Perfil: há 55 anos o tenor Antônio Télvio de Oliveira solava a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa

Perfil: há 55 anos o tenor Antônio Télvio de Oliveira solava a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa

Milton Ribeiro

Antônio Télvio de Oliveira | Foto: Joana Berwanger / Sul21

Há uma canção de Chico Buarque, Sentimental, onde uma menina de 16 anos que acredita em astrologia afirma simplesmente que “o destino não quis”. Em outro gênero, realmente digno de uma Sherazade, a escritora dinamarquesa Karen Blixen escreveu 5 surpreendentes contos sob o título Anedotas do Destino. Também há uma frase atribuída a Woody Allen: “Se você quer fazer Deus rir, conte a ele seus planos”.

Tudo conspirava para que o jovem Antônio Télvio de Oliveira tivesse uma carreira internacional como tenor. Começou a carreira de maneira fulminante solando a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa sob a regência de Pablo Komlós, aos 22 anos. Depois, foi para fora do país, obteve bolsas e mais bolsas de estudo, só que o destino lhe preparou das suas. O mundo deu muitas voltas e Télvio se safou por ter também os talentos de desenhista e técnico em eletrônica. Mas sempre poderá dizer que cantou com Montserrat Caballé antes de ela cantar com Freddie Mercury.

Conversamos com Antônio Télvio em seu apartamento no bairro Petrópolis em Porto Alegre. Vamos à história.

Abaixo, um registro de 1966 onde você poderá ouvir sua voz de tenor. Esta gravação foi realizada na Capela do Colégio Rosário com o organista Camilo Vergara, o Coro de Meninos do Colégio Roque Gonzales e regência de Aloísio Staub.

Guia21: Teu nome completo é?

Télvio: Eu nasci no dia de Santo Antônio, por isso me botaram o nome de Antônio. Antônio Télvio Azambuja de Oliveira, mas eu nunca usei todo meu nome, às vezes uns jornais botavam Antônio Oliveira, outros botavam Antônio Télvio. Na Espanha, me chamavam de “Azambuia”.

Guia21: Como e quando começou o seu interesse pela música?

Télvio: A minha mãe era musicista amadora. Tocava piano de ouvido. A minha vó também tocava piano. A minha casa era muito musical.

Guia21: Faziam saraus na tua casa?

Télvio: Sim. Inclusive minha mãe tinha uma gaitinha de boca que era um chaveiro, ela tocava o Boi Barroso num chaveiro! Era uma musicista nata. Não tenho essa musicalidade.

Guia21: E então, como tudo começou?

Télvio: Bom, quando eu estava no ginásio, havia uns festivais de música, coisa do interior. Minha família era muito social e eu cantava de vez em quando. Então começaram a solicitar que eu cantasse. Eu alcançava uns agudos que nem sei como… Uma vez, nós fizemos uma excursão até Santa Maria para jogar futebol ou basquete. E, à noite, fomos a uma boate chamada Casbah. O local tinha uma decoração de casa de sultão. Aí eu, com meus colegas todos, todos de 18, 19 anos, ouvi alguém gritar: “Esse canta, esse aqui canta!”. E eu tive que cantar no meio de uma boate de estilo Oriente Médio.

Guia21: Sem acompanhamento?

Télvio: Na base da porrada, a cappella mesmo! Cantei umas canções napolitanas naqueles tapetes. Foi um aplauso danado. O cara da boate quis me contratar. Os meus amigos disseram pra ele: “Vai falar com o pai dele, que tu vai levar um corridão”. Meu pai não era muito desses negócios, era o tipo de cara que se escutasse uma buzina de automóvel ou uma canção, era a mesma coisa. E aquilo morreu por ali… Só que eu fiquei com aquilo na cabeça. Aquela música… Eu a cantava em casa. Depois começaram aquelas Ave Marias que eu era chamado para interpretar em casamentos de vez em quando. E eu pensei “Pô, vou estudar canto”.

Guia21: Nisso tu tinhas 16 anos, mais ou menos?

Télvio: Sim, 16, 17, por aí. Naquele tempo eu era meio vagabundo, terminei o ginásio só com 17, não gostava de estudar. Aí vim para o Colégio Rosário em Porto Alegre — vim para fazer o científico, atual segundo grau — e ao mesmo tempo me matriculei no curso preparatório de canto no IBA (Instituto de Belas Artes da Ufrgs) e comecei a estudar. Vamos abrir um parêntese? Minha família costumava veranear em Iraí, naquela estação de águas. Hoje não se fala mais nas águas termais de Iraí, mas naquela época Iraí era um lugar onde ia muita gente no verão… E, certa vez, estava lá dona Eni Camargo. Ela foi uma personalidade muito interessante aqui de Porto Alegre. Ela era cantora e professora na Ufrgs. No hotel onde ficávamos havia saraus de música em que ela cantava e tocava piano. Era uma veranista em Iraí, como nós. Então, em Porto Alegre, antes de começarem as aulas, eu a visitei. Fui lá, me apresentei e a Eni Camargo quis escutar alguma coisa. Eu lembro que cantei Torna a Sorrento. Aí ela olhou pro marido dela, o Osvaldo Camargo, e disse assim: “Olha aí, Osvaldo. Esse cara tem uma voz que parece a do Mario del Monaco. Eu nem sabia quem era Mario… Aí ela me aconselhou a estudar no Belas Artes com a professora Olga Pereira. Eu saí de lá e passei numa loja de discos para ver quem era esse Mario del Monaco, mas a minha voz não era parecida com a dele, nunca foi.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: E tu entraste no Belas Artes.

Télvio: Comecei a estudar lá em 1959. O canto é um negócio complicado, tu demoras para fazer alguma coisa que preste. Um ano antes de concluir o curso, eu fiz vestibular para Filosofia, que achei que seria fácil de passar. Passei. Entrei na Filosofia por causa do meu pai. Achava que tinha que dar satisfação pro velho, né? Ele queria Direito ou Engenharia. Ele pensava que o Canto não era sério — meu pai ficava estranho comigo quando o assunto era Canto, como se eu fosse viado, sabe como é. O curioso é que eu estudava Filosofia, Canto e gostava muito de eletrônica, vivia criando verdadeiras parafernálias, equipamentos.

Guia21: Tu sempre tiveste duas tendências então, da música e da eletrônica?

Télvio: Desenhava também, mas isso desenvolvi depois.

Guia21: Foi nessa época que tu cantaste a Nona de Beethoven com Pablo Komlós e a Ospa?

Télvio: Aconteceu o seguinte: com o advento do coral da Ufrgs, ficava mais fácil de fazer a Nona. Eu não lembro direito, mas tenho a impressão de que foi a própria Eni Camargo que me apresentou ao fundador do coral propondo que eu solasse a 9ª Sinfonia como tenor. Fui fazer um teste com o Komlós e ele gostou. O Komlós chegou e me disse “depois você vai fazer um dos personagens secundários da ópera Carmen”. Eu respondi que não ia fazer. Ele deve ter me achado o fim da picada, porque eu disse que ele, um dia, ia me convidar para fazer o papel principal. O Komlós me olhou como quem dissesse “que metido!”. (risos)

O Correio deu | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Como era a Ospa naquela época?

Télvio: Naquela época, não havia Ospa como fundação, mas sim como sociedade. Quem sustentava a Ospa era a colônia judaica, que fazia chás e não sei mais o que a fim de sustentar a orquestra. Não era ainda um esquema profissional. Além da sociedade judaica, os descendentes de alemães também ajudaram muito a música de Porto Alegre, eles tinham o Clube Haydn na Sogipa. Então, havia duas orquestras sinfônicas aqui. Para a 9ª, veio para cantar junto comigo o Lourival Braga, do Rio. Uma voz extraordinária, um barítono precioso. Foi uma loucura aquilo! Aí cantamos a 9ª Sinfonia de Beethoven, uma beleza!

Télvio está de óculos, sentado, bem no centro da foto, durante a execução da 9ª com a Ospa em abril de 1963 | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Onde foi?

Télvio: Foi no Salão de Atos da UFRGS, antes da reforma, claro (foto acima).

Guia21: E o medo do palco? Tu tinhas 21, 22 anos.

Télvio: Eu estava nervoso, é óbvio. Tem aquela história da famosa atriz francesa Sarah Bernhardt. Sarah tinha uma escola de teatro e costumava perguntar para os alunos se eles ficavam nervosos no palco. Um dizia “eu fico bastante nervoso, sim”, outro dizia “eu não fico nada nervoso, entro no palco sem medo” e ela respondia para estes, “é… o nervosismo vem com o talento”.

Guia21: Se o artista não está nem um pouco nervoso, não está mobilizado.

Télvio: Eu sempre fiquei muito nervoso antes de entrar no palco. Me borrando mesmo. Mas, no momento em que dava a primeira nota, eu começava a me sentir poderoso. Acho que com todo músico é assim, apesar de que a música que tu estás sentindo dentro de ti é diferente da que o outro está escutando. Ou seja, tu podes estar te achando o máximo e o resultado não ser o esperado. Quando terminou esse concerto, o presidente da Sociedade de Cultura Artística do Rio de Janeiro me disse que tinha uma bolsa de estudos para dar. Ele me escutou novamente no Belas Artes e me disse que ia me dar a tal bolsa. Eu fiquei num estado de animação total e comecei a contar para todo mundo que tinha ganhado a bolsa, mas não veio nada… Fui trouxa.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: E seguiste cantando.

