Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XI – Orgulho e Preconceito, de Jane Austen

O teste final de um romance será a nossa afeição por ele, como é o teste de nossos amigos e de qualquer outra coisa que não possamos definir.

E. M. Forster – Aspectos do Romance

Publicado pela primeira vez em 1813, Orgulho e Preconceito é o romance mais popular de uma autora que viveu apenas 41 anos, tendo escrito apenas outros cinco, todos excelentes: Razão e Sensibilidade (1811), Mansfield Park (1814), Emma (1815) e os póstumos A Abadia de Northanger (1818) e Persuasão (1818).

É compreensível a insistência do cinema em adaptar os trabalhos de Austen. Numa camada mais superficial, sua literatura trata de temas simples e universais dentro do cenário da pacata sociedade rural pré-vitoriana. São romances de costumes. As moças estão sempre à procura do amor e de um bom casamento, enquanto os mais velhos pensam no dinheiro e nas conveniências. Todos os conflitos são aparentemente fúteis, mas aí é que entra a autora. Austen tem um tom delicioso para contar suas histórias. Ela não faz comédia, mas é engraçada; expõe dramas, mas não é trágica; é grave, porém leve. A ação é posta em movimento pela tensão variável entre poucos personagens e pela intervenção de outras. O romance não deixa transparecer seu esquema por trás de diálogos absolutamente fluentes e de uma narradora de tom zombeteiro. Num espaço rural limitado, as pessoas fazem visitas, vão a bailes, tomam chá, enganam umas às outras, armam situações e divagam sobre suas vidas e planos. O refinado humor da escritora se manifesta em tudo: ameniza os dramas, diverte-se com os personagens e faz humor.

Em Orgulho e Preconceito, a maior fonte de humor é a convivência doméstica do casal Bennet, pais das cinco irmãs casadouras. Expliquemos a história do romance sem prejudicar a leitura de quem não o conhece. Os personagens principais são Elizabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy. Nada mais típico e copiado: Darcy é um rico nobre e Elizabeth é a moça da pequena nobreza rural inglesa que parece apenas esperar a dádiva de um marido. Só parece. Pois Elisabeth é muito inteligente, crítica e unicamente a culpa em relação à família a faria casar com o primeiro que aparecesse. Ou nem isso, como veremos. Aliás, em sua família, apenas ela, sua irmã mais velha (Jane) e o ultrassarcático papai Bennet têm comportamentos razoáveis. A mãe só pensa em livrar-se das filhas e as outras irmãs — talvez com a exceção da moralista e puritana Mary — podem ser sintonizadas na mesma faixa da mãe. Para catalisar ainda mais a histeria familiar, há o fato de que a lei inglesa proibia que mulheres herdassem quaisquer patrimônios. Isto significa que, quando da morte de Mr. Bennet, a casa e a pequena propriedade familiar iria para um primo e as mulheres da família ficariam sem renda. Ora, você já conhece este enredo? Sim, claro, Austen foi imitadíssima, sem sucesso. Elizabeth e Mr. Darcy se conhecem e a primeira impressão é de antipatia mútua. Nos encontros seguintes, pouco a pouco, Darcy começa a ver em Elisabeth uma moça bem longe das simplesmente casadouras, reconhecendo um espírito crítico que lhe agrada inteiramente.  O Preconceito do título do romance é principalmente dele e é o primeiro a lentamente cair. Darcy chega a declarar seu amor, mas é rechaçado pelo Orgulho de Elizabeth. Como quase sempre, a personagem feminina é muito mais fascinante do que a masculina. Incompreendida ao impor dificuldades a um rico casamento, Elisabeth só encontra respaldo em seu pai, o sarcástico. Mr. Bennet é um excêntrico que se refugia em seus estudos para não ter de conviver com a mulher, mas que apoia incondicionalmente Elisabeth.

