Lauro Machado Coelho (1944-2018) foi um Jornalista Cultural — assim mesmo, com maiúsculas. Ele escreveu incontáveis artigos e colunas em jornais, vários livros sobre ópera, um livro extraordinário sobre Shostakovich e outros não menos sobre Sibelius, Berlioz, Liszt, Bartók e Akhmátova, além deste sobre Bruckner.
O texto de Lauro é delicioso e nos traz todo o contexto dos compositores sem cair em preconceitos pré-moldados pelas posições políticas ou estéticas do autor e outros. Seu livro sobre Bruckner é uma joia até para quem não se interessa pelo compositor.
Pois ele é uma figuraça! Em O Menestrel de Deus temos o ambiente rural e quase tacanho em que o compositor nasceu, a descrição de sua insegurança, seu alto conhecimento e seus incríveis — de modo positivo — resultados como aluno. Porém, mesmo sendo um genial improvisador ao órgão, professor e compositor, Bruckner era um ingênuo que propunha casamento às moças mais inatingíveis, era hiper religioso, anotava tudo o que fazia, gastava e recebia, e sabia quantas árvores existiam em todos os seus caminhos diários, pois as contava, além de outras esquisitices. Quando transferiu-se de Linz para Viena, quiser saber se seria aceito de volta caso fosse um insucesso em Viena.
Também ficava agradecido a quem regia sua música, a ponto de se submeter a humilhações. Halb Genie, halb Trottel (metade gênio, metade pateta) era o que se dizia dele. Podem imaginar esse homem saído da pequena Linz (Sankt Florian) para a sofisticada Viena? Pois ele adquiriu o respeito de gente como, por exemplo, Gustav Mahler. Sua música foi adotada por Hitler como símbolo da força e da pureza arianas, mas logo os historiadores descobriram que, Bruckner, devoto de Richard Wagner, não era nem um pouco antissemita e o nazismo desgrudou dele assim que a guerra acabou.
O livro de Lauro Machado Coelho passa por tudo isso: por toda a biografia deste homem genial e inseguro, por suas influências e por quem ele acabou influenciando. Temos toda sua formação como músico, seus esforços para fazer aceitar a sua obra – inclusive revisando e deixando revisar tantas vezes as suas sinfonias… Mas também da obra única de um homem que, animado por uma fé sem conflitos em seu “bom Senhor Deus”, deixou uma obra esplêndida.
Ou seja, para quem se interessa por música, este livro é um banquete.
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O personagem principal de Amadeus (1984), de Milos Forman, é Antonio Salieri. É ele quem conta a história. Mas a figura estrelar é a de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), um moleque de enorme gênio e risada contagiante, muito sedutor no início do filme e dramático no final. O roteiro é baseado na peça homônima de Peter Shaffer, livremente inspirada nas vidas dos compositores Mozart e Salieri, que viveram em Viena na segunda metade do século XVIII. Amadeus foi indicado para 53 prêmios e recebeu 40, incluindo oito Oscars (entre eles o de melhor filme e o de melhor ator principal para F. Murray Abraham, no papel de Salieri).
Revi o filme há dois dias. Obviamente, ele não é rigorosamente biográfico. O roteiro é esplêndido ao amarrar a realidade e as lendas que se formaram nestes mais de 200 anos, acrescentando mais alguma coisa às últimas.
Como tenho que preparar uma pequena palestra na APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre) sobre o filme e penso que minha parte seja mais a da história da música, escrevi (ou montei) o texto abaixo, utilizando muito a História da Música Ocidental de Jean e Brigitte Massin e outras informações esparsas. Divirtam-se.
O ambiente infantil
Há uma cena na qual Mozart, quando criança, toca piano ou cravo de olhos vendados, lembram? De Gottlieb para Amadeus.
A vida de Mozart começou como um conto de fadas. Era um