Télvio: Depois da Nona, o Pablo Komlós me convidou para cantar O Rei Davi, de Honegger. Eu ensaiei esta ópera como um louco. Até hoje sei tudo de cor, sonho com aquela música. Eu estudei e ensaiei com unhas e dentes aquela música complicada acompanhado pelo pianista Hubertus Hoffmann. Um dia, o Hoffmann me diz que eu não iria cantar O Rei Davi… Que quem ia cantar era a Ida Weisfeld. Eu ri e respondi: “Isso é para tenor, não é para mezzo soprano”. E nem falei com o Komlós, pensei que fosse uma invenção dele. Só que o Komlós realmente fez aquele absurdo e eu ainda assisti. Ela cantou a parte do tenor, acredita? Depois, soube de duas informações contraditórias: a primeira era a de que eu fora considerado muito jovem para o papel, a segunda era a de que eu não tinha aparecido num ensaio geral — o que é uma mentira, eu não tinha sido era avisado. Então, neste ensaio, quando estavam todos me esperando, o Komlós perguntou se alguém podia fazer a minha parte e a Ida apareceu. Deu uma passadinha na partitura com o pianista Roberto Szidon — também ele cantava no coral — e ficou prontinha. É óbvio que aquilo foi uma armação deles, porque ninguém canta O Rei Davi sem muito ensaio, ninguém no mundo canta aquilo à primeira vista. Ela já viera preparada. Assim era a Ospa, um saco de gatos, uma coisa bagunçada, suja. O Komlós criava situações horríveis. Marcava três récitas, convidava a gente para a terceira e ela não saía. Só para fazer a gente ensaiar. Uma vez o Paulo Melo, outro cantor, disse que ia processá-lo se não saíssem todas as récitas. Aí saíram, claro. A Ospa tinha uma aura de sacanagem, de psicopatia.

Guia21: Mas tu acabaste viajando.

Télvio: Sim, com essa mesma 9ª Sinfonia, surgiu uma pequena possibilidade de um curso em Santiago de Compostela. Era um curso de três meses, mas não dava passagem de ida nem de volta. Fui falar com o maestro Komlós e falei pra ele “olha, o Belas Artes me deu uma carta de recomendação para o consulado espanhol”. Então ele escreveu outra, também me recomendando. Eu levei tudo ao consulado e a bolsa surgiu. Tinha um voo da Panair que saía do Rio com desconto só para portugueses e brasileiros. Meu pai fez uma vaquinha para me ajudar. Peguei um ônibus aqui, fui até o Rio e viajei. Passei três meses em Compostela. Só tinha cem dólares, menti para o meu pai que eles iam pagar a viagem de volta. A juventude é assim, né? Não sabia o que eu ia encontrar lá, eu não sabia nada! Parecia que as coisas de lá eram melhores do que tudo aqui, mas não era tanto assim. Na Espanha, cantei em várias audições e recitais, mas quando terminou o curso, bom, e agora José?

Guia21: Teus professores lá eram gente conhecida?

Em pé, Télvio e Montserrat Caballé | Foto: Arquivo Pessoal / Joana Berwanger / Sul21

Télvio: Sim. Um monte de lendas: Andrés Segovia, Montserrat Caballé, cantei com ela (foto acima). Estava cheio de artistas internacionais ali. Eu estava apaixonado por uma das cantoras, que era de Barcelona. Outros alunos já estavam se juntando para prestar um concurso em Barcelona e eu pensei “tenho que ir também”. Mas os meus cem dólares não davam cria, pelo contrário! Com recomendações, consegui uma bolsa de 6 meses junto ao Instituto de Cultura Hispânica. Me senti garantido. Me davam cem dólares por mês. Era o suficiente para uma vida bem modesta, então comecei a fazer outros trabalhos, eu sempre desenhei. Lá pelas tantas consegui trabalho. Passaram-se mais 6 meses e renovaram a bolsa. No final deste segundo período, minha professora me perguntou se eu queria retornar para Santiago de Compostela e fazer o curso de lá novamente, tinha todo ano. Eu disse que não, mas me deu medo de ficar sem dinheiro e no fim retornei para Santiago de Compostela, para ganhar por mais três meses. Lá em Compostela foi fantástico. Por exemplo, estreamos uma Cantata do argentino Isidro Maiztegui e eu fiz a parte do tenor.

Guia21: E a paixão?

Télvio: Todas estas andanças pela Europa foram crivadas de paixões por mulheres maravilhosas, muitas delas artistas. E o abandono daquilo lá me deixou muito amargurado. O Sérgio Faraco, que estudou na União Soviética, diz o mesmo. Aquelas mulheres… Entre as cantoras que eu conheci lá há uma que ficou muito famosa e com a qual eu não tive nenhum caso amoroso… Era a Montserrat Caballé. Uma tremenda cantora e um péssimo ser humano. Por exemplo, houve um momento em Compostela que uns cantores argentinos quiseram organizar um recital. E a Montserrat deu apoio, estava auxiliando em tudo. Só que numa aula, ela, com menosprezo, chamou algumas cantoras argentinas de índias. Bem, as argentinas se irritaram, claro. Os brasileiros se uniram a elas e ninguém cantou. Depois, ela foi convidada para cantar no Rio e São Paulo e teve seu visto negado por alguém que sabia daquelas ofensas. Deu a maior confusão e ela só pode vir em outra data. Cantou depois até em Pelotas. Era mais do que temperamental, era uma pessoa deselegante.

Guia21: Cantaste muito na Espanha?

Télvio: Sim, fiz algumas gravações em Barcelona e Madrid. Era estranho porque as pessoas diziam para eu cantar Mozart, mas eu preferia coisas mais pesadas.

Guia21: E no final desta sequência de cursos e bolsas de estudo?

Télvio: Eu falei com Hans von Benda, que se encontrava em Compostela, e ele me sugeriu estudar na Alemanha. Recebi dele uma carta de recomendação para eu levar na Embaixada Alemã. Fui na Embaixada em Madrid. Lá, é claro, me avisaram que eu, como brasileiro, deveria me dirigir à Embaixada da Alemanha no Brasil e não na Espanha. Então eu recebi uma carta que foi decisiva na minha vida. Era uma carta seca, escrita por meu pai, pedindo que eu retornasse imediatamente porque minha mãe estava muito doente, estava mal, seria internada, etc. Houve uma espécie de chantagem emocional, como tu verás. Antes de viajar, eu ainda cantei em Madrid. Lá, entre outras obras europeias, quase todas de câmara, eles sempre pediam para eu cantar brasileiros como Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno, etc.

Em catalão: um programa de um recital de Télvio em Barcelona | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: E voltaste…

Télvio: Sim, peguei os últimos dólares que tinha, comprei uma passagem de navio e voltei. 15 dias de viagem. Quando cheguei ao Rio, fui à Embaixada da Alemanha – era no Rio na época – e entreguei a carta para estudar lá.

Guia21: E foste ver a família.

Télvio: Bem, a situação familiar em Santiago não era nada trágica. Eles só queriam que eu voltasse. Quando encontrei minha mãe, ela estava bem e disse que quem estava doente era o meu pai. Enfim, era algo confuso. Ninguém estava doente, parecia. Vim para Porto Alegre e, passado um tempo, recebi a resposta dos alemães dizendo que eu tinha que me apresentar em Köln em determinado dia. Voltei a Santiago para me despedir e, talvez, conseguir algum dinheiro com o velho. Então, um tio meu, médico, me disse que meu pai tinha uma bomba no bolso, ou seja, que havia perigo de um enfarto. Me pediu para adiar a viagem em um ano. Concordei em ficar.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: Perigo.

Télvio: Pois é. Escrevi para a Alemanha solicitando adiamento e os alemães disseram que o adiamento dependeria do orçamento para o ano seguinte. E nunca mais. Eu perdi a oportunidade. Só isso.

Guia21: E o que fizeste?

Télvio: Enquanto eu esperava a tal chamada da Alemanha, voltei a trabalhar com desenho em Porto Alegre. Comecei a me desligar da música. Ainda cantei muito, mas aquilo marcou o início de meu afastamento. Neste período, o Komlós me convidou para cantar I Pagliacci. Eram duas récitas, numa eu ia cantar Canio e em outra o Arlequim. Naquele tempo, era no Araújo Vianna. Tinha um cara que tinha uma carroça puxada por um cavalo, que vendia lanches fora do auditório. E tu sabe que os palhaços tinham uma espécie de carroça onde ficava seu palco.

Guia21: Normal, em O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, os atores têm uma carroça. Eles abriam uma cortina e virava um palquinho…

Télvio: Isso! Exatamente isso! E naquele espetáculo, nós entrávamos, os cantores, os atores, dentro daquela carroça de lanches. O Araújo Vianna é redondo, tem portas largas e o carro entrava no palco conosco dentro cantando, com o cavalo puxando. E começava a história. De noite, o cavalo pastava no gramado ao lado do Araújo Viana. Nunca fugiu. Na segunda récita, veio a maior chuva, foi aquela correria de músicos, com os violinos, tudo. E a ópera não aconteceu mais.

Guia21: O Araújo não tinha cobertura na época.

Télvio: Sim, molhava tudo.

Guia21: E a carreira?

