Este volume é uma coletânea de dois contos de James Joyce — Os Mortos e Arábias, ambos de Dublinenses — e do capítulo final de Ulysses, o monólogo de Molly Bloom. Comprei o livro em razão do monólogo — queria relê-lo, mas não queria carregar o pesado Ulysses completo por aí — só que também gostei muito de revisitar os dois contos, que são perfeitos em sua melancolia.
Os Mortos é o último conto da coleção Dublinenses de 1914. É de longe a história mais longa da coleção, quase longa o suficiente para ser descrita como uma novela. A história lida com temas de amor e perda, além de levantar questões sobre a natureza da identidade irlandesa.
Arábias conta a paixão de um menino pela irmã de seu amigo. Narrado em primeira pessoa, o leitor mergulha na vida monótona da North Richmond Street, que parece ser iluminada apenas pela imaginação das crianças que, apesar da crescente escuridão do inverno, insistem em brincar “até que seus corpos brilhassem”. Esses meninos estão à beira da consciência sexual e, impressionados com o mistério de outro sexo, estão famintos por conhecimento.
Difícil imaginar duas histórias que sejam mais bem escritas. E estão dentro de um formato rigorosamente clássico.
Já o Monólogo de Molly Bloom traz o Joyce revolucionário de Ulysses. Aqui, temos mais uma torrente do que um fluxo de consciência. É um texto implacável e sem pontuação. No final do gigantesco romance experimental de 1921 de James Joyce, depois que seu herói finalizou suas andanças e voltou para casa, sua esposa, Molly, dá a última palavra. Ou melhor, dá muitas, muitas palavras. “Sim” é o primeira delas e também a última: “e sim eu disse sim eu quero Sim” – uma frase tão famosa que você pode conhecê-la mesmo que não seja familiarizado com o livro.
Molly Bloom é a esposa de Leopold Bloom, o personagem central do livro. Ela nasceu em Gibraltar em 1870, filha de um oficial militar irlandês e um gibraltino de ascendência espanhola. Em Dublin, onde o romance se passa, Molly é uma conhecida cantora de ópera. Molly e Leopold tem um casamento já sem sexo, mas Molly ainda está em seu auge sexual e dormiu com muitos homens — fato de que seu marido está bem ciente.
O solilóquio de Molly começa depois que Leopold se acomoda na cama, murmurando algo sobre ovos. Na cama, deitada ao lado do marido, Molly não consegue dormir. Sua mente começa a vagar dos ovos de Leopold para os eventos do dia anterior (16 de junho de 1904) e para memórias mais distantes. O solilóquio, de aproximadamente 22.000 palavras, consiste em oito “frases” extremamente longas. Os pensamentos de Molly vão da saúde de Leopold para a lembrança de suas tentativas bastante lamentáveis de infidelidade e para as memórias de suas próprias aventuras sexuais muito mais gratificantes. Naquele mesmo dia, ela estava com seu amante mais recente, Blazes Boylan, um empresário de shows, para o que seu marido sabia não ser uma reunião de negócios. Molly descreve seus encontros sexuais em detalhes. (Suas palavras, especialmente as referências a funções excretoras e sexuais, encheram páginas de relatórios da censura de diversos países na primeira metade do século XX).
A mente de Molly também volta para sua infância em Gibraltar, ou avança para sua preparação para as músicas que ela cantará em uma próxima turnê. Quando ela finalmente adormece, seus últimos pensamentos voltam-se para seu primeiro encontro com Leopold, e no momento em que ela soube que estava apaixonada por ele.
Em uma carta de 1921, Joyce disse: “A última palavra (humana, humana demais) é deixada para Penélope”. descrita como “a palavra feminina” e que ele disse desejar indicar “aquiescência, abandono, relaxamento, o fim de toda resistência”.
O Brasil sempre privilegiou o conto, mas os europeus nunca deram grande importância ao gênero. O Caderno de Cultura Babelia do jornal espanhol El País publicou uma notícia que fala sucintamente da recente valorização do conto naquele país, pedindo para que autores espanhóis citem seus contos favoritos da literatura não espanhola. Curiosamente, nenhum conto foi citado duas vezes. Depois, coloco uma relação de contos favoritos deste blogueiro.
