Tivemos um terrível primeiro tempo e uma segunda etapa tranquila. Teu time, Coudet, parece ser assim mesmo, de radicais variações de ritmo durante os jogos, o que não é bom. Iniciamos mal, acabamos bem, vencemos, mas poderia ter sido bem mais complicado se o Ceará tivesse marcado naquela primeira etapa. Mas quem tem Galhardo marca antes, né? Sorte nossa, tem sido assim.
Thiago Galhardo, o homem não para de fazer gols | Foto: Ricardo Duarte – SC Internacional
Em todos os jogos ocorre um longo período em que ficamos desligados. Quando os adversários são fracos e não aproveitam, OK mas quando pegarmos adversários mais fortes, tipo o Flamengo, de modo nenhum podemos nos dar o luxo de estarmos um longo tempo fora do jogo, sob pena de acontecer um massacre. Ontem, ficamos desligados nos 30 primeiros minutos. E vide o final do último Gre-Nal.
Agora são 9 rodadas do Covidão 2020. Temos 20 pontos, com aproveitamento de 74,1% e saldo +10. A próxima partida será domingo, às 18h, contra o Goiás em Goiânia. Trata-se do último colocado do campeonato com uma vitória em sete jogos. Jogo fácil, mas há Libertadores na próxima quarta-feira — com 6 suspensos e 3 lesionados — e talvez ainda poupemos vários jogadores. Projeção de time? Isso o próprio Chacho responde:
— Penso o dia a dia. Preciso ver como estão os jogadores. Amanhã terei um parâmetro. No sábado, terei as 48 horas após o jogo e aí verei os melhores para domingo (contra o Goiás, em Goiânia). Não posso projetar muito.
Não somos um time para ser campeão, mas espero que sigamos próximos da ponta até o fim.
Ontem, sem jogar, o Inter voltou a ser líder por aproveitamento. É importante vencer hoje não somente para ampliar a vantagem, que é mínima, mas para ficarmos duas rodadas afastados de perder a liderança.
Se vencermos, ficamos a três pontos dos perseguidores Flamengo — franco-favorito para levar a taça novamente –, São Paulo e Vasco (se este ganhar seu jogo de hoje). Disse duas rodadas de distância porque, mesmo que eles encostem em nós, temos saldo de gols maior.
Então, hoje é dia de não fazer bobagem. Chega de tomar gols nos acréscimos. Nos últimos dois jogos, foram 4 pontos perdidos naqueles minutinhos finais em falhas incríveis de Moisés e Rodinei. Sei que a taça da burrice anda borbulhando e transbordando em todos os lugares, só que a esperança do torcedor aqui é que a nossa pare de vazar.
Chega de bobagens, né, Moisés? | Foto: Ricardo Duarte
Credo, que vergonha! Vou te contar, hein, PCdoB! Podem esquecer o meu voto. Afinal, ainda lembro do tempo em que a esquerda era de esquerda.
O PSol (e o Novo) foram unânimes na reprovação do perdão à dívida e quase todo o PT também. O resultado foi que o Congresso perdoou R$ 1 bilhão de dívidas… Ah, também quero! Vou parar de pagar impostos. O Estado é laico, não tem que perdoar dívida de quaisquer Igrejas.
Eu vou dizer pra vocês uma coisa muito séria. A culpa de 2020 estar sendo esta coisa que está sendo é de Beethoven. Sim, do cara das beterrabas e da Nona.
O cara faz 250 anos de nascimento este ano e todo mundo ia comemorar o ano de forma muy contenta. Estava tudo programado e alinhavado, mas estavam fazendo festa para festejar a existência de um músico surdo que seguiu compondo, que escreveu seu maior quarteto após quase morrer de um mal que não entrarei em detalhes devido à fedentina, que era alcoolista mas gostava de um vinho húngaro que vinha com mercúrio e que talvez o tenha matado, que era feio de doer, que era revolucionário e todos sabem o destino desses caras… Ô, desglória!
Bem, pensando melhor, era pra comemorar mesmo. Vem, vacina russa. Chega logo, porra, o ano tá acabando e o níver dele é dia 17 de dezembro!
Ah, a literatura russa do século XIX… Quando jovem, eu achava que ela era um fenômeno que se limitava a indivíduos como Dostoiévski, Púchkin, Gógol, Tolstói, Tchékhov, Turguêniev — e já eram muitos para um país semifeudal, pobre e lotado de analfabetos e escravos! — mas depois fui adiante com Oblómov e este O herói do nosso tempo (Martins Fontes, 221 páginas). E, olha, que livros, que literatura!
(Bem, os argentinos também têm uma penca de escritores fantásticos vá saber por quê).
Liérmontov foi um dezembrista. Ocorrida na Rússia em 1825, a Revolta Dezembrista desejava a supressão do regime servil, o fim do feudalismo, a implantação de uma democracia representativa na Rússia czarista, programas de incentivo às artes e às ciências e aproximação do país à Europa. O czar Nicolai I respondeu às reivindicações com repressão implacável, censura, tortura e o fim das atividades científicas. E, desta forma bolsonarista, venceu, sufocando a revolta. Tal tragédia foi respondida por um clima de indiferença a todo o sentido de dever, justiça e verdade, além de um desdém cínico pelo pensamento e pela dignidade do homem. É claro que isto foi impulsionado pela novidade do romantismo, que estava em seu início.
Por que iniciei minha resenha assim? Ora, porque tudo isso está incrustrado no personagem principal do livro, Pietchórin. O Herói do Nosso Tempo é não somente o retrato desse herói entediado, mas também desse tempo em que as dissidências foram esmagadas e só resta o imobilismo geral ou a exibição cínica do desinteresse. É claro que os czaristas achavam o livro desprezível.
A obra-prima de Mikhail Liérmontov é um dos mais influentes e importantes romances russos. Ele é composto por cinco seções, todas girando em torno de Pietchórin. Ele é um dos personagens mais ambíguos da literatura mundial: mente, engana e manipula os outros para obter o que deseja – e quando consegue já não sabe mais se quer aquilo.
O Herói do Nosso Tempo não é o habitual calhamaço russo. Tem pouco mais de 200 páginas e vem com um pequeno elenco de personagens. Como disse, o livro é dividido em cinco partes, sempre com o mesmo personagem principal, o citado Pietchórin. Com ele, Liérmontov talvez tenha criado o primeiro anti-herói da literatura. Num primeiro momento, Liérmontov faz com que o cínico e sem raízes Pietchórin aproxime-se de nós por meio das reminiscências de um veterano capitão que servia no Cáucaso. Em seguida, o conhecemos rápida e diretamente e, finalmente, por meio de seus próprios diários, que acabam abruptamente, como se o autor tivesse simplesmente largado a caneta.