Télvio: Na verdade, eu poderia seguir a carreira de músico fazendo o que a maioria dos cantores fazem: dando aulas. Só que eu detesto dar aulas. Nesta volta, ainda fiz algumas gravações, mas já estava desistindo da carreira. Passado algum tempo, só desenhava e trabalhava com eletrônica. Abri mão de tudo, passei mais de dez anos sem cantar nada, sem dar uma nota. Então, com quase 40 anos, voltei a cantar óperas e cantatas de Bach e Buxtehude. Com a Ospa novamente, ali na Igreja Santa Cecília. A Ospa com suas fofocas e futricos… Bá, eu tinha uma raiva daquilo! Cantei Britten também naquela época.

O programa do concerto de Télvio e da Ospa apresentando Cantatas | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Sobre a tua desistência. Foi uma coisa do ambiente? Não tinha perspectiva?

Télvio: Se eu tivesse ficado na Europa, faria uma carreira musical. Aqui eu não tinha perspectiva. Ninguém tem como seguir só cantando. E eu não queria dar aula.

Guia21: Sim, os cantores dão aula. Quase todos eles dão aula, acho.

Télvio: Eu não gostava e tinha outras maneiras de ganhar dinheiro. Eu publicava revistas de quadrinhos, fazia desenhos para jornais. Cheguei a chefe do departamento de eletrônica da Narcosul Aparelhos Científicos, uma empresa que fabricava aparelhos eletrônicos voltados para a área médica.

Guia21: Sim. Tu te sustentavas, evidentemente. E o que tu publicavas em jornais?

Télvio: Eu criava desenhos para ilustrar matérias, cadernos, tudo. Tenho guardados vários trabalhos meus para o Jornal do Comércio.

Caderno sobre a Revolução Farroupilha ilustrado por Antônio Télvio | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Télvio: Já na Narcosul eu fiquei muitos anos. Trabalhei também na Parks com equipamentos para comunicação digital.

Guia21: Mas tu és formado em…

Télvio: Em nada. Fiz um ano de Filosofia só e larguei.

Guia21: Mas e a eletrônica? Como aprendeste, como ela entrou na tua vida?

Télvio: Eu sempre estudei eletrônica. Desde guri, só por diletantismo. Posso mostrar os equipamentos que eu fiz, tu não vai acreditar. Eu até hoje não acredito! No dia em que eu comecei a estudar computadores, a primeira coisa que fiz foi montar um. Fiz ligação por ligação. E funcionava!

Guia21: Mas disseste que voltaste a cantar lá pelo 40 anos.

Télvio: Eu cantava aqui e ali, em concertos e recitais. Com a Ospa, cantei uma operazinha regida pelo Túlio Belardi, mas já me considerava um diletante. Não ganhei dinheiro nenhum com aquilo, nem queria. Aí houve outro fato que aí sim, aí eu disse “não vou fazer mais porcaria nenhuma”. Iam fazer uma ópera sobre os Farrapos e outra sobre as Missões. O autor era Roberto Eggers, que foi o primeiro regente de orquestra aqui em Porto Alegre. Ele escreveu duas óperas: Missões e Farrapos. Dizem que neste fim de semana vão estrear a primeira obra musical que foi escrita sobre a Revolução Farroupilha, uma ópera rock… Não sabem de nada. Um dia, o Emílio Baldini, que era colega meu, professor, me levou até o Eggers para ele me escutar, para a gente fazer a ópera sobre Missões. Aprendi toda a Missões. No dia em que era para começar os ensaios…

Guia21: Isso foi depois do Belardi e as Cantatas?

Télvio: Sim, pós Belardi. Com a Ospa de novo… Confusão daqui, confusão dali, mudaram todo o elenco. O Eggers disse que não ia deixá-los fazer sua ópera. Eu respondi “não, não faz uma coisa dessas. Sou um amador, não vou ganhar dinheiro com isso. Tu não. Não seja bobo. Fica quieto”. Aí, disse para mim mesmo “Bom, encerro. Não quero mais saber desse troço. Enchi o saco”.

Guia21: Tu já estava na Narcosul nessa época.

Télvio: Sim.

Guia21: Na Narcosul tu eras o chefe da eletrônica, certo? E, no desenho, que que tu fizeste?

Télvio: Desenhava para propaganda, desenhava charges, ilustrava matérias, fazia figuras de pessoas. Todo o dia o Jornal do Comércio tinha um desenho meu. Eu guardei algumas coisas, devia ter guardado mais, mas, na época, não dava valor para aquilo.

Matéria do Jornal do Comércio com ilustração de Antônio Télvio | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: E aí tu te tornaste um ouvinte do PQP Bach.

Télvio: Um grande ouvinte do PQP Bach. Tenho muita coisa de lá.

Guia21: E que papel tem a música hoje na tua vida?

Télvio: Olha, cara, hoje eu estou aposentado, fico no meu canto, mas ouço muita música, sim.

Guia21: Tu passa os dias escutando música?

Télvio: Não. Nunca pensei quanto tempo eu escuto música, mas é bastante. Eu ouço bastante. Só que certamente não ouço mais do que tu.

Guia21: Ouço mais ou menos uma hora por dia.

Télvio: Eu até ouço mais, às vezes.

Guia21: Tu cantarolas por aí?

Télvio: Não. Nada.

Guia21: Nada?

Télvio: Nada.

Guia21: Se tu te entusiasma por alguma coisa, tu não canta?

Télvio: Não canto. Há umas gravações minhas por aí, nem ouço mais. Também fiz várias edições extraordinárias em jornais onde eu desenhava tudo de cabo a rabo, mas não fico olhando.

Guia21: E tu frequentas concertos?

Télvio: Pouco. Esses dias fui ver o ensaio de uma ópera de Mozart. Não cantaram duas árias porque o tenor estava doente. Ele cantou outras, mais fáceis. Não tinha substituto! Isso é inconcebível num lugar sério. Aliás, as substituições são muito comuns, inclusive. Acontece de bons cantores substitutos se aproveitarem dessas oportunidades e roubarem a cena. Isto é, pelo visto a coisa não mudou tanto assim em todos esses anos. Olha, quando tu tens apenas uma opção de vida, “só posso ser cantor”, tu tenta de novo, tu insistes. Quando tu tem várias — eu tinha a eletrônica e o desenho que também me satisfaziam internamente –, tu buscas outra saída.

Guia21: Tu não ficaste frustrado?

Télvio: Eu sempre seria frustrado, porque é impossível abraçar tudo.

Guia21: Porque hoje tu tens 77 anos e a gente ouve que tu ainda tens equipamento, uma voz muito bonita e forte.

Télvio: É, sempre tive uma voz forte, dizem que boa…

Guia21: Isso eu estou ouvindo.

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Com decupagem de Nikolay Romanov e revisão de Elena Romanov.

George Steiner: “Estamos matando os sonhos de nossos filhos”

George Steiner: “Estamos matando os sonhos de nossos filhos”

No El País — Cultura

Aos 88 anos, o filósofo e ensaísta denuncia que a má educação ameaça o futuro dos jovens

George Steiner, em sua casa em Cambridge | Antonio Olmos
George Steiner, em sua casa em Cambridge | Antonio Olmos

Primeiro foi um fax. Ninguém respondeu à arqueológica tentativa. Depois, uma carta postal (sim, aquelas relíquias que consistem em um papel escrito colocado em um envelope). “Não responderá, está doente”, avisou alguém que lhe conhece bem. Poucos dias depois, chegou a resposta. Carta por avião com o selo do Royal Mail e o perfil da Rainha da Inglaterra. No cabeçalho, estava escrito: Churchill College. Cambridge.

O breve texto dizia assim:

Prezado senhor,
O ano 88º e uma saúde incerta. Mas sua visita seria uma honra.
Com meus melhores votos.
George Steiner.

Dois meses depois, o velho professor havia dito “sim”, colocando um término provisório à sua proverbial aversão às entrevistas.

O professor de literatura comparada, o leitor de latim e grego, a eminência de Princeton, Stanford, Genebra e Cambridge; o filho de judeus vienenses que fugiram dos nazistas, primeiro a Paris e, em seguida, a Nova York; o filósofo das coisas do ontem, do hoje e do amanhã; o Prêmio Príncipe de Astúrias de Comunicação e Humanidades em 2001; o polemista e mitólogo poliglota e autor de livros vitais do pensamento moderno, da história e da semiótica, como Errata — Revisões de Uma Vida, Nostalgia do Absoluto, A Ideia de Europa, Tolstoi ou Dostoievski ou A Poesia do Pensamento, abriu as portas de sua linda casinha de Barrow Road.

O pretexto: os dois livros que a editora Siruela publicou recentemente em espanhol. De um lado, Fragmentos, um minúsculo, ainda que denso compêndio de algumas das questões que obcecam o autor, como a morte e a eutanásia, a amizade e o amor, a religião e seus perigos, o poder do dinheiro ou as difusas fronteiras entre o bem e o mal. De outro, Un Largo Sábado, um inebriante livro de conversas entre Steiner e a jornalista e filóloga francesa Laure Adler.

O motivo real: falar sobre o que fosse surgindo.

É uma manhã chuvosa no interior de Cambridge. Zara, a encantadora esposa de George Steiner (Paris, 1929), traz café e bolos. O professor e seus 12.000 livros olham o visitante de frente.

Pergunta. Professor Steiner, a primeira pergunta é como está sua saúde.