Relatos universales que no hay que perderse
Escritores, editores y libreros que han participado en este especial sobre el renacer y la nueva valoración del cuento en España comparten con los lectores títulos de sus cuentos favoritos en español y otras lenguas.
— El llano en llamas, de Juan Rulfo, y Bartleby, el escribiente, de Herman Melville (Berta Marsé).
— Carta a una señorita en París, de Julio Cortázar, y La dama del perrito, de Antón Chéjov (Cristina Cerrada).
— La Resucitada, de Emilia Pardo Bazán, y El bailarín del abogado Kraykowsky, de Witold Gombrowicz (Cristina Fernández Cubas).
— El Aleph, de Jorge Luis Borges, y Una casa con buhardilla, de Antón Chéjov (Eloy Tizón).
— El espejo y la máscara, de Jorge Luis Borges; Una luz en la ventana, de Truman Capote, y Donde su fuego nunca se apaga, de May Sinclair (Fernando Iwasaki).
— Bienvenido, Bob, de Juan Carlos Onetti; El álbum, de Medardo Fraile; En medio como los jueves, de Antonio J. Desmonts; Alguien que me lleve, de Slawomir Mrozek; Los gemelos, de Fleur Jaeggy; La colección de silencios del doctor Murke, de Heinrich Böll, y Guy de Maupassant, de Isaak Babel (Hipólito G. Navarro).
— Un tigre de Bengala, de Víctor García Antón, y La revolución, de Slawomir Mrozek (José Luis Pereira).
— No oyes ladrar los perros, de Juan Rulfo; El veraneo, de Carmen Laforet; La corista, de Antón Chéjov, y Rikki-tikki-tavi, de Rudyard Kipling (José María Merino).
— Continuidad de los parques, de Julio Cortázar, y El nadador, de John Cheever (Juan Casamayor).
— El Sur, de Jorge Luis Borges; Parientes pobres del diablo, de Cristina Fernández Cubas; Tres rosas amarillas, de Raymond Carver, y La dama del perrito, de Antón Chéjov (Juan Cerezo).
— El infierno tan temido, de Juan Carlos Onetti, y Los muertos, de James Joyce (Juan Gabriel Vásquez).
— Las lealtades (de Largo Noviembre de Madrid), de Juan Eduardo Zúñiga, y El nadador, de John Cheever (Miguel Ángel Muñoz).
— Continuidad de los parques, de Julio Cortázar, y William Wilson, de Edgar Allan Poe (Patricia Estebán Erlés).
— Ojos inquietos, de Medardo Fraile; Noche cálida y sin viento, de Julio Ramón Ribeyro, y Míster Jones, de Truman Capote (Pedro Ugarte).
Minha relação saiu um pouco grande, apesar de ter sido escrita improvisadamente. Mas se pensasse mais, talvez não mudasse demais. Vamos a ela.
Contos estrangeiros:
— A Viagem, de Luigi Pirandello;
— O Velho Cavaleiro Andante, de Isak Dinesen (Karen Blixen);
— Ponha-se no meu lugar, de Raymond Carver;
— A Fera na Selva, de Henry James;
— Bartleby, o Escrivão, de Herman Melville;
— A Enfermaria Nº 6, de Anton Tchékhov;
— Queridinha (ou O Coração de Okenka), de Anton Tchékhov;
— A Corista, de Anton Tchékhov;
— A Dama do Cachorrinho, de Anton Tchékhov;
— Olhos Mortos de Sono, de Anton Tchékhov;
— Os Sonhadores, de Isak Dinesen (Karen Blixen);
— A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói;
— Uma Alma Simples, de Gustave Flaubert;
— As Jóias, de Guy de Maupassant;
— Os Mortos, de James Joyce;
— O Licenciado Vidriera, de Miguel de Cervantes;
— O Artista da Fome, de Franz Kafka;
— A Colônia Penal, de Franz Kafka;
— A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe;
— Berenice, de Edgar Allan Poe;
— William Wilson, de Edgar Allan Poe;
— O Primeiro Amor, de Ivan Turguênev;
— Três Cachimbos, de Ilya Ehrenburg;
— A Loteria da Babilônia, de Jorge Luis Borges;
— A procura de Averróis, de Jorge Luis Borges;
— O jardins dos caminhos que se bifurcam, de Jorge Luis Borges;
— Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, de Jorge Luis Borges.