Ou levado um tiro. A vida de Liérmontov não ficou muito distante da de seu personagem: afinal, o autor também serviu como oficial no Cáucaso, entrou em encrencas românticas e perdeu a vida em um duelo. Aliás, provavelmente, este duelo tenha sido provocado por ordem de Nicolau I. No momento do tiro, Liérmontov ergueu a arma e atirou para o alto, porém, seu “desafeto” cumpriu a ordem do czar e o autor morreu aos 27 anos com um tiro à queima-roupa, tendo deixado este estranho e belo romance e uma importante obra poética que todo russo conhece.
Pietchórin é certamente uma versão endurecida de Liérmontov. Era alguém que poderia manipular os corações das mulheres aparentemente à vontade, ou que poderia alegremente ir a um duelo fraudulento. “E daí? Se eu morrer, morrerei! A perda para o mundo não será grande. Sim, já estou bastante entediado comigo mesmo. Sou como um homem que está bocejando em um baile”.
Pietchórin é uma grande criação. Ele é por demais atraente e envolvente. Pode ter características lamentáveis e é uma ameaça a si mesmo e àqueles ao seu redor. É desagradável muitas vezes. “Talvez alguns leitores queiram saber minha opinião sobre o caráter de Pietchórin. Minha resposta é o título deste livro. ‘É, eis uma ironia ferina!’, — dirão. Não sei”. Essas duas últimas palavras resumem lindamente a ambiguidade do livro. O próprio prefácio de Liérmontov diz que o livro é “um retrato composto das falhas de toda a nossa geração em seu desenvolvimento completo” e também usa a palavra “desagradável” para descrever Pietchórin.
O Herói do Nosso Tempo é narrado em primeira pessoa por três personagens diferentes, sendo que o último é o próprio Pietchórin escrevendo um diário. Tudo é digno de interesse, e gostei muito da sensação estética de ver o que vai se revelando para compor o personagem à medida que os capítulos vão passando. O livro é de arrebatador. Não preciso nem dizer que, como os russos de sua época, Liérmontov foi um mestre.
Hoje, eles estão mais dos lados do que sobre a cabeça, mas já tive muito.
Às vezes não parece, mas saibam que sou uma natureza fiel. Gosto de repetir o mesmo restaurante, a mesma mesa, os mesmos rituais e gosto de cumprir agendas como um cão. Aliás, amo os cães.
Também gosto de repetir o mesmo cabeleireiro ou o mesmo barbeiro. Tanto que fui cliente do Nei por mais de 35 anos. Comecei com ele no atual Shopping João Pessoa, lá por 1969. Permaneci com ele quando ele atravessou a rua e foi parar à frente e ao lado de meu ex-colégio, o Júlio de Castilhos.
Durante o longo período em que cortei cabelo no Nei, surgiu o Trianon e todos os jogadores de futebol passaram a deixar suas madeixas com ele. Não obstante minha presença, ele ficou famoso.
Uma vez, o Nei estava trabalhando na minha cabeça, enquanto Falcão tinha sua careca lavada ao lado. O Nei me perguntou:
— Há quantos anos tu vens aqui?
— Há uns 20.
E Falcão se meteu no papo:
— E como é que tu ainda tem cabelo?
Pois é, na época eu ainda tinha bastante.
Com o tempo, começaram a aparecer bolas de futebol desenhadas nas paredes do Nei. Todos os jogadores que iam ali deixavam seus autógrafos em tinta preta ou branca. No começo, eram só colorados e gremistas, mas logo apareceram nomes como Sócrates, Zico, Reinaldo… Em poucos anos, as paredes foram totalmente preenchidas pelos craques.
Depois, o Nei — que era colorado, claro — se aposentou e eu passei a cortar o cabelo por R$ 5,00 ali na Azenha. O cara vinha e apenas metia a máquina na altura 3. Era rápido e eu achava que, de acordo com o cheiro dele, ele pegava aquela pouca grana e comprava tudo de cachaça barata.
Então foi a vez do Reinaldo. Ele perguntava se eu queria ler durante o corte e me mostrava as últimas playboys. Se eu parasse no rosto, nos peitos ou na bunda de uma mulher, ele dizia, gentil:
— O senhor tem muito bom gosto.
Não fiquei muito tempo com ele. Hoje, eu corto no Régis, aqui ao lado de casa, na BarberShop Independencia. Só que, após 5 anos de fidelidade, a pandemia me impede de visitá-lo. Acho que nossas respirações ficariam muito próximas. A última que o visitei foi em fevereiro. Uma pena. Gosto muito dele.
A Elena cortou meu cabelo lá por maio, fez bom trabalho, mas depois a coisa ficou selvagem. Tenho cabelos sobre as orelhas. Tento fazer rabo de cavalo, mas ainda não dá. Lembro de quando jogava futebol no colégio. Eram os anos 70. Havia um monte de colegas lindas. Meus momentos mais eróticos eram quando eu pedia para uma delas — sempre a mesma — fazer um rabo de cavalo em mim para que meus cabelos não atrapalhassem meu modesto desempenho futebolístico. Ela puxava meus cabelos com as mãos rastreando o pescoço. Era algo arrepiante e eu passava uns dois dias pensando naquilo.
O problema agora é saber quem vencerá. Ganhei de aniversário uma máquina de cortar cabelo. Será que ela chegará antes da Elena fazer um rabo de cavalo em mim?
Coudet, tu deste 4 belas entrevistas na semana passada. Mas estavas também treinando o time. Podemos não chegar a título nenhum, mas dá gosto ver o Inter jogando sem medo e com inteligência tática. Há quanto tempo eu não via isso? Há mais de dez anos, certamente.
Este é um dos melhores começos de campeonato brasileiro da história colorada. Só em 1978 (6 vitórias), 1975 e 1979 (5 vitórias e um empate) começamos melhor. E em 1974 e 1976 tivemos o mesmo começo (5 vitórias e uma derrota).
Ademais, os acertos são incríveis. A colocação de Thiago Galhardo como centroavante e a sequência de boas atuações do Zé Gabriel na zaga são coisas sensacionais.
Mesmo com a inacreditável sequência de lesões e covids, o time demonstra perfeito conhecimento do esquema adotado, sempre de agressividade e postura propositiva. Afinal, temos 4 atacantes fora: Guerrero, Peglow (covid), Yuri e Pottker, considerando que o último seja jogador de futebol e atacante. Sobram apenas Galhardo, Marcos Guilherme e Dale, que se faz de atacante às vezes. Mas os caras entram e fazem o que se espera deles.