Resposta. Ah, muito ruim, infelizmente. Já tenho 88 anos, e a coisa não vai bem, mas não tem problema. Tive e tenho muita sorte na vida, e agora a coisa vai mal, embora ainda tenha alguns dias bons.

P. Quando alguém se sente mal… é inevitável sentir nostalgia dos dias felizes? O senhor foge da nostalgia ou pode ser um refúgio?

R. Não, a impressão que se tem é de ter deixado de fazer muitas coisas importantes na vida. E de não ter compreendido totalmente até que ponto a velhice é um problema, esse enfraquecimento progressivo. O que mais me perturba é o medo da demência. Ao nosso redor, o Alzheimer faz estragos. Então, para lutar contra isso, faço todos os dias exercícios de memória e atenção.

P. E como são?

R. Você vai se divertir com o que vou contar. Eu me levanto, vou para o meu pequeno estúdio de trabalho e escolho um livro, não importa qual, aleatoriamente, e traduzo uma passagem para os meus quatro idiomas. Faço isso principalmente para manter a segurança de que conservo meu caráter poliglota, que é para mim o mais importante, o que define a minha trajetória e meu trabalho. Tento fazer isso todos os dias… e certamente parece ajudar.

P. Inglês, francês, alemão e italiano…

R. Isso mesmo.

P. Continua lendo Parmênides todas as manhãs?

R. Parmênides, claro… bem, ou outro filósofo. Ou um poeta. A poesia me ajuda a concentrar, porque ajuda a memorizar, e eu, sempre, como professor, defendi a memorização. Eu adoro. Carrego dentro de mim muita poesia; é, como dizer, as outras vidas da minha vida.

P. A poesia vive… ou melhor, no mundo de hoje sobrevive. Alguns a consideram quase suspeita.

R. Estou enojado com a educação escolar de hoje, que é uma fábrica de incultos e que não respeita a memória. E que não faz nada para que as crianças aprendam as coisas com a memorização. O poema que vive em nós, vive conosco, muda conosco e tem a ver com uma função muito mais profunda do que a do cérebro. Representa a sensibilidade, a personalidade.

P. É otimista em relação ao futuro da poesia?

R. Extremamente otimista. Vivemos uma grande época de poesia, especialmente entre os jovens. E escute uma coisa: muito lentamente, os meios eletrônicos estão começando a retroceder. O livro tradicional retorna, as pessoas o preferem ao kindle… Preferem pegar um bom livro de poesia em papel, tocá-lo, cheirá-lo, lê-lo. Mas há algo que me preocupa: os jovens já não têm tempo… De ter tempo. Nunca a aceleração quase mecânica das rotinas vitais tem sido tão forte como hoje. E é preciso ter tempo para buscar tempo. E outra coisa: não há que ter medo do silêncio. O medo das crianças ao silêncio me dá medo. Apenas o silêncio nos ensina a encontrar o essencial em nós.

P. O barulho e a pressa… Não acha que vivemos com muita pressa? Como se a vida fosse uma corrida de velocidade e não uma corrida de fundo… Não estamos educando nossos filhos com muita pressa?

R. Deixe-me ampliar esta questão e dizer-lhe algo: estamos matando os sonhos de nossos filhos. Quando eu era criança, existia a possibilidade de cometer grandes erros. O ser humano os cometeu: o fascismo, o nazismo, o comunismo… Mas, se você não pode cometer erros quando jovem, nunca se tornará um ser humano completo e puro. Os erros e esperanças desfeitas nos ajudam a completar o estágio adulto. Nós erramos em tudo, no fascismo e no comunismo e, na minha opinião, também no sionismo. Mas é muito mais importante cometer erros do que tentar entender tudo desde o início e de uma vez só. É dramático ter claro aos 18 anos o que você tem que fazer e o que não.

P. O senhor fala da utopia e de seu oposto, da ditadura da certeza…

R. Muitos dizem que as utopias são idiotices. Mas, em qualquer caso, serão idiotices vitais. Um professor que não deixa seus alunos pensar em utopias e errar é um péssimo professor.

P. Não está claro por que o erro tem uma fama tão ruim, mas o fato é que essas sociedades extremamente utilitaristas e competitivas possuem essa imagem negativa.

R. O erro é o ponto de partida da criação. Se temos medo de cometer erros, nunca podemos assumir os grandes desafios, os riscos. É que o erro retornará? É possível, é possível, existem alguns sinais. Mas ser jovem hoje em dia não é fácil. O que estamos deixando a eles? Nada. Incluindo a Europa, que já não tem mais nada para lhes oferecer. O dinheiro nunca falou tão alto quanto agora. O cheiro do dinheiro nos sufoca, e isso não tem nada a ver com o capitalismo ou o marxismo. Quando eu estudava, as pessoas queriam ser membros do Parlamento, funcionários públicos, professores… Hoje mesmo a criança cheira o dinheiro, e o único objetivo já parece querer ser rico. E a isso se soma o enorme desprezo dos políticos em relação aos que não têm dinheiro. Para eles, somos apenas uns pobres idiotas. E isso Karl Marx viu com bastante antecedência. No entanto, nem Freud nem a psicanálise, com toda sua capacidade de análise dos traços patológicos, foram capazes de compreender nada disso.

P. O senhor não se simpatiza muito com a psicanálise… É o que dá a entender.

R. A psicanálise é um luxo da burguesia. Para mim, a dignidade humana consiste em ter segredos, e a ideia de pagar alguém para ouvir seus segredos e intimidades me enoja. É como a confissão, mas com um cheque. É o segredo que nos torna fortes, por isso todos meus trabalhos sobre Antígona, que diz: “Posso estar errada, mas continuo sendo eu”. De qualquer forma, a psicanálise está em plena crise. Lembre-se das palavras magníficas de Karl Kraus, o satirista vienense: “A psicanálise é a única cura que inventou sua doença”.

P. E Sigmund Freud?

R. Freud é um dos maiores mitólogos da história. Mas se trata de ficção. Era um romancista excepcional.

Neste momento, George Steiner se levanta, avança lentamente em direção à sua imensa biblioteca e tira de dentro de um velho volume um cartão de visita amarelado escrito à mão em alemão: é um cumprimento de Sigmund Freud aos pais se Steiner por ocasião de seu casamento. “Meu pai o conheceu, eles passeavam juntos na beira do rio”.

P. Retomemos a questão do poder do dinheiro. O senhor tem alguma explicação válida, de um ponto de vista filosófico, de por que os eleitores da Itália, em um determinado momento, e atualmente os da Espanha, decidiram alçar ao poder partidos políticos enfiados até o pescoço na corrupção?

R. Porque existe uma gigantesca abdicação da política. A política tem perdido terreno no mundo todo, as pessoas já não acreditam nela, e isso é muito perigoso. É Aristóteles quem diz: “Se você não quer entrar na política, na ágora pública, e prefere ficar em sua vida privada, então não venha se queixar depois de que são os bandidos que governam”.

P. A velha e tão atual figura da idiotice aristotélica…

R. Exatamente. Uma figura muito atual. Bem, pois eu sinto vergonha de ter gozado desse luxo privado de poder estudar e escrever e não ter querido entrar para a ágora. Eu me pergunto o que ocorrerá com o fenômeno das estruturas políticas em si mesmas. Por todos os lados, triunfam o regionalismo, o localismo, o nacionalismo…é o retorno dos vilarejos. Quando se vê alguém como Donald Trump ser levado a sério pela democracia mais complexa do mundo, tudo é possível.

P. Como o senhor enxerga uma eventual vitória de Trump?

R. Isso não vai acontecer. Hillary irá ganhar. Mas será uma vitória triste, porque essa mulher está esgotada, triturada interiormente. E Putin, então? A violência de uma pessoa como ele parece acalmar as pessoas que não acreditam mais na política, elas os reconforta. Por isso é que o despotismo é o contrário da política.

P. E a relação entre política e cultura? Como vê isso? Outra pergunta: o senhor compartilha a sensação —muito pessoal e subjetiva, por outro lado— de que a cultura, no sentido das “artes”, está estancada, ao contrário dos avanços científicos, que não param de acontecer?

R. É delicado falar sobre isso. Estamos, eu e você, em uma pequena cidade inglesa como Cambridge, onde, desde o século XII, cada geração produziu gigantes da ciência. Hoje em dia, há 11 prêmios Nobel por aqui. Daqui saíram Newton, Darwin, Hawking… Para mim, o símbolo do avanço irrefreável da ciência é Stephen Hawking. Mal consegue mover uma parte de suas sobrancelhas, mas a sua mente nos levou à extremidade do universo. Nenhum romancista, dramaturgo, poeta ou artista, nem mesmo Shakespeare, teria ousado inventar um personagem como Stephen Hawking. Bem. Se você e eu fôssemos cientistas, o tom da nossa conversa seria outro, seria muito mais otimista, pois hoje, toda semana a ciência descobre alguma coisa nova que não conhecíamos na semana passada. Em contrapartida – e isso que lhe digo é totalmente irracional, e espero estar enganado –, o instinto me diz que não teremos amanhã nenhum novo Shakespeare, um novo Mozart ou Beethoven, nem um Michelangelo, um Dante ou um Cervantes. Mas eu sei que teremos um novo Newton, um novo Einstein, um novo Darwin… Sem dúvida alguma. Isso me assusta, porque uma cultura desprovida de grandes obras estéticas é uma cultura pobre. Estamos muito distantes dos gigantes do passado. Espero estar enganado e que o próximo Proust ou Joyce esteja nascendo na casa aqui na frente!

