Obs.: acho que amanhã não vai dar para publicar o PHES, OK? Muita gente de aniversário. Houve festa ontem, tem hoje e amanhã tem um almoço. Muito álcool, sabe?
Dmitri Shostakovich (IV)
A maioria de minhas sinfonias são monumentos funerários. Gente demais, entre nós, morreu não se sabe onde. E ninguém sabe onde foram enterrados. Aconteceu a uma porção de amigos meus. Onde se pode erguer um monumento a eles? Somente a música pode fazê-lo. Estou disposto a dedicar uma obra a cada uma das vítimas. Infelizmente, é impossível. Dedico-lhes, então, toda a minha música.
DMITRI SHOSTAKOVICH
Seguimos nossa série iniciada aqui, continuada ali e ainda aqui.
Sinfonia Nº 10, Op. 93 (1953)
Este monumento da arte contemporânea mistura música absoluta, intensidade trágica, humor, ódio mortal, tranquilidade bucólica e paródia. Tem, ademais, uma história bastante particular.
Em março de 1953, quando da morte de Stalin, Shostakovich estava proibido de estrear novas obras e a execução das já publicadas estava sob censura, necessitando autorizações especiais para serem apresentadas. Tais autorizações eram, normalmente, negadas. Foi o período em que Shostakovich dedicou-se à música de câmara e a maior prova disto é a distância de oito anos que separa a nona sinfonia desta décima. Esta sinfonia, provavelmente escrita durante o período de censura, além de seus méritos musicais indiscutíveis, é considerada uma vingança contra Stalin. Primeiramente, ela parece inteiramente desligada de quaisquer dogmas estabelecidos pelo realismo socialista da época. Para afastar-se ainda mais, seu segundo movimento – um estranho no ninho, em completo contraste com o restante da obra – contém exatamente as ousadias sinfônicas que deixaram Shostakovich mal com o regime stalinista. Não são poucos os comentaristas consideram ser este movimento uma descrição musical de Stálin: breve, é absolutamente violento e brutal, enfurecido mesmo, e sua oposição ao restante da obra faz-nos pensar em alguma segunda intenção do compositor. Para completar o estranhamento, o movimento seguinte é pastoral e tranquilo, contendo o maior enigma musical do mestre: a orquestra para, dando espaço para a trompa executar o famoso tema baseado nas notas DSCH (ré, mi bemol, dó e si, em notação alemã) que é assinatura musical de Dmitri SCHostakovich, em grafia alemã. Para identificá-la, ouça o tema executado a capela pela trompa. Ele é repetido quatro vezes. Ouvindo a sinfonia, chega-nos sempre a certeza de que Shostakovich está dizendo insistentemente: Stalin está morto, Shostakovich, não. O mais notável da décima é o tratamento magistral em torno de temas que se transfiguram constantemente.
Milton Ribeiro adverte: não ouça o segundo movimento previamente irritado. Você e sua companhia poderão se machucar.
Quarteto de Cordas Nº 6, Op. 101 (1956)
Talvez apenas aficionados possam gostar deste esquisito quarteto. Ele tem quatro movimentos, dos quais três são decepcionantes ou descuidados. O intrigante nesta música é o extraordinário terceiro movimento Lento, uma passacaglia barroca que é anunciada solitariamente pelo violoncelo. É de se pensar na insistência que alguns grandes compositores, em seus anos maduros, adotam formas bachianas. Os últimos quartetos e sonatas para piano de Beethoven incluem fugas, Brahms compôs motetos no final de sua vida e Shostakovich não se livrou desta tendência de voltar ao passado comum de todos. Enfim, este quarteto vale por seu terceiro movimento e, com certa boa vontade, pelo Lento – Allegretto final.
Concerto Nº 2 para Piano e Orquestra, Op. 102 (1957)
Concerto dedicado ao filho pianista Maxim Shostakovich. É um autêntico presente de pai para filho. Alegre, brilhante e cheio de brincadeiras de caráter privado como a inacreditável inclusão — no terceiro movimento e totalmente inseridos na música — de exercícios que seu filho praticava quando era estudante do instrumento… E não se surpreenda, o primeiro movimento deste concerto é conhecido entre as crianças que veem desenhos da Disney. É a música que é executada durante o episódio do Soldadinho de Chumbo em Fantasia 2000. Quando ouço esta música em casa, sempre um de meus filhos vem me dizer “olha aí a música do Soldadinho de Chumbo”. É claro que a música não tem nada a ver com esta história infantil. Shostakovich fez um belo concerto para seu filho, de atmosfera delicada e afetuosa. O primeiro movimento (Allegro) começa com uma rápida introdução orquestral em seguida à qual entra o piano. De acordo com a prática habitual de Shostakovich, o tema inicial é um pouco mais poético do que o segundo, de entonação mais vigorosa e rítmica.
Dois movimentos vivos e felizes cercam um melancólico, tocante e melodioso segundo movimento. A inspiração óbvia para este concerto foi o Concerto em Sol Maior (1931) de Ravel. Leonard Bernstein deu-se conta disto e gravou um de seus melhores discos em 1978, acumulando as funções de pianista e regente nos dois concertos. Se este concerto não arrancar algum sorriso do ouvinte, este necessitará de urgentemente de antidepressivos.
Sinfonia Nº 11, Op. 103 – O Ano de 1905 (1957)
Esta sinfonia talvez seja a maior obra programática já composta. Há grandes exemplos de músicas descritivas tais como As Quatro Estações de Vivaldi, a Sinfonia Pastoral de Beethoven , a Abertura 1812 de Tchaikovski, Quadros de uma Exposição de Mussorgski e tantas outras, mas nenhuma delas liga-se tão completa e perfeitamente ao fato descrito do que a décima primeira sinfonia de Shostakovich.
Alguns compositores que assumiram o papel de criadores de “coisas belas”, veem sua tarefa como a produção de obras tão agradáveis quanto o possível. Camille Saint-Saëns dizia que o artista “que não se sente feliz com a elegância, com um perfeito equilíbrio de cores ou com uma bela sucessão de harmonias não entende a arte”. Outra atitude é a tomada por Shostakovich, que encara vida e arte como se fosse uma coisa só, que vê a criação artística como um ato muito mais amplo e que inclui a possibilidade do artista expressar — ou procurar expressar — a verdade tal como ele a vê. Esta abordagem foi adotada por muitos escritores, pintores e músicos russos do século XIX e, para Shostakovich, a postura realista de seu ídolo Mussorgsky foi decisiva. A décima primeira sinfonia de Shostakovich tem feições inteiramente mussorgkianas e foi estreada em 1957, ano de muitas glórias além do quadragésimo aniversário da Revolução de Outubro. Contudo, ela se refere a eventos ocorridos antes, no dia 9 de janeiro de 1905, um domingo, quando tropas czaristas massacraram um grupo de trabalhadores que viera fazer um protesto pacífico e desarmado em frente ao Palácio de Inverno do Czar, em São Petersburgo. O protesto, feito após a missa e com a presença de muitas crianças, tinha a intenção de entregar uma petição — sim, um papel — ao czar, solicitando coisas como redução do horário de trabalho para oito horas diárias, assistência médica, melhor tratamento, liberdade de religião, etc. A resposta foi dada pela artilharia, que matou mais de cem trabalhadores e feriu outros trezentos.
O primeiro movimento descreve a caminhada dos trabalhadores até o Palácio de Inverno e a atmosfera soturna da praça em frente, coberta de neve. O tema dos trabalhadores aparecerá nos movimentos seguintes, porém, aqui, a música sugere uma calma opressiva.
O segundo movimento mostra a multidão abordar o Palácio para entregar a petição ao czar, mas este encontra-se ausente e as tropas começam a atirar. Shostakovich tira o que pode da orquestra num dos mais barulhentos movimentos sinfônicos que conheço.
O terceiro movimento, de caráter fúnebre, é baseado na belíssima marcha de origem polonesa Vocês caíram como mártires (Vy zhertvoyu pali) que foi cantada por Lênin e seus companheiros no exílio, quando souberam do acontecido em 9 de janeiro.