Dentre as indicações de Coudet, Saravia é um monstro — resolveu o problema secular da lateral direita que vem mal desde Edson Madureira (hoje com 76 anos), Cláudio Duarte (hoje com 69) e Edevaldo (hoje com 62), com um tímido voto de louvor a William (hoje no Wolfsburg). E não há exagero no que digo.
Bem, aos poucos vamos voltando aos nossos “Bom dia”. Este foi apenas um aquecimento.
Só a calça cai com Coudet | Ricardo Duarte / SC Internacional
Arthur Rubinstein achava que um músico deveria praticar por 4 horas e depois passar outras 4 lendo, informando-se ou em contato com outro gênero artístico a fim de ter o que expressar quando voltasse à tocar.
Uma musicista como a Elena ouve um violinista e diz que ele deve ser muito culto para poder tocar daquele jeito. Eu pesquiso e o cara tem mil interesses. Os muito especialistas que me perdoem, mas cultura é fundamental.
(Para citar 3 supercraques, quando Pollini ou Brendel ou Ehnes chegam perto de seus instrumentos, eles trazem todo um mundo com eles, crianças).
Vamos com uma que quase todo mundo tem dificuldade:
POR QUE/ PORQUE / POR QUÊ/ PORQUÊ – DOMINE A ORTOGRAFIA DE UMA VEZ POR TODAS! 👇
1) Use “por que” (separado, s/ acento) em perguntas: “Por que a Michele recebeu R$ 89 mil do Queiroz?”
2) Use “porque” (junto, s/ acento) em respostas: “Porque eu precisava dar um jeito de receber o $ das rachadinhas”.
3) Use “por quê” (separado, c/acento) quando estiver no final de perguntas, próximo ao ponto de interrogação. “Mas todo mundo sabia que esse traste não valia nada, votaram nele por quê?”
4) Use “porquê” (junto, com acento) quando estiver substantivado. Se não souber o que isso significa, use quando a palavra puder ser substituída por “a razão”. “O combate à corrupção nunca foi o porquê de a elite ter votado nele”.
O Bernardo devia ter uns 13 anos, então foi lá por 2004. Fomos ao Beira-Rio ver um jogo e subimos pela arquibancada superior até bem próximos do local onde ficava a chaminé da Churrascaria Saci, esta fechada desde os anos 80.
Quando sentamos, veio um rapaz muito educado me alertar que o setor era ocupado pelo Pessoal da Chaminé.
Eu perguntei se podíamos ficar ali e ele disse que sim, claro, desde que eu não me importasse com o fato de que eles fumariam maconha durante toda a partida. Ele garantiu que era só isso, que de resto estaríamos no local mais seguro, no menos agressivo de todo o estádio.
Fiquei um pouco na dúvida, falei com o Dado e resolvemos ficar. Ninguém nos incomodou, mas eles simplesmente ficavam em pé, muitos de costas para o campo, falando de tudo um pouco. Lembro que fizemos uns três gols e que, nestes momentos, participávamos dos abraços e das comemorações deles.
Depois, eles voltavam ao papo, que os interessava muito mais do que o jogo.
Onde andarão esses caras nestes tempos de gentrificação dos estádios e de posturas bolsonaristas? Ignoro, mas quando os estádios reabrirem para o público, irei até o local da ex-chaminé conferir se ela ainda existe. Ou será que a reforma do estádio sumiu com a chaminé e seu Pessoal?
Então, agora vamos fazer o elogio de alguns dos contos do livro.
Manual da Faxineira traz 43 dos 78 contos que Lucia Berlin escreveu. Ela é concisa porque é precisa, é brutal porque trata do horrível da vida e é desiludida (no sentido de realista), mas nunca ao ponto de tornar-se melancólica. E há sempre o humor, que sempre parece garantir que há alguma coisa de divertida para além do horror.
“Não me importo de dizer coisas horríveis, desde que possa torná-las engraçadas”, diz a narradora do conto Silêncio. Serve para todo o livro.
A propósito, Silêncio é um dos melhores contos da coleção. A ação ocorre em El Paso, enquanto o pai da menina protagonista está na guerra. A mãe é uma alcoolista que pune a filha injustamente. O avô é abusador. Já o tio é outro alcoolista, mas é delicado e relaciona-se bem com a menina Lucia. Certo dia, ela apanha da mãe sem justificativa e passa a não falar mais. Mas ela conversa com o tio amigo, que só de vê-la descobre que cinta para a escoliose está apertada e tem que ser trocada. Depois o tio comete um grande erro — na rua, durante uma bebedeira, sem relação direta com a menina — sobre o qual é necessário também silenciar. Ele foge. Quando li o conto pela segunda vez, ele me pareceu quase um ensaio sobre a culpa e a delicadeza, a irritação e a vergonha. O final é uma paulada. Eles se reencontram anos depois:
“Conversamos sobre a vida, contamos piadas. Nenhum dos dois sequer mencionou El Paso. Claro que, a essa altura, eu já tinha percebido todas as razões de ele não ter parado o caminhão naquele dia, porque a essa altura eu era alcoólatra”. (p. 419)
O conto Manual da Faxineira é pura diversão triste. É uma montanha de fragmentos curiosos e engraçados sobre ser faxineira, sem explicar os motivos que levaram uma pessoa tão culta àquela situação:
“Mostre a eles que você faz um serviço completo. No primeiro dia, ponha todos os móveis de volta no lugar errado… dez a vinte centímetros mais para um lado, ou virados em outra direção. Quando tirar o pó, inverta a posição dos gatos siameses. Ponha a cremeira à esquerda do açucareiro. Troque as escovas de dentes de lugar”. (p. 47)
Ela explica isso querendo dizer que nem precisa limpar muito, é só mostrar que tudo foi mexido.
O esplêndido Desgarrados é ambientado em uma espécie de colônia para dependentes químicos e alcoolistas. É um projeto piloto de reabilitação, ironicamente chamado de “La vida”. Fica no meio do deserto, isolado, onde os internos, após receberem as doses matinais de metadona, realizam trabalhos compulsórios. O cenário é hostil, brutal em todos os sentidos, os companheiros de reclusão da narradora são figuras tristes, desgarradas, como indica o título. E mesmo assim, em meio a tudo que há de inóspito, há a lua, e a capacidade da narradora de ver uma brecha na rudeza ao redor.
