Perfil: há 55 anos o tenor Antônio Télvio de Oliveira solava a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa

Perfil: há 55 anos o tenor Antônio Télvio de Oliveira solava a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa

Milton Ribeiro

Antônio Télvio de Oliveira | Foto: Joana Berwanger / Sul21

Há uma canção de Chico Buarque, Sentimental, onde uma menina de 16 anos que acredita em astrologia afirma simplesmente que “o destino não quis”. Em outro gênero, realmente digno de uma Sherazade, a escritora dinamarquesa Karen Blixen escreveu 5 surpreendentes contos sob o título Anedotas do Destino. Também há uma frase atribuída a Woody Allen: “Se você quer fazer Deus rir, conte a ele seus planos”.

Tudo conspirava para que o jovem Antônio Télvio de Oliveira tivesse uma carreira internacional como tenor. Começou a carreira de maneira fulminante solando a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa sob a regência de Pablo Komlós, aos 22 anos. Depois, foi para fora do país, obteve bolsas e mais bolsas de estudo, só que o destino lhe preparou das suas. O mundo deu muitas voltas e Télvio se safou por ter também os talentos de desenhista e técnico em eletrônica. Mas sempre poderá dizer que cantou com Montserrat Caballé antes de ela cantar com Freddie Mercury.

Conversamos com Antônio Télvio em seu apartamento no bairro Petrópolis em Porto Alegre. Vamos à história.

Abaixo, um registro de 1966 onde você poderá ouvir sua voz de tenor. Esta gravação foi realizada na Capela do Colégio Rosário com o organista Camilo Vergara, o Coro de Meninos do Colégio Roque Gonzales e regência de Aloísio Staub.

Guia21: Teu nome completo é?

Télvio: Eu nasci no dia de Santo Antônio, por isso me botaram o nome de Antônio. Antônio Télvio Azambuja de Oliveira, mas eu nunca usei todo meu nome, às vezes uns jornais botavam Antônio Oliveira, outros botavam Antônio Télvio. Na Espanha, me chamavam de “Azambuia”.

Guia21: Como e quando começou o seu interesse pela música?

Télvio: A minha mãe era musicista amadora. Tocava piano de ouvido. A minha vó também tocava piano. A minha casa era muito musical.

Guia21: Faziam saraus na tua casa?

Télvio: Sim. Inclusive minha mãe tinha uma gaitinha de boca que era um chaveiro, ela tocava o Boi Barroso num chaveiro! Era uma musicista nata. Não tenho essa musicalidade.

Guia21: E então, como tudo começou?

Télvio: Bom, quando eu estava no ginásio, havia uns festivais de música, coisa do interior. Minha família era muito social e eu cantava de vez em quando. Então começaram a solicitar que eu cantasse. Eu alcançava uns agudos que nem sei como… Uma vez, nós fizemos uma excursão até Santa Maria para jogar futebol ou basquete. E, à noite, fomos a uma boate chamada Casbah. O local tinha uma decoração de casa de sultão. Aí eu, com meus colegas todos, todos de 18, 19 anos, ouvi alguém gritar: “Esse canta, esse aqui canta!”. E eu tive que cantar no meio de uma boate de estilo Oriente Médio.

Guia21: Sem acompanhamento?

Télvio: Na base da porrada, a cappella mesmo! Cantei umas canções napolitanas naqueles tapetes. Foi um aplauso danado. O cara da boate quis me contratar. Os meus amigos disseram pra ele: “Vai falar com o pai dele, que tu vai levar um corridão”. Meu pai não era muito desses negócios, era o tipo de cara que se escutasse uma buzina de automóvel ou uma canção, era a mesma coisa. E aquilo morreu por ali… Só que eu fiquei com aquilo na cabeça. Aquela música… Eu a cantava em casa. Depois começaram aquelas Ave Marias que eu era chamado para interpretar em casamentos de vez em quando. E eu pensei “Pô, vou estudar canto”.

Guia21: Nisso tu tinhas 16 anos, mais ou menos?

Télvio: Sim, 16, 17, por aí. Naquele tempo eu era meio vagabundo, terminei o ginásio só com 17, não gostava de estudar. Aí vim para o Colégio Rosário em Porto Alegre — vim para fazer o científico, atual segundo grau — e ao mesmo tempo me matriculei no curso preparatório de canto no IBA (Instituto de Belas Artes da Ufrgs) e comecei a estudar. Vamos abrir um parêntese? Minha família costumava veranear em Iraí, naquela estação de águas. Hoje não se fala mais nas águas termais de Iraí, mas naquela época Iraí era um lugar onde ia muita gente no verão… E, certa vez, estava lá dona Eni Camargo. Ela foi uma personalidade muito interessante aqui de Porto Alegre. Ela era cantora e professora na Ufrgs. No hotel onde ficávamos havia saraus de música em que ela cantava e tocava piano. Era uma veranista em Iraí, como nós. Então, em Porto Alegre, antes de começarem as aulas, eu a visitei. Fui lá, me apresentei e a Eni Camargo quis escutar alguma coisa. Eu lembro que cantei Torna a Sorrento. Aí ela olhou pro marido dela, o Osvaldo Camargo, e disse assim: “Olha aí, Osvaldo. Esse cara tem uma voz que parece a do Mario del Monaco. Eu nem sabia quem era Mario… Aí ela me aconselhou a estudar no Belas Artes com a professora Olga Pereira. Eu saí de lá e passei numa loja de discos para ver quem era esse Mario del Monaco, mas a minha voz não era parecida com a dele, nunca foi.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: E tu entraste no Belas Artes.

Télvio: Comecei a estudar lá em 1959. O canto é um negócio complicado, tu demoras para fazer alguma coisa que preste. Um ano antes de concluir o curso, eu fiz vestibular para Filosofia, que achei que seria fácil de passar. Passei. Entrei na Filosofia por causa do meu pai. Achava que tinha que dar satisfação pro velho, né? Ele queria Direito ou Engenharia. Ele pensava que o Canto não era sério — meu pai ficava estranho comigo quando o assunto era Canto, como se eu fosse viado, sabe como é. O curioso é que eu estudava Filosofia, Canto e gostava muito de eletrônica, vivia criando verdadeiras parafernálias, equipamentos.

Guia21: Tu sempre tiveste duas tendências então, da música e da eletrônica?

Télvio: Desenhava também, mas isso desenvolvi depois.

Guia21: Foi nessa época que tu cantaste a Nona de Beethoven com Pablo Komlós e a Ospa?