Além do conflito principal, Jane Austen traz uma galeria de personagens perfeitamente construídos — a tia hostil, a irmã fujona, Jane — que, acompanhados de seus draminhas, interferem com Darcy e Elisabeth. Os personagens nos proporcionam renovado prazer cada vez que aparecem. Seus diálogos nos conduzem naturalmente de um assunto a outro, fazendo de Orgulho e Preconceito um dos ápices da literatura mundial. Uma vez, ao ser perguntado sobre o maior casal da literatura, votei em Elisabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy, o que provocou certo desconforto em quem esperava Beatrice Portinari e Dante Alighieri, dentre tantos outros. Acharam que eu me utilizara de um lugar-comum. Mas que culpa eu tenho de Orgulho e Preconceito ser um daqueles casos em que qualidade e popularidade permaneceram juntas?

Austen nunca casou, sempre morou com os pais na casa acima (hoje sede do Museu Jane Austen, claro). Escrevia seus romances no quarto e tinha pudor de quando alguém abria a porta — escondia imediatamente seus cadernos. Sua vida não teve grandes acontecimentos e ela ficou para titia. Porém, se você ler por aí que ela teve um caso com sua irmã Cassandra, esqueça. Uma vez, Paulo Francis deu demasiada divulgação a um artigo da imprensa marrom inglesa: Was Jane Austen gay? Era uma mero chute, mas Francis descobriu que Jane dividira por décadas a mesma cama com Cassandra — ambas solteironas — e levou a coisa à sério. Ignorando que este era um costume da época, a ex-batata inglesa do Manhattan Connection fez uma festinha com seus amigos a respeito.

-=-=-=-=-=-

Dois updates mais do que pertinentes:

1. Um novo show da Nikelen nos comentários:

Querido Milton, desde que comecei a comentar aqui, fiz a autocrítica de que meus comentários acabaram ficando longos demais. Porém, desta vez, você me obriga.

Conheci Austen já em idade avançada. Estava no início do doutorado, presa no Rio de Janeiro (entendam isso como quiserem), e, após o dia lendo para a tese, restava apenas a TV aberta e andar por um cubículo de pouco mais de 30 m2. Então, resolvi tapar minhas falhas literárias, fui a um sebo e me muni de Austen, Henri James, e versões adultas de Sabatini e Dumas (até então eu apenas lera as versões juvenís da Ediouro).

Esperava que Austen fosse um pouco massante, qual minha surpresa quando me vi as gargalhadas com Orgulho e Preconceito. Foi mais do que amor à primeira vista, foi o início de uma devoção. Pode parecer exagerado para quem não leu, mas eu explicarei meus pontos. Já até ameacei amigos que me franziram a testa perguntando: “é bom?” Até hoje nenhum dos meus convertidos se arrependeu de dedicar longas e perfeitas horas a Miss Austen. Por isso, adorei sua resenha e concordo quanto à sua escolha quanto ao maior casal da literatura.

E acredito que Elizabeth é, igualmente, uma das mais fantásticas heroínas já escritas. Ela não é uma mocinha romântica (esse papel é da sua irmã Jane). Elizabeth sabe ser maliciosa, dura, debochada, sem deixar de ter um bom coração. Envergonha-se de sua família, mas ama-os a ponto de defendê-los mesmo com seus imensos defeitos. O que poucos notam é o quão revolucionário é este romance para a época e as pessoas para quem foi escrito. Ele é a reivindicação de uma possibilidade de escolha que nem as mulheres, nem os homens tinham em sua época. Embora publicado no início do século XIX, o romance é de fins do século XVIII, e está ancorado numa moral em que a família e as convenções ditam as escolhas e os destinos.

Mas Austen pega seus dois personagens principais – cheios de dúvidas e de contradições, quase incapazes de um comportamento retilíneo – e os faz rebeldes para o mundo em que vivem. Elizabeth é uma rebelde nata. Não quer se submeter a um homem apenas para ter um marido. Ela quer alguém que a respeite como o pai a respeita (um Édipo bem resolvido, eu diria), e tem o apoio do pai – que a considera acima de todas as filhas por ver nela uma mente irmã.