A lua é vista refletida nos olhos amarelos de um cão. Nada importa muito, sabe? Quer dizer, nada importa de verdade. Mas aí, às vezes, só por um segundo, é como se você recebesse uma graça, a crença de que aquilo importa muito. (p. 221)
Outro trecho potente está em Mordidas de tigre. Quando uma jovem de dezenove anos, com um filho de um ano, grávida do segundo e abandonada pelo marido, se vê em uma clínica clandestina de aborto, rodeada por mulheres constrangidas e amedrontadas. Ela então percebe que não quer realizar o aborto, que por mais ingratas que as perspectivas sejam, ela, o filho e o bebê por vir podem ser uma família. Não é algum otimismo pueril, é o horror transfigurado, é a beleza possível da vida, que não exclui o trágico, que se trata mais de uma tomada de posição subjetiva perante o adverso, a tristeza, a solidão.
Muito diferente é Mijito (contração de Mi hijito) uma narrativa pungente de uma mexicana cujo marido é preso. Ela está grávida, não sabe falar inglês e, na verdade, mal sabe pensar. As narradoras são uma atendente de clínica médica, supõe-se que a própria Lucia novamente, e a mãe. O filho nasce, lhe aparece uma hérnia e deve ser operado. A mãe trabalha para amigos do marido preso, fazendo serviços eventuais. Eles as detestam, à mãe e à criança. A mãe não consegue ir às consultas porque tem compromissos ou perde caronas. Também não consegue deixar seu bebê em jejum para a operação. Onde está o humor em toda esta desgraça? Na rotina da clínica, que vê tudo acontecer sob olhos mais ou menos calmos. Um conto de horror absoluto contado em ritmo de dança.
Como ela consegue dar um jeito de misturar humor e horror de uma forma que nos deixa perplexos?
Em outros contos, por exemplo: a jovem que assiste o médico introduzir o mecanismo para realizar abortos descreve o procedimento:
“… empurrando lentamente o tubo lá para dentro, como quem recheia um peru”. (p. 101)
Ou a idosa que observa um funcionário que mede o banheiro para trocar o ladrilho:
“Aquela sua catinga era como uma madeleine para mim, trazendo de volta vovô e Tio John, para começar”. (p. 475)
Ora, comparar a madeleine de Proust com o odor de um homem velho e gordo demais para realizar o serviço pelo qual ela o contratou, e o poder desse cheiro de levar a narradora de volta à infância… É esse o tipo de transformação que Berlin cria.
Ou em Amigos, quando ela pensa que está ajudando — e se sacrificando um pouco por — um casal solitário de velhos e ouve o seguinte diálogo:
— Ela nunca se atrasou antes Talvez ela não venha.
— Ah, ela vem sim… essas manhãs significam tanto para ela.
— Coitada, tão sozinha. Ela precisa de nós. Na verdade, somos a única família que ela tem.
— Ela com certeza adora minhas histórias. Droga. Não estou conseguindo pensar em nenhuma história para contar pra ela hoje.
— Alguma coisa vai acabar te ocorrendo… (p. 191)
É difícil pensar que ela, a escritora, fosse tímida, mas aparentemente ela poderia ser. O belo romance de Quero ver aquele seu sorriso — onde um apaixonado casal sempre bêbado atrai um advogado caro para defender a mulher acusada de uma agressão a policiais e que acaba seduzido pelo estilo de vida deles, no mais longo e um dos melhores contos do livro — e as histórias hospitalares de Meu Jockey, Caderno de notas do setor de emergência, Temps Perdu não apontam para uma pessoa retraída.
Porém, há um vídeo que sobreviveu de uma leitura em Oakland em 1984, e ela não parece nada à vontade. Um amigo disse que “Era como se ela tivesse medo de errar, medo de agir como uma alcoólatra: cair, vomitar bobagens, agir como uma louca”.
Pois bem, há vários contos sobre alcoolismo. Um ansioso e trágico é Incontrolável, onde a personagem principal espera que o supermercado abra às 6h da manhã para que ela possa comprar o álcool salvador. Ela estava trêmula e hiperventilando. Se não tomasse logo algo entraria em delirium tremens. O filho fica com as chaves do carro e a carteira de motorista por segurança. A tranquilidade da casa faz enorme contraste com a abstinência.
Há o cômico 502. Bêbada, ela deixa o carro estacionado em ponto morto e vai dormir em casa. Bem, o carro acaba descendo a rua quando o carro de frente desencosta. Ele vai longe até bater num prédio, mas não machuca ninguém. Os bêbados amigos dela, todos eles negros que costumam beber dentro de um caro abandonado e sem motor da rua, a defendem junto à autoridade policial. Como é que ela vai ser multada se estava dormindo em casa???
“Se você não está dirigindo, não pode ser multado por dirigir embriagado”. (p. 456)
Depois, quando conseguiu se recuperar, seguia avaliando cidades pelo nível de dificuldade para arranjar bebidas.
Ela deixa de beber depois dos 50 anos de idade enquanto cuida da irmã mais nova que morreu de câncer na Cidade do México. Em várias histórias — Espere um instante, Mamãe, Dor — os últimos meses da vida de Sally são contados de várias maneiras, em situações sempre diferentes e complementares.
Em seus relatos há enfermeiras, professoras, faxineiras que oferecem interessantes conselhos — “Pegue tudo que sua patroa te dê e agradeça. Pode deixar no ônibus, entre os bancos –, e também há muitas garrafas de uísque, bebedeiras, vícios, viagens para o México, uma avó que pede que seus netos se afastem dela como se fossem cachorros. As histórias acontecem em centros de desintoxicação, hospitais, casas de família.
Em suas explorações da memória pessoal, Berlin tem um controle nada trêmulo de suas narrativas. As conclusões não são nada reconfortantes: quanto mais velhos ficamos, mais nossas lembranças se tornam catálogos de perdas. Parentes morrem, relacionamentos se desfazem. “As partes boas são tão difíceis de lidar quanto as ruins”, conclui uma das personagens.
Já falei sobre isso, mas vamos de novo. A última história que Berlin escreveu, B.F. e eu, é sobre uma mulher idosa em um trailer, amarrada a um tanque de oxigênio, tentando conseguir um faz-tudo para colocar ladrilhos novos em seu banheiro, acaba recebendo um senhor tão velho e quase tão enfisêmico quanto ela para fazer o serviço. O conto tem uma conclusão apropriadamente não sentimental. Como já dissemos, o ladrilheiro faz com que ela invoque Proust, como outra história que se chama Temps Perdu.