Télvio: Aconteceu o seguinte: com o advento do coral da Ufrgs, ficava mais fácil de fazer a Nona. Eu não lembro direito, mas tenho a impressão de que foi a própria Eni Camargo que me apresentou ao fundador do coral propondo que eu solasse a 9ª Sinfonia como tenor. Fui fazer um teste com o Komlós e ele gostou. O Komlós chegou e me disse “depois você vai fazer um dos personagens secundários da ópera Carmen”. Eu respondi que não ia fazer. Ele deve ter me achado o fim da picada, porque eu disse que ele, um dia, ia me convidar para fazer o papel principal. O Komlós me olhou como quem dissesse “que metido!”. (risos)

O Correio deu | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Como era a Ospa naquela época?

Télvio: Naquela época, não havia Ospa como fundação, mas sim como sociedade. Quem sustentava a Ospa era a colônia judaica, que fazia chás e não sei mais o que a fim de sustentar a orquestra. Não era ainda um esquema profissional. Além da sociedade judaica, os descendentes de alemães também ajudaram muito a música de Porto Alegre, eles tinham o Clube Haydn na Sogipa. Então, havia duas orquestras sinfônicas aqui. Para a 9ª, veio para cantar junto comigo o Lourival Braga, do Rio. Uma voz extraordinária, um barítono precioso. Foi uma loucura aquilo! Aí cantamos a 9ª Sinfonia de Beethoven, uma beleza!

Télvio está de óculos, sentado, bem no centro da foto, durante a execução da 9ª com a Ospa em abril de 1963 | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Onde foi?

Télvio: Foi no Salão de Atos da UFRGS, antes da reforma, claro (foto acima).

Guia21: E o medo do palco? Tu tinhas 21, 22 anos.

Télvio: Eu estava nervoso, é óbvio. Tem aquela história da famosa atriz francesa Sarah Bernhardt. Sarah tinha uma escola de teatro e costumava perguntar para os alunos se eles ficavam nervosos no palco. Um dizia “eu fico bastante nervoso, sim”, outro dizia “eu não fico nada nervoso, entro no palco sem medo” e ela respondia para estes, “é… o nervosismo vem com o talento”.

Guia21: Se o artista não está nem um pouco nervoso, não está mobilizado.

Télvio: Eu sempre fiquei muito nervoso antes de entrar no palco. Me borrando mesmo. Mas, no momento em que dava a primeira nota, eu começava a me sentir poderoso. Acho que com todo músico é assim, apesar de que a música que tu estás sentindo dentro de ti é diferente da que o outro está escutando. Ou seja, tu podes estar te achando o máximo e o resultado não ser o esperado. Quando terminou esse concerto, o presidente da Sociedade de Cultura Artística do Rio de Janeiro me disse que tinha uma bolsa de estudos para dar. Ele me escutou novamente no Belas Artes e me disse que ia me dar a tal bolsa. Eu fiquei num estado de animação total e comecei a contar para todo mundo que tinha ganhado a bolsa, mas não veio nada… Fui trouxa.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: E seguiste cantando.

Télvio: Depois da Nona, o Pablo Komlós me convidou para cantar O Rei Davi, de Honegger. Eu ensaiei esta ópera como um louco. Até hoje sei tudo de cor, sonho com aquela música. Eu estudei e ensaiei com unhas e dentes aquela música complicada acompanhado pelo pianista Hubertus Hoffmann. Um dia, o Hoffmann me diz que eu não iria cantar O Rei Davi… Que quem ia cantar era a Ida Weisfeld. Eu ri e respondi: “Isso é para tenor, não é para mezzo soprano”. E nem falei com o Komlós, pensei que fosse uma invenção dele. Só que o Komlós realmente fez aquele absurdo e eu ainda assisti. Ela cantou a parte do tenor, acredita? Depois, soube de duas informações contraditórias: a primeira era a de que eu fora considerado muito jovem para o papel, a segunda era a de que eu não tinha aparecido num ensaio geral — o que é uma mentira, eu não tinha sido era avisado. Então, neste ensaio, quando estavam todos me esperando, o Komlós perguntou se alguém podia fazer a minha parte e a Ida apareceu. Deu uma passadinha na partitura com o pianista Roberto Szidon — também ele cantava no coral — e ficou prontinha. É óbvio que aquilo foi uma armação deles, porque ninguém canta O Rei Davi sem muito ensaio, ninguém no mundo canta aquilo à primeira vista. Ela já viera preparada. Assim era a Ospa, um saco de gatos, uma coisa bagunçada, suja. O Komlós criava situações horríveis. Marcava três récitas, convidava a gente para a terceira e ela não saía. Só para fazer a gente ensaiar. Uma vez o Paulo Melo, outro cantor, disse que ia processá-lo se não saíssem todas as récitas. Aí saíram, claro. A Ospa tinha uma aura de sacanagem, de psicopatia.

Guia21: Mas tu acabaste viajando.

Télvio: Sim, com essa mesma 9ª Sinfonia, surgiu uma pequena possibilidade de um curso em Santiago de Compostela. Era um curso de três meses, mas não dava passagem de ida nem de volta. Fui falar com o maestro Komlós e falei pra ele “olha, o Belas Artes me deu uma carta de recomendação para o consulado espanhol”. Então ele escreveu outra, também me recomendando. Eu levei tudo ao consulado e a bolsa surgiu. Tinha um voo da Panair que saía do Rio com desconto só para portugueses e brasileiros. Meu pai fez uma vaquinha para me ajudar. Peguei um ônibus aqui, fui até o Rio e viajei. Passei três meses em Compostela. Só tinha cem dólares, menti para o meu pai que eles iam pagar a viagem de volta. A juventude é assim, né? Não sabia o que eu ia encontrar lá, eu não sabia nada! Parecia que as coisas de lá eram melhores do que tudo aqui, mas não era tanto assim. Na Espanha, cantei em várias audições e recitais, mas quando terminou o curso, bom, e agora José?

Guia21: Teus professores lá eram gente conhecida?