P. O senhor diferencia a “alta” cultura e a “baixa” cultura, como fazem alguns intelectuais de renome, visivelmente incomodados com formas da cultura popular como os quadrinhos, a arte urbana, o pop ou o rock, para as quais se chegou a criar o rótulo de “civilização do espetáculo”?

R. Vou lhe dizer uma coisa: Shakespeare teria adorado a televisão. Ele escreveria para a televisão. E não, eu não faço esse tipo de distinção. O que realmente me entristece é que as pequenas livrarias, os teatros de bairro e as lojas de discos estejam fechando. Por outro lado, os museus estão cada vez mais cheios, as multidões lotam as grandes exposições, as salas de concerto estão cheias… Portanto, cuidado, porque esses processos são muito complexos e diversificados para se querer fazer julgamentos generalizantes. O senhor Muhammed Ali era também um fenômeno estético. Como um deus grego. Homero teria entendido perfeitamente Muhammed Ali.

P. Acredita que veremos a morte da cultura como portadora de formas clássicas já batidas, com sua substituição por outras formas novas?

R. Talvez. Talvez a cultura clássica de caráter patriarcal esteja morrendo e que estejam surgindo formas novas, intermediárias, como uma cultura hermafrodita, bissexual, transexual, e para a qual a mulher contribuirá de uma forma muito especial no sentido de se resgatarem os sonhos e as utopias… Por falar em transexuais e bissexuais, certamente Freud não os viu chegar!

P. O senhor disse certa vez que se arrependia de não ter se arriscado no mundo da criação. Isso é uma espinha travada na garganta?

R. É verdade. Fiz poesia, mas logo me dei conta de que o que estava fazendo eram versos, e o verso é o maior inimigo da poesia. E eu disse também — e há quem jamais tenha me perdoado por isso — que o maior dos críticos é minúsculo diante de um criador. Portanto, vamos deixar claro, e não vamos nos iludir. Eu sou apenas um carteiro, eu sou O Carteiro [referência ao filme O Carteiro e o Poeta]. E me sinto muito orgulhoso disso, de ter entregue as cartas muito bem a tantos e tantos alunos. Mas não tenhamos ilusões.

P. Quem não o perdoou por isso? Colegas seus da universidade?

R. Sim. O que acontece é que existe na universidade uma vaidade descomunal. E cai mal, para eles, que alguém lhes diga claramente que eles são uns parasitas. Parasitas na juba do leão.

P. O crescente desprezo político pelas humanidades é algo desolador. Pelo menos na Espanha. A filosofia, a literatura, ou a história são cada vez mais marginalizadas nos planos educacionais.

R. Isso também acontece na Inglaterra, embora ainda existam algumas exceções em escolas particulares de elite. Mas o próprio conceito de elite já é inaceitável no discurso democrático. Se você soubesse como era a educação nas escolas inglesas antes de 1914… Ocorre que, entre agosto de 1914 e abril de 1945, cerca de 72 milhões de homens, mulheres e crianças foram massacrados na Europa e no oeste da Rússia. É um milagre que a Europa ainda exista! E vou lhe dizer uma coisa em relação a isso: uma civilização que extermina os seus judeus nunca mais conseguirá recuperar aquilo que ela foi antes. Sei que irritarei alguns antissemitas, mas a vida universitária alemã nunca mais foi a mesma sem esses judeus. Uma civilização que mata os seus judeus está matando o seu próprio futuro. Mas, bem, hoje existem 13 milhões de judeus no mundo, mais do que antes do Holocausto.

P. Isso é incrível.

R. Escandaloso! Um escândalo gigantesco!

P. Como o senhor vê o futuro do ser humano? É otimista ou pessimista?

R. O futuro… Não sei. Toda profecia é apenas memória ativa, não se pode prever nada, apenas olhar no retrovisor da história e contar para nós mesmos histórias sobre o futuro. Com certeza haverá duas ou três grandes novas descobertas científicas no campo da genética que introduzirão problemas de ordem moral terrivelmente complexos. Por exemplo: permitiremos que se manipulem as células de um feto?

P. Colocar um freio no avanço científico será também um problema moral…

R. Exatamente. Que direito nós temos? Eu, por exemplo, sou um partidário muito firme da eutanásia. Nós, os velhos, muitas vezes acabamos destruindo a vida dos mais novos, que têm de ficar nos carregando nas costas. Eu adoraria ter o direito de dizer “Obrigado, foi maravilhoso, mas agora chega”. Esse dia ainda vai chegar. Na Holanda e na Escandinávia, já está quase aprovado… Não temos mais recursos para manter vivas tantas pessoas senis ou mesmo dementes. Isso vai de encontro à felicidade de muita gente. Não é justo.

P. Quais momentos ou fatos acha que mais forjaram a sua forma de ser? Entendo que ter que fugir do nazismo junto com seus pais e viajar de Paris a Nova York – magistralmente lembrado em seu livro Errata – é um dos fundamentais, levando em conta que…

R. Direi algo que vai causar impacto. Eu devo tudo a Hitler. Minhas escolas, meus idiomas, minhas leituras, minhas viagens… tudo. Em todos os lugares e situações há coisas a aprender. Nenhum lugar é chato se me dão uma mesa, bom café e alguns livros. Isso é uma pátria. “Nada humano me é alheio”. Por que Heidegger é tão importante para mim? Porque nos ensina que somos os convidados da vida. E temos que aprender a sermos bons convidados. E, como judeu, ter sempre a mala pronta, e se tiver que partir, partir. E não se queixar.

Enéas de Souza: “O cinema foi minha verdadeira educação”

Enéas de Souza: “O cinema foi minha verdadeira educação”
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Enéas de Souza é tão multifacetado que precisamos alertar que esta entrevista não é sobre economia, nem filosofia, nem psicanálise. É sobre cinema. Porém, todas as faces que formam este grande humanista são inseparáveis. Suas críticas cinematográficas jamais deixam de lado o economista, filósofo e psicanalista. Então, o leitor deve reformular o início deste parágrafo. O cinema é apenas o ponto de partida.

Conversar com Enéas de Souza faz o tempo passar rápido. Muito culto, de trato fácil e gentilíssimo, ele fez com que nosso encontro ao final da tarde de quarta-feira fluísse de tal forma que o diálogo foi finalizado, sem que notássemos, em plena escuridão. O pretexto era o cinquentenário de seu livro Trajetórias do Cinema Moderno, publicado pela primeira vez em 1965 e que recebeu várias edições, revisões e ampliações nestas cinco décadas.

Eu possuía a edição original do livro. Enéas viu meu pequeno volume, foi à biblioteca e me presenteou com a última edição. Ela tem o dobro do tamanho do original.

Os leitores do Sul21, acostumados ao colunista Enéas de Souza, talvez estranhem o que seria um lado B do grande economista. Tentei preservar o tom coloquial que mantivemos na sala cheia de livros e DVDs do apartamento do entrevistado.

“Na época era assim. Passava um filme. Se tu não o visses duas, três, dez vezes na primeira semana, talvez nunca mais o visses” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 — Como surgiu o livro Trajetórias do Cinema Moderno?

Enéas de Souza — De tanto ver filmes. Na época era assim. Passava um filme. Se tu não o visses duas, três, dez vezes na primeira semana, talvez nunca mais o visses. Às vezes, dois ou três anos depois, vinha uma reprise, mas não era garantido. É curioso, há muitos autores que eu adorava, mas que não estão nesse livro porque eu não tinha condições de revê-los. Hitchcock é um exemplo. Quando o Ruy Carlos Ostermann me convidou pra escrever o livro, eu tinha na cabeça alguns filmes que tinha visto recentemente. Outros não. Por exemplo: o cinema americano – que é uma filmografia de que gosto bastante — não tinha. Como é que eu ia escrever sobre Raoul Walsh, se não conseguia ver muitas vezes seus filmes? Então, era muito difícil escrever alguma coisa. Claro, a grande novidade que o livro possui é a de falar longamente sobre o cinema brasileiro. Na época, escrevia-se muito pouco a respeito. Por exemplo, sobre o Joaquim Pedro de Andrade, que eu gosto muito, não pude escrever porque tinha visto só uma ou duas vezes. Tudo o que é citado no livro veio de memória. Hoje, tu sentas e vê vinte vezes o mesmo filme em todos os detalhes. Na época não dava.

Sul21 – Aos 27 anos tu escreveste o Trajetórias. Eu queria que tu falasses um pouco da tua formação. Me conta como chegaste a ele.

Enéas de Souza — Na verdade eu sempre vi muito cinema, desde pequeno. Minha mãe me levava no cinema quando eu era guri. Meu pai gostava bastante de cinema também. A gente ia junto. Naquela época, as famílias iam juntas ao cinema. Meu pai gostava muito de música, adorava Chopin. Eu lembro que tinha um filme, À noite sonhamos... É uma cinebiografia de Chopin. Acho que o vimos um monte de vezes, porque ele nos levava sempre. A minha avó tocava no cinema mudo, era pianista. Então havia uma cultura cinematográfica na minha família. E eu era um grande vagabundo. Eu não queria fazer grande coisa. E cheguei à conclusão que seria uma boa ideia fazer Filosofia, pois a partir dela poderia pensar tudo, até o cinema. Aí fiz vestibular, passei e logo vi que era mesmo o melhor para mim. A primeira coisa que me inquietou muito foi o fato de que, na época, se dizia que o único pensar era a Filosofia. E eu combatia esta ideia. A obra de arte pensa, a música pensa e, obviamente, o cinema também pensa. Na época, muita gente dizia que cinema não era arte, por incrível que pareça. Foi aí que eu comecei a vincular meu passado histórico de ver cinema, a minha capacidade de poder de interpretar o cinema, à filosofia. Isso me possibilitou ver o cinema de uma forma um pouco diferente. O cinema era uma forma de pensar.