Contos brasileiros:
— Missa do Galo, de Machado de Assis;
— Uns Braços, de Machado de Assis;
— Noite de Almirante, de Machado de Assis;
— Um Homem Célebre, de Machado de Assis;
— A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa;
— Meu tio, o Iauaretê, de Guimarães Rosa;
— A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa;
— O Duelo, de Guimarães Rosa;
— Guapear com Frangos, de Sérgio Faraco;
— O Voo da Garça-pequena, de Sergio Faraco;
— Corvos na Chuva, de Ernani Ssó;
— Contrabandista, de João Simões Lopes Neto;
— Baleia, de Graciliano Ramos (não é um conto, mas pode funcionar como tal);
— O homem que sabia javanês, de Lima Barreto;
— O Vitral, de Osman Lins;
— O Afogado, de Rubem Braga;
— Venha Ver o Pôr do Sol, de Lygia Fagundes Telles;
— Feliz Aniversário, de Clarice Lispector;
— Uma Galinha, de Clarice Lispector;
— O Japonês dos Olhos Redondos, de Zulmira Ribeiro Tavares.
O seminário sobre Cinema e Psicanálise da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), O Divã e a Tela, completa dez anos este mês. O Sul21 conversou com os coordenadores do projeto, Enéas de Souza e Robson de Freitas Pereira, numa mesa do Restaurante Santo Antônio, onde, para decepção dos garçons da casa, eram servidas carradas de observações a respeito de clássicos e não-clássicos da tela ao invés de carnes e bebidas.
Enéas é crítico de cinema, psicanalista e economista, tendo trabalhado como pesquisador da FEE/RS. Robson exerce a clínica psicanalítica e participa ativamente do diálogo entre psicanálise e cultura como autor. Os seminários da dupla normalmente consistem de uma introdução, em que cada um dos coordenadores fazem uma rápida exposição sobre o filme, a apresentação completa do mesmo, um intervalo e uma discussão pós-filme. A próxima sessão de O Divã e a Tela — a última deste ano — será em 28 de novembro com Glória feita de Sangue, de Stanley Kubrick. As sessões ocorrem sempre nas últimas sexta-feiras do mês, na sede da APPOA, na Rua Faria Santos, 258.
Inicialmente, os filmes apresentados obedeciam apenas à preferência dos coordenadores do Seminário. Depois, passaram a ser escolhidos de acordo com o trabalho desenvolvido pela APPOA durante o ano. Atualmente, além deste critério, diz Robson, são utilizados outros dois: o de “dar espaço ao cinema nacional e seus diretores” e também aos “filmes clássicos, importantes na história do cinema”.
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Sul21 – O Divã e a Tela completa 10 anos. Como surgiu a ideia?
Enéas – Ali por volta de 2004 eu comecei a pensar na hipótese da gente fazer um evento que relacionasse cinema e psicanálise. Principalmente porque eu tinha os pés nas duas áreas, e eu, o Robson e outros amigos, conversávamos muito sobre cinema. Então eu propus ao Robson um encontro e a coisa começou.
Sul21 – Tu já fazias alguma coisa na APPOA, não, Robson?
Robson – Sim, antes mesmo da APPOA, eu fazia parte de um grupo que se chamava Centro de Trabalho e Psicanálise. E nós fazíamos discussões periódicas sobre cinema e psicanálise.
Sul21 – Mas isso foi bem antes de 2004, não é?
Robson – É, nos anos 90.