Em pé, Télvio e Montserrat Caballé | Foto: Arquivo Pessoal / Joana Berwanger / Sul21

Télvio: Sim. Um monte de lendas: Andrés Segovia, Montserrat Caballé, cantei com ela (foto acima). Estava cheio de artistas internacionais ali. Eu estava apaixonado por uma das cantoras, que era de Barcelona. Outros alunos já estavam se juntando para prestar um concurso em Barcelona e eu pensei “tenho que ir também”. Mas os meus cem dólares não davam cria, pelo contrário! Com recomendações, consegui uma bolsa de 6 meses junto ao Instituto de Cultura Hispânica. Me senti garantido. Me davam cem dólares por mês. Era o suficiente para uma vida bem modesta, então comecei a fazer outros trabalhos, eu sempre desenhei. Lá pelas tantas consegui trabalho. Passaram-se mais 6 meses e renovaram a bolsa. No final deste segundo período, minha professora me perguntou se eu queria retornar para Santiago de Compostela e fazer o curso de lá novamente, tinha todo ano. Eu disse que não, mas me deu medo de ficar sem dinheiro e no fim retornei para Santiago de Compostela, para ganhar por mais três meses. Lá em Compostela foi fantástico. Por exemplo, estreamos uma Cantata do argentino Isidro Maiztegui e eu fiz a parte do tenor.

Guia21: E a paixão?

Télvio: Todas estas andanças pela Europa foram crivadas de paixões por mulheres maravilhosas, muitas delas artistas. E o abandono daquilo lá me deixou muito amargurado. O Sérgio Faraco, que estudou na União Soviética, diz o mesmo. Aquelas mulheres… Entre as cantoras que eu conheci lá há uma que ficou muito famosa e com a qual eu não tive nenhum caso amoroso… Era a Montserrat Caballé. Uma tremenda cantora e um péssimo ser humano. Por exemplo, houve um momento em Compostela que uns cantores argentinos quiseram organizar um recital. E a Montserrat deu apoio, estava auxiliando em tudo. Só que numa aula, ela, com menosprezo, chamou algumas cantoras argentinas de índias. Bem, as argentinas se irritaram, claro. Os brasileiros se uniram a elas e ninguém cantou. Depois, ela foi convidada para cantar no Rio e São Paulo e teve seu visto negado por alguém que sabia daquelas ofensas. Deu a maior confusão e ela só pode vir em outra data. Cantou depois até em Pelotas. Era mais do que temperamental, era uma pessoa deselegante.

Guia21: Cantaste muito na Espanha?

Télvio: Sim, fiz algumas gravações em Barcelona e Madrid. Era estranho porque as pessoas diziam para eu cantar Mozart, mas eu preferia coisas mais pesadas.

Guia21: E no final desta sequência de cursos e bolsas de estudo?

Télvio: Eu falei com Hans von Benda, que se encontrava em Compostela, e ele me sugeriu estudar na Alemanha. Recebi dele uma carta de recomendação para eu levar na Embaixada Alemã. Fui na Embaixada em Madrid. Lá, é claro, me avisaram que eu, como brasileiro, deveria me dirigir à Embaixada da Alemanha no Brasil e não na Espanha. Então eu recebi uma carta que foi decisiva na minha vida. Era uma carta seca, escrita por meu pai, pedindo que eu retornasse imediatamente porque minha mãe estava muito doente, estava mal, seria internada, etc. Houve uma espécie de chantagem emocional, como tu verás. Antes de viajar, eu ainda cantei em Madrid. Lá, entre outras obras europeias, quase todas de câmara, eles sempre pediam para eu cantar brasileiros como Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno, etc.

Em catalão: um programa de um recital de Télvio em Barcelona | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: E voltaste…

Télvio: Sim, peguei os últimos dólares que tinha, comprei uma passagem de navio e voltei. 15 dias de viagem. Quando cheguei ao Rio, fui à Embaixada da Alemanha – era no Rio na época – e entreguei a carta para estudar lá.

Guia21: E foste ver a família.

Télvio: Bem, a situação familiar em Santiago não era nada trágica. Eles só queriam que eu voltasse. Quando encontrei minha mãe, ela estava bem e disse que quem estava doente era o meu pai. Enfim, era algo confuso. Ninguém estava doente, parecia. Vim para Porto Alegre e, passado um tempo, recebi a resposta dos alemães dizendo que eu tinha que me apresentar em Köln em determinado dia. Voltei a Santiago para me despedir e, talvez, conseguir algum dinheiro com o velho. Então, um tio meu, médico, me disse que meu pai tinha uma bomba no bolso, ou seja, que havia perigo de um enfarto. Me pediu para adiar a viagem em um ano. Concordei em ficar.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: Perigo.

Télvio: Pois é. Escrevi para a Alemanha solicitando adiamento e os alemães disseram que o adiamento dependeria do orçamento para o ano seguinte. E nunca mais. Eu perdi a oportunidade. Só isso.

Guia21: E o que fizeste?

Télvio: Enquanto eu esperava a tal chamada da Alemanha, voltei a trabalhar com desenho em Porto Alegre. Comecei a me desligar da música. Ainda cantei muito, mas aquilo marcou o início de meu afastamento. Neste período, o Komlós me convidou para cantar I Pagliacci. Eram duas récitas, numa eu ia cantar Canio e em outra o Arlequim. Naquele tempo, era no Araújo Vianna. Tinha um cara que tinha uma carroça puxada por um cavalo, que vendia lanches fora do auditório. E tu sabe que os palhaços tinham uma espécie de carroça onde ficava seu palco.

Guia21: Normal, em O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, os atores têm uma carroça. Eles abriam uma cortina e virava um palquinho…

Télvio: Isso! Exatamente isso! E naquele espetáculo, nós entrávamos, os cantores, os atores, dentro daquela carroça de lanches. O Araújo Vianna é redondo, tem portas largas e o carro entrava no palco conosco dentro cantando, com o cavalo puxando. E começava a história. De noite, o cavalo pastava no gramado ao lado do Araújo Viana. Nunca fugiu. Na segunda récita, veio a maior chuva, foi aquela correria de músicos, com os violinos, tudo. E a ópera não aconteceu mais.

Guia21: O Araújo não tinha cobertura na época.

Télvio: Sim, molhava tudo.

Guia21: E a carreira?

Télvio: Na verdade, eu poderia seguir a carreira de músico fazendo o que a maioria dos cantores fazem: dando aulas. Só que eu detesto dar aulas. Nesta volta, ainda fiz algumas gravações, mas já estava desistindo da carreira. Passado algum tempo, só desenhava e trabalhava com eletrônica. Abri mão de tudo, passei mais de dez anos sem cantar nada, sem dar uma nota. Então, com quase 40 anos, voltei a cantar óperas e cantatas de Bach e Buxtehude. Com a Ospa novamente, ali na Igreja Santa Cecília. A Ospa com suas fofocas e futricos… Bá, eu tinha uma raiva daquilo! Cantei Britten também naquela época.

O programa do concerto de Télvio e da Ospa apresentando Cantatas | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Sobre a tua desistência. Foi uma coisa do ambiente? Não tinha perspectiva?