“A Rua da Praia era um grande teatro de discussão, era a nossa ágora grega de Porto Alegre” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 — E a crítica?

Enéas de Souza — A critica de cinema em Porto Alegre da minha geração tinha uma presença muito forte nas publicações e na cultura do RS. Tem uma coisa importante nessa realidade: nós, no Brasil, tanto os cineastas quanto os críticos, viemos da literatura. Essa passagem da literatura para o cinema se fez por uma verdadeira pedagogia prática da cinematografia. A gente discutia e debatia muito. A Rua da Praia era um grande teatro de discussão, era a nossa ágora grega de Porto Alegre. A gente discutia no Matheus e na frente do relógio, na esquina da Ladeira com a Rua da Praia. O cinema tinha horários fixos – 14, 16, 18, 20 e 22h – era fácil de se encontrar. Saíamos do cinema e pronto. Eram 6, 7 ou 8 estreias na semana. Nós víamos todos os filmes. Então existia um ambiente cultural muito forte em termos cinematográficos. O Hélio Nascimento escrevia diariamente em jornais, o P. F. Gastal também. Eu escrevia na Revista do Globo. O Gastal abria espaço para nós escrevermos no Correio do Povo e depois na Folha da Manhã. Os outros eram o Goida, o Zé Onofre e outros. A gente vivia de cinema. Era um amor fantástico.

Sul21 – E a economia, como ela entrou na tua vida?

Enéas de Souza — Bem, isso foi muito depois. Na verdade esse período cinematográfico entra 1964 adentro. A derrota das forças políticas de esquerda e a ditadura transformaram a crônica cinematográfica. Ficou muito difícil escrever. Tínhamos muitos filmes que refletiam o movimento mundial de repensar o capitalismo. Descrever isso era um problema. Para tentar entender o que aconteceu com o Brasil, eu fui fazer Economia. Quando eu estava na Filosofia, comecei a ler textos do Celso Furtado. Foi ele quem me abriu as portas desta área. Então eu fiz Economia aqui na UFRGS e depois na Unicamp. Lá na Unicamp eu peguei a ‘’nata’’ dos economistas da época: a Maria da Conceição Tavares, o Beluzzo, o Antonio Barros de Castro e uma série de outros economistas importantes. O próprio Serra foi meu professor. A Unicamp era uma universidade que aproximava alunos e professores, sobretudo quando os professores moravam em Campinas. A gente ia na casa deles. Eu nunca estudei com tanto entusiasmo como nessa época. Fui para Campinas em 77. Em 79, voltei pra cá.

“O cinema foi a verdadeira educação, uma possibilidade imensa de refletir sobre os valores do mundo” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – E a psicanálise?

Enéas de Souza — A psicanálise vem ainda depois. A questão da subjetividade não era incorporada nessas análises de economia. Mas me interessavam. Qual era a natureza do sujeito? E a sua expressão? Nada mais próximo da psicanálise do que a expressão, a palavra, o desejo… Todas essas coisas se misturaram, mas eu continuava sempre atento ao cinema, apesar de ter parado um tempo de escrever sobre ele.

Sul21 – Mas, com tantas atividades, a psicanálise não veio como diletantismo, não chegaste lá como autodidata?

Enéas de Souza — Essa é uma história muito curiosa. Eu fui pro Rio de Janeiro porque fora escolhido como diretor da Finep, financiadora de estudos e projetos, que é um órgão que apoia as universidades, a pesquisa universitária e também empresas que fazem renovação em pesquisas tecnológicas. Eu me interessava pela psicanálise, mas não tinha muito tempo nem sequer de ler. Acontece que eu passava tanto tempo em aeroportos, que comecei a ler os livros de Lacan. Quando fui a Paris nos anos 70, conheci Lacan. Eu era um cara da filosofia que gostava dele. Os outros meus colegas o achavam abominável. Assisti as aulas dele por um determinado período lá e achei o cara espetacular, de ideias interessantíssimas. Este amálgama todo me suscitou uma série de questões. Creio que a pessoa que se dedica à filosofia, deve se preocupar com todas as coisas. O movimento em direção à psicanálise e à política foi natural. Eu fui Secretário de Tecnologia, Sub-secretário de Desenvolvimento, mas, olha, te garanto que o cinema foi a verdadeira educação, uma possibilidade imensa de refletir sobre os valores do mundo, sobre as pessoas, sobre as relações humanas, sobre tudo.

“Quando terminou o filme, eram mais de 50 pessoas no meio da rua, discutindo em pequenos grupos” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Qual é a diferença do teu entusiasmo com cinema nos anos 60 e o que veio depois?

Enéas de Souza — Olha, o cinema tem um olhar e um pensamento muito fortes sobre a realidade contemporânea. Nunca perdi meu entusiasmo, porque através do cinema tu consegues enxergar as tendências que a sociedade está desenvolvendo, o nível das relações humanas, o nível das relações sociais e seus valores, de como eles vão se desenvolvendo. Digamos que o entusiasmo foi variando mas nunca diminuiu. Eu tive uma formação absolutamente singular, porque a minha formação foi Filosofia, mas aí o que é que eu fazia: eu começava a me preocupar sobre o que quer dizer o filme. Lia sempre o Cahiers du Cinéma. Lembro de um filme que me motivou uma grande reflexão, que foi A Marca da Maldade, do Orson Welles. Na revista tinha uma grande quantidade de trabalhos a respeito do filme, aquilo foi extraordinário. Na época em que nós começamos a discutir o cinema, acontecia o seguinte: os filmes levavam seis meses para chegar aqui. Então eu via o filme e eu lia o Cahiers depois. Lendo o Bazin e o Cahiers era inevitável criar uma metodologia de análise. O Cahiers foi a grande fonte. O Bazin foi um critico excepcional, ele tinha uma formação existencialista muito forte e a revista também tinha outros autores, que depois se tornaram grandes gênios do cinema, como Godard, Truffaut, Rivette, etc. Além disso, tinha um companheiro de geração um pouco mais velho que eles, que era o Resnais. Logo saiu o Hiroshima mon amour, que foi um sucesso. Eu lembro que o vi no cinema Ópera, entre a rua Uruguai e a Ladeira. O Hiroshima foi uma coisa de imenso impacto. Tinha uma utilização muito forte da palavra, com aqueles versos recitativos. Para tu imaginares o impacto disso, tens que considerar o contexto: havia filmes de detetive, de faroeste, tudo com muita ação e de repente aparece um cinema altamente poético, com as pessoas verbalizando versos líricos. Nós passamos dias discutindo Hiroshima.

Sul21 – O cinema é ideal como material de discussão. Por exemplo: uma pessoa média leva mais ou menos uma semana pra ler um livro. Um filme tem uma duração determinada e bem mais curta. É mais fácil de eu conhecer um filme em comum contigo do que um livro.

Enéas de Souza — Esta é outra vantagem, claro, a possibilidade de tu veres um filme em duas horas e de teus colegas terem visto mais ou menos ao mesmo tempo. Vimos o Hiroshima, saímos para a rua e havia pessoas discutindo a respeito. Agora, o filme que mais rendeu discussões e debates foi O ano passado em Marienbad, que era geométrico, matemático, cheio de dificuldades. Eu me lembro que, quando terminou o filme, eram mais de 50 pessoas no meio da rua em pequenos grupos. Os mais velhos estavam furiosos dizendo que aquilo era um absurdo. Nós, jovens, entendendo ou não o filme, adoramos.

“Um filme é tão complexo que tu tens que ver várias vezes para entender cada uma de suas dimensões” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Tu disseste uma vez que um filme exige muito mais que um romance ou artes plásticas.

Enéas de Souza — Provavelmente, o que eu queria dizer é que o filme tem múltiplas dimensões. Em primeiro lugar, ele é imagem visual. Para tu leres uma imagem visual, para decodificá-la, entender o que está escrito, tu tens que pegar muitos aspectos. A direção, as escolhas, a encenação, a montagem, os cortes. Então é bem complicado. Um filme é roteiro, encenação, filmagem e montagem. Além disso é sonoro, é imagem sonora. E no som tu tens o ruído, as vozes e a música. Ora, para tu captares tudo isso em movimento, a dificuldade é muito grande. Quer dizer: as pessoas muitas vezes se surpreendem quando eu digo que vi dez vezes um filme. Mas como tu viste dez vezes? Não encheu o saco? Eu digo que não, porque eu estou vendo outras coisas no filme. Ou seja, um filme é tão complexo que tu tens que ver várias vezes para entender cada uma de suas dimensões. A apreensão e a inteligibilidade dos filmes são difíceis de assimilar porque o filme passa rapidamente e muitas vezes tu não consegues captar tudo. Quando tu vês pela quinta ou sexta vez, já sabes o que os caras falaram e vês mais diretamente o filme. Então, o que eu estava querendo dizer com isso é que há muitos itens envolvidos, o que distingue o cinema da literatura e das artes plásticas.