Mas Darcy? Darcy é aparentemente convencional, preso aos costumes e a sua posição (embora de uma antipatia pouco aceita naquela sociedade, mesmo de alguém tão rico. Até Mrs. Bennet o esnoba por isso). E aí, de repente (ou lentamente como narrou o Milton), Mr. Darcy também se torna um rebelde (contra si mesmo, como ele afirma) e passa a querer o que não lhe seria permitido.

O romance não é apenas uma aula sobre o convencionalismo inglês, mas também sobre uma revolução nos costumes, marca desta virada de século. A família nuclear começa a deixar de ser vista como uma entidade reprodutora de pessoas para abastecer linhagens, passa a ser vista como um núcleo formativo de indivíduos e, nisso, as ideias de harmonia e amor conjugal começam a aparecer. É óbvio que se trata de uma mudança de longa duração. Daí o elemento revolucionário do romance de Austen (escrito no princípio desta transformação).

Ahh Milton, eu iria longe aqui, muito longe. Há tanto o que falar de Mr. Bennet e sua posição ambígua de crítica sem nada transformar. Ou da insuportável Lydia, cuja tagarelice vazia faz nossa mente voar para fora do papel e quando retornamos, percebemos que fomos acompanhados no voo por Elizabeth (tão avessa à futilidades quanto nós). Ou ainda falar sobre Mr. Collins, a realista Charlotte ou Mrs. de Bourgh (entulho de um século precedente), cada um deles, um universo de análise.

Vou apenas, se me permite, discordar de dois pontos em sua resenha. Um: Elizabeth não é plebéia. Ela pertence à pequena nobreza rural inglesa que, em tese, poderia sim se casar com a alta nobreza, embora isso não fosse visto como conveniente para quem estava no andar de cima.

Dois: não acho Mary uma precursora dos nerds. Ela é uma jovem moralista, leitora ávida dos textos protestantes e metodistas da época, que tentavam regrar as vidas das pessoas conforme uma rígida postura puritana. Sempre acho uma pena que Mr. Collins não a tenha escolhido, mas… o final feliz não é para todos.

Um grande abraço e obrigada por não deletar este comentário exagerado.

2. E outro da Emma Thompson quando da entrega do Globo de Ouro de 1995. Ela se faz de… Jane Austen:

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): X – Madame Bovary, de Gustave Flaubert

Li Madame Bovary apenas uma vez e acho que não preciso de outra para colocar o livro em minha antologia. Se o ser humano é uma coisa eternamente insatisfeita, aqui temos o microcosmo da infelicidade feminina e da desilusão romântica. Não vou contar em detalhes a história do livro, mas esta foi tão imitada e recontada que não guarda mais nenhuma novidade. É o romance que fundou o realismo em 1857 e, assim como a cabeça do Quixote estava cheia de romances de cavalaria, a de Emma Bovary estava lotada de romances sentimentais. Emma casa-se com o médico Charles Bovary, insípido e apaixonado por ela. O tédio insere-se de tal forma na relação que ela passa a detestar o marido. A progressão do tédio e sua transformação em desinteresse e depois ódio são contadas por um autor absolutamente impecável e no perfeito domínio de seus meios. Nada parece estar fora do lugar, nenhuma palavra. Dividido em três partes, como um concerto, demonstra como Emma permanece insatisfeita mesmo após o nascimento da filha e de seus apenas prometedores adultérios.

Na época em que foi publicado, Madame Bovary causou escândalo e foi julgado por obscenidade. Quando perguntaram a Flaubert quem era a protagonista que tinha sido descrita com tamanha perfeição e riqueza de detalhes, o autor respondeu ao tribunal com a célebre frase que diz tudo: “Madame Bovary c`est moi!”.

