Obviamente, isto será uma espécie de “Eu e a Música”. As opiniões que emito são perecíveis até para mim mesmo. O que posso é repassar minha grande vivência como ouvinte. Mais: ao iniciar esta série, estava em dúvida sobre o formato a escolher. Poderia estabelecer as clássicas divisões de música antiga, barroca, clássica, romântica, primeiros nacionalistas, etc. e preenchê-las com as obras principais, mas fui seduzido pelo formato cronólogico simples, pois dá maior margem a discussões e demonstra claramente os compositores tardios e os que estiveram a frente de seu tempo.
Farei uma longa lista de obras e, quando achar necessário detalhar algum fato sobre um autor importante, paro e escrevo, ora. Um blog é um exercício de liberdade e, assim como posso escolher um assunto tão impopular como a música erudita, posso mudar de idéia a qualquer momento.
IMPORTANTE: muitas das obras aqui listadas estão disponíveis na Internet. Como usuário do P.Q.P. Bach, utilizarei preferencialmente este blog.
1607 – Orfeu, de Claudio Monteverdi (1567-1643). Talvez seja a primeira ópera digna deste nome. Foi composta para um casamento na corte dos Gonzaga. Abaixo, um afresco da Camera degli sposi.
Monteverdi foi um renovador muito contestado e perseguido. Apesar de ainda submetido ao gosto da época pela mitologia grega, Orfeu é uma grande novidade. Foi a primeira vez que a música e o contexto sonoro contribuíram de forma eficiente para contar uma história. Alban Berg, que compôs duas grandes óperas e que não era exatamente um idiota, escreveu: “Monteverdi soube articular a música, de forma que ela estivesse consciente a cada instante da sua função no interior do drama”. Não é fácil. O pessoal da ópera gosta muito de DVDs – a encenação é importantíssima para eles – e há boas gravações, mas, para quem prefere música em CD, a gravação da Naxos custa uns R$ 50,00 e é muito boa. Dois CDs, OK? Aqui.
1650 – Saul, Saul, was verfolgst du mich? (Saulo, Saulo, por que me persegues?) e Freue dich des Weibes deiner Jugend (Encontra a felicidade na mulher da tua juventude), de Heinrich Schütz (1585-1672). Estas são pequenas obras-primas pinçadas dentro das muitíssimas deste barroco alemão. Cada uma delas tem duração de menos de quatro minutos, mas duvido que alguém, depois de ouvi-las, possa esquecer do desespero da primeira e da alegria da segunda. A gravação de John Eliot Gardiner para a Archiv é uma jóia. O Magnificat, também de Schütz, poderia estar nesta lista. Abaixo, a cara de louco manso deste grande compositor.
1689 – Dido e Enéas, de Henry Purcell (1659-1695). Aqui, já chego ao terreno de um de meus heróis prediletos e apesar de suas extraordinárias canções, Dido e Enéas foi sua maior obra. É inacreditável que eu, que não gosto muito de óperas, tenha iniciado esta lista com duas, mas o que fazer? A ária do lamento de Dido é de espantosa beleza e o dueto das bruxas mostra o talento cômico que Purcell fez aflorar em dezenas de canções. É considerada por muitos musicólogos a maior obra composta por um inglês até hoje. É quase incompreensível o fato de Purcell ser um fenômeno solitário, nascido num país em que os grandes homens sempre insistiram em usar as letras como meio de expressão. Aqui.
1700 – Sonatas para Violino, Op.5, de Arcangelo Corelli (1653-1713). Os italianos sempre gostaram de virtuoses, sejam vocais ou instrumentais. Nestas sonatas, Corelli demonstra que a música virtuosística pode ter conteúdo. Infelizmente, esta fórmula parece ter sido esquecida, principalmente por um certo violinista de nome Paganini, que viria no século seguinte. A gravação que conheço é muito antiga: é da Archiv com o violinista Eduard Melkus e a Capella Academica Wien. Aqui.