Enéas – Na época tinha muita coisa pipocando. Se um filme era importante de se discutir, a gente discutia dentro um seminário. Então a ideia foi fazer alguma coisa mais sistemática, um trabalho que reunisse seis ou sete filmes por ano.
Robson – Nossas reuniões ocorrem entre abril e novembro, sempre na última sexta-feira do mês. Geralmente são sete ou oito filmes, no máximo. A gente usa dezembro e janeiro para conversar sobre a programação do ano seguinte. Porque nós procuramos, de alguma maneira, colocar o foco não só sobre o diálogo entre cinema e psicanálise, mas também colocar a discussão em conjunção com os temas que a APPOA está desenvolvendo durante o ano.
Enéas – A APPOA tem um eixo, e a gente procura trabalhar em torno desse eixo.
Robson – Por exemplo, nesse ano que passou, o eixo foi em relação ao gozo e ao corpo. Então, nós abrimos com O Império de Sentidos, que é um filme marcante para a psicanálise. Lacan comentou a respeito nos Seminários. Outro que nós pegamos, dentro dessa temática, é Um Método Perigoso, que fala da relação entre Freud e Jung. O filme permitiu que a gente tocasse na história da psicanálise, da história dos conceitos, de como foram se desenvolvendo.
Enéas – Vamos dizer assim: a partir do terceiro ou quarto ano, a gente começou a fazer um alinhamento com os temas da APPOA. Nós dialogamos com os temas. Porque uma das coisas importantes é que a gente não aplica a psicanálise ao cinema. Não é uma relação aplicativa. Ela é uma relação de diálogo. Ou seja, os conceitos cinematográficos são trabalhados como conceitos cinematográficos e os conceitos da psicanalise como psicanalíticos. A gente não tenta fazer uma fusão. Aquilo que é cinema, pode fertilizar os conceitos psicanalíticos e vice-versa. Vou dar um exemplo, a questão do olhar em Lacan. Isso é, obviamente, algo bastante importante no cinema. Nessa dialética entre cinema e psicanálise, nós não “cinematizamos” a psicanálise e nem “psicanalisamos” o cinema. O Lacan tem uma frase muito bonita, que diz o seguinte: “Não se psicanalisa personagens em papel”. No caso, nós não psicanalisamos personagens em imagem.
Sul21 – Pensei que os cineastas imitassem a vida enquanto vocês desconstruíam os filmes a fim de analisar os pedaços… O fato de ter um ator na tela, de ele ser um terceiro, facilitaria esta ousadia?
Enéas – A gente faz a discussão do filme. Essa é a proposta. Por quê? Porque tu não deves botar a psicanálise no filme, a economia no filme. O filme tem uma forma que deve ser respeitada.
Robson – É fundamental reconhecer que o filme não está ali como uma ilustração, seja pra buscar a psicopatologia de um personagem, seja para buscar uma contribuição da psicanálise para a cultura. Por exemplo, em O Som ao Redor, a ideia não era dissecar os personagens pensando na psicopatologia. Como o Enéas lembrou, o Lacan dizia que não se interpreta personagens de ficção, nem se faz a psicopatologia desse personagem. Nesse sentido, ele nos ajuda a pensar de uma maneira mais geral. Quantas e quantas vezes, do ponto de vista psicológico, se disse que Hamlet era obsessivo? Que graça tem ir lá e dizer isso, “tá aqui o obsessivo e a sua relação com o pai, com o desejo, etc.”? Mas, é possível falar da relação de um sujeito com o seu desejo, com o desejo da mãe, ou seja, abrir essa discussão metapsicológica, abrir essa discussão sobre a obsessividade em geral, sobre a relação do homem com o desejo, com a morte.
Enéas – Por exemplo, Sarabanda, de Ingmar Bergman. É uma história familiar completamente diferente do que normalmente se lê nos livros. Os filmes trazem novidades, trazem as vanguardas da sociedade para que os psicanalistas possam dialogar sobre o que aconteceu, sobre aquilo que ele vai ver na sua clínica.