E era. Flaubert passou mais de uma década observando, apurando, polindo, reescrevendo e inaugurando o realismo na literatura. Flaubert foi absolvido no ridículo processo, mas não foi perdoado pelos puritanos, que não conseguiam admitir o tratamento cru dado ao tema do adultério e pelas críticas implícitas ao clero e à burguesia, ambos desprezados por Flaubert. Mas esqueçam o fundador do realismo, o processo e tudo o que cerca Bovary. O livro é antes de tudo um texto admirável, construído com arrebatador virtuosismo; um texto trabalhadíssimo onde não se notam sinais do suor do autor. Tudo flui, tudo ganha seu devido ritmo e todo detalhe jogado ali é significante e contribui para a narrativa. Talvez Madame Bovary seja a maior das aulas práticas de narração.

James Wood escreveu em Como funciona a ficção que “Tudo começa e tudo termina com Flaubert”. Discordo. A literatura moderna recebe notável impulso com Flaubert, mas já começara com Stendhal. E não termina no autor de Bovary, como diz a frase de efeito de Wood. Porém, para usar uma palavra que está na moda, Madame Bovary é um romance verdadeiramente incontornável.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): IX – Berlim Alexanderplatz, de Alfred Döblin

Berlim Alexanderplatz (1929) tem como sub-título A história de Franz Biberkopf. Nada mais  correto, é isto mesmo que o livro conta com surpreendente riqueza de detalhes e de vozes. A história se passa na Berlim do final dos anos 20 do século passado. Na época da ação, a Alemanha estava no período entre guerras. A Primeira Guerra Mundial acabara há 11 anos e  a economia alemã recuperava-se lentamente dentro da República de Weimar. Menos de cinco anos depois viria o governo nazista. O livro inicia com a saída de Biberkopf da prisão de Tegel, onde ficara por quatro anos após matar a amante.

A vida pós-prisão de Biberkopf é narrada de forma estupenda através de vários narradores e com o auxílio de notícias retiradas de jornais da época. Em montagens impressionistas, também são utilizados dados estatísticos, placas de rua, propagandas, canções da época, informações sobre tarifas. O personagem principal nada tem de especial — é um sujeito grande e forte que vive de biscates numa Alemanha empobrecida a qual não compreende e que é indiferente a ele. Biberkopf cumpriu sua pena e, na volta, tenta manter-se na linha.

Escura, grave e escrita em tom menor, a obra-prima de Döblin tem a característica de ser muito visual. Tanto que Rainer Werner Fassbinder a reconstruiu minuciosamente no cinema em filme de 15 horas e 41 minutos. O filme — que também é excelente — é uma transposição COMPLETA e arrebatadora do livro. Vale a pena ver — aliás, além da biblioteca, é o que estou fazendo nestes dias …

Para ler Berlim Alexanderplatz há que ter atenção: apesar de muito claro e linear, o autor mistura as falas dos personagens com a narrativa e os pensamentos dos personagens. Com a leitura, fica cada vez mais fácil. Apesar de ter um personagem principal, Berlim Alexanderplatz é um irrepetível mosaico polifônico onde várias vozes e informações se cruzam para contar uma história do submundo da Berlim do final dos anos 20. Nada dá muito certo para Biberkopf, herói, símbolo e vítima da cidade, mas o livro de Döblin é uma espetacular lição de arte narrativa.

P.S. — Caminhante Diurno, uma antiga discussão nossa: aqui temos um enorme romance e um filme de igual tamanho. OK, o filme tem 941 minutos, mas e daí?

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): VIII – Uma Confraria de Tolos, de John Kennedy Toole

Como os que aqui me antecederam, também vou negar o título da coluna. Não se trata do melhor livro que li até hoje, mas certamente o colocaria numa lista de dez melhores. Pois Uma Confraria de Tolos é uma obra-prima absoluta, uma obra-prima total e injustificadamente pouco lida em nosso país.  Duvida? Procure no Google críticas a respeito de A Confederacy of Dunces para conferir que não estou nada sozinho em minha avaliação.

Tenho uma velha edição dos anos 80 da Record, que relançou o livro recentemente na coleção BestBolso. Certa vez, ao citar o livro em meu blog, recebi um comentário de uma leitora que morava no interior da Paraíba. Ela me contou que antes morava em São Paulo, onde lera a Confraria nos anos 80. O livro ficara por lá, mas agora tinha um filho que era um grande leitor e ela PRECISAVA apresentar o livro a ele.