Télvio: Se eu tivesse ficado na Europa, faria uma carreira musical. Aqui eu não tinha perspectiva. Ninguém tem como seguir só cantando. E eu não queria dar aula.

Guia21: Sim, os cantores dão aula. Quase todos eles dão aula, acho.

Télvio: Eu não gostava e tinha outras maneiras de ganhar dinheiro. Eu publicava revistas de quadrinhos, fazia desenhos para jornais. Cheguei a chefe do departamento de eletrônica da Narcosul Aparelhos Científicos, uma empresa que fabricava aparelhos eletrônicos voltados para a área médica.

Guia21: Sim. Tu te sustentavas, evidentemente. E o que tu publicavas em jornais?

Télvio: Eu criava desenhos para ilustrar matérias, cadernos, tudo. Tenho guardados vários trabalhos meus para o Jornal do Comércio.

Caderno sobre a Revolução Farroupilha ilustrado por Antônio Télvio | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Télvio: Já na Narcosul eu fiquei muitos anos. Trabalhei também na Parks com equipamentos para comunicação digital.

Guia21: Mas tu és formado em…

Télvio: Em nada. Fiz um ano de Filosofia só e larguei.

Guia21: Mas e a eletrônica? Como aprendeste, como ela entrou na tua vida?

Télvio: Eu sempre estudei eletrônica. Desde guri, só por diletantismo. Posso mostrar os equipamentos que eu fiz, tu não vai acreditar. Eu até hoje não acredito! No dia em que eu comecei a estudar computadores, a primeira coisa que fiz foi montar um. Fiz ligação por ligação. E funcionava!

Guia21: Mas disseste que voltaste a cantar lá pelo 40 anos.

Télvio: Eu cantava aqui e ali, em concertos e recitais. Com a Ospa, cantei uma operazinha regida pelo Túlio Belardi, mas já me considerava um diletante. Não ganhei dinheiro nenhum com aquilo, nem queria. Aí houve outro fato que aí sim, aí eu disse “não vou fazer mais porcaria nenhuma”. Iam fazer uma ópera sobre os Farrapos e outra sobre as Missões. O autor era Roberto Eggers, que foi o primeiro regente de orquestra aqui em Porto Alegre. Ele escreveu duas óperas: Missões e Farrapos. Dizem que neste fim de semana vão estrear a primeira obra musical que foi escrita sobre a Revolução Farroupilha, uma ópera rock… Não sabem de nada. Um dia, o Emílio Baldini, que era colega meu, professor, me levou até o Eggers para ele me escutar, para a gente fazer a ópera sobre Missões. Aprendi toda a Missões. No dia em que era para começar os ensaios…

Guia21: Isso foi depois do Belardi e as Cantatas?

Télvio: Sim, pós Belardi. Com a Ospa de novo… Confusão daqui, confusão dali, mudaram todo o elenco. O Eggers disse que não ia deixá-los fazer sua ópera. Eu respondi “não, não faz uma coisa dessas. Sou um amador, não vou ganhar dinheiro com isso. Tu não. Não seja bobo. Fica quieto”. Aí, disse para mim mesmo “Bom, encerro. Não quero mais saber desse troço. Enchi o saco”.

Guia21: Tu já estava na Narcosul nessa época.

Télvio: Sim.

Guia21: Na Narcosul tu eras o chefe da eletrônica, certo? E, no desenho, que que tu fizeste?

Télvio: Desenhava para propaganda, desenhava charges, ilustrava matérias, fazia figuras de pessoas. Todo o dia o Jornal do Comércio tinha um desenho meu. Eu guardei algumas coisas, devia ter guardado mais, mas, na época, não dava valor para aquilo.

Matéria do Jornal do Comércio com ilustração de Antônio Télvio | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: E aí tu te tornaste um ouvinte do PQP Bach.

Télvio: Um grande ouvinte do PQP Bach. Tenho muita coisa de lá.

Guia21: E que papel tem a música hoje na tua vida?

Télvio: Olha, cara, hoje eu estou aposentado, fico no meu canto, mas ouço muita música, sim.

Guia21: Tu passa os dias escutando música?

Télvio: Não. Nunca pensei quanto tempo eu escuto música, mas é bastante. Eu ouço bastante. Só que certamente não ouço mais do que tu.

Guia21: Ouço mais ou menos uma hora por dia.

Télvio: Eu até ouço mais, às vezes.

Guia21: Tu cantarolas por aí?

Télvio: Não. Nada.

Guia21: Nada?

Télvio: Nada.

Guia21: Se tu te entusiasma por alguma coisa, tu não canta?

Télvio: Não canto. Há umas gravações minhas por aí, nem ouço mais. Também fiz várias edições extraordinárias em jornais onde eu desenhava tudo de cabo a rabo, mas não fico olhando.

Guia21: E tu frequentas concertos?

Télvio: Pouco. Esses dias fui ver o ensaio de uma ópera de Mozart. Não cantaram duas árias porque o tenor estava doente. Ele cantou outras, mais fáceis. Não tinha substituto! Isso é inconcebível num lugar sério. Aliás, as substituições são muito comuns, inclusive. Acontece de bons cantores substitutos se aproveitarem dessas oportunidades e roubarem a cena. Isto é, pelo visto a coisa não mudou tanto assim em todos esses anos. Olha, quando tu tens apenas uma opção de vida, “só posso ser cantor”, tu tenta de novo, tu insistes. Quando tu tem várias — eu tinha a eletrônica e o desenho que também me satisfaziam internamente –, tu buscas outra saída.

Guia21: Tu não ficaste frustrado?

Télvio: Eu sempre seria frustrado, porque é impossível abraçar tudo.

Guia21: Porque hoje tu tens 77 anos e a gente ouve que tu ainda tens equipamento, uma voz muito bonita e forte.

Télvio: É, sempre tive uma voz forte, dizem que boa…

Guia21: Isso eu estou ouvindo.

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Com decupagem de Nikolay Romanov e revisão de Elena Romanov.

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Uma longa e bela entrevista que fiz com Paixão Côrtes

Uma longa e bela entrevista que fiz com Paixão Côrtes

Publicada em 20 de setembro de 2010 no Sul21

Dias depois da publicação desta entrevista, recebi uma ligação no celular. Era Paixão Côrtes me agradecendo. Ele disse que, tchê, ficou bem completa. Perguntou se podia utilizá-la em outras publicações, com as fotos também. Respondi que as palavras e a cara eram dele. Deu risada. Só o vi aquela vez. Tive a melhor das impressões do velho gaúcho falecido ontem.  