Sul21 – O Robson Pereira diz que tu és um sujeito muito musical, mas, nas tuas análises, a música ocupa muito pouco espaço.

Enéas de Souza — Eu sou muito musical na generosidade dele. Voltando ao que eu disse antes: o cinema é imagem visual e imagem sonora, isso tudo ao mesmo tempo. Ele forma um bloco de sensações. Há, no entanto, uma prioridade sensível, que é a imagem visual. O que tu vês é o que te toca mais e a música entra sobretudo para acentuar ou dar o clima. Eu gosto muito de música, mas não tenho capacidade de perceber a música em todos os seus sentidos.

“A grande virtude do crítico para o artista, é a de iluminar aquelas zonas das quais o artista não tem plena consciência de seus motivos” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Um critico precisa ver quantas vezes um filme?

Enéas de Souza — Bom, aí é que está. Se tu és um crítico diário, terás uma dificuldade muito grande, porque tu vês uma vez e tem que escrever. O texto será quase um esboço de uma conceitualização. Tu estás no primeiro impacto, o qual é sempre muito forte. Por outro lado, tu não viste tudo. O Sartre dizia uma coisa extraordinária: ‘’A percepção é global e ao mesmo tempo individualizada”. Ou seja, nós apreendemos a cena como um todo e fazemos análises pontuais, só que essas análises pontuais são infinitas, porque vamos discriminando cada questão da imagem. Cada ponto da imagem tem centenas de perspectivas. Quando tu é um critico diário, tu tens somente a ideia principal do filme.

Sul21 – A crítica atual é muito baseada na sinopse, não?

Enéas de Souza — Sim, hoje, os caras descrevem o filme através de sua sinopse. Quanto tu vês um filme, vês o pensamento do autor na forma de imagem sobre determinada ideia, que pode ser a vingança, a saudade, a luta, a morte, o ódio, enfim, todas as temáticas humanas e ontológicas. Cada um fará isso de uma forma diferente. É importante referir-se sobre como essas coisas são mostradas. Como é que as ideias foram desenhadas, figuradas, expressas, encenadas, montadas. Para mim, montagem não é tu cortares o filme, pra mim ela já começa quando tu fazes a escolha do ângulo. A montagem é uma seleção. Eu seleciono o teu rosto, seleciono um objeto. O discurso narrativo em imagem e o som trazem a ideia. Um diretor botou uns ovos na cena… Bem, mas o que significam os ovos? E ele respondeu: não sei, botei porque senti necessidade de colocá-los ali naquela cena. E o que é a critica? A critica é tu desmontares essa máquina e ir além do que o cara pensou racionalmente, porque ele fez aquilo num impulso artístico. A grande virtude do crítico para o artista, é a de iluminar aquelas zonas das quais o artista não tem plena consciência de seus motivos. A mesma função tem o crítico para os espectadores. Tu vais ver um filme, tu sentiste o filme. Tu gostaste, não gostaste, não importa. Mas tu sentiste o filme. Mas tu não sabes muitas vezes teus motivos e o crítico pode te ajudar a dizer: olha, eu gostei por causa disso.

“Na Globo Filmes, o Brasil é um país maravilhoso, cheio de pequenos melodramas, mas no fim todos somos felizes, somos todos vencedores” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Tu gostas muito de cinema francês, não?

Enéas de Souza — Eu gosto do cinema que acho de boa qualidade. Eu não tenho uma prioridade nacional. Obviamente, eu gosto do cinema brasileiro. Nosso cinema tem nossa maneira de sentir o mundo, traz nossos valores. Por exemplo, um filme como Tatuagem é tremendamente sarcástico, extremamente zombeteiro, debochado e é extraordinário como cinema. Claro, provavelmente ele me toca desse jeito porque sou brasileiro, mas não quer dizer que não seja bom. É excelente. Sobre o cinema francês: Godard me toca muito. É um artista que está permanentemente refazendo ou ampliando o que fez. Seu último filme, Histórias do Cinema, me deixou embasbacado. O filme é feito em vídeo e nele é repensada toda a história do cinema, assim como a história do século XX. São oito divisões onde ele faz uma revisão do cinema e diz que o cinema é ressurreição. Há um momento extraordinário quando ele mostra o filme de King Vidor Duelo ao Sol. Este filme tem uma cena final em que é mostrada a incompatibilidade total dos dois personagens, que ao mesmo tempo se amam e se odeiam. E eles morrem amando-se. Godard pega a cena e corta e corta. Então a cena dá saltos, numa imagem cinematograficamente diferente da que criou Vidor. E, ao mesmo tempo, ele acrescenta uma cor mais vermelha, de paixão, de sangue. Há uma ressurreição na imagem que é reinventada.

Sul21 – Tu falaste no cinema brasileiro. O que tu tens a dizer a respeito desses filmes nordestinos que vieram agora e que de certa forma, na minha opinião, contrapõem-se ao estilo da Globo Filmes. Me fala um pouco sobre isso.

Enéas de Souza — É, eu acho que o cinema pernambucano está em grande movimentação e tem grande presença no Brasil. Eles têm a capacidade de fazer filmes diferentes, filmes distintos, que mostram grande pujança. Por exemplo, o caso do filme Som ao Redor. O filme é absolutamente extraordinário. Ele mostra a transformação da sociedade pernambucana a partir de uma determinada situação numa rua do Recife onde a expansão do capital imobiliário é fortíssima. E aquela rua começa a ter problema de assaltos. Os caras não são donos do capital imobiliário, estão a reboque do mesmo. E, na verdade, são as pessoas que vieram do engenho. O filme vai fazendo a desmontagem da gênese pernambucana do engenho. É o que Gilberto Freyre escreveu. E tu vais moldando a compreensão do que é Pernambuco. E isso se contrapõe à Globo no seguinte sentido: a Globo tenta uma estética, vamos dizer assim, bonita. Ali o Brasil é um país maravilhoso, cheio de pequenos melodramas, mas no fim todos somos felizes, somos todos vencedores.

“Para mim, cinema é tela grande e sala escura, mas talvez isso não valha para as gerações mais jovens” |Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Tu viste ‘’Que horas ela volta?’’

Enéas de Souza — Ah, pois é. Tem tudo a ver. Vi sim e gostei bastante. Não gostei da história, que é muito ‘’dilmista’’. Ela defende a ideologia que se aplicou recentemente: a de que os pobres que melhoraram de vida são classe média. Isso é uma mentira. Não existe isso. Agora, o trabalho da diretora é espetacular, tanto pictórica quanto cinematograficamente. Mas a história não me tocou de jeito nenhum. Gostei do trabalho de direção. A produção também é complicada. Por exemplo, os quartos: tu nunca vês as coisas completas, é tudo fragmentado. Qual é o tamanho dessa sala? Eu posso fazê-la pequena ou grande, eu posso fechar o plano, abrir o plano. Os personagens dizem suíte, mas a gente não vê a suíte.

Sul21 – Tu vais ao cinema ou vês filmes preferencialmente em casa? Como é que tu te relaciona com o DVD, o Netflix, etc.

Enéas de Souza — Para mim, cinema é tela grande e sala escura. Esse é o princípio geral. Agora, eu não tenho nenhum problema de ver em casa. Às vezes tu tens que ver em casa porque tu não tens condições de ir ao cinema ou o filme não chegou ao cinema. É claro que tu tens que ter uma capacidade de imaginação além do filme para sentir o impacto do trabalho. Me lembro que a primeira vez que eu vi em DVD aquele filme do Kubrick, 2001: Uma Odisseia no Espaço… Lembrava muito bem dos sentimentos que eu tive vendo aquele inicio com a música de Richard Strauss e todo aquele balé. Mas quando eu o vi na televisão, fiquei demolido. Felizmente eu percebi que era por causa da tela, não por causa do filme. Então tu tens que recompor o filme, pensar em qual o impacto que o diretor quis dar. Uma vez, eu tive uma discussão com o Goida. Ele era hostil aos VHS naquela época. Porque, além de tudo, o VHS deformava a cor e eu dizia para ele que preferia VHS – em que pelo menos tinha um vislumbre do que era o filme. Tem uma história que eu acho fantástica. Um escritor adorava uma cena de um filme de Fritz Lang. Aí foi ao cinema e a cena não existia. Ou seja, ele construiu outro filme. Nós reconstruímos filmes. As imagens vão ficando na cabeça da gente e… Assim como tu reconstróis o teu passado, tu reconstróis também os filmes que não consegues rever, que tu não viste há muito tempo. Quando ele escreveu isso, eu já tinha meio que percebido, mas não tinha conseguido transformar em palavras. Depois que eu li, pensei: pô, é isso mesmo! Então, é melhor tu teres um filme em DVD do que não teres. Mesmo antigamente, eu preferia ver o VHS do que ficar imaginando o filme. É mais fácil tu imaginares como o filme era a partir do esboço que aparece na tela do que simplesmente imaginar. A memória vai deformando. São raras as pessoas que têm essa memória com precisão.

“Nós construímos cenas em nossa memória, assim como reconstruímos nosso passado” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – A primeira vez que eu vi o filme ‘’O Cavalo de Turim’’ foi em DVD. Achei um filme menor. Depois quando eu vi lá na sala P.F. Gastal mudou tudo. Ele tinha todo um ritmo que me escapara.