O final – utilizando um bordão da época – é a promessa da vitória final do socialismo e um aviso de que aquilo não ficaria sem punição.
Concerto Nº 1 para Violoncelo e Orquestra, Op. 107 (1959)
Shostakovich e o grande violoncelista Mstislav Rostropovich eram amigos tendo, muitas vezes, viajado juntos fazendo recitais que incluíam entre outras obras, a Sonata para violoncelo e piano, opus 40, já comentada nesta série. Desde que se conheceram, o compositor avisara a Rostropovich que ele não deveria pedir-lhe um concerto diretamente, que o concerto sairia ao natural. Saíram dois. Quando Shostakovich enviou a partitura do primeiro, dedicada ao amigo, este compareceu quatro dias depois na casa do compositor com a partitura decorada. (Bem diferente foi o caso do segundo concerto, que foi composto praticamente a quatro mãos. Shostakovich escrevia uma parte, e ia testá-la na casa de Rostropovich; lá, mostrava-lhe as alternativas, os rascunhos ao violoncelista, que sugeria alterações e melhorias. Amizade.)
Estilisticamente, este concerto deve muito à Sinfonia Concertante de Prokofiev – também dedicada a Rostropovich – e muito admirada pelos dois amigos. É curioso notar como os eslavos têm tradição em música grandiosa para o violoncelo. Dvorak tem um notável concerto, Tchaikovski escreveu as Variações sobre um tema rococó, Kodaly tem a sua espetacular Sonata para Cello Solo e Kabalevski também tem um belo concerto dedicado a Rostropovich. O de Shostakovich é um dos de um dos maiores concertos para violoncelo de todo o repertório erudito e minha preferência vai para a imensa Cadenza de cinco minutos (3º movimento) e para o brilhante colorido orquestral do Allegro com moto final.
Quarteto de Cordas Nº 7, Op. 108 (1960)
Mais um quarteto de Shostakovich com um lindíssimo movimento lento, desta vez baseado no monólogo de Boris Godunov (ópera de Mussorgski baseada em Puchkin), e mais um finale construído em forma de fuga, utilizando temas do primeiro movimento. Uma pequena e curiosa jóia de onze minutos.
Quarteto de Cordas Nº 8, Op. 110 e Sinfonia de Câmara, Op. 110a – Arranjo de Rudolf Barshai (1960)
Na minha opinião, o melhor quarteto de cordas de Shostakovich. Não surpreende que tenha recebido versões orquestrais. Trata-se de uma obra bastante longa para os padrões shostakovichianos de quarteto; tem cinco movimentos, com a duração total ficando entre os 20 minutos (na versão para quarteto de cordas) e 26 (na versão orquestral). O quarteto abre com um comovente Largo de intenso lirismo, o qual é seguido por um agitado Allegro molto, de inspiração folclórica e que fica muito mais seco na versão para quarteto. O terceiro movimento (Allegretto) é uma surpreendente valsinha sinistra a qual é respondida por outra valsa, muito mais lenta e com um acompanhamento curiosamente desmaiado. O quarteto é finalizado por dois belos temas ; o primeiro sendo pontuado por agressivamente por um motivo curto de três notas e o segundo formado por mais uma fuga a quatro vozes utilizando temas dos movimentos anteriores.
Bibliografia: quase tudo de memória, apoiado por algumas capas de CD.
Um ataque de A4, gramatura 75 g/m2
De forma surpreendentemente irônica, o jornal do SBT “desconstruiu” a última farsa de José Serra, que foi apedrejado por uma bolinha de papel e teve que fazer tomografia e repousar. Qualquer agressão é inadmissível, mas capitalizar sobre uma não-agressão não é digno de um candidato à Presidência da República. Depois, uma boa charge de Amarido e, a seguir uma montagem de nosso querido Cloaca News.
A capa da Veja para a Abolição da Escravatura
Uma cueca para elevar a autoestima masculina
A rede varejista britânica Marks & Spencer está vendendo uma cueca tranquilizadora para os homens que têm problemas de autoestima. Pelo equivalente a 15 dólares, você pode ver surgir a aquela genitália avantajada com a qual não nasceu. De frente e perfil.
Segundo a empresa, agora os homens podem desfrutar as mesmas tecnologias que têm há muito tempo servem às mulheres: roupas que melhoram as formas, como o Wonderbra. Dizem que ao menos a confiança vai às alturas.
Confortável para andar e sentar. Adaptável. Escamoteável. Apalpável. A publicidade diz que as cuecas deixam sua genitália abaulada em mais de 40%. Porém…, a empresa produz também outro estilo de roupa íntima; afinal, você pode também querer aumentar sua bunda.
As cuecas vêm em preto e branco e podem ser compradas através da Internet. Ah, a Marks & Spencer também fabrica camisas que escondem a barriga e mostram músculos inexistentes.
Vaticano dispensa Carla Bruni por ter posado nua
Apesar das greves e dos problemas internos que tem enfrentado (e que causa), o presidente da França, Nicolas Sarkozy, é invejado. Imaginem que é casado com Carla Bruni, a baranga que você vê abaixo. Na semana passada, ele foi ao Vaticano para uma visita daquelas de boa vizinhança para com quem é o pastor de tantas almas. A finalidade seria a de conversar a respeito da grave questão dos ciganos na França, porém, antes da visita, recebeu um recado. Este dizia que Carla Bruni “não seria bem-vinda no Vaticano”.
O papa estaria preocupado com a fama excessiva de Bruni, acrescida do fato de ela já ter posado nua… Tá bom.
Mas Jesus Cristo não defendeu a prostituta Maria Madalena de um apedrejamento? E ela não teria se tornado sua discípula? Por que a ex-modelo Bruni não poderia privar com o papito? Afinal, ela é hoje a primeira dama da França. Quanta hipocrisia. Não sei como algumas pessoas ainda suportam a religião católica.
Diversão
A Imagem e a Voz da Razão
No Psiquiatra
E então o psiquiatra me ouviu por cinco horas, três horas no primeiro dia e duas no segundo. Um tempo espantoso e inesperado para quem, como eu, pensava que eles só trabalhavam de 50 em 50 minutos. Perdi compromissos. Ele me perguntava sobre tudo e eu disse que havia apenas 3 ou 4 períodos de minha vida que interessavam, que os outros eram ociosos. Mas não, ele quis uma coisa cronológica e organizada, queria uma visão geral. Eu despejava detalhes que ele ia anotando e a garganta me doía de tanto falar, pois raramente era interrompido. Aí, cheguei na parte em que eu, rindo do absurdo, contei que, apesar do que pago, apesar de ter deixado tudo para ti, de ter me despojado, tu ainda querias mais e declaravas-te insatisfeita e desatendida, dizendo que eu não fazia nada de bom para ti e as crianças. Quando falei isto, ele me interrompeu como um guarda de trânsito. Sim, ele levantou o braço; eu vi a mão dele espalmada na minha direção. Parei imediatamente e ele tomou a palavra. Disse que tu tinhas razão, que o fato de eu só ter tirado da casa minhas roupas, meus discos, meus livros e nada mais era incomparável ao vazio que uma pessoa rígida e de poucos amigos reais sente ao perder alguém sociável e um elo de comunicação com as novidades, desde as fofocais até as culturais, principalmente as últimas. Seguiu falando que provavelmente tinhas passado por uma fase em que foras a todos os concertos, viagens e filmes, uma fase em que não poderias perder nada, nenhuma festa ou encontro, a fim de tentar preencher o espaço que eu estava desocupando, mas que isso não o deixaria repleto e tu necessitarias de mais ainda. E me acusou, na fala pausada e tranquila dos psis: “Na verdade, ela não mente, tu a despojaste”. E sorriu. E voltou a seu silêncio. E eu, com aquele negócio que nunca tinha considerado, com aquele disparate perfeitamente lógico que nunca tinha me ocorrido, com a repugnante e conhecida sensação de burrice e ignorância dos fatos, simplesmente não conseguia mais reencontrar meu assunto e reouvia tu dizeres que era um absurdo eu ter levado duas estantes de livros, que aquilo deixara um enorme buraco naquela parte da biblioteca e que estavas tentando desesperadamente tapá-lo para que os amigos e as crianças não notassem o quanto a parede era feia. E eu, com tudo aquilo dando voltas na minha cabeça, enquanto já falava sobre outro assunto, pela primeira vez depois de horas andando em linha reta e cronológica, retornei e perguntei ao psiquiatra se ele falara sério e ele assentiu e mandou eu continuar porque já estava anoitecendo.