[B. F.] era um homem enorme, alto, muito gordo e muito velho. Mesmo enquanto ele ainda estava do lado de fora, tentando recuperar o fôlego, eu já estava sentindo o cheiro dele. Tabaco e lã suja, suor fedorento de alcoólatra. Gostei dele de cara. […] Fiquei vendo B. F. medir o banheiro durante um tempo, depois fui me sentar na cozinha. Continuei sentindo o cheiro dele de lá. Aquela sua catinga era uma madeleine para mim, trazendo de volta vovô [o dentista alcoolista e arrancador de dentes] e o Tio John [aquele que fugiu do atropelamento], para começar. (p. 475)
Como vemos, assim como na grande obra circular de Proust, em Lucia Berlin o fim se torna um caminho de volta ao início. E, por falar em fim, acho que, assim, chegamos ao nosso final, desejando termos dado a vocês uma boa ideia do que é esta grande escritora.
Primeiro, eu vi Manual da Faxineira em sua edição portuguesa de 2016, chamada Manual para Mulheres de Limpeza. O livro fora lançado em 2015 nos EUA.
11 anos após sua morte, Lucia ganhava enorme reconhecimento e levava quase todos os prêmios de Melhor Livro do Ano nos EUA e Reino Unido.
Manual chegou ao Brasil em 2017. Mas voltando à edição portuguesa, foi com alguma irritação que li na orelha a frase “Lucia Berlin talvez seja a melhor escritora de todos os tempos”. Pô! É claro que isto afasta os leitores pelo exagero e vazio de significado. Não comprei o livro.
Quando li a edição brasileira da Cia. das Letras, a frase portuguesa seguia me irritando pela banalidade. Afinal, há tanta coisa diferente para se dizer sobre o livro, Lucia é tão diversa e original que a única coisa que aproveitei daquela orelha foi a de saber que a autora preferia ouvir seu nome à maneira da América espanhola: “Lu-ssí-a”, em vez da pronúncia anglo-saxônica ou italiana.
Compreendo, porém, o entusiasmo que a escrita de Berlin causa. Durante e após a leitura, parece que somos forçados a falar sobre o que estamos lendo e em nosso discurso brotam frases desbragadamente elogiosas. Igualmente, quando lemos os dois textos finais do livro, dos ensaístas Lydia Davis e Stephen Emerson, notamos suas dificuldades na escolha dos adjetivos.
Personagens
A tentação é grande de falar mais das aventuras e desventuras da autora do que de seus contos. O que seria uma grande injustiça porque, como escritora, ela consegue muito. Conta boas histórias, tem humor e encanta o leitor. Sério, sua escrita sem floreios desliza diante de nossos olhos com a fluência de uma conversa entre amigos. Os personagens são quase sempre seres atrapalhados que vão tropeçando em suas fraquezas, mas — e aí chegamos ao crucial — a autora não os ridiculariza, não tem pena deles, não dramatiza suas desgraças. No fundo, todo mundo é igual — ela parece nos dizer — seja o índio bêbado de Albuquerque, a beldade que sonha com Hollywood, a grávida que conta o que viu na clínica de abortos, a mãe que se apaixona pelo amigo do filho, a alcoólatra que sai de madrugada para comprar uísque antes que as crianças acordem, a mulher negra e bem-sucedida que trata com desdém a faxineira.
Em seus tempos de alcoolismo pesado, Lucia trabalhou como faxineira mesmo tendo diploma universitário. “As faxineiras mais antigas nem sempre me aceitam com muita facilidade. E é difícil arranjar serviços de faxina também, porque eu sou ‘instruída’. Só que eu não tenho conseguido de jeito nenhum arranjar outro tipo de trabalho.” É Lucia falando através da personagem principal do conto que dá nome ao livro.
Virtuosismos
Já falei sobre o primeiro conto do livro, aquele em que ela narra fatos ocorridos em duas lavanderias separadas tanto geográfica quando temporalmente, então falemos de outro conto, Ponto de vista.
Nesta história, que poderíamos chamar de experimental, a narradora confessa sobre o personagem que está criando: “…O que eu espero conseguir fazer é, por meio da utilização de detalhes intrincados, tornar essa mulher tão verossímil que você não tenha como deixar de se compadecer dela.” Ela consegue isso com aparente facilidade. Mais: ela nos dá duas opções de parágrafo para abordar a personagem, uma boa e outra ante a qual o leitor reagiria com um “Ah, tenha a santa paciência”. (pág. 66 e 67 da edição brasileira).
Neste conto inacreditavelmente original e elegante, há mais duplicidades, há comparações entre a atual assistente de um consultório médico e sua antecessora, a narradora. Mas não pensem que isso resulte numa leitura complexa, é tudo muito claro. Em dado momento a narradora diz que jamais adotaria a postura de sua personagem frente a um médico, que aquilo é um erro, mas que sua personagem faz refeições modestas e solitárias usando “belíssimos talheres italianos de inox”, assim como ela, a narradora, conta fazer.
Nas últimas linhas, a confusão entre a narradora-assistente e sua personagem é total. Tanto que, após descrever o personagem solitário observando alguém na rua, o narrador diz: “Eu me apoio no peitoril frio da janela e fico observando o homem.”. E já não sabemos quem é o “eu”. Repito: toda esta complexidade vem muito clara e distinta para o leitor, que fica pensando no quanto nossas histórias pessoais se alteram quando em contato com diferentes personagens.
Essas confusões propositais reforçam a impressão de que a escrita de Lucia é, mais do que ficção, memória escrita ao sabor do fluxo de consciência. Como se ela arrancasse páginas de seu diário e as publicasse isoladamente, oferecendo-as para nós, leitores, como histórias curtas. Contribui para esta impressão o fato de que o mesmo personagem ressurge em diferentes fases da vida. A jovem que vive com um músico em um conto é também a mãe que abriga os filhos em uma manhã gelada de Nova York e que, madura, cuidará da irmã à beira da morte? A mulher que descreve a clínica de reabilitação é a mesma que esquece de frear o carro estacionado em uma subida para pavor e graça de seus amigos, alcoolistas como ela? Certamente.