Não sou uma pessoa que mereça a canonização, mas sei reconhecer alguém que precisa de auxílio. Fiquei comovido com o pedido, pois sei a falta que a leitura da Confraria faz a alguém que conheça o livro. Como a Estante Virtual ainda não existia, empreendi uma busca entre os sebos de Porto Alegre. Encontrei o livro e o mandei para a leitora aflita. Ela me agradeceu dizendo que me amava, adorava e que intercederia por mim nem que fosse no juízo final, coisa na qual ela não acreditava, mas que enfim, daria um jeito de interceder.

O tamanho do erro de negligenciar Uma Confraria de Tolos é difícil de caracterizar, mas vamos lá. Começarei pelo título. John Kennedy Toole devia estar consciente da qualidade de seu romance, senão não basearia o título de seu romance de estreia numa citação clássica de um dos maiores escritores de todos os tempos, Jonathan Swift: “Quando um verdadeiro gênio aparece no mundo, você vai reconhecê-lo por um sinal: todos os tolos se juntam contra ele”. Outro motivo de buscar inspiração em Swift é que Toole escreve um romance como eram as histórias do inglês: hilariante de cabo a rabo.

Mas também é muito triste, muito sério, louco, amargo e especialmente inteligente. Uma genial tragicomédia.

Seu protagonista, o hoje célebre — fora do Brasil — Ignatius J. Reilly, é um ser excêntrico, às vezes repugnante. Ele está por seus 30 anos, é um glutão obeso e mal-humorado que mora com a mãe e vive amaldiçoando o mundo moderno. Ignatius leva a frase de Swift a sério: ele é um anti-herói nascido na época errada, que se considera sempre perseguido por idiotas.

Uma Confraria de Tolos se passa em New Orleans nos anos 60. Como o romance Dom Quixote, é picaresco. E, se o personagem de Cervantes ia atrás de aventuras, Reilly é um preguiçoso, excêntrico e idealista atrás de emprego. Durante suas caminhadas, às quais foi atirado pela mãe, que não o suporta mais em casa — e que o acusa de encher a atmosfera de gases intestinais — , ele vocifera contra tudo e contra todo o tipo de modernidade. Walker Percy, em seu prefácio para o livro, descreve Ignatius como um “pateta genial”. Trata-se de um passadista jovem. Desdenha a cultura da modernidade, especialmente o pop. Tal desprezo torna-se sua obsessão: por exemplo, ele vai ao cinema a fim de zombar dos filmes e expressar sua indignação com a falta de “teologia e geometria” (?) do mundo contemporâneo.

Ele prefere a filosofia escolástica da Idade Média, em geral, e a filosofia de Boécio, em particular. No entanto, aprecia muitos dos confortos e conveniências modernas, enquanto observa o funcionamento de sua válvula pilórica, que reage fortemente a todos os incidentes.

Os outros personagens principais do livro, Myrna Minkoff e Irene Reilly, são esplendidamente construídos e, se é difícil dizer mais, explico o motivo: Uma Confraria de Tolos é o mais engraçado dos livros e não devo contar suas piadas neste espaço. Por exemplo, seus encontros com a polícia… Não, melhor não ir adiante.

Reilly tem muito de Toole. O autor também sofreu com uma mãe dominadora e tinha uma visão pessimista de um mundo que não entendia.

Sem encontrar uma editora para publicar o livro e sofrendo de graves crises de depressão, Toole cometeu suicídio em 1969, aos 31 anos. Sua mãe encontrou uma cópia do manuscrito entre os papéis do filho e lutou por muitos anos para conseguir uma editora. Uma Confraria de Tolos foi finalmente publicado nos Estados Unidos em 1980. No ano seguinte, Toole ganhou um Pulitzer póstumo. Nada mais merecido.

Durante o verão passado, minha filha de 17 anos pegou casualmente o livro em nossa biblioteca. Dias depois, ela voltou com uma pequena e significativa frase: “Pai, foi o melhor livro que li até hoje”.