(E eu até hoje desconfio que ele declarou aquilo só para me motivar a falar mais.)
-=-=-=-=-=-
Análise:
1. Imagino que o texto é a culpa porque você é quem cobra, de “fato” e de forma razoável e participativa, o estudo dos filhos pois sei que você é que “senta” para estudar junto. Agora você vai dizer que também tem que se sentir culpado por deixar um vazio de civilidade na vida de quem lhe sufocou por anos? Não conta a sua solidão nem ter que deixar casa e filhos enquanto ela se agarrava a tudo – segundo a nova explicação do “psi” – para preencher o vazio que você deixava? Pergunto: Se um é “estantes de livros” – cultura, lazer – o outro seria a “parede feia” que precisava se esconder dos filhos e amigos? É super preconceituoso crer que mães amem que pais ou que sejam mais capazes de criar, nada prova isso mas as leis ainda dificultam a guarda aos pais e, mesmo “pães” como você, que se despojam de tudo para aplacar a culpa de se sentir ausente no dia dos filhos, mesmo sem ter criado a situação.
2. Tudo bem, tudo bem, a psicanálise busca um olhar além do obviamente conhecido por você sobre você mesmo. Não esse aí, não sobre ela. Vc há de me perdoar, esse seu psiquiatra nada tem de psicanalista, duvido até que seja psiquiatra. Vai ver era o advogado dela disfarçado (que aliás era um bom final para o texto…rs). E o espaço que ficou na sua vida afetiva pela ausência dela e dos filhos, era muito maior, não era? E na vida física, digamos assim, a falta da casa e TUDO que tinha dentro e te dizia respeito, não deixou um ” espaço vazio”? A psicanálise nada tem a ver com esta coisa que sabemos, óbvia, e sim aquelas que nos angustiam e que não conseguimos perceber o porquê de nos angustiarem e as vamos repetindo na vida. Bah, tchê, tu devias ter me perguntado por uma indicação. : ) O texto está ótimo!! Só reclamo do formato de “tijolo”. Beijos. PS: e que história era aquela de vc gostar de poemas melancólicos? Taí, novidade pra mim.
3. Alguém me disse certa vez que a pior coisa que alguém pode te fazer é mudar a tua própria percepção da realidade. Parece que este teu “psicodoido” segue esta linha. PQP.
4. Quero o endereço do seu psicanalista: quem sabe me dá um curso? “Descentralizar e desconstruir” nossas convicções pode ser doloroso, mas é na brecha entre a fantasia e a realidade que surge o “Real da Coisa” (!). Inda por cima, lhe deu o mote.
5. O que mais me impressiona é que depois de ouvir tudo o que você ouviu, rever e revirar as suas convicções, adquirir um sentimento de culpa com a sensação de que jamais conseguirá cancelar o mal causado, um sentimento de dívida impagável, como algo que não tem conserto, como o balão de gás que escapa da mão e se perde no céu imenso; o que mais me impressiona, nem chega a ser a mudança de postura e um certo mal-estar permanente, mas é saber que você ainda precisa pagar o psicanalista.
6. Fazer psicanálise é fugir tanto ao controle dos autopadrões que deu até vontade de voltar, lendo o texto. Grandes epifanias. E com o tempo, a gente não se sente mais burro de não ter pensado *daquela forma. a coisa mais fascinante que descobri é que minhas armadilhas são tão inteligentes quanto eu julgo ser.
A entrevista-relâmpago que Luís Carmelo fez comigo
Saudades da Verbeat que acabará em dezembro deste ano…
Em setembro de 2006, o Miniscente de Luís Carmelo estava publicando uma interessante série de curtas entrevistas acerca da blogosfera e dos seus impactos na vida dos entrevistados. Respondi assim as questões propostas.
– O que lhe diz a palavra “blogosfera”?
A blogosfera não é apenas a soma de blogues, mas sobretudo seus links, comentários e leitores, blogueiros ou não. A blogosfera se diferencia por disponibilizar ferramentas de comunicação, através das quais o leitor pode participar ativamente da festa e não somente assisti-la. A palavra blogosfera também me diz de conteúdos que vão do sublime e inteligente ao vulgar e burro. Porém, depois de viver mais de três anos nela, posso dizer que aqui não há mais bobagens do que nas revistas semanais. Estas são imbatíveis no quesito “ruindade” e, aqui, ainda temos a vantagem de poder xingar e ser xingado…
– Seguiu algum acontecimento nacional ou internacional através de blogues?
Sim, poucos, mas importantes. Por exemplo, a melhor cobertura dos eventos relacionados ao furacão Katrina foi realizada pelo blog de Idelber Avelar (Professor de Literatura Latino-americana e Etnomusicologia da Universidade de Tulane, Nova Orleans, que possui o blog O Biscoito Fino e a Massa – http://idelberavelar.com/). Além de informações e fotos da cidade, ele montou uma rede de comunicação para que as pessoas pudessem dizer em que local estavam, etc. Foi uma súbita diáspora e o Idelber conseguiu fazer com que muita gente fosse encontrada e pudesse dizer “Olha, estou vivo, mas quero saber onde estão fulano e sicrano”. Outro evento que acompanho através de blogues é a tentativa de censura de vários deles, realizada pelo truculento ex-presidente – e, pasme!, membro da Academia Brasileira de Letras do Brasil – José Sarney.
– Qual foi o maior impacto que os blogues tiveram na sua vida pessoal?
Ser visitado e talvez lido semanalmente por 1200 pessoas é certamente, um impacto na vida de qualquer um. Há que se ter atenção para com este fato. Passo duas horas por dia lendo blogues e talvez quatro horas por semana escrevendo o meu. Mas o maior impacto é o de ser reconhecido como blogueiro quando não estou na frente do computador ou saber que há pessoas desconhecidas que estão informadas sobre minha vida. Explico: meu blogue faz explicitamente Improvisações sobre Literatura, Música, Cinema e Qualquer Coisa, principalmente. Neste Qualquer Coisa, entram alguns posts confessionais. Outro fato impactante foi o de ter ido à Europa e ter ficado exclusivamente hospedado na casa de blogueiros que não conhecia pessoalmente. E isto na Espanha e na Itália. Sim, fui sempre muitíssimo bem tratado, fui aonde quis e, puxa, fiz uma enorme economia!
– Acredita que a blogosfera é uma forma de expressão editorialmente livre?