Sul21 – Vi vocês analisando O Som ao Redor. Não sei se foi casual ou não, mas vocês se dividiram. O Robson analisou mais a questão de um personagem, dos personagens, da história, e o Enéas se dedicou mais a questão econômica, ao engenho. Vocês costumam fazer essa divisão?
Enéas – Bom, isso é possível, porque nós temos um diálogo entre nós. E mais, um filme tem uma multiplicidade de fatores e elementos que ninguém consegue discutir totalmente. Pelo menos não em um comentário do filme. Alguns desses fatores poderiam dar um seminário, porque aí nós poderíamos analisar mais profundamente cada aspecto. A totalidade de alguns deles é muito ampla. Quanto mais quente melhor rendeu uma bela discussão de cinema e de psicanálise. Uma das coisas mais fantásticas que eu já vi na minha vida — quando terminou o filme, que recebeu uma plateia culta, de psicanalistas, historiadores, arquitetos, etc., o pessoal bateu palmas. Aplaudiu o filme. Isso nunca tinha acontecido. Em uma plateia que não é de especialistas, isso nunca teria acontecido.
Sul21 – É um filme muito moderno. Há a questão da troca de sexos, e tudo sem preconceito.
Enéas – Sim, e o filme passa muita energia.
Sul21 – Há o prazer de vocês envolvido, não?
Enéas – Sim, mas a gente faz também para avançar no conhecimento. Mas é claro que o lado do prazer está totalmente inscrito. Pega um filme como esse ou Amarcord, de Fellini, que é outro filme que adoraram. Trabalhamos também os grandes filmes nacionais. Santiago, do João Moreira Salles, Tropa de Elite, além de filmes mais antigos, como os de Glauber Rocha.
Robson – Há a ideia pedagógica de dar uma formação em relação à história do cinema, com relação aos conceitos psicanalíticos e também como o que tu falaste, ou seja, essa ideia do prazer, a questão lúdica, que me parece fundamental seja em relação ao cinema, seja em relação à matemática, por exemplo. Se não existe uma relação lúdica, não vai. Agora, queria voltar à forma de escolha dos filmes. Porque dentre os espectadores, ao longo dos anos, se formou um grupo fixo. Eles são os nossos interlocutores diretos nessa história. E também são os nossos consultores em relação à programação. Quer dizer, a decisão final é nossa, mas a gente está sempre em diálogo com eles. Então esse grupo é nosso cartel de trabalho, nosso “núcleo duro”.
Enéas – Tem outra coisa, nós já fizemos reuniões fora da APPOA, por exemplo, lá no Santander sobre Hamlet, e por exemplo, nós já fomos convidados para fazer discussões sobre filmes fora da POA. A gente não incrementa muito isso por causa da dificuldade de datas, etc.
Robson – Há colegas nossos que, a partir da nossa experiência, resolveram abrir seus locais. Por exemplo, em São Paulo e no Rio de Janeiro, também foram formados ciclos permanentes de discussão de cinema e psicanálise.
Sul21 – Um filme intimista, como por exemplo, o já citado Sarabanda, de Bergman, ou um filme de Antonioni… Eles seriam mais fáceis de serem analisar por psicanalistas? Vocês pegam poucos blockbusters. OK, já fizeram com A Origem, mas é raro.
Robson – Não são necessariamente mais fáceis. Eu acho que isso tem a ver com a própria história do movimento psicanalítico aqui na cidade. Houve um momento em que, quando se falava em cinema e psicanálise, tu ias para o filme intimista, ia para o Bergman, filme para psicanalista. Mas nós desejamos pensar a relação com a cultura. Isso devia ser expandido. Nós discutimos filmes como O Som ao Redor ou Tropa de Elite, que te permitem também leituras muito diversificadas e multifacetadas. Hoje é muito diferente de trinta anos atrás, onde tu tinhas que ter um filme que delineasse um personagem, que fosse uma coisa mais intimista. Hoje, eu acho que daria pra discutir Batman.