Mais: Lucia tem o costume de usar poucas linhas e frases curtas e diretas para nos contextualizar. Rapidamente, ficamos conhecendo o local onde estamos e também o gênero de pessoa que está a falar conosco. Às vezes, ela nos dá o contexto em frases sem verbo. Um exemplo com verbos:
“O ônibus está atrasado. Carros passam. Gente rica dentro de carro nunca olha para as pessoas na rua. Gente pobre sempre olha… na verdade, às vezes parece que elas estão só passeando, olhando para as pessoas na rua. Eu já fiz isso. Gente pobre espera muito. Em postos de previdência social, filas de desempregados, lavanderias, cabines telefônicas, prontos-socorros, prisões, etc.” (p. 40)
Ou seja, apesar de não perder tempo com descrições de ambientes, ela é muito eficiente nisso, é uma escritora atenta a todos os pormenores e que sabe a importância deles para caracterizar um lugar, uma pessoa e uma vida.
Em Tremoços-de-flor-azul, Berlin declara diretamente a um professor de filosofia, cujo último livro acabou de traduzir, e que se entusiasma a falar com ela sobre Heidegger, Wittgenstein, Derrida e Chomsky:
Desculpe. Eu sou poeta. Lido com o específico. Fico perdida no abstrato. Eu simplesmente não tenho a bagagem para discutir essas coisas com você” (p. 276)
E é com o específico, o particular, que nos deparamos em cada conto e em cada descrição concreta, precisa, detalhada. Esta afirmação, dirigida ao professor de filosofia, é uma declaração da autora acerca daquilo que faz sua escrita. Não há abstração. Todos os contos são Berlin a falar da sua vida, quer ela se chame Maria, Carlotta, Loretta, Dottie, Adele, quer os seus filhos se chamem Nick ou Ben, ou o seu marido ou amante seja Jesse, Rex ou Mel. É sempre a voz e o carácter de Berlin, os lugares onde sabemos que viveu, as pessoas que conheceu, seus parentes, o alcoolismo, as situações pelas quais passou, etc. Ninguém sente sono lendo as histórias, que têm viradas a cada momento. Claro que ela tem maiores preocupações com a estrutura, a técnica, e menos com ser exatamente fiel à realidade. Tudo o que ela narra pode ter sido sua vida, mas nossas histórias jamais nascem prontas para virar bons contos.
Do humor
A violência das situações descritas na maioria dos contos, de natureza física e emocional, é contrabalançada pelo humor que Berlin introduz no relato desses acontecimentos. Não há como não rirmos alto quando, após termos assistido detalhadamente à extração a sangue frio de cada dente da boca do avô de Berlin, realizada por ele mesmo e pela própria Lucia, ainda criança, em Dr. H. A. Moynihan, nos deparamos com este cenário:
Eu queria pegar uns saquinhos de chá; meu avô costumava fazer os pacientes morderem saquinhos de chá para estancar o sangramento. (…) A toalha de papel que eu tinha posto na boca do meu avô estava encharcada de sangue agora. Joguei-a no chão, enfiei um punhado de saquinhos de chá na boca dele e apertei os maxilares um contra o outro. Gritei. Sem dente nenhum, o rosto dele parecia uma caveira, ossos brancos em cima do pescoço ensanguentado. Um monstro medonho, um bule de chá que ganhou vida, com etiquetas amarelas e pretas de chá Lipton penduradas como enfeites de Carnaval. (p. 21)
E mais à frente, há o conto Sex Appeal, de humor rasgado. A prima linda resolve ir a Hollywood. Como acha que tem peitos pequenos, usa um sutiã com enchimento. Pega um avião para ir à Califórnia e, quando este ganha altura, o sutiã explode na cabine despressurizada. Mas não é por isso que ela retorna. Depois, há um baile na cidade no qual estará presente um famoso alguém. A prima vai acompanhada da menina Lucia, então com dez anos. No baile, a prima atrai o famoso homenageado com seu irresistível sex appeal. Mas vai ao banheiro e então fica claro que o cara desejava era a menininha Lucia. Tudo isso é contado de forma hilariante e leve, mesmo que o assunto seja pedofilia.
O humor não é um esforço para mitigar os eventos dolorosos ou sensações de perturbação e solidão – é um sintoma do modo como Berlin observa as pessoas, os lugares e as situações. Apesar do carácter sombrio de alguns contos, apesar mesmo de Berlin confessar, no final de Mamãe, que não tem compaixão nenhuma pela mãe já falecida, não há qualquer resquício de ressentimento ou raiva nas histórias.
Nascimentos, mortes, abortos, violações, traições, alcoolismo, abandono, reencontros, faz tudo parte de uma vida que é sempre vista afirmativamente, em tudo aquilo que a compõe. Em Boba de chorar, Carlotta almoça com Basil no dia de aniversário dela. Estão ambos nos seus cinquenta anos. Ele é apaixonado por ela desde a adolescência, mas foi preterido em favor de outro rapaz, e não é difícil perceber por quê:
«Você e Hilda costumam ir para o litoral?”, perguntei.
«Como alguém conseguiria, depois de frequentar a costa do Chile? Não vou, há sempre muitas hordas de americanos. Eu acho o Pacífico mexicano entediante.»
«Basil, como você pode achar um oceano entediante?»
«O que você acha entediante?»
«Na verdade, nada. Eu nunca fiquei entediada.» (p. 292)
Nem ela, nem nós, quando lemos estas histórias. Mas é mais do que não sentirmos aborrecimento: é sentirmo-nos a viver com ela da maneira como ela vive, chegando até a desejar estar numa prisão no meio do deserto de Albuquerque, pela forma como isso é descrito. Afirmar isto, admita-se, não está longe de classificar a sua escrita de “colorida” ou “vibrante”. A dificuldade de falar de Lucia Berlin reside precisamente em percebermos que a escrita é tecnicamente perfeita e que a tentativa de explicar a experiência da leitura resultará sempre insatisfatória.
Ser comparada a escritores como Raymond Carver ou Tchékhov é um elogio e sinal do talento de Berlin, mas ela é única. Mais do que qualificá-la, entre aspas, “como a melhor escritora de todos os tempos”, o que importa dizer é que ela foi uma escritora de raras virtudes e que, tão importante quanto o talento de Berlin para os detalhes precisos e cortantes, é o que ela deixa de fora.
Existem mestres do parágrafo e mestres da frase; Lucia Berlin é a mestra do fragmento. Suas fotografias de momentos e sua habilidade narrativa faz com que a leitura avance sem resistências, alta velocidade. A história parece que se impulsiona para a frente, sem deixar de ser inteligente ou terrível.