Fotos: Bruno Alencastro / Sul21
Fotos: Bruno Alencastro / Sul21

João Carlos D`Ávila Paixão Côrtes nasceu em Santana do Livramento no dia 12 de julho de 1927. É agrônomo, mas sua principal atuação dá-se como folclorista e pesquisador. Paixão Côrtes é um personagem decisivo da cultura gaúcha e do movimento tradicionalista no Rio Grande do Sul, do qual foi um dos formuladores, juntamente com Luiz Carlos Barbosa Lessa e Glauco Saraiva. Juntos, partiram para pesquisas de campo. Viajaram pelo interior, a fim de catalogar traços da cultura do Rio Grande. Em 1948, foi um dos fundadores e organizadores do CTG 35 e, em 1953, criou o pioneiro Conjunto Folclórico Tropeiros da Tradição. Ele será o patrono da próxima Feira do Livro de Porto Alegre. Paixão Côrtes falou ao Sul21 em sua residência, em Porto Alegre.

Sul21 – O senhor possui duas grandes linhas de trabalho: uma como etnógrafo – por seu trabalho de pesquisa e documentação – e outra, ligada ao movimento tradicionalista.

Paixão Côrtes – Na semana passada, lancei, num CTG de Flores da Cunha, uma espécie de resenha de todas as minhas publicações, que vão desde os livros até os folhetos, artigos e opúsculos. O trabalho mostra todas as capas das edições e reedições organizadas cronologicamente. Estou com 83 anos, mas tenho a sorte de ter visto organizarem isso para mim. A gente fica trabalhando e não tem ideia do que produziu. (Paixão Côrtes mostra a publicação. O número de obras é efetivamente muito alto. Há livros sobre música e danças e os folhetos sobre gastronomia e tradições de regiões específicas. Ele nos convida a trocar a sala, onde estamos, para o que chama de “sua baia”, porque diz ter “sentido” que a charla seria longa. A “baia” é onde trabalha, um escritório cheio de livros. Ele senta na sua cadeira predileta, coberta por um pelego.)

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Sul21 – A Feira do Livro de Porto Alegre habitualmente tem um ficcionista como patrono. Esta é a primeira vez que ela se curva à cultura popular e a alguém que faz outro gênero de trabalho. Um trabalho ligado a uma antropologia intuitiva, que os antropólogos titulados pouco se dignaram a fazer, ou seja, a pesquisar e documentar o folclore gaúcho no território, lá fora, como os gaúchos dizem.

PC – Inicialmente, quero dizer que me senti muito lisonjeado (por ter sido escolhido patrono), pelo simples fato de eu não ser um escritor na concepção atual e, sim, um escrevinhador: recolho as temáticas da cultura popular, estudo-as e tento dar a elas nova dimensão, através da divulgação em texto escrito, devolvendo ao povo o que é dele. Eu vou às pessoas, vejo-as, ouço-as e trato de sentir a alma popular de nossa coletividade. A expressão pessoal e individual e o desenvolvimento econômico e social não interessam a meus trabalhos; seria outro estudo. Interessam-me os aspectos espontâneos e coletivos da cultura, sua identidade. Interessa-me preservar aquilo que o tempo dirá se terá continuidade em cada etnia. O que me interessa é dar às pessoas um conforto, um ânimo e uma certeza de que pertencem a uma coletividade.

Sul21 – E o instantâneo?

PC – Pois é, tchê, o instantâneo, o modismo, o oportuno e o circunstancial “justificam”, entre aspas, ações que são inteiramente desprovidas de sentido histórico. Dá muita tranquilidade o valor dado às origens como uma forma de identificar e projetar as comunidades dentro de um universo maior. E o maior mérito de um povo civilizado é não apenas compreender-se a si mesmo, mas compreender a si mesmo de forma a compreender os outros. O conhecimento de si é uma forma de projetar conhecimento para fora, entende? E como é que os homens simples, jovens, rurais vão projetar sua originalidade num universo maior sem conhecer a realidade e as vivências do seu passado cultural, social e artístico? É aí, então, que se estabelece a ação e a reação e o respeito de um pela cultura do outro.

Paixão_Cortes_03Sul21 – Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia, escreveu Tolstói.

PC – Mas isso é uma verdade evidente, né? E este conhecimento pode renovar valores e melhorar a própria humanidade. E com mais paz, tchê, que é o que a gente procura. Mas voltando à Feira, foi por tudo isso que, apesar de me sentir honrado e surpreso com o convite, passei a achar natural que me colocassem ao lado de escritores, ensaístas, historiadores, professores e coisa e tal para concorrer a patrono. Pô, depois de 60 anos olhando diariamente nos olhos do povo, acho que eu merecia um reconhecimento, apesar de que vou te dizer uma coisa: só agora, aos 83 anos, é que estou começando a produzir coisas mais maduras. Meu novo livro já está em 700 páginas. Mas como, tchê? É porque hoje eu relaciono melhor as coisas. Estou, de verdade, descobrindo o significado daquilo que eu recolhi há anos. Hoje, vejo com mais exatidão as peculiaridades que me ajudam a reproduzir uma época passada.

Sul21 – O senhor está falando em ciência do folclore, em etnomusicologia, em pesquisa. Como isso funcionava no campo? Que métodos o senhor utilizava para recolher as informações, como fazia para tornar aquilo palpável?

PC – O negócio era o seguinte: nos primeiros anos, lá por 1947, eu entrava em comunidades onde eu jamais estivera, de quem eu só conhecia parte da história. E saía perguntando, falando com os mais velhos. Olha bem, tchê, eu tinha 20-22 anos, chegava lá de bota, bombacha e lenço no pescoço, eu sou um homem do campo e não um gaúcho de palco, microfone e holofote. Eu ia buscar a cultura daquelas pessoas lá na convivência com eles, num diálogo direto, sem tecnologia nem nada. Buscava mais aos idosos para saber de suas vivências e acabava causando muita espécie porque eu, jovem, de 20 anos, não procurava a sociedade das moças e, sim, a dos velhos e das velhas e eles não me conheciam. A estranheza era a seguinte: o que esse guri está fazendo aqui, saído de não sei onde, me perguntando umas coisas sobre a família e sobre o tempo de moços de seus pais? Deve estar procurando alguma herança!