Enéas de Souza — É, claro. E acontece o contrário, se tu viste muitas vezes o filme no cinema e depois vês novamente em DVD, é necessário recompor aquela imagem geral. Mas eu acho isso que é um problema da nossa geração, porque essa nova geração não vê muitos filmes em cinema, eles veem ou em DVD ou baixam o filme. Por exemplo: tu pegas um celular. Claro, ali tem a imagem, mas o tamanho da imagem é fundamental no cinema. Mesmo que o celular reproduzisse proporcionalmente o tamanho da tela, o impacto daquela fração do espaço da imagem em ti é diferente quando tu vês num celular ou quando tu vês num cinema. Além do mais tem a coisa do ritual. As pessoas mais velhas têm essa experiência. Uma cena de sexo, uma cena de guerra… Há emoções que tu só sentes literalmente quando estás no cinema. E também há a emoção de quem está a teu lado. Ela se transmite. O cinema é outra realidade, outro mundo.

Sul21 – Posso te fazer uma sacanagem? Se tu fosses para uma ilha deserta, o que tu levarias? Eu serei um carcereiro bonzinho, vou te dar uma sala de cinema particular e tu vais poder levar bastante coisa.

Enéas de Souza — É, isso é complicado. Com direito a me arrepender, eu levaria… Bem, levaria filmes de vários autores. Por exemplo, o Hitchcock tem vários filmes maravilhosos, mas pra mim o Vertigo [Um Corpo que Cai] é excepcional. Eu levaria uns quatro ou cinco dele, mas, se tivesse que levar um, levaria Vertigo. Eu levaria Hiroshima, mon amour. Talvez a nova geração não goste muito dele, mas para minha geração foi uma marca extraordinária. É um pensamento de uma realidade que eu vivi e foi maravilhosa. Eu levaria. Acho que, levaria algum filme do Tarantino. Seja Django ou Kill Bill, que acho um belíssimo filme. Do cinema brasileiro eu levaria o Glauber, Terra em Transe, um filme fundamental para a minha geração. É o único filme do Glauber de que eu gosto muito, porque marca exatamente o que se passou na época do golpe. Todo aquele movimento, aquela pouca inteligibilidade, aquele não entendimento entre os diversos grupos sociais. E, ao mesmo tempo, o fracasso das relações humanas, a dispersão social, enfim, esse filme é extraordinário. Eu levaria Histórias do Cinema, de Godard. Também A Estrada Perdida, de David Lynch. Um que tu deves amar é Don Giovanni, de Joseph Losey, baseado na ópera de Mozart, um filmaço.

“Cheguei à Inglaterra e o filme se repetiu na minha frente” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – E O Criado?

Enéas de Souza — É mesmo! Eu vi esse filme em Paris e logo fui visitar a Inglaterra. Casualmente, entrei num restaurante e percebi como é que funcionavam as coisas na Inglaterra. Um senhor chamou um garçom para pedir um cigarro, deu dinheiro para o cara. Nesse restaurante tinha um quiosque, mas o garçom demorou a entregar a encomenda. Eu estava bem na frente no comprador e consegui ver todos os gestos do cara. Depois de uns 10, 15 minutos, ele começou a procurar o garçom com os olhos e este, que estava longe, percebeu. Então ele se apressou, foi ao quiosque, comprou o cigarro e veio trazer para o cara que estava inquieto. Ele chegou perto do comprador, fez um gesto super gentil, da mais alta classe, abriu uma caixa, botou um cigarro para fora e disse uma frase gentilíssima. É o filme do Losey. O garçom, na verdade, é quem manda e organiza as coisas, se quiser. Ou seja, eu tinha visto o filme ontem e fui para a Inglaterra. Quando cheguei lá, o filme se repetiu.

Sul21 – Voltemos à lista.

Enéas de Souza — Bem, Bergman. Sarabanda é um filme notável. Persona eu acho muito bom. Para dizer a verdade, eu gosto de quase tudo do Bergman. Um grande filme é O Circo, que é uma das obras que mais me impactaram. Mas levaria Persona. E quase todos os outros. [risadas] Eisenstein, apesar de eu achar que é um cinema muito elitista, também é um cinema com um trabalho formal absolutamente notável. Ele é brilhante. Eu levaria também algo do Howard Hawks. O cinema americano tem um lado negro, a questão da justiça. Como é que se impõe a lei. O Tarantino pega um pouco disso. Django é um exemplo. Este filme pergunta: como é que se instaura a lei numa terra sem lei, onde a violência e a prepotência mandam.

Sul21 – Nem entramos na França e na Itália…

Enéas de Souza — Alguns filmes do Truffaut… Eu acho Jules et Jim admirável. Visconti… Morte em Veneza é genial. Eu vi o “making of” dele. São pequenos detalhes que transformam o filme, tornando-o brilhante. Do Fellini… A Doce Vida e Oito e Meio são filmes que eu certamente levaria.

“Hoje há essa capacidade de ver cinema no youtube, no celular, é tudo diferente. Há uma dispersão na reprodução” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Meu deus, e Antonioni?

Enéas de Souza — Eu sou vidrado no Antonioni. A Aventura é um dos maiores filmes que vi. A cena final entre a Monica Vicci e o personagem masculino é brilhantérrima, porque o cinema se faz com pequenos gestos e ali são os gestos que vão construindo a narrativa. Tu vais sendo envolvido por aquela dimensão sensível que te emociona profundamente. Aquela cena final é brilhante. Gosto muito de A Noite e de O Eclipse. Antonioni foi um tremendo cineasta. Gosto também do Bertolucci. Os Sonhadores é muito interessante e Beleza Roubada é muito bom também. A relação de um cara que tem AIDS e de uma menina que busca saber a sua origem. Manoel de Oliveira… Acho esplêndido o Cinema Falado. A carta também. Mas, voltando para o Brasil… Gosto do João Moreira Sales, do Eduardo Coutinho. O Moreira Sales tem dois filmes extraordinários, que é Nelson FreireSantiago, que é um filmaço. Do Coutinho, o Edificio Master é muito bom. Eu levaria este ou o Cabra, que também é muito bom. A capacidade que o Coutinho tem de pensar o cinema, as relações entre diretor e entrevistado, é impressionante. E como ele tem empatia e, ao mesmo tempo, uma certa distância para com os personagens. O Últimas Conversas tem aquela cena final com a menina. De repente brota alguma coisa entre os dois. O Coutinho estava enfadado daqueles adolescentes e a menina altera completamente o contexto. Ela é altamente espontânea e o final é brilhante, porque ele vai se despedir dela com um aperto de mão e ela bate na palma da mão dele como no esporte. Aquilo é completamente imprevisto. Surge dali uma dimensão poética emocional lúdica, algo surpreendente e eles seguem. Ele tem essa capacidade de captar um instante e aproveitar isso. Então eu gosto muito dessa cena, sobretudo.

“A capa da última edição de Trajetórias” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – O que faz o crítico em meio a toda esta opulência cinematográfica – falo de qualidade e quantidade.

Enéas de Souza — A dificuldade do critico do cinema é que tu não consegues ver tudo de todas as filmografias. Por exemplo: sei muito pouco do cinema africano, do cinema asiático idem. E mesmo do cinema latino-americano! Eu me lembro da primeira vez que fui à França, no final dos anos 60. Eu vi um monte de filmes que eu jamais tinha ideia que existiam, era o cinema do leste europeu. Havia filmes fantásticos dos quais eu não tinha nenhum conhecimento. Tem uma coisa que o Borges diz que acho curiosa e que, bem, quem sabe?: “Provavelmente o grande escritor do século XX seja alguém do meio da África que nós nem sabemos quem é e que refletiu melhor o século XX do que nós fizemos até hoje”. Hoje eu vejo alguns filmes notáveis e penso se não serão eles os grandes filmes que vão marcar nossa época.

Sul21 – As mudanças de suporte podem criar outros clássicos com rapidez nunca vista.

Enéas de Souza — O cinema é tecnologia e essas transformações tecnológicas mudam completamente a realidade do cinema. Hoje há essa capacidade de ver cinema no youtube, no celular, é tudo diferente. Há uma dispersão na reprodução. A questão do cinema é MUITO mais do que a encenação, é o que significam as imagens. Nós estamos em uma época muito complexa – e que ficará ainda mais dispersa e complicada – e é difícil imaginar o que vai atravessar nossa época. Lembro que achava alguns filmes maravilhosos, mas, com o passar do tempo, eles foram esquecidos, não sei se para sempre.

Milton Ribeiro e Enéas de Souza

Sobre Nietzsche e “O Cavalo de Turim”, obra-prima de Béla Tarr

Sobre Nietzsche e “O Cavalo de Turim”, obra-prima de Béla Tarr

Philip Gastal Mayer escreveu o que segue em seu Facebook. E me mandou ler, escrevendo apenas Milton Ribeiro. Maiores detalhes sobre o filme aqui. O Philip, além de bom amigo e excelente violoncelista da Ospa, é um grande leitor de Nietzsche e chega matando a pau.

Elena Romanov, esse é o trecho que te falei do eterno retorno de Nietzsche, é do livro “A Gaia Ciência”, foi o que me veio à cabeça quando assisti o filme:

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!”. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” – F. Nietzsche

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