Conhecer a biografia de Lucia Berlin não é fundamental para entender seus contos, mas a relação entre vida x ficção faz com que quase consideremos sua obra como autoficção. “Eu exagero muito e confundo ficção e realidade, mas nunca minto” é uma frase importante que a própria autora proferiu a respeito de seus contos. Seu filho Mark disse que ela escreveu histórias verdadeiras, não exatamente autobiográficas, mas muito próximas de situações vivenciadas. Suas histórias — muitas vezes duríssimas — era o que, incrivelmente, ela contava para fazer seus filhos dormirem e algumas delas chegaram à contos que ela digitava na máquina de escrever até altas horas da noite, ao lado de uma garrafa de whisky que desaparecia rapidamente. Sim, com as pequenas alterações de praxe — nomes, locais, talvez exageros –, ela retirava de sua própria vida o material para os contos. E muitas vezes sem alterações. Por exemplo, a irmã Sally está em vários de seus contos e, bem, sua irmã chamava-se Sally e os acontecimentos que a cercam nos relatos “ficcionais” de Berlin são exatamente os mesmos da biografia da irmã. Esta era mais nova e morreu de câncer na Cidade do México, na vida real e nos contos, etc.
Lucia Berlin teve uma vida surpreendente, quase inacreditável, com muitas mudanças de situação, profissões e cidades, além do alcoolismo como o qual conviveu por décadas. Teve muitos casos amorosos. Parece que os homens apaixonavam-se facilmente por ela, o que não é muito difícil de entender. Foi uma mulher muito bonita, com algo de uma versão em tamanho maior de Elizabeth Taylor no formato do rosto e nos olhos azuis-gelo. Também foi uma professora muito querida por seus alunos, o que é claro sinal de boa expressão, simpatia e talento. Com isso, quero caracterizar uma mulher que devia ser pessoalmente fascinante.
Albuquerque, Novo México, 1954, aos 18 anos
Ela nasceu Lucia Brown em 1936, no Alasca, e morreu em 2004 no dia de seu próprio aniversário, aos 68 anos, distinção que divide com Shakespeare. A família logo se mudou. Seu pai era Engenheiro de Minas e os primeiros anos da escritora foram vividos em campos de mineração nos estados de Idaho, Kentucky e Montana. Em 1941, quando a futura escritora tinha 5 anos, o pai de Lucia partiu para a guerra e sua mãe mudou-se com ela e sua irmã mais nova para El Paso, no Texas, bem na fronteira com o México, onde seu avô era um conhecido dentista. O dentista aparece depois nos contos, claro.
Sim, a segunda história do livro é sobre o avô e é dantesca. Conta como ele arrancou os próprios dentes para colocar em si mesmo uma dentadura que seria sua obra-prima, a réplica perfeita de seus dentes. Ele seria o melhor dentista de El Paso. Detalhe: nas janelas de seu consultório, estava gravado “Dr. H. A. Moynihan. Eu não trabalho para negros”.
Aos 10 anos, Lucia teve a primeira crise de escoliose — como ela diz em vários contos, sua coluna vertebral tinha a forma de um S. Esta foi uma condição dolorosa que a acompanhou por toda a vida e que muitas vezes lhe exigiu o uso de cintas de aço. Aliás, na terceira história do livro, Estrelas e Santos, a escoliose é central. Ela sofria bullying por ser muito alta, meio torta, por usar um aparelho ortopédico nas costas e por responder a todas as perguntas da professora até calar-se para sempre, ao menos naquele colégio, em razão de um fato. Mas chega de spoilers. Só lhes digo que o final de Estrelas e Santos é abrupto e inesquecível.
Logo após voltar da guerra, o pai de Berlin levou a família para Santiago do Chile, onde ele passara a ocupar um importante cargo numa multinacional mineradora. Em Santiago, Lucia embarcou numa existência glamurosa, rica e extravagante. Lá, frequentava muitas festas. Imaginem que seu primeiro cigarro foi aceso pelo príncipe Ali Khan, do Paquistão — que foi vice-presidente da ONU e que casou com Rita Hayworth.
Lucia Berlin (direita) em 1949, ela tinha 13 anos
No Chile, ela terminou a formação escolar, enquanto servia como a anfitriã perfeita para as reuniões dos amigos de seu pai. Depois. a língua espanhola apareceu em muitos de seus contos e ela amava o México, assim como a postura mais liberal das pessoas da América espanhola. Sim, no conto Boa e Má, há um retrato de uma professora comunista que levava a jovem personagem principal para trabalhar para a população pobre durante os finais de semana. A professora queria causar algum desconforto a ela e fazer a cooptação da jovem privilegiada para a causa. Não deu muito certo e não por culpa de nenhuma das duas. Estou evitando spoilers.
Aos 18 anos, em 1954, ela se matriculou na Universidade do Novo México, em Albuquerque (EUA). Logo casou e teve dois filhos. Durante a gravidez do segundo filho, o marido se foi. Berlin completou sua graduação e casou-se com o pianista de jazz Race Newton em 1958 (22 anos). Suas primeiras histórias apareceram sob o nome de Lucia Newton. No ano seguinte, eles e as crianças se mudaram para um loft em Nova York.
Em 1961 (25), Lucia teve um caso com um amigo de Newton, Buddy Berlin, e o novo casal acabou viajando para o México. Berlin tornou-se o terceiro marido dela. Ele era carismático e rico. E bebia muito. Durante os anos 1962-65, mais dois filhos nasceram.
Preciso dizer que todos estes casamentos e filhos estão em suas histórias?
Em 1967, quando Lucia tinha 31 anos, os Berlin se divorciaram. Na época, Lucia estava fazendo um mestrado na Universidade do Novo México. Ela nunca casou novamente.
Os anos de 1971 a 94, isto é, entre os 35 e 58 anos de idade, foram passados em Berkeley e Oakland, na Califórnia. Berlin trabalhou como professora do ensino médio, telefonista, recepcionista de hospital, faxineira e assistente de clínica médica, enquanto escrevia, criava seus quatro filhos e bebia, bebia e bebia. Em 94, venceu o alcoolismo após passar boa parte de 91 e 92 na casa da irmã, na Cidade do México, onde esta estava morrendo de câncer. A mãe morreu em 1986, num provável suicídio.
Em 1994, Edward Dorn levou Berlin para a Universidade do Colorado, e ela passou os seis anos seguintes em Boulder como escritora visitante e, finalmente, professora associada. Neste cargo, ela se tornou incrivelmente popular e amada pelos alunos. Em seu segundo ano, ela recebeu um prêmio da universidade por excelência em ensino.
Os amigos diziam que Lucia Berlin tinha lido tudo e todos e podia falar sobre isso com grande humor e paixão. Fazendo uma interrupção nada a ver, digo que ela acreditava que o mundo de Jane Austen “era tão duro quanto um alcoólatra em um quarto de motel em uma história de Raymond Carver”. Concordo com ela.