Enéas – A questão é sempre a seguinte: o valor principal da sessão é o filme. Sempre o filme e o que o cineasta propõe. Nós temos sempre o objetivo de mostrar o que o cineasta fez. O filme é sempre visto pelo lado da cultura. Nas sessões vão arquitetos, economistas, sempre tem uma série de grupos que vão lá. Tratamos o cinema como algo cultural que permite o diálogo com a psicanálise e com as outras áreas. Esse é o tema importante. Nós não temos aquela ideia de “vamos aplicar a psicanálise”. E o fato de nós estarmos vinculados com o eixo da APPOA, não significa que nós vamos fazer exatamente o que vai ser feito nos seminários da APPOA. O que eu acho que é importante no nosso seminário é que ele é um trânsito dentro da cultura. E esse trânsito tem pés em várias áreas às quais as pessoas estão vinculadas. Então nós também dialogamos transversalmente. Quando tu trabalhas a questão do cenário, tu trabalhas as questões da arquitetura. Quando tu trabalhas a questão da história, no caso de O Som ao Redor, por exemplo, tu trabalhas a formação histórica do Brasil. Essa é a questão importante. Ou seja, o filme dentro da história das imagens, o filme dentro da história da cultura. E é isso que nos permite esse diálogo com todas as áreas. E permite a cada um que está lá, frutificar, semear e fertilizar a sua área de trabalho. Nós criamos energia para que outros caras e para nós mesmos, desenvolvam essa realidade.
Sul21 – E como é a participação das pessoas no seminário?
Robson – A participação vem crescendo bastante. Como se trata de um seminário, eu e o Enéas somos os coordenadores. Então é esperado que nós façamos uma apresentação do filme, um comentário inicial. E aí, depois, abrimos para as pessoas comentarem.
Enéas – Primeiro assim, tem uma apresentação inicial de cinco minutos, é apresentado o filme, depois eu e o Robson fazemos um comentário de dez a quinze minutos e começa a discussão. Até esgotar.
Robson – Dependendo do filme, claro. Esse ano um filme que nos surpreendeu foi Rocco e seus irmãos, de Visconti. Ele prendeu a atenção, as pessoas ficaram discutindo, houve uma participação incrível.
Enéas – Porque tem isso, alguns vão lá só para verem um determinado filme.
Robson – Porque a gente já sabe que, por exemplo, se passarmos um David Lynch, o setor jovem aparece lá. Então tem um determinado público.
Enéas – Bergman é para o pessoal mais antigo.
Robson – E tem aquele pessoal que diz assim: “Eu aceito ver filme velho brasileiro porque vocês vão passar, e porque vamos extrair alguma coisa de interessante”.
Sul21 – Quer dizer, aceitam pelo comentário?
Robson – Exatamente.
Enéas – Isso é uma coisa interessante. Como as pessoas se comportam em relação aos filmes. Tem todo um folclore…
Sul21 – Por exemplo…
Enéas – Por exemplo, tinha uns caras que chegavam lá e queriam ser analisados na sessão. “Eu por exemplo… na minha situação…” (risadas) Isso foi muito raro, aconteceu pouco porque a gente meio que cortou isso. Mas, por exemplo, para Fellini, é certo que comparecerá um determinado tipo de público para vê-lo. E vai outro para ver o cinema brasileiro. Para o cinema americano, outro.
Sul21 –Você devem ter diversos casos curiosos…
Robson – Temos, mas olha, é o seguinte: inevitavelmente, ao longo desses dez anos, aprendi uma coisa, temos que sempre chegar mais cedo para testar a aparelhagem. Isso que tem uma empresa contratada que vai lá, que faz a instalação, os ajustes, etc. Nos primeiros anos, eu ia lá horas antes e ficava junto com os caras. Depois eu achei que tudo bem, que os caras resolveriam e só dava instruções “olha, esse filme é em preto e branco, precisa abrir mais o brilho, a iluminação, o contraste”. Mas, inevitavelmente, tem que chegar lá e testar, porque tu nunca sabes se vai estar funcionando.