Eu não disse?

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): III – Baía dos Tigres, de Pedro Rosa Mendes

Oh, mas quem é Pedro Rosa Mendes para estar numa lista de melhores livros? Bem, em primeiro lugar, o autor é um esplêndido escritor e jornalista português; em segundo lugar, minha lista não guarda ordem de precedência. Agora que já tomei esta medida profilática de me defender de meus sete leitores amantes dos grandes clássicos, vou tratar de explicar porque este livro é IMPRESSIONANTE.

Este livro é sobre coisas simples: a tranquilidade do medo e a vitalidade da morte. (…) A razão para tal projeto era a mais nobre de todas, ou seja, nenhuma em especial. As duas frases grifadas fazem parte da nota introdutória do livro. A que projeto refere-se Rosa Mendes? Em junho de 1997 ele chegou a Luanda, em Angola, às margens do Atlântico, com a ideia de atravessar a África até chegar a Quelimane, em Moçambique. No caminho, as sangrentíssimas guerras tribais e entre os países da região, minas por todo lado, além da pobreza absoluta, tanto material quanto moral. E fome. Para temperar um pouco mais a coisa, o autor descobre duas coisas em Luanda, uma boa e uma ruim. A boa: sua mulher lhe avisa que está grávida em Portugal, mas que ele terá o tempo necessário para a reportagem, pois seu rebento nascerá apenas dali a seis ou sete meses; a ruim: o prognóstico que recebe de todos com quem fala de seu plano: você não sobreviverá.

A voz do autor é serena e elegante. Não é uma história contada em ritmo frenético, o andamento é o do humanista que deseja ouvir e compreender todos os envolvidos. Estive na palestra de Rosa Mendes na Flip de 2005. Ele estava com Jon Lee Anderson — o americano falava sobre a Guerra do Iraque e o português sobre a Guerra de Angola — e Anderson fez uma pergunta curiosa ao português: Baía dos Tigres recebeu muitos prêmios destinados a livros de ficção, por quê? A resposta foi típica da pessoa modesta que pareceu ser Rosa Mendes. Ele deu muitas voltas até dizer que era em função da linguagem do livro. E, diante da insistência de Anderson, ele acabou deixando escapar: ora, é que acharam que era bem escrito e não devia misturar-se a textos jornalísticos. Anderson respondeu com a gargalhada de quem já sabia antecipadamente a resposta.

Para dar ideia do que é este livro — que reencontrei na semana passada numa estante da Siciliano –, vou resumir algumas das histórias. Como a do encontro com um técnico francês que estava no país para testar o efeito das minas. Umas explodiam assim, outras assado. Umas eram cedidas a um grupo e, puxa, matavam mesmo; então recebi outras e repassei ao lado contrário. Essas eram melhores, as pessoas ficavam efetivamente mutiladas, deixavam os caras bem feridos, davam um trabalhão às equipes. Querem mais? Que tal a história das famílias de angolanos que operam suas vacas a fim de tirar-lhe alguns bifes, depois as costuram com alguns pontos e tratam de recuperá-la, pois não podem sobreviver sem elas? Por falar em mutilações, que tais as que são feitas na genitália feminina das africanas? Mas o melhor do livro é a narrativa dos interesses envolvidos. Portugal, Estados Unidos, Cuba, Brasil (Petrobrás e Odebrecht), mais os de grupos armados como UNITA, MPLA, FNLA, FRELIMO, RENAMO, etc. Sobre tudo isso, a total falta de observadores internacionais.

É. Onde não há dinheiro, as “forças de paz” não aparecem e os direitos humanos não interessam. Não ocorre nem a venda da  “democracia salvadora” e de eleições livres. Um grande livro.