Fechando o parêntese, digo que o conteúdo autobiográfico das histórias de Berlin não prejudica a vivacidade de sua narrativa nem a astúcia da escritora. Um fino humor mina a feiura de algumas das situações retratadas. Berlin é assim: escreve coisas que a maioria dos autores ficaria envergonhada de compartilhar, depois recosta-se calmamente enquanto rimos e nos diz “Essas coisas… Bem, elas aconteceram comigo”.
Agora vamos falar sobre o livro Manual da Faxineira.
Para abordar uma contista tão rica e surpreendente como Lucia Berlin, vamos fazer antes uma rápida excursão à origem do conto e a sua definição, se é que podemos defini-lo.
Determinar o que exatamente separa um conto de formatos ficcionais mais longos é problemático. A definição clássica foi dada por Poe e é bem simples: “O conto é aquilo que pode ser lido em uma sessão de leitura ou, digamos, em uma sentada”. A interpretação disto pode ser problemática hoje em dia, porque talvez, nos nossos dias, a duração de “uma sentada” possa ser mais curta do que era na época de Poe…
Então, os contos têm tamanhos vagamente definidos. Mas há pessoas que demarcam os gêneros literários em termos de contagem de palavras, como se a diferença entre uma crônica, um conto, uma novela ou um romance pudesse ser definida pelo número de palavras. Eu acho que as definições devem partir do contexto, mas tem gente que insiste em contar palavras e que diz que um conto deve ter menos de 7.500 delas.
Histórias mais longas que não podem ser chamadas de romances são às vezes consideradas “novelas”, que são normalmente publicadas como os contos, em coleções dentro de um só volume ou em pequenos livros com só uma delas.
Mas como o conto surgiu?
Vamos a uma brevíssima história. Os precursores do conto foram as lendas, os contos populares, os de fadas, as fábulas e as anedotas. Claro que estas histórias curtas existiam principalmente na forma oral e assim iam sendo transmitidas de uma geração para outra. Um grande número destes contos é encontrado na literatura antiga, desde os épicos indianos como o Ramayana e o Mahabharata até os épicos homéricos, como a Ilíada e a Odisseia. As 1001 Noites, compiladas pela primeira vez provavelmente no século VIII, também é um repositório de contos folclóricos do Oriente Médio.
Na Europa, a tradição oral de contar histórias passou para o papel no início do século XIV, principalmente com os Contos de Canterbury, de Chaucer, e o Decamerão, de Boccaccio. Ambos os livros são compostos de contos individuais — que variam de histórias de humor rasgado até ficções literárias mais elaboradas — inseridos em uma narrativa mais ampla, aliás como já eram As 1001 Noites.
Na década de 1690, os contos de fadas tradicionais começaram a ser publicados por Charles Perrault. Logo depois, apareceu a primeira tradução moderna para o francês de As 1001 Noites, a qual teria enorme influência nos contos europeus.
As primeiras coleções de contos, próximas do que hoje se conhece, apareceram entre 1810 e 1830 em vários países ao mesmo tempo. Foi o momento em que o conto começou a abandonar a necessidade de passar uma mensagem, uma moral. Notem, por exemplo, que o livro de contos de Cervantes, escrito em 1613, chama-se Novelas Exemplares.
Então veio a virada de Poe
Edgar Allan Poe (1809-1849)
O grande transformador do conto foi Edgar Allan Poe. Ele criou o conto psicológico, o de terror e deu um passo gigantesco na direção do que seria a literatura policial, que depois adquiriu enorme prestígio e tradição. Mas o principal é que ele iniciou a fase em que o contista narra duas histórias ao mesmo tempo. Não há mais uma moral, mas há uma segunda história subterrânea que vai sendo contada sob a superfície. Esta segunda história não é explicitada. A segunda história contada está escondida sob a primeira, que é a que você lê.
Esta tese não é minha, é do brilhante escritor argentino Ricardo Piglia: ele assegura que o segredo de um conto bem escrito é que, na realidade, todo conto conta duas histórias: uma em primeiro plano e outra que se constrói em segredo. A arte do contista estaria em saber cifrar a segunda história nos interstícios da primeira. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de forma elíptica e fragmentária. O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta nos salta aos olhos. Às vezes, o que parece supérfluo para uma história é fundamental para a outra.
Vou dar um exemplo para que fique mais claro. Acho que todos conhecem o conto Missa do Galo, de Machado de Assis, um dos contos mais perfeitos que conheço. A história da superfície mostra o narrador, Nogueira, relembrando uma noite da sua juventude e a conversa que teve com uma mulher mais velha, D. Conceição. Ironicamente, mestre Machado inicia o conto com a seguinte frase: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta”. Esta história é tão, mas tão perfeita, que o narrador nos confessa logo de cara que não entendeu a segunda história. E ele passa a nos encher de detalhes e diálogos. Vemos claramente, sob nossos olhos, o desenrolar da segunda história, contada muito aos pedaços e sutilmente, a de como vive D. Conceição, a de como seu marido a abandona em casa, a de sua falta de afeto, os motivos que ela tinha para tentar seduzir o menino.
Outra coisa é a maestria de Machado. Ele não apenas demonstra tudo isso, como fica claro o momento em que D. Conceição para de tentar, pois, certamente pouco conhecedora da arte da sedução, ela erra a mão e deixa passar o momento. E Machado nos demonstra tudo isso sem frases como “Conceição cansou e desistiu do menino”.
Depois, Joyce inverteu este modelo. Em Dublinenses, parece que a história 2 comenta a 1, às vezes a ataca ou duvida dela.
Lucia Berlin usa e abusa destes artifícios e de outros. Por exemplo, no conto que abre Manual da Faxineira, Lavanderia Angel`s, ela conta duas histórias de superfície. Ambas acontecem dentro de lavanderias self-services, dessas de moedas, uma em Nova York e outra em Albuquerque, no Novo México. As duas histórias estão separadas não somente geográfica como temporalmente. E ambas contam uma terceira história, a da própria autora, mãe de 4 filhos antes dos 30 anos, sempre lavando muita roupa, sempre devaneando muito e causando problemas, como o que ela causa ao apertar botões e reprogramar máquinas que estão lavando as roupas de outrem. Uma mulher inteligente, muito bonita, mas que parece um tanto inadequada ao mundo.
Agora, somos obrigados a falar da biografia de Lucia Berlin porque ela sempre escreveu sobre si mesma.
(continua com uma pequena biografia de Lucia Berlin)