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Sul21 – E o senhor perguntando como ele sapateava…

PC – Claro! E o sujeito pensando, mas por que ele precisa saber como eu sapateio? Por que tenho que dar satisfações a esse desconhecido? Então, foi muito difícil adotar, criar um sistema onde eu fosse anotando todas aquelas coisas e ainda relacionando com o meio social e econômico. Eu levava umas anotações prévias sobre a região e começava tateando. “O senhor conhece a chimarrita, o balaio, etc.?” E, naquela época, não existia gravador. Só o Instituto de Música tinha um gravador que pesava 10 quilos e gravava o som em fita de papel. Hoje, ninguém sabe o que é, mas eu tenho tudo guardado. A coisa era assim: eles me diziam como dançavam cada música e eu tentava imitar porque o bagual tinha vergonha de fazer aquilo sem música.

Sul21 – Então eles cantavam para o senhor.

PC – Mas, claro, isso eles tinham que fazer. Então eu girava prum lado e eles diziam, não, é para o outro lado, e eu anotava a posição dos pés. Direito 1, esquerdo 1, direito 2… Tudo desenhadinho para não esquecer. Anotava também as letras e ah, tem uma coisa importante: eu tenho muito boa memória, mas ela funciona de um jeito gozado. A música entra pelo ouvido e vai para o cérebro, mas eu só decoro a melodia se ela vai para o pé. Então, se eu não dançasse, não conseguia voltar para casa com ela no ouvido. Daí, falava com meus amigos músicos a fim de que eles tirassem a música e transformassem tudo aquilo em partituras. Eu cantava e dançava para eles. Depois, com o gravador do Instituto tudo ficou mais fácil e eu cheguei a refazer algumas visitas para ter certeza das anotações. Tava tudo certo.

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Sul21 – Enquanto o senhor pesquisava num lugar, Barbosa Lessa fazia pesquisas paralelas noutro lugar, certo? E tudo era feito em fins-de-semanas, porque ambos trabalhavam.

PC – Ah, pois é, um trabalhão. Raramente, nós viajávamos juntos. E era só um gravador. Eu comprava duas passagens no ônibus, uma para mim e outra para o gravador, que era enorme. Quando alguém reclamava, eu mostrava a passagem “dele”. E tudo saía do nosso bolso. Aí, eu gravava tudo naquele trambolho e devolvia o gravador ao Instituto. Senão, tinha que trazer no ouvido.

Sul21 – Podemos voltar poucos anos? Quero relembrar de quando o senhor tinha 17 anos, mudou de colégio – foi para o Júlio de Castilhos no turno da noite – e, junto a outros estudantes, quis estender os festejos da Semana da Pátria até o dia 20 de setembro, data da Revolução Farroupilha, fundando o departamento…

PC – Departamento de Tradições Gaúchas do Colégio Júlio de Castilhos. Como eu estava ausente da vivência contínua com a vida no campo que me era familiar, comecei a conversar com as pessoas e fui vendo que um era de Cruz Alta, outro de Bagé, não sei mais onde. E aí combinávamos: “Aparece lá para tomar um mate”. Tomar mate, naquela época, só dentro de casa. Na rua, nem pensar. Nem na porta de casa. Bombacha ninguém ousava vestir em Porto Alegre.

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Sul21 – Vocês logo perceberam que o Colégio Júlio de Castilhos poderia abrigar essa iniciativa?

PC – Ah, não foi tão simples. O negócio é que eu botava bota e bombacha e ia para a aula. E era aquele comentário só. Eu morava na Sarmento Leite, e o antigo prédio do Julinho era na João Pessoa, onde fica hoje a Faculdade de Economia da UFRGS. De noite, eu ia pilchado. Quando fazia frio, ia de poncho. Chovia, botava um chapéu. O pessoal falava: “Olha o guasca de fora”, “Olha o guapo”. E eu não me ofendia, sabia o que eu era, eles não estavam me ofendendo ao dizer aquilo.

Sul21 – E as moças?

PC – As moças não participavam. Elas estavam em outra. “Miss”, “Star”, tudo nome americano. E eu fui indo, vestido assim. Foi aí que eu comecei a pensar: por que a gente não faz um núcleo de resistência a essas loucuras norte-americanas e tudo o mais que está aí? Fui bolando, pensando, sozinho. E aí um dia, no Grêmio Estudantil, expus a coisa: “Acho que a gente deveria preservar as nossas tradições”, etc. Tinha a Chama da Pátria, no 7 de setembro, data magna da pátria. Foi aí que tive a ideia de tirar uma centelha da pira da pátria e levar para o Júlio de Castilhos, fazer uma continuidade da chama da pátria, lá num candeeiro, até o 20 de setembro. E o pessoal dizia: “Mas como?”. Então fui na Liga de Defesa Nacional, um órgão muito importante na época. Eu conhecia o major Vignolli. Apresentei minhas intenções, numa carta que nós tínhamos preparado. Ele me perguntou: “Então, qual é a ideia?”. E eu, numa insolência que só hoje percebo, respondi: “Vou tirar uma centelha da pira da pátria para levar para o Colégio Júlio de Castilhos”. Imagina, eu com 18, 19 anos. Aí ele chamou um sujeito: “Ô Pimentel, vem aqui”. O sujeito chega e diz: “E aí, Paixãozinho, como é que vai?”, todo entusiasmado. Era amigo do meu pai, com quem tinha trabalhado lá em Santa Maria, me conhecia desde pequeno. E perguntou: “O que é que tu estás fazendo aqui?”. A ideia era prolongar do 7 de setembro até o 20, da Revolução Farroupilha. Aí eles me perguntaram como é que eu queria fazer isso, se era a cavalo, como é que era e tal. Eu tinha pensado em três cavalos – um com a bandeira do Rio Grande, outro com a bandeira do Colégio Júlio de Castilhos e outro com a bandeira do Brasil.

Paixão_Cortes_07Sul21 – Mas qual era a importância de pegar a centelha da pira da Pátria?

PC – Era muito importante, porque aquela centelha era uma homenagem aos pracinhas que morreram na segunda Guerra Mundial, em Pistoia. O fogo vinha de lá, atravessava o Atlântico, chegava a Recife e descia até aqui. Nós éramos nacionalistas, brasileiros e gaúchos. Nós queríamos participar desta homenagem, dando continuidade do nosso jeito, do nosso modo, de cavalos, bombachas e música nossa. Houve um baile, até. Bom, nós queríamos aquele mesmo fogo dentro de um candeeiro, que era a luminária dos nossos galpões.

Sul21 – E os gaúchos, de onde saíram?