Sem dúvida. Meu blogue fica num condomínio de cujo manifesto chama-se Liberdade de Comunicação e que tem, como membros, pessoas de esquerda — a maioria — , de direita, religiosos, provocadores, ateus, alternativos, etc. De nosso manifesto, trago o seguinte trecho:
Hoje, eu e você somos livres para informar e sermos informados, num fluxo que trafega por meios livres. Mas não vivemos num mundo livre. Liberdade por si só não é suficiente, porque ela não pressupõe naturalmente outro conceito importante: democracia. A mídia tradicional (rádios, TVs, jornais, portais web) está longe de ser proporcional à quantidade de informação produzida, tanto quanto ao número de indivíduos que as recebem. As pontas são infinitamente maiores que os meios existentes. Há um estrangulamento. E quando isso acontece, alguma coisa fica de fora do fluxo. É isso que a mídia tradicional faz: filtrar. Selecionar informações para distribuí-las ao maior número de pessoas possíveis — donde o termo “meios de comunicação de massa”. Poucas informações produzidas são veiculadas, poucos produtores tem poder para comunicar o que querem, e poucas opções temos de receber o que de fato queremos. E se não recebemos, a informação existe? De fato, sim; na prática, não. É o sujeito que grita na sala vazia. Sujeito que talvez tenha coisas relevantes a dizer. Todos nós temos coisas a dizer, sim. Por que não teríamos? No modelo vigente, a mídia escolhe por nós. Ela cerceia a própria liberdade que tanto precisa, em nome de uma efetividade — muitas vezes, manchada pela face comercial que a viabiliza (quando não é a própria razão de existir). Mas eu quero falar. Quero falar o que eu quiser. E falar para quem eu quiser. Para quem quiser me ouvir e que vai poder me achar. Quero ouvir. Ouvir o que eu quiser. E ouvir de quem eu quiser. De quem quiser me falar e que vou poder encontrar. Essa é a verdadeira liberdade e democracia da comunicação. Isso, os meios de massa jamais poderão oferecer, mas a Internet sim: com o blog. Uma ferramenta pessoal, acessível, de baixo custo, sem intermediários, apoiada em uma mídia instantânea e de alcance global. Não apenas o diário virtual, pense de novo: Blog é o suporte tecnológico de uma revolução na exposição de idéias, na distribuição de informação, na democratização da comunicação. Na internet, qualquer sujeito que quiser exercitar sua liberdade de expressão encontra um sujeito exercitando sua liberdade de informação. Isto é liberdade. Isto é democracia. Esse é o direito que deve ser assegurado.
Do inferno ao inferno
Dmitri Shostakovich (III)
Música (de Anna Akhmátova)
Dedicado a Dmitri Shostakovich
Algo de miraculoso arde nela,
e fronteiras ela molda aos nossos olhos.
É a única que continua a me falar,
depois que todos os outros ficaram com medo de se aproximar.
Depois que o último amigo tiver desviado o olhar,
ela ainda estará comigo no meu túmulo,
como se fosse o canto do primeiro trovão,
ou como se todas as flores tivessem começado a falar.
Seguimos nossa série iniciada aqui e continuada ali.
Quinteto para piano, Op. 57 (1940)
A música perfeita. Irresistível quinteto escrito em cinco movimentos intensamente contrastantes. Seu estilo é clássico, porém raramente todos os integrantes tocam juntos, a não ser no agitado scherzo central. O prelúdio inicial estabelece três estilos distintos que voltarão a ser explorados adiante: um dramático, outro neo-clássico e o terceiro lírico. Todos os temas que serão ouvidos nos movimentos seguintes apresentam-se no prelúdio em forma embrionária. Segue-se uma rigorosa fuga puxada pelo primeiro violino e demais cordas até chegar ao piano. Sua melodia belíssima e lírica que é seguida por um scherzo frenético. É um choque ouvir chegar o intermezzo que traz de volta a seriedade à música. Apesar do título, este intermezzo é o momento mais sombrio do quinteto. O Finale, cujo início parece uma improvisação pura do pianista, fará uma recapitulação condensada do prelúdio inicial.
O Quinteto para piano recebeu vários prêmios que não vale a pena referir aqui, mas o mais importante para Shostakovich foi a admiração que Béla Bartók dedicou a ele.
Sinfonia Nº 7, Op. 60, Leningrado (1941)
De história riquíssima, a Sinfonia Nº 7 – dedicada à resistência da cidade de Leningrado cercada pelos nazistas – deve sua celebridade a uma transmissão de rádio feita para a cidade devastada e sitiada. Ela auxiliou as autoridades soviéticas a elevar o moral em Leningrado e no país. Várias outras performances foram programadas com intenções patrióticas na União Soviética e na Europa. É música de primeira linha, sem dúvida, mas creio que a notável Sinfonia Nº 11, tão superior à sétima, é tão mais eficiente como musica programática de conteúdo histórico, que torna falso qualquer grande elogio. De qualquer maneira, é esplêndido o primeiro movimento que descreve a marcha nazista. Também é importante salientar o equívoco do grande público que vê resistência e patriotismo numa obra sobre a devastação e a morte. Mas, como diria Lênin, o que fazer?
Mais? Mais! Imaginem uma cidade cercada por alemães há 18 meses, uma orquestra improvisada vestida com suéteres e jaquetas de couro, todos magérrimos pela fome, a rádio transmitindo o concerto, várias cidades soviéticas estreando a obra ao mesmo tempo, Arturo Toscanini — anti-fascista de cabo a rabo — pedindo a partitura nos Estados Unidos (ela foi levada de avião até Teerã, de carro ao Cairo, de avião à Londres, de onde um outro avião da RAF levou a música ao maestro), Shostakovich na capa da Time. Ou seja, a Sétima é importante. Nos EUA, em poucos meses, foi interpretada por Kussevítki, Stokovski, Rodzinski, Mitropoulos, Ormandy, Monteaux, etc. Um espanto.
Numa das maiores homenagens recebidas por uma obra musical, Anna Akhmátova escreveu o seguinte poema ao ser posta à salvo das bombas alemãs pelas autoridades soviéticas:
Todos vocês teriam gostado de me admirar quando,
no ventre do peixe voador,
escapei da perseguição do mal e,
sobre as florestas cheias de inimigos,
voei como se possuída pelo demônio,
como aquela outra que,
no meio da noite,
voou para Brocken.
E atrás de mim,
brilhando com seu segredo,
vinha a que chama a si mesma de Sétima,
correndo para um festim sem precedentes.
Assumindo a forma de um caderno cheio de notas,
ela estava voltando para o éter onde nascera.
Pois é. Mas falemos a sério: não é a maior sinfonia de Shosta. Fica atrás da oitava, décima, décima-primeira, décima-terceira, décima-quarta e décima-quinta. Mas que é famosésima, é.
Sinfonia Nº 8, Op. 65 (1943)
Esta enormidade musical é também muito admirada, mas é música que, apesar de não ser nada má, perderá para suas irmãs gêmeas compostas depois, dentro do mesmo espírito. Gosto muito da beleza austera do quarto movimento em 12 variações – uma passacaglia – e também dos dois primeiros, com destaque para o divertido diálogo entre o piccolo, o clarinete e o fagote do scherzo. Apenas não suporto o terceiro movimento, de efeito fácil e heroico, cuja melodia entoada pelo trompete poderia ser suprimida. (Hoje, discordo de minha avaliação).
Quarteto de Cordas Nº 2, Op. 68 (1944)
Este trabalho em quatro movimentos foi escrito em menos de três semanas. A abertura é uma melodia de inspiração folclórica, tipicamente russa. O grande destaque é o originalíssimo segundo movimento, Recitativo e Romance: Adagio. O primeiro violino canta (ou fala) seu recitativo enquanto o trio restante o acompanha como se estivessem numa ópera ou música sacra barroca. O Romance parece música árabe, mas não suficientemente fundamentalista a ponto que a Al Qaeda comemore. Segue-se uma pequena valsa no mesmo estilo. O quarto movimento é um Tema com variações que fecha brilhantemente o quarteto.
É curioso que neste quarteto, talvez por ter sido composto rapidamente, há uma musicalidade simples, leve e nada forçada. Talvez nem seja uma grande obra como os Quartetos Nros. 8 e 12, mas é dos que mais ouço. Afinal, esta é uma lista pessoal e as excentricidades valem, por que não?
Sinfonia Nº 9, Op. 70 (1945)
Desde Schubert, com sua Sinfonia Nº 9 “A Grande”, passando pela Nona de Beethoven e pelas nonas de Bruckner e Mahler, que espera-se muito das sinfonias Nº 9. Há até uma maldição que fala que o compositor morre após a nona, o que, casualmente ou não, ocorreu com todos os citados menos Shostakovitch. Esta sinfonia — por ser a “Nona” — foi muito aguardada e, bem, digamos que não seria Shostakovitch se ele não tivesse feito algo inesperado. Stálin ficou muito decepcionado com ela.
