeno. Quando este lindo edifício foi construído, no início do século XX, a população era outra e o acervo era de 8 mil livros. Nós precisamos de uma biblioteca moderna para que aqui fique só a parte histórica, mas isso eu me aposento e não vejo. Espero que a situação do estado melhore.
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Veja fotos internas e externas do prédio restaurado:
14/12/2015 – PORTO ALEGRE, RS, BRASIL – Biblioteca Pública recebe restauração e abre ao público novamente | Foto: Caroline Ferraz/Sul2114/12/2015 – PORTO ALEGRE, RS, BRASIL – Biblioteca Pública recebe restauração e abre ao público novamente | Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Caroline Ferraz/Sul21Foto: Guilherme Santos/Sul21Foto: Guilherme Santos/Sul21
O título italiano deste ótimo livro de ensaios é bem mais justo: Contra Amazon. Dezessete textos em defesa das livrarias, das bibliotecas e da leitura. Sim, pois o ensaio Contra Amazon ocupa apenas 17 das 304 páginas do livro. Pode ser que seja o melhor dos ensaios, mas há outros igualmente extraordinários.
Contra Amazon é um livro altamente inteligente, preciso e estimulante. Fala mal da Amazon, mas se dedica muito mais ao elogio de bibliotecas e de pequenas livrarias. Fala mal da compra de livros pela internet e valoriza o contato com o livreiro, a surpresa e a humanidade.
São dezessete textos — alguns menos longos, outros ensaios literários de grande profundidade — que servem, como escreve o próprio autor, para compreender que “a realidade não existe se a linguagem não a precede. E a viagem não tem sentido se você não encontrar palavras”. Os livros, livrarias, bibliotecas, livreiros são espaços de palavras, encontro e paz.
Escreve Jorge Carrion em seu manifesto Contra Amazon, “ainda não somos capazes de lembrar com a mesma precisão o que lemos no papel e o que lemos no e-book”. Aqui está uma das chaves da importância deste livro. Também é curiosa a vida do autor: ele viaja por Seul, Genebra, Tóquio, Capri, Miami, Londres, etc., sempre com uma desculpa livresca. Sempre procurando por pistas de autores, livrarias, livreiros e bibliotecas.
Dentre os ensaios há duas maravilhosas entrevistas — uma com Alberto Manguel e outra com Luigi Amara.
Contra Amazon, por ser uma afronta a um gigante da Internet — que não é uma livraria, mas um hipermercado –, propõe que sejamos inteligentes e evitemos a lógica do monstro de Jeff Bezos em benefício de nossa própria experiência nas livrarias. Com aquelas livrarias que podem, por exemplo, nos oferecer uma indicação de leitura. Isso traz à tona as ideias de proximidade e lentidão, de conversa e contato. De tempo expandido, enfim. Uma vez que ninguém pode competir com uma biblioteca que nos proporciona experiências únicas, personalizadas e inesquecíveis.
“Conviver com uma biblioteca pessoal significa saber que você não se rende, que sempre terá pela frente menos livros lidos do que livros para ler, que os livros são encadeamento de significados, contextos mutantes, perguntas que mudam de entonação e respostas. Uma biblioteca precisa ser heterodoxa: só a combinação de elementos diversos, de relações problemáticas, pode conduzir a um pensamento próprio.”
Jorge Carrión, em Contra Amazon.
A maravilhosa felicidade de ler um livro físico – novo ou usado — é o tema deste livro. E aqui concordamos fortemente com as posições éticas colocada pelo autor em defesa do velho comércio de livros.
O livro brasileiro termina com dois textos extras de Carrión sobre a pandemia e com alguns depoimentos de livreiros brasileiros. Neste ponto, a coisa torna-se altamente desigual, pois há textos ótimos, textos ruins e outros que parecem não ter entendido o proposito do livro e sua profundidade.
Algo de miraculoso arde nela,
e fronteiras ela molda aos nossos olhos.
É a única que continua a me falar,
depois que todos os outros ficaram com medo de se aproximar.
Depois que o último amigo tiver desviado o olhar,
ela ainda estará comigo no meu túmulo,
como se fosse o canto do primeiro trovão,
ou como se todas as flores tivessem começado a falar.
2. O segundo, de Fernando Monteiro:
O dia 24 era um domingo e no dia seguinte, 25 de setembro de 2006, minha filha completaria doze anos. No mesmo dia, o mundo musical comemorava os cem anos de nascimento de Dmitri Shostakovich. Lá pelas tantas, naquele tranquilo domingo, resolvi olhar os e-mails e havia um do escritor pernambucano Fernando Monteiro.
Era um poema, uma litania que Fernando escrevera e dedicara a mim — seu geograficamente longínquo amigo — e a Bárbara. Fiquei honradíssimo com a dedicatória, li o poema para minha filha e aquela Litania nos cem anos de Shostakovich acabou publicada em alguns jornais. Lembro que planejei fazer referências a estas publicações, mas nunca as fiz.
Hoje, ao procurar uns papéis, encontrei a Litania grampeada a outros dois papéis: um da imagem de uma página de 23 de fevereiro de 2007 do caderno “Anexo – Ideias” do jornal A Notícia de Joinville, onde a Litania tinha sido publicada, e outro, um e-mail de Fernando, explicando-me que as alusões “venezianas” do poema – detritos, crianças, gradis, febre, scirocco -, eram uma homenagem a Mahler que, para ele, é o que Shostakovich é para mim.