É chegado o momento em que as obras ficarão divididas em sua maioria entre três compositores: Johann Sebastian Bach (1685-1750), Georg Friedrich Handel (1685-1759) e Antonio Vivaldi (1678-1741). Só que Bach foi tão maior que vale uma explicação. É difícil compreender quem foi o ser humano Bach. Seu saber musical, sua capacidade de invenção e sobretudo de combinação tornam-no um real prodígio. Mas era alguém de extrema modéstia, que parecia que não estar criando obra alguma e que não interessava-se por preservá-la. Considerava-se somente um artesão que dominava sua profissão. É incrível que os originais dos Concertos de Brandenburgo tenham sido encontrados, anos depois, como papel de embrulho numa loja comercial… É que Bach não se considerava um gênio, nunca escreveu uma linha de música para exprimir-se, como farão depois os românticos e os blogueiros. Fora de seu ambiente familiar, era conhecido apenas como um virtuose do órgão, mas era um tremendo erudito que não ignorava estar numa encruzilhada de diferentes tradições musicais – a francesa, a italiana e a alemã – e tratou de fundi-las, criando uma síntese de enorme potência que resultou numa gramática própria. Telemann era considerado o maior compositor da época e Bach – fato inacreditável – concordava com isto. Foi esquecido. Esquecido e redescoberto por Haydn, Mozart e Beethoven. Desde então, tornou-se uma espécie de Deus Pai da Música. Não é um exagero, sua obra é tão grande e rica que quase todos os que vieram depois renderam-lhe homenagens. Olho para meus CDs de Bach e fico cansado, imaginando o enorme trabalho – principalmente de adjetivação – que terei pela frente. O homem viveu 65 anos escrevendo maravilhas. Vamos começar?
1711 – Cantata Nº 106 (Actus Tragicus), de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Escrita para servir de réquiem no enterro de um reitor. Sua lenta introdução, surpreendentemente a cargo das flautas doces, trazem uma música de tristeza inconsolável. As árias que a sucedem estão entre as melhores de Bach. Aqui.
1712 – Concerti Grossi, Op. 6, Nº 1-4, de Arcangelo Corelli (1653-1713). O primeiro Allegro do Concerto Nº 4 é a mais feliz das músicas. Mas o restante dos concertos não fica nada a dever. Uma boa gravação é da Deutsche Harmonia Mundi, com La Petite Bande, regida por Sigiswald Kuijken. Aqui.
1720 – As Seis Suítes para Violoncelo Solo, de Johann Sebastian Bach (1685-1750). A prova de que talvez o mundo seja um lugar mau é que há pessoas adultas que nunca tiveram contato com as Suítes para Violoncelo e mesmo assim estão vivas e respirando. Em minha opinião, o violoncelo é o instrumento de mais belo timbre que existe e Bach, fiel a sua obsessão de explorar temas e características de um instrumento até seus limites, dá voz clara a contrapontos, a ritmos inimagináveis, a timbres inesperados, de forma que pensamos estar ouvindo a mais de um instrumento. É espantoso! A melhor gravação? Há muitas, mas a vencedora é a de Bruno Cocset. A do holandês Anner Bylsma também vale a pena. Esqueçam Rostropovich, não é sua área. Aqui.
1721 – Os 6 Concertos de Brandenburgo, de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Quando tinha 13 anos, o Concerto de Brandenburgo Nº 3 começou a tocar no rádio. Estava tomando banho e o barulho do chuveiro me atrapalhava. Desliguei o chuveiro e, apesar do inverno, não senti muito frio, pois era vital ouvir a música até o final para saber do que se tratava. Meu pai me dava um porre de música romântica em casa e nunca tinha ouvido aquele concerto. O tema principal não era longo, mas transformava-se em outra coisa a cada repetição e tudo o que eu desejava é que tais mutações não parassem nunca. Quando perguntei a meu pai sobre este concerto, ele começou a cantarolá-lo e mostrou-me um disco. Ele não furou, sobrevivendo a incontáveis audições. É a melhor música barroca orquestral. São concertos muito diferentes entre si, cada um com personalidade própria. Há um concerto grosso no estilo de Handel (Nº 1), há um concerto para cravo e orquestra (Nº 5), há um inusitado concerto para uma orquestra sem violinos (Nº 6), etc. Cada um desses concertos é um mundo à parte, que nada deve a seus vizinhos – e que nada deve a ninguém. É difícil encontrar música mais perfeita. Aqui.
Obs.: Para esta série, consultei e consultarei algumas publicações, mas principalmente a excepcional revista Gramophone, a História de Música Ocidental, de Jean & Brigitte Massin e os úteis apêndices da Nova História da Música, de Otto Maria Carpeaux.
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