PC- Eu convencia um, que convencia outro. Mas aí não tinha arreio. E cavalo? Não tinha. Fui falar com o doutor Pimentel: “Olha, consegui um piquete bom. Gente firme. Mas não temos cavalo, nem arreio”. O doutor Pimentel disse que conseguia os cavalos, do Regimento Osório. “E os arreios?”, perguntei. “Isso vai ser difícil”. Falei para ele: “O senhor me arruma uma caminhonete e dois homens que eu dou um jeito”. Cinco horas da manhã saímos em direção a Belém Novo. Foi clareando o dia e iam aparecendo aquelas figuras a cavalo; eu mandava parar a caminhonete e começava a dar um discurso sobre o gaúcho, a pátria, o gauchismo, e os caras ficavam atônitos (risos). Assim arranjei 14 arreios. Só na palavra! Devolvi um por um, eu mesmo. Montamos os arreios e conseguimos oito pessoas. Faltou gente para montar, as pessoas ficavam com vergonha. Tu podes imaginar oito loucos vestidos de gaúcho, de faca?

Paixão_Cortes_08Sul21 – A revolução Farroupilha não era comemorada?

PC – Não, era tudo proibido. Os símbolos estaduais eram proibidos. Não era feriado, não tinha nada e nós comemoramos com um baile no Teresópolis. Um veio pilchado, o outro não. Nós tínhamos uma bandinha alemã que nem sabia tocar a nossa música, foi uma dificuldade ensinar alguma coisa para quem só sabia tocar valsinha. E todo mundo chorando por causa da fumaça do churrasco. Uma bagunça, tudo improvisado.

Sul21 – E a expansão do movimento? E o CTG 35?

PC – O nome nós decidimos numa reunião em 5 de janeiro de 1948, mas a fundação foi em 24 de abril. Foi difícil. Não conseguimos o registro civil. Nós queríamos um CTG, eles falavam em associação; eles falavam em presidente, nós em patrão; eles falavam em vice-presidente, nós em sota capataz; eles em relações públicas, nós em invernada disso ou daquilo. E lá dentro também era confuso. Nós tínhamos poucas descrições, partitura nenhuma, então o Lessa e eu começamos a procurar. Eu viajava muito, pelo serviço, então íamos cada um para um lado. Começou em Palmares. Eu estava falando com um rapaz sobre danças tradicionais e ele me falou da tal “dança do pezinho”. Eu não sabia: “Que dança do pezinho? Vocês dançam isso?” E o cara: “Claro, lá na praia, nas festas”. E aí formou-se um grupo e nós fomos a Palmares para pesquisar. Bem, se a 100 quilômetros de Porto Alegre tem uma dança dessas, como é que não vai ter por esse Estado inteiro?

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Sul21 – E os clubes?

PC – O clubes não nos aceitavam. Ninguém podia entrar num clube de bota e bombacha.

Sul21 – E os escritores que dizem que o senhor e Barbosa Lessa “inventaram” as tradições e toda a mitologia gaúcha?

PC – É gente desinformada, são pessoas com raízes urbanas que não consideram o campo. Eu não penso ou invento nada. Tenho horas e horas de fitas e documentação. É só estudar. E como é que eu vou inventar se eu não sou compositor nem sei escrever partitura, se não sou músico? Como é que eu vou inventar coreografia sendo engenheiro agrônomo? Como é que eu vou inventar cultura trabalhando em outro ofício durante toda a semana. Mas se tem que sapatear ou montar num cavalo, ah, isso eu sei fazer. Ser me pedirem para dançar com uma prenda, vou dançar com o respeito e a nobreza que a mulher merece. O que é isso? Como é que eu e o Lessa faríamos para criar toda essa montanha de coisas que está nesses livros aí? Bom, nesse caso, nós seríamos geniais. Só que não somos, só fizemos registrar o que existia.

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Sul21 – Há preconceito.

PC – Há preconceito, mas não adianta, hoje é conceito. Mas é claro que tudo vai mudando, a cultura é dinâmica, nada é estático. Mas é um dinamismo coerente com a cultura original. Isto parece ser difícil de entender. Por exemplo, passei dez anos estudando os Birivas, alguns diziam mas o que é isso, Paixão? Pois é, está aí, olha este livro, Danças Birivas. Encontrei tudo, por onde eles andavam, suas canções e vestimentas. Isso é depois de 1732 e está tudo documentado. Só havia conhecimento sobre a indumentária masculina, mas me diga se há um baile sem a presença feminina, ainda mais numa época onde talvez o baile fosse a única chance de ver uma mulher com a qual se pudesse casar. Claro que havia os vestidos delas e está tudo aí. Chula, dança dos facões, chico do porrete, fandango… só homem dançando? Como é que uma sociedade se reunia, certamente de raro em raro, sem mulheres. Hein? É inimaginável. Elas ficavam em casa? Claro que não. Levei anos para saber por onde andaram, o que cantavam, dançavam, comiam, vestiam, se recreavam, etc. Sim, desapareceram, mas há que descobrir a origem de tanta coisa que chegou a nós de outro jeito. Agora, se o crítico não lê o livro para retrucar com conhecimento, eu não posso fazer nada, só não dou bola. Eu só reproduzo.

Sul21 – E o Laçador? Como foi a história do monumento?

PC – Em 1954, São Paulo comemorava 400 anos de fundação e fez um grande evento nacional, convidando todos os estados brasileiros, inclusive o Rio Grande do Sul. E eu tinha fundado o conjunto Tropeiros da Tradição, que era um grupo de músicas e danças folclóricas e lá fomos nós representar o RS. Havia um enorme estande, um pavilhão e havia sido previsto um concurso para uma alegoria, um símbolo que falasse do estado. Cada candidato apresentava um projeto e lá estava o Antônio Caringi. Só havia quatro artistas propondo projetos. E me convidaram de surpresa para fazer parte da comissão julgadora. Lá estavam o Dante Laytano, o Moisés Vellinho e outras pessoas de destaque na época. Eu era um bagual e nem sei porque me chamaram, mas me convidaram e eu fui. E cada artista mostrou uma maquete e fez uma exposição de motivos, vendeu seu peixe. E eu fiquei por lá avaliando. Eu gostei mais do projeto do Caringi e ele venceu.

Paixão_Cortes_11Sul21 – O Sr. conhecia ele?

PC – Não. E aí me pediram para escrever um arrazoado justificando a escolha. Eu fiquei louco de medo. O que eu sabia de obras de arte? Aí, o Caringi veio me visitar em minha casa para detalhar a vestimenta do Laçador. Ele queria saber de cada laço, de cada detalhe, como fazia, como usava, etc. E eu ia explicando tudo para ele. Aí ele voltou umas três ou quatro vezes com dúvidas e eu acabei de modelo para o monumento. Ele ia lá em casa e eu ficava lá parado com ele desenhando, rabiscando. Pegava o laço assim, assado, uma chatice. Dava opções para ele, puxava o lenço para cá, para lá. Ele me perguntava se podia colocar isso, ah, isso pode; ou aquilo, aquilo não pode, porque nenhum laçador usa assim. E a estátua saiu.