Leonard Bernstein lia esta partitura dando gargalhadas desta piada músical, cujas muitas citações formam um todo no mínimo sarcástico. O compositor declarou que faria uma música que expressaria “a luta contra a barbárie e grandeza dos combatentes soviéticos”, mas os severos críticos soviéticos, adeptos do realismo socialista, foram mais exatos e apontaram que a obra seria debochada, irônica e de influência stravinskiana. Bingo! Na verdade é uma das composições mais agradáveis que conheço. O material temático pode ser bizarro e bem humorado (primeiro e terceiro movimentos), mas é também terno e melancólico (segundo e largo introdutório do quarto), terminando por explodir numa engraçadíssima coda.
Apesar dos cinco movimentos, é uma sinfonia curta, muito parecida em espírito com a primeira sinfonia “Clássica” de Prokofiev e com a Sinfonia “Renana” de Schumann, também em cinco movimentos.
Deixando de lado a geopolítica soviética e detendo-se na obra, podemos dizer que esta Nona é uma consciente destilação de experiências e, talvez uma reação, muito cuidadosamente considerada, contra as enormidades musicais oriundas da guerra das duas sinfonias anteriores.
Cá entre nós, é puro divertimento.
Concerto para Violino, Op. 77 (1947-48)
Como o Quinteto, outra obra-prima. É incrível que este concerto tenha recebido tão poucas gravações. Quando Maxim Vengerov e Mstislav Rostropovich o gravaram em 1994 para a Teldec, o resultado foi que o CD acabou sendo considerado o melhor do ano pela revista inglesa Gramophone e também, se não me engano, pela francesa Diapason. Dedicado a David Oistrakh, teve sua estréia realizada apenas em 1955, em razão dos problemas que o compositor arranjou com Stalin e com o Relatório Jdanov, já discutidos na primeira parte desta série.
Shostakovich o considerava uma sinfonia para violino solo e orquestra. A comparação é apropriada. Não apenas a estrutura em quatro movimentos, mas também sua longa duração (40 minutos), são exageradas para o comum dos concertos. Apesar de termos aqui a primeira e significativa aparição de melodias baseadas no motivo DSCH – o que será melhor explicado no comentário da Sinfonia Nº 10 -, apesar de tal tema aparecer no segundo movimento, esta obra tem seu coração no terceiro movimento Passacaglia – Andante. São nove variações sobre o mesmo tema em que somos lentamente levados do clímax para a calma e não ao contrário, o que é mais comum. A orquestra vai pouco a pouco deixando a voz individual do violino levar a música até uma longa cadenza, que alguns consideram um movimento a parte que se liga organicamente ao movimento final. Um espanto!
24 Prelúdios e Fugas, Op. 87 (1950-51)
A força simbólica da música de câmara deixada por Shostakovitch e a carga alegórica nela contida fazem uma pausa aqui. O fato de escolher o gênero do prelúdio e fuga, escrevendo precisamente 24 deles, vale como um magnífico juramento de lealdade a Bach, o pilar fundamental da música de todos os tempos, que fixou o mesmo número de peças em cada um dos dois cadernos do Cravo bem temperado.
A audição desta obra — escrita logo após o Relatório Jdanov — mostra-nos como o compositor concentrou-se em sua arte no momento em que sua obra não podia ser executada na União Soviética. O resultado é altamente pessoal, rigoroso e comovente. Não lembro de outro compositor que tenha feito homenagem maior a Bach. É um Shostakovitch contido e calmo, fazendo música absoluta da melhor qualidade. Quem conhece um pouco a história da música, ficará emocionado e feliz com a audição desses prelúdios e fugas que procuram aproximar-se, moderna e contemporaneamente, do maior de todos os compositores. O resultado é esplêndido, coisa de gênio.
Uma curiosidade: para executar esta obra completa, que dura, em média, 140 minutos, os pianistas normalmente utilizam duas noites. E sim, não é qualquer amador que pode enfrentá-la.
Bibliografia: quase tudo de memória, apoiado por algumas capas de CD.
Meu Monza 1990
Para H., esteja onde estiver
Acho que posso dizer o mês em que comprei o tal Monza. Foi em dezembro de 1997. A primeira façanha que fiz com ele foi a de encostar numa das colunas do edifício em que morávamos. Nunca arrumei o arranhão nem no carro, nem na coluna. Eu não desejava adquiri-lo. A empresa passava por sua primeira crise e eu preferia que ficássemos – eu, minha ex e meus filhos – com o Uno novo e completo que tínhamos. Mas minha ex encheu o saco, queria ir para a praia e precisávamos de um carro maior. Eu disse que levaria a tralha primeiro e voltaria para buscar o resto, isto é, as pessoas; mas Suélen (ou Pâmela, nunca lembro o nome de minha ex) não quis de modo algum.
Eu que comprasse um segundo carro, maior. OK. Na época, ainda não me dava conta de que há anos odiava mortalmente Pâmela e que nossa relação era doentia. Comprei em 1997 um Monza 90. Não era um grande carro, mas também não era nada inaceitável. Procurei o maior e mais barato possível e apareceu aquela coisa azul-marinha, 4 portas, 1.8, gasolina. Já na loja eu o chamei de fusca grande, pois ele não tinha nenhum acessório agradável: vinha sem direção hidráulica, sem ar condicionado, sem rádio — instalei depois um — e os vidros eram de girar manivela. Mas era simpático, apesar de ter sido recebido por Suélen com um “mas não tem ar condicionado!”.
Fomos para a praia, ficamos amigos de um bando de argentinos e nos despedimos deles da forma mais emocionada, voltando para nosso inferno. Em 1998, meu filho tinha 7 anos e minha filha, 4. Era e ainda é divertido ficar com eles quando não estão brigando. Aliás, eu só convivia com eles e com amigos. Em casa, evitava a companhia de Pâmela. Muitas vezes saíamos com nossos amigos e depois eu tinha que levar a babá em casa de madrugada. Eu nunca retornava imediatamente. Esperava que Suélen dormisse antes, pois sua voz, ouvida distintamente, era-me irritante. Ficava dando voltas, dirigindo pela cidade. Aquilo era um alívio e eu ia me afeiçoando ao fusca grande.
Naquele ano nos mudamos para uma casa maior e lá fui eu com meu Monza. Aí vocês sabem, não?, quando a coisa fica insustentável, a gente arranja problemas com a maior facilidade. Eu ia numa academia e tinha muito contato com minha professora, claro. A gente estava há dias naquelas piadas e brincadeiras de sedução, que normalmente não levam a lugar nenhum, quando ocorreu a festa de fim de ano. Ah, que maravilha. A festa era na Cachaçaria Água Doce e vocês, meus experientes sete leitores, sabem o quanto bebe um homem infeliz. Apesar de minha querida H. ter surgido tão sozinha quanto eu, não dei muita importância ao caso e me atirei à cachaça. Passamos a festa inteira sem conversar.
Na saída, eu estava simplesmente podre, pedindo uma cama enquanto minha amiga finalmente chegava-se a mim.
— Estava observando o que tu bebeste. Foi uma grandeza, né?
Não sou um bêbado chato, só fico tonto e com sono. Meu humor não varia muito. Eu respondi que achava impossível ir em linha reta até a porta do carro. Ela anunciou que iria me monitorar. Fui na frente, com ela a três passos de mim, rindo. Entrei no carro e ela entrou pelo outro lado. Foi então que notei que H. viera sem seu Gol preto. Eu a achava muito bonita e sempre pedia para ela me empurrar durante alguns alongamentos. Quando vi que ela largava todo o seu peso sobre mim, passei a solicitar seus serviços assim:
— quero sentir o peso do teu corpo sobre o meu…
e ela achava graça. Eu também. Dentro do carro, por uma dessas ideias idiotas que sobrevêm aos bêbados, sugeri que fôssemos para o banco de trás. Isso numa travessa da Carlos Gomes. Sim, ela também estava embriagada, é certo. Não me passou pela cabeça a palavra “Motel”, entendem?, estava há muito tempo fora do mercado. Pois após os amassos, enquanto procurava abrir as calças para me sentir mais livre, consegui cair no vão entre os bancos. Lembro de nosso ataque de riso.