De Luanda (imagem recente retirada de um site angolano) ...
... a Quelimane.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): II – Moby Dick, de Herman Melville

Call me Ishmael. Assim inicia o espantoso livro do americano Melville, originalmente publicado em três fascículos por uma editora londrina, no ano de 1851. Mody Dick, em meio a reflexões e narrativas sobre a vida no mar, conta a história do capitão Ahab, o qual deseja incondicionalmente matar o cachalote Moby Dick, o qual destruiu todos os barcos que tentaram caçá-lo e é responsável por arrancar-lhe a perna.

O interesse da tripulação do Pequod é a obtenção de lucro a partir da pesca de baleias. Mas o capitão Ahab tem o objetivo particular de se confrontar com Moby Dick, o Cque, é claro, é temido pelos baleeiros. A grandiosidade polifônica que esta história de obstinação alcança supera em muito qualquer sinopse que possa se escrever. É um livro profundamente humano, profundamente irracional, a descrição de um embate homérico do homem contra o irracional, do homem contra a natureza, do homem contra suas fragilidades. É um livro que passa lenta e inexoravelmente do âmbito humano para o cósmico.

Ishmael é um jovem que decide trocar uma vida segura em terra pela aventura em alto mar. Após algumas experiências, embarca em um baleeiro de Nantucket, o Pequod. É Ishmael quem narra a viagem e a loucura do capitão tomado pela ideia de vingança. A grande baleia branca que escapa a todos os perseguidores levou-lhe a perna e a paz. Enquanto não matá-la, Ahab não desistirá, mesmo enfrentando uma tripulação que apenas quer fazer seu trabalho e voltar para casa.

A recepção ao livro foi fria. Desigual, arrastado, crossover, um romance ensaístico com problemas estruturais evidentes, dizia-se. Passadas algumas décadas, o livro foi visto como antecipatório — um dos primeiros a utilizar o hibridismo entre gêneros, a considerar a realidade como um caos caleidoscópico, a romper com as amarras do romance clássico do século XIX. A baleia branca de Melville pode ser o que quisermos que ela seja:  a morte, deus, o mal, o destino. A bordo do Pequod estamos todos nós.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): I – Doutor Fausto, de Thomas Mann

Começo esta antologia anárquica — a ordem em que os livros aparecem não reflete nenhum juízo comparativo — por um livro que toca muito de perto a quem, como eu, gosta de música. Pois o Doutor Fausto de Mann, além de possuir imenso valor literário, é uma espécie de bíblia reverenciada pelos amantes da música. No almoço de ontem, eu estava conversando com meu filho a respeito da obra-prima de Sokurov quando ele disse: “não existe um capítulo XXV no filme”. Ele se referia à celebre conversa de Adrian Leverkühn como o demônio. Eu logo lembrei de outro capítulo, o oitavo, onde o professor Kretzschmar explica a Sonata Op. 111, de Beethoven. Percebem? O que desejo dizer é Doutor Fausto é um livro citado capítulo por capítulo, tal a impressão que causa a quem se apaixona por ele. É o mesmo que fazemos com a Parábola de Grande Inquisidor de Os Irmãos Karamázovi. Claro que ele pode e deve ser fruído também por quem sofre de amusia, assim como os Karamázovi pode ser lido por quem não deseja matar o pai, mas amar a música ajuda.

Narrada por um amigo, o professor Serenus Zeitblom, Doutor Fausto é a história do músico Adrian Leverkühn que, como o Fausto da lenda, vende a alma ao Demônio. Como contrapartida, ganha por alguns anos uma absoluta genialidade musical, suficiente para a composição de um conjunto de obras imortais. Publicado em 1947, este livro faz parte do período final de Thomas Mann, sendo tecnicamente seu romance mais ousado, no qual música e política, realidade e símbolo, o bem e o mal, estão entrelaçados de forma  impressionista e irrepetível. Sempre é bom ressaltar que a tradução da Nova Fronteira é do saudoso e competentíssimo Herbert Caro, que proporcionou grandes manhãs de sábado a um grupo de jovens que se encontrava na King`s Discos da Galeria Chaves em Porto Alegre para falar sobre… música e literatura. O que aprendi com este sábio não tem tamanho, mas esta é outra conversa.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!