Sul21 – E o fato do senhor ser um colorado de quatro costados, sendo que a torcida do Grêmio é quem usa o Laçador como um símbolo seu? Há até chaveirinho para vender com o Laçador gremista.

PC – Olha, eu sou até cônsul cultural do Inter. Apesar de o Laçador ser um símbolo de todos os gaúchos, acho que os caras nem imaginam uma coisa dessas… Meu pai foi goleiro e ponta-esquerda do Inter entre os anos 1912-17. O apelido dele era Peru e, quando criança, eu era o Peruzinho. Meu avô, avó, pai, eu, todos os filhos e netos, todos são colorados. Todo mundo é bi da América e futuro bi mundial, tchê. O mundo está dominado, está tudo dominado! (risadas)

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Sul21 – E, para terminar: no que a sua atuação na Feira diferirá dos antecessores?

PC – Ontem, eu falei com o presidente João Carneiro. A programação foi levemente alterada para agregar mais alguns eventos de cultura popular. Haverá então quatro ou cinco “momentos originais”, não tradicionalistas. São pessoas vivas que, com roupas originais, remontarão a formação do Rio Grande do Sul. Vão estar tocando se apresentando e cantando lá na feira. E eles terão momentos de saudação onde explicarão ao público o que estão representando, seja mouros ou cristãos, remontando as lutas ibéricas, as desconhecidas manifestações africanas calhambolas e também o tradicionalismo vigente nos dias atuais. Mas tudo ainda tem de ser ajustado ainda. Foi tudo muito intenso nos últimos dias, houve muito trabalho. A abertura será com matraca e não com sino. A matraca é como chamavam as pessoas no interior do estado. Não sei se somos belos ou maravilhosos, sei que somos autênticos e que ajudamos a formar o que está aí. E o pessoal da Feira está sendo sensível aos pedidos simples de um patrono um pouco diferente. (A esposa de Paixão Côrtes, Marina, diz que ele tem uma entrevista marcada com uma rádio de São José do Norte naquele minuto. Não obstante ela estar com o telefone na mão, os dois não têm pressa. Ela diz que foi contra a candidatura a Patrono da Feira.)

Marina – Dá muito trabalho cuidar dele…

PC – Ela diz isso por causa do meu marcapasso. (Sugiro que ele vá no ritmo do marcapasso. Ele dá uma gargalhada, leva-nos calma e gentilmente até a porta. No caminho, diz que ainda não almoçou. Eram 15h30.)

Obs.: Duas perguntas e respostas da entrevista foram copiadas do material escrito que Paixão Côrtes entregou ao Sul21 durante a entrevista. Uma delas é “E as moças?” e a outra foi “E o gaúchos, de onde saíram?”.

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A cidade-mico de Porto Alegre abre edital para uma “ópera-rock” baseada na Revolução Farroupilha

A cidade-mico de Porto Alegre abre edital para uma “ópera-rock” baseada na Revolução Farroupilha

Com a concordância do prefeito (sim, aquele mesmo que diz não ter dinheiro para nada), a Câmara Municipal de Porto Alegre abriu um edital de R$ 350 mil para que seja composta uma ópera-rock baseada na Revolução Farroupilha. Bem, a época deste gênero musical já está mais do que finda, só podendo ser coisa de quem não acompanha nem de longe o movimento cultural, parecendo mais um projeto pessoal de um sem-noção.

Moda no final dos anos 60 e início dos 70, as óperas-rock foram puxadas pelo excelente The Who, cujo principal compositor, Pete Townshend, escreveu a pioneira Tommy — OK, a primeira foi A Quick One, também do The Who — e a melhor de todas, Quadrophenia. Depois o gênero diluiu-se e foi parar nos musicais, onde morreu há muitos anos. Uma ópera-rock era simplesmente uma série de canções interligadas que, reunidas, contavam uma história, sem chegar a ser um drama musical como os de Wagner.

Na época das óperas-rock, as pessoas se vestiam assim, meu caros edis.

The Who na época de Tommy.
The Who (Townshend, Daltrey, Entwhistle e Moon, da esquerda para a direita) na época das óperas-rock | Foto: https://www.thewho.com/ Divulgação.

Mais: além da Câmara propor uma composição de gênero anacrônico, a tal “Revolução Farroupilha” sempre esteve longe de ser uma unanimidade no estado, mesmo na época em que ocorreu. A própria cidade de Porto Alegre não a apoiou. Talvez fosse adequado a nossos vereadores darem uma olhadinha no brasão de armas da cidade. Lá está escrito o lema “Mui Leal e Valerosa”. Esta frase está ali por NÃO termos apoiado os Farrapos. Desculpem, a verdade é algo incontrolável mesmo.

Gente, a Revolução Farroupilha não foi a luta do povo rio-grandense contra o Brasil. Uma parte importante dos moradores da província lutou a favor do Império. Nem mesmo na região da Campanha, tida como base dos farroupilhas, havia unanimidade. Muitos dos líderes militares e grandes estancieiros, que ali viviam, eram legalistas.

E ainda mais: a Câmara de Vereadores financiando um tema que não diz respeito exclusivamente a Porto Alegre é, no mínimo, estranha.

Li em algum lugar que seria melhor montar uma ópera sobre o tema. Até concordo. Por que não? Afinal, elas ainda são compostas e são populares. É um gênero vivo em Porto Alegre, onde as montagens lotam teatros. Mas gostaria de sublinhar que já existe uma ópera chamada Farrapos, conforme lembra o tenor Antonio Telvio. Ela foi estreada em 1935 ou 36 no Theatro São Pedro e é de autoria de Roberto Eggers (1889-1984), que também compôs Missões. Eggers foi uma figura bem conhecida na cidade — dirigiu o Orfeão Riograndense e foi Diretor Musical das Rádios Gaúcha e Farroupilha.

Para terminar, por que não propuseram simplesmente um musical ou uma ópera gaudéria? Talvez uma ópera-funk? Ah, Pete Townshend, que estrago você fez na cabeça de nossos ignorantes edis!

The Who hoje: só Townshend e Daltrey. Moon e Entwhistle já faleceram.
The Who hoje: só Townshend e Daltrey. Moon e Entwhistle já faleceram | Foto: https://www.thewho.com/ Divulgação

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