Acabamos na casa dela. Olha, fui muitas vezes lá e creio nunca ter sido descoberto. Lembro que H. ligava para minha casa e ou eu atendia ou Suélen me passava a ligação. Era tão, mas tão claro que não era visto. Minha ex saía muitas vezes sozinha, eu também. Ela gostava de uns simulacros de ciúmes, eu não. Espero sinceramente que ela me corneasse tanto quanto eu a ela ou mais, mas duvido muito, ela é de família católica e curitibana. Lembram quando eu escrevi sobre roubo de livros, dizendo que o bom ladrão de livros não olha para os lados, agindo com naturalidade? Pois é. O pessoal da academia nos via como um casal, todos sabiam, éramos um casal. Não nos escondíamos.
Uma vez, fui visto pelo chefe de Pâmela no cinema. Só que os homens têm aquela solidariedade natural e ele disse para ela que tinha me visto no cinema… sozinho. Sensacional a manifestação de bom humor do chefe, fiquei quase nervoso.
Mas voltemos ao Monza. Houve um dia em que o meu consórcio preventivo foi sorteado e eu, em 2001 — em minha opinião prematuramente — , vendi por quase nada o Monza de tantas alegrias. Por que falo nele hoje? Ora, porque o vi. Está em péssimo estado aos 20 anos. Eu estava voltando da clínica onde está internada minha mãe. A gente perde a dignidade na velhice. Ou ganha outra. Olhei a placa, era ele, o final 2287. Lembrei de seu cheiro e o do perfume de H. — muito mais próxima de mim do que minha mulher — , lembrei do dia em que meu filho disse do banco de trás que deus não existia porque ele andara de avião e não vira ninguém nas nuvens, lembrei de minha filha querendo que eu SEMPRE parasse nas praças para andar de balanço – podia ficar horas balançando-se, olhando o mundo à sua volta — , lembrei de Pâmela perguntando se aquele carro nos levaria MESMO à Florianópolis e, fundamentalmente, de que ele nunca, mas nunca mesmo, me deixou na mão.
Foram 4 anos só botando gasolina, água, pastilhas de freios novas, ar nos pneus e, pô, trocando óleo. Certamente, na casa de Suélen, há fotos em que ele aparece de forma casual. As fotos acima são falsas, de um irmão gêmeo mais metido, com ar e direção, modelo Classic, também de 1990, que está a venda por R$ 3.900,00 num site aê.
Oscar Niemeyer e seu perfil fake no Twitter
Eu admiro Oscar Niemeyer. E, apesar de não ter a menor participação do moço, ultimamente tenho me divertido também com seu perfil fake no Twitter. O @ONiemeyer (“Arquiteto. Comunista. Centenário. O único brasileiro do século XX cuja obra durará mil anos. E estará lá pra conferir. ATENÇÃO: PERFIL FAKE!”) é engraçadíssimo. Vale a pena acompanhar as piadas de humor negro e as ianda mais negras sobre comunismo. Há boas chances de que o autor do perfil seja também arquiteto.
Algumas entradas:
— Caro @fidelcastro, perdoe o desabafo, mas a última leva de charutos que você me enviou estava uma merda.
— Acabei de ver uma manteigueira que renderia uma sala de concertos perfeita. Vou copiar.
— Zé Alencar, Tuma, Sarney, tudo no hospital. Esses jovens de hoje se detonam muito rápido.
— Se eu mandasse um cartão de melhoras pra toda vez que o Zé Alencar deixasse o hospital, eu teria que abrir uma gráfica.
— Comecei a pagar um plano de previdência privada hoje. Nunca se sabe o futuro.
— Quando o sol bater ♪♬ Na janela do teu quarto ♪♬ Lembra e vê que foi erro de projeto.
— Projetei um escorregador pra minha bisneta. Dane-se que não dá pra escorregar, é BO-NI-TO.
— Eu só vou morrer no dia em que o Brasil tiver um presidente comunista. E falo SÉRIO!
— Já tentei fazer regressão a vidas passadas, mas o mais longe que consigo chegar é nos meus 5 anos de idade.
— Nada é mais comunista do que minha obra: seja rico, pobre, ou burguês, todo mundo se sente desconfortável dentro dela.
— Plínio não vence esta eleição e nem em 2014. Mas será o grande nome de 2018. Podem escrever!
— Vi a Mulher Melancia na Fazenda e tive uma idéia para um centro de convenções gigantesco. Já volto.
Abaixo, o verdadeiro abre seu voto para 31 de outubro:
Prêmio Nobel de Literatura para Vargas Llosa
Por Idelber Avelar
A Revista Eñe, caderno cultural do Clarín, me pediu um texto sobre o Prêmio Nobel para Mario Vargas Llosa. Minha intenção era traduzi-lo ao português para os leitores do blog mas, dado o avançar da madrugada, vai em castelhano mesmo. Façam o esforço aí.
*******************
A la Academia Sueca le gustan las simetrías simbólicas en sus premiaciones, lo que no quiere decir, desde luego, que ellas tengan algo que ver con la literatura. En el panteón del Nobel, para cada Gabriel García Márquez, hay un Octavio Paz. Para cada José Saramago, hay un Mario Vargas Llosa. La oscilación es tan previsible que resulta difícil adjudicarle buena fe a las declaraciones del escritor peruano, de que no se consideraba parte del identikit del Nobel, por sus supuestas “posiciones incómodas”. Es bien sabido que también la incomodidad, en sus varias versiones, ya es una cuota que se reparte salomónicamente en Estocolmo. Ahora le toca el premio al gran portavoz de la derecha neoliberal, quizás el último escritor latinoamericano de alguna importancia a mantener la creencia en la redención por las letras, en lo literario como instrumento de ilustración y modernización de la cultura.
Lo mejor de la obra de Vargas Llosa — sin duda, sus cuentos y novelas juveniles — es una lograda autopsia de una masculinidad en ruinas. Tanto en la novela La ciudad y los perros como en los cuentos de Los jefes se instala el drama del Bildungsroman en suspenso, interrumpido, incapaz de trascender la circularidad de los ritos adolescentes de iniciación. El tema de Vargas Llosa no dejará de ser éste, aunque la “maduración” del escritor pondrá en escena el traslado de esa lógica adolescente al campo de la política.
Vargas Llosa aún produce dos magníficas obras en los sesentas, La casa verde y Conversación en la catedral. Ambas, especialmente la primera, son hitos en la incorporación de las técnicas de vanguardia a la novelística latinoamericana: el monólogo interior, la multiplicidad de voces y registros narrativos, la quiebra de la linealidad temporal. Vargas Llosa sería uno de los más eufóricos en el gesto que caracterizaría el boom de los años sesentas, a saber, la asociación entre dichas técnicas y una presunta puesta al día de la literatura latinoamericana, proceso al cual algunos llegarían a atribuir un potencial redentor, sustitutivo de nuestro retraso social y económico.
Algo ya se notaba en La guerra del fin del mundo, uno de los pocos relatos genuinamente reaccionarios sobre Canudos, pero cuando Vargas Llosa escribe Historia de Mayta, su obra ya es pura ideología. El proceso coincide con la consolidación de su convicción de que la “ideología” sería siempre un atributo perteneciente a los demás. Dicha mistificación toma aquí la forma de un binarismo entre la ilustración y el retraso, la democracia y el populismo, el progreso y el chavismo. Aparentemente sin advertir que estos binarismos son la encarnación esencial de la ideología en nuestros tiempos, Vargas Llosa ya los utilizara para, como crítico normalizador, domesticar la obra de José María Arguedas en un estudio. Si se pudiera hablar de una verdadera incomodidad a estas alturas, ella sería la (no) relación de Vargas Llosa con el vasto mundo que la obra de Arguedas representa y significa, éste sí, un mundo de alguna exterioridad incapturable por la industria de los premios.
A capa de Veja desta semana e da próxima / Serra e Lula constituintes
Neste domingo ensolarado de todos em Cristo, aproveitamos para mostrar a belíssma capa da revista Veja publicada ontem. Sugerimos que você não vire o monitor, mas fique na posição natural de ponta-cabeça.