Enéas – Outro aspecto interessante nosso é que fomos a primeira entidade do Brasil a apresentar Sarabanda. Porque Sarabanda não tinha vindo pra cá.
Robson – Assim como fomos os primeiros a passar Pina. Eu tinha voltado da França, consegui uma cópia.
Sul21 –Antes do cinema comercial?
Robson – Sim.
Enéas –Sarabanda também.
Sul21 –Tu tens uma predileção por Sarabanda, não é? Eu também.
Enéas – Eu gosto muito. Normalmente, quando o cara, no caso Ingmar Bergman, faz um último filme, é um filme médio. Esse não, esse filme é excepcional.
Robson – Com exceção do John Huston, que finalizou com Os mortos.
Enéas – Sarabanda tem novidades antropológicas, novidades psicanalíticas, novidades cinematográficas. É notável a forma como ele faz a exposição do roteiro através de uma série de segmentações utilizando, principalmente, o ponto de vista cenográfico, do ambiente, da roupa. As cenas são densas porque o que acontece com o personagem principal é mostrado fisicamente no filme e cinematograficamente com as roupas e cenário e na própria relação dele com a Liv Ullmann. Uma outra cena importante é a que mostra o incesto do pai e da filha. Ela é absolutamente excepcional. Bergman mostra o pai deitado, a filha deitada na frente, o movimento de câmera mostra a relação dos dois, e ao mesmo tempo tu tens a presença da mãe no retrato. Ali há todo tipo de reflexão e é uma cena de simplicidade absoluta. A relação da Liv Ullmann com a neta… A forma como elas conversam, o crescimento do vermelho no rosto, a bebida, a intimidade, a relação, marca a possibilidade dessa guria se afastar daquele cara.
Sul21 – A cena da igreja…
Enéas – Aquela cena da igreja é genial. Toda a construção é fabulosa.
Robson – Tu tinhas falado, Milton, a respeito dos filmes intimistas, que possibilitam talvez um diálogo maior com a psicanálise. Ali está todo o estilo do Bergman, que mostra o tempo todo o fracasso da função paterna e de várias relações. Aquele avô jamais conseguiu transmitir alguma coisa para o filho dele, a não ser a relação de ódio. A relação é instrumental, digamos assim, “eu sustento, eu sou o provedor, as coisas tem que ser construídas da minha maneira”.
Enéas – Esse é o tipo do filme para o qual tu podes fazer uma análise perfeitamente psicanalítica, tranquila, sem nenhum problema, ou uma análise cinematográfica. E as duas dialogam. Esse filme dá uma ideia do que se pode fazer.
Sul21 –Vocês puxam muitos detalhes, coisas que normalmente passam por cima do olhar mais desatento.
Enéas – É aquela história, o diabo passa nos detalhes. É o que se diz na psicanálise também. O que diferencia um filme bom de um filme ruim é como o cara trabalha os detalhes.
Sul21 –Falando em bons e maus filmes, como vocês comparam a situação cinematográfica do ano passado e desse ano? O ano passado parece que trouxe muita coisa boa e esse ano foi uma desgraça.
Enéas – Nada sobrevive num ano de Copa do Mundo e eleições, não é?
Robson – Talvez a gente possa entrar no lugar comum, e dizer que a realidade superou amplamente nossa capacidade de sonhar e de ficção.
Enéas – A questão é: como é que os caras iam fazer uma programação cinematográfica de grande qualidade tendo jogos todos os dias?
Robson – E vamos insistir na ironia: que roteirista conseguiria financiamento para um filme em que o Brasil tomava 7 a 1 da Alemanha? Quem é que ia financiar isso? (risadas)
Enéas – Só os alemães, e olhe lá. E como eram jogos muito seguidos, a programação de cinema ficou “ilhada” naquele mês. Mas realmente, tem pouco filme aí. Há um velho fato: o problema da distribuição no Brasil, que já esteve muito melhor. A produção europeia chega pouco e o que dizer dos chineses, japoneses, coreanos, russos? Mesmo filme alemão não chega. Chega filme americano e alguns filmes franceses. Então fica muito difícil fazer uma boa programação. Além do mais, acho que tem um outro problema, que é um problema da realidade contemporânea, que é um certo afastamento dos jovens do cinema. Porque eles baixam os filmes. Veem no celular, no tablet, etc. Então tu tens uma modificação nos dispositivos. Nós somos da geração em que o cinema era a tela, a sala escura. A gurizada não pensa assim.