Fernando, digo-te que meu coração musicalmente promíscuo coloca Mahler ao lado de meu amado Shostakovich…
Antes de escrever este post, examinei demorada e amorosamente a primeira folha, a da litania sozinha, onde há a linda e enorme letra infantil de minha filha. Bem sobre o B.R., ela escreveu Bárbara Ribeiro.
Litania nos cem anos de Shostakovich Para M.R. e B.R.
O torso de beleza afastando-se
Como se afasta um afogado
Das margens da praia
Também recuada para trás
De onde o Mediterrâneo
Vinha beijar os pés das sílfides,
Debaixo do sol silencioso.
Abandonados pelas crianças,
Os brinquedos da marina
Zunem de calor no metal
Aquecido como as águas.
O planeta está mais quente
E mais enlouquecido
Entre os pios nublados
Do pássaro escondido
Em árvores molhadas
Da chuva ácida que se filtra
De um céu de tempestade.
Aviões caíram nesta manhã,
Levando passageiros
Para o fundo de uma laguna
E o nenhum lugar da selva
Remota que irá retomar
Seu espaço sobre azulejos
Encardidos e embalagens
Não-degradáveis
Num mundo que prefere o desastre.
Tudo o prenuncia, de certa forma,
E nada está perdoado
Nem foi esquecido
Com todas as coisas que já foram
E com aquelas que ainda serão
Ou que apenas dormem na tarde
À espera dos anos sem emoção.
Os humanos repousam
No sono da sombra de toldos
Estalando na Veneza insalubre
Deste lado do Atlântico
De exímios nadadores
que não viram as crianças
Se afogando.
Sim, eu prefiro estar
Por apanhar um resfriado
Antes da peste
No limite da cerca-viva
De mato e detritos do lixo
Avançando até o antigo gradil
De gladíolos brancos.
É minha a opção de não manter
A saúde, fumar e perder esperança
Na vigilância sem objeto,
Exposto ao vento da tarde,
Ao siroco da mente
Igualmente desistindo
Das perguntas a ninguém
Muito depois de Pã
Anunciado como morto
Antes da morte dos mares.
Então, não importa molhar
Os sapatos da espuma de solfejos
Rumorejando as queixas do Adriático
Como outrora o mar dos gregos
Deixava leve gosto de salgado
Entre os artelhos limpos
De náiades banhando-se
Nos oceanos mitológicos
Que hoje são de plástico
Cor de chumbo.
O primeiro livro de José Falero esteve várias vezes na minha mochila para ser lido, mas sempre aparecia um cliente na Bamboletras pedindo Vila Sapo e lamentando-se de que não tinha mais… Então, eu abria a mochila e entregava o meu. Um dia, me disseram que tinha simplesmente acabado. Fim. Acabou. E eu fiquei sem conhecer Falero.
Agora, quando chegou este volume da Todavia, eu decidi que o primeiro era meu. Botei meu nome no exemplar e comecei imediatamente a lê-lo. Não me arrependi.
Pedro e Marques trabalham como supridores num supermercado. Supridores são aqueles caras que tratam de preencher as gôndolas vazias, repondo silenciosamente os produtos. São pessoas com mínimas perspectivas de ascensão, mesmo dentro da estrutura da empresa. Pedro percebe claramente o fato. Ele é muito inteligente e dá explicações absolutamente incríveis — em seus termos — e lógicas para o que acontece com eles. Por que eles são o que são? Quais direitos têm ou deveriam ter? Quem, no supermercado, é dono do quê? Ele passa a ser o mentor de Marques, falando uma linguagem cheia de analogias e contextualizações originais. E propõe a Marques um plano para virarem o jogo trabalhando como traficantes num nicho pouco explorado pelos donos do tráfico. A coisa funciona. Bem, funciona por um tempo.
Falero é um tremendo narrador, um contador de histórias de primeira linha, alguém que muda da linguagem culta para a língua falada na periferia porto-alegrense com total naturalidade. Sabe criar clima e tensão. O ritmo do livro é veloz, os diálogos são ótimos, o encadeamento entre cenas engraçadas e dramáticas não para nunca, fazendo com que tenhamos dificuldades em largar o livro sem ler o próximo capítulo.
O autor também evita os clichês, percorrendo caminhos pouco óbvios. Tudo indica para uma história de ascensão e queda financeira. Sim, mas não é apenas isso: há todo o cenário da desconhecida vida nas vilas de Porto Alegre – com seus rituais de concessões e proibições — e humor, muito humor. O humor catalisa a ação, dando força, velocidade e interesse às cenas. Os Supridores não é apenas um romance sobre jovens pobres e espertos atrás de grana como também um livro grudento e engraçado. O capítulo 17, O mais bem-guardado dos segredos, é um exemplo disso. Nele, o humor e um fato trágico para o esquema entrelaçam-se perfeitamente, comprovando que Falero é um narrador que sabe que os contrastes são fundamentais.
Claro que o momento final é triste, mas o percurso até a tragédia é o que interessa. Então, Os Supridores é um livro trepidante e de boa história, narrado por uma voz original e muito brasileira. Para finalizar, tenho que sublinhar a boa observação da editora Todavia, que pegou um excelente autor logo em seu segundo pulo.