Agora, com exclusividade, antecipamos a capa da próxima semana:
Serra disse em seu programa que foi o melhor deputado Constituinte. Achei estranho, tinha outra lembrança. Vejamos a abaixo:
Compare com a avaliação de Lula.
Meu Deus, é tudo tão estranho…
Fonte: Diap.
Dmitri Shostakovich (II)
Passei minha vida não como um extático, mas como um trabalhador comum. Trabalhei muito desde menino.
SHOSTAKOVICH
Hoje, começo a escrever sucintamente sobre aquilo que, em minha opinião, Shostakovich produziu de melhor. Não sou músico, não leio partituras, mas tenho grande vivência como ouvinte de muitos compositores, maior até do que a da maioria dos músicos. Ouço muita música, talvez demais.
Sinfonia Nº 1, Op. 10 (1924-1925)
Shostakovich começou a escrever esta sinfonia quando tinha dezessete anos. Antes disso, tinha composto alguns scherzi que só interessaram à musicólogos. Sua estréia foi mesmo com esta Nº 1, terminada antes do autor completar vinte anos. Ela tornou aquele estudante de música, mais conhecido por ser o pianista-improvisador de três cinemas mudos de Petrogrado, internacionalmente célebre. Tal fama pode ser atribuída por Shostakovich ser o primeiro rebento musical do comunismo, mas ouvindo a sinfonia hoje, não nos decepcionamos de modo algum. É música de um futuro mestre.
Ela começa com um toque de trompete ao qual, se acrescentarmos um crescendo, tornar-se-á um tema de Petrouchka, de Igor Stravinsky. Alguns regentes russos fazem esta introdução exatamemente igual à Petroushka. É algo curioso que o jovem Dmitri tenha feito esta homenagem, quando dizia que seus modelos — e isto foi comprovadíssimo logo adiante — eram Mahler, Bach, Beethoven e Mussorgski. Mas há mesmo algo de “boneca triste” no primeiro movimento desta sinfonia. O segundo movimento possui um curioso tema árabe, que é a primeira grande paródia encontrada em sua obra. Um achado.
O movimento lento, muito triste, é daqueles que os anticomunistas mais truculentos considerariam uma comprovação do sofrimento do compositor sob o comunismo e de uma postura fatalista do tipo isto-não-vai-dar-nada-certo, porém acreditamos que a morte de seu pai, ocorrida alguns meses antes e a internação de Dmitri num sanatório da Criméia (ele contraíra tuberculose) tenha mais a ver. Há um belíssimo solo funéreo de oboé nele.
Concerto para Piano, Trompete e Cordas, Op. 35 (1933)
Shostakovich foi excelente pianista. Poderia ter feito carreira como virtuose, mas, para nossa sorte, escolheu compor. Foi o vencedor do internacional Concurso Chopin de 1927 e fazia apresentações regulares executando seus trabalhos. O pequeno número de gravações do próprio compositor como pianista talvez deva-se ao fato de ele ter perdido parcialmente os movimentos de sua mão direita ao final dos anos sessenta. Há registros no YouTube de Shostakovich tocando como um velocista o Finale deste concerto.
Trata-se de uma obra realmente espetacular. Era uma boa época para os concertos para piano. O de Ravel aparecera um ano antes, assim como o 5º de Prokofiev. É coincidente que os três sejam alegres, luminosos, divertidos mesmo. É formado de quatro movimentos, sendo o primeiro muito melodioso e gentil, os dois centrais lentos e o último capaz de provocar gargalhadas. A participação de um trompetista meio espalhafatoso é fundamental, assim como de um pianista que possa fazer rapidamente a conversão entre a música de cabaré e a música militar exigidas no último movimento. Uma vez, assistindo a uma apresentação, vi como as pessoas sorriam durante a audição deste movimento. Não há pontos baixos neste maravilhoso concerto, que ainda traz, em seu segundo movimento, um lindíssimo solo para trompete, além de uma cadenza esplêndida, de ecos beethovenianos.
Shostakovich foi o pianista de sua estréia, em 1933, na cidade de Leningrado.
Jazz Suite Nº 1, Op. 38B (1934) e Nº 2 (for Variety Stage Orchestra), Op. 50B (1938)
Em um famoso conto de Machado de Assis, Um Homem Célebre, havia um grande compositor de polcas, o Pestana, que queria fazer algo maior, grandioso, mas — que diabo! — só lhe saíam mais polcas. O que fazer? O personagem fazia o maior esforço, passava meses trancado em casa a fim de parir a grande obra, porém não produzia nada além de belas polcas, que logo se tornavam popularíssimas e eram assobiadas pelo povo nas ruas, para desespero do Pestana. Estas eram compostas copiosa e rapidamente. Acabou rico, infeliz e doente. Coitado.
Com Shostakovitch o caso é diferente. Compôs copiosamente obras-primas, tem obra profunda e numerosa, mas, um belo dia, resolveu escrever suítes para grupos de jazz. Vocês podem adivinhar o que aconteceu? Saíram apenas… polcas. Polcas e valsas. O timbre é o do jazz – não poderia ser diferente com aquela formação orquestral — , já a música são as polcas do personagem machadiano. Ah, vocês não acreditam? Então ouçam as obras acima. Não obstante, é muito bom. Há a espetacular Valsa 2 da Suíte Nro. 2, que foi utilizada por Stanley Kubrick na abertura de De Olhos bem Fechados, com um ritmo e um solo de sax que nos obriga a levantar e ensaiar uns passinhos pela sala; há várias polquinhas bem legais e há uma imitação de Duke Ellington — o Foxtrot (Blues) da Suíte Nº 1 — que dá para rolar de rir. O “Grande Projeto Falhado” do imortal Shosta é muito bom.
Sonata para Violoncelo e Piano, Op. 40 (1934)
A Sonata em Ré Menor Op. 40 foi composta em 1934, no período em que Shostakovitch apaixonara-se por uma jovem estudante, o que ocasionou um efêmero divórcio de sua esposa Nina. O compositor dedicou esta sonata ao violoncelista Victor Lubatski e ambos a estrearam em Moscou, no dia 25 de dezembro de 1934.
O primeiro movimento (Allegro non troppo) é escrito em forma sonata. O primeiro tema, bastante extenso, é apresentado pelo violoncelo, acompanhado por arpeggios do piano e depois desenvolvido por este até seu clímax; o segundo tema, muito mais delicado, é, contrariamente, apresentado pelo piano e imitado pelo violoncelo. Durante o desenvolvimento o primeiro tema ganha motivos rítmicos, mas logo o afetuoso segundo tema reaparece. Tudo parece em ordem, encaminhando-se para o final do movimento, mas Shostakovitch nos surpreende ao inserir alguns acordes em staccato do piano, acompanhados por notas sustentadas pelo violoncelo, o que faz com que a música torne-se quase estática. É uma estranha preparação para o que se ouvirá no segundo movimento (Allegro) o qual é um scherzo típico de Shostakovitch. Trata-se de um frenético ostinato que é interrompido por um tema apresentado pelo piano que, apesar de mais tranqüilo, é também muito pouco contemplativo. O terceiro movimento (Largo) faz-lhe intenso contraste, pois é uma melodia tranqüila e vocal, acompanhada pelo piano de forma introspectiva, dissonante e um tanto fúnebre. O Allegro final é um rondó bastante irônico no qual o tema principal é apresentado três vezes, ligados, a cada intervalo, por estranhas e vertiginosas cadenzas.
Sinfonia Nº 4, Op. 43 (1936)
Uma sinfonia decididamente mahleriana. Shostakovich estudara Mahler por vários anos e aqui estão ecos monumentais destes estudos. Sim, monumentais. Uma orquestra imensa, uma música com grandes contrastes e um tratamento de câmara em muitos episódios rarefeitos: Mahler. O maior mérito desta sinfonia é seu poderoso primeiro movimento, que é transformação constante de dois temas principais em que o compositor austríaco é trazido para as marchas de outubro, porém, minha preferência vai para o também mahleriano scherzo central. Ali, Shostakovich realiza uma curiosa mistura entre o tema introdutório da quinta sinfonia de Beethoven e o desenvolve como se fosse a sinfonia “Ressurreição”, Nº 2, de Mahler. Uma alegria para quem gosta de apontar estes diálogos. O final é um “sanduíche”. O bizarro tema ritmado central é envolvido por dois scherzi algo agressivos e ainda por uma música de réquiem. As explicações são muitas e aqui o referencial político parece ser mesmo o mais correto para quem, como Shostakovich, considerava que a URSS viera das mortes da revolução de outubro e estava se dirigindo para as mortes da próxima guerra.
Sinfonia Nº 5, Op. 47 (1937)
Esta é a obra mais popular de Dmitri Shostakovich. Recebeu incontáveis gravações e não é para menos. O público costuma torcer o nariz para obras mais modernas e aqui o compositor retorna no tempo para compor uma grande sinfonia ao estilo do século XIX. Sim, é em ré menor e possui quatro movimentos, tendo bem no meio, um scherzo composto por um Haydn mais parrudo. Mesmo para os aficcionados, é uma obra apetitosa, por transformar a linguagem do compositor em algo mais sonhador do que o habitual. Foi a primeira sinfonia de Shostakovich que ouvi. Meu pai, um romântico, apresentou-me a sinfonia dizendo que muito melhor que as de Prokofiev, exceção feita à Nº 1, Clássica, que ele amava. Alguns consideram esta obra uma grande paródia; eu a vejo como uma homenagem ao glorioso passado sinfônico do século anterior. A abertura e a coda do último movimento (Allegro non troppo) costuma aparecer, com boa freqüência, em programas de rádio que se querem sérios e influentes… Apesar de não ser típica, é absoluta e totalmente a sintaxe, o discurso e o sotaque do compositor. É a música ideal para o primeiro contato com Shostakovich.
Sinfonia Nº 6, Op. 54 (1939)
Uma perfeição esta sinfonia cujo dramático, concentrado e lírico primeiro movimento (um enorme Largo) é seguido por dois allegros, sendo o último pra lá de burlesco e circense (Presto). A estrutura estranha e inexplicável tem o efeito, ao menos em mim, de uma compulsão por ouvi-la e reouvi-la. Acho que volto sempre a ela com a finalidade de conferir se o primeiro movimento é mesmo tão perfeito e profundo e para buscar uma explicação para a galinhagem final — isto aqui não é uma tese acadêmica, daí a palavra “galinhagem” ser permitida… Nossa sorte é que existe aquele segundo Allegro central para tornar a passagem menos chocante. Esta belíssima obra talvez faça a alegria de qualquer maníaco-depressivo. É uma trilha sonora perfeita para quem sai das trevas para um humor primaveril em trinta minutos — ou menos. Começa estática e intelectual para terminar num circo. Simplesmente amo esta música! É um pacote completo de desespero, sorrisos e gargalhadas.
Bibliografia: quase tudo de memória, apoiado por algumas capas de CD.
Serra e Dilma sabem da necessidade de descriminalizar o aborto, porém…
… é complicado.
As pedras das ruas não desconhecem que Dilma Rousseff manifestou-se a favor do aborto, assim como sabem que tal “crime de opinião” terá de ser revisto, pois seu partido não ignora e as pesquisas indicam que este “feio posicionamento” leva à perda de votos junto às igreja católica e evangélicas. E assim, um problema de sáude pública fica na dependência das, desculpem, sandices religiosas.
As pedras das ruas não desconhecem que José Serra foi ministro da saúde e sabe das estatísticas de mais de um milhão de abortos clandestinos praticados no Brasil todos os anos. Também sabe do elevado número de mortes, sobretudo de mulheres jovens, secundárias a esses abortos. E que ele, quando ministro, sistematizou uma série de condições que minorassem o problema, autorizando certos abortos. Apesar disto, José Serra teme perder votos e fica na dependência das, desculpem, sandices das religiões.
A prova está em todas as partes, mas vou escolher uma fonte serrista que indica que ambos pensam que o aborto é assunto de saúde pública.
O fato da religião influenciar tanto em assuntos que deveriam ser discutidos também e principalmente por outras esferas de poder, descaracteriza inteiramente o estado laico. Na verdade, estamos vivendo uma espécie de fundamentalismo passageiro, onde a aspiração aos votos dos crentes sobrepõe-se à razão e a fatos conhecidos por ambos os candidatos. Na prática, o belo estado laico de nossa Constituição volatiliza-se num país fundamentalista, submetendo-se facilmente à religião. Lula também submeteu-se, todos fizeram isso. Há um medo fóbico de enfrentar os 80% de população vagamente católica e os 90% da população que diz professar uma religião.
Então, quando alguns blogueiros e articulistas tentam avançar nas discussões sobre ateísmo, somos normalmente recebidos a pedradas por outros ateístas que afirmam que cantar as maravilhas de ser ateu seria formar uma nova igreja… Por favor, se o negócio é ignorar a possibilidade de uma vida e de um estado sem deus, não reclamemos e Dilma e Serra. E amém, rapaziada.
E a apresentadora e vereadora Soninha Francine, apoiadora de Serra …
… confessou já ter feito aborto.
Vargas Llosa recebe o Nobel 2010
Publicado no Sul21
O prêmio Nobel de Literatura de 2010, divulgado nesta quinta-feira (7) às 8h, foi para o escritor peruano Mario Vargas Llosa, pela “cartografia das estruturas do poder e suas afiadas imagens da resistência, rebelião e derrota.”
Após premiar um amigo de Fidel, Gabriel García Márquez, e os comunistas Pablo Neruda e José Saramago, todos escritores próximos ao Brasil, chegou a vez do liberal. Vargas Llosa, 74 anos, também guarda relações próximas ao Brasil, tanto que escreveu a notável narrativa épica A Guerra do Fim do Mundo sobre Canudos, inspirado pela obra de Euclides da Cunha.
O Nobel de Literatura é escolhido pelos membros da academia sueca e dá um prêmio de aproximadamente R$ 3 milhões, entregue em dezembro. Durante o processo de escolha, os membros da academia enviam questionamentos a centenas de autores, críticos e professores, com a finalidade de chegar aos candidatos. De uma lista inicial de 250 nomes, em cortes sucessivos, se chega a um segundo grupo, com 15 a 20 e, num terceiro, a cinco nomes. Os membros da academia leem as obras dos candidatos e discutem sobre quem deve ser o vencedor. Um pouco antes do anúncio, os membros da academia avisam o vencedor através de um prosaico telefonema. A premiação do Nobel de Literatura costumava prestar-se a homenagens e distorções geopolíticas. Nos últimos anos, esta prática foi abandonada.
Não obstante o sucesso e os indiscutíveis méritos literários de livros como Batismo de Fogo (1963), Conversa na Catedral (1969) — considerada sua maior obra –, Pantaleão e as visitadoras (1973), Tia Júlia e o escrevinhador (1977), do citado A Guerra do Fim do Mundo (1981), Historia de Mayta (1984) e Quem matou Palomino Molero? (1986), Vargas Llosa enveredou pela política e pelo jornalismo nos anos 90. Casualmente ou não, sua ficção começou a perder força e seus últimos livros não receberam a acolhida dos primeiros.
Na política, o escritor tentou inverter a ordem natural das coisas e começou pelo fim: em 1990 concorreu logo à presidência do Peru pela Frente Democrata (FREDEMO), partido de centro-direita, mas perdeu a eleição para Alberto Fujimori. Naqueles anos, perdeu também a originalidade de sua literatura.
Fascinado pelo estilo clássico de Flaubert — a quem dedicou um ensaio e inúmeros artigos e referências — , após os anos 80 Vargas Llosa continuou escrevendo bons livros, mas a centelha ficou perdida em algum lugar. De sua produção mais recente, o principal é o respeitável grupo de ensaios literários, afora, é claro, suas célebres e virulentas polêmicas com García Márquez.






