Robson – Eles talvez tenham substituído a qualidade da imagem, a qualidade da projeção, pelo acesso mais rápido e direto.
Enéas – Mudou o suporte. Em vez da tela, tu tens uma tela de computador, ou uma tela de celular, a recepção do filme tornou-se individual. E mais, os filmes são vistos sob a luz de lâmpadas, caminhando, no carro, em lotação, etc. O cinema tradicional, a meu ver, hoje está mais na função que o teatro tinha quando o cinema começou a existir. Ou seja, quem vai ao cinema são os caras que gostam de especiarias.
Sul21 –Eu noto que os blockbusters entram e saem rapidamente. O ciclo é curto.
Robson – Eles precisam faturar alto e rápido. No primeiro fim de semana já sabem se vai dar certo ou não. No segundo final de semana já sabem quando vai morrer.
Sul21 –Há uma produção interessante que jamais chega aqui, da qual a gente apenas lê ou baixa. Ela poderia ser passada, em algum lugar. Em seu último livro, o Hobsbawm fala que a música erudita, assim como jazz, acabou se transformando em “Produto de Festivais”. Vocês acham que o cinema artístico pode acabar também ilhado ou apresentado apenas em Festivais?
Robson – Eu não sei o que dizer, não tinha pensado nisso. Mas talvez a tendência de estar nos festivais venha e abranger o cinema e a música. Com a queda de vendas dos CDs, os músicos divulgam seus trabalhos na internet ou se apresentam ao vivo em festivais. Tu vês que, internacionalmente, aumentou a proliferação de grandes festivais de música. O Lollapalooza virou uma franquia, o Rock in Rio também é outra franquia que no ano que vem vai acontecer no Rio de Janeiro e nos Estados Unidos. É onde tu consegues reunir o maior número de pessoas.
Enéas – E tem o problema econômico. Há uma forma oligopólica de dominar a divulgação de um filme. Ou seja, a cadeia de divulgação está totalmente dominada pelas grandes empresas. Então, por exemplo, veja a jovem produção do cinema brasileiro. O que acontece é que normalmente esses filmes vão para os festivais em busca de espaço. Ou seja, é uma forma de constituir um circuito.
Sul21 – E, para finalizar, falemos um pouco sobre o filme da próxima sexta, Glória feita de Sangue, de Stanley Kubrick?
Robson – São 100 anos da Primeira Guerra, a que inaugura a guerra moderna. O personagem principal é um oficial que, fora dali, é advogado.
Enéas – Era uma guerra de trincheiras, os caras tinham que avançar até a próxima posição e não conseguem ou nem tentam, por medo. Aí são escolhidos três covardes de cada batalhão para serem julgados. E Kirk Douglas é o advogado e o comandante daquele batalhão.
Robson – O filme é baseado em fatos reais. A partir da metade da guerra, a França não tinha mais condições de bancar avanços. Eles não tinham como se rearmar para investir contra a Alemanha. A situação era tão precária e as ordens tão absurdas que começaram as deserções e a insubordinação no exército francês. Havia uma óbvia recusa a participar deste suicídio.
Enéas – Sim, quem saía da trincheira para avançar era metralhado. É um filme curto, denso e muito bom. Naquela época — anos 50 e 60 –, os filmes não eram tão longos. Eu sou do tempo que as sessões de cinema eram assim: às duas, quatro, seis, oito e dez horas da noite. E, antigamente, quando eu era menino, às três horas tinha matinê. Às vezes tinha às seis da tarde, que era a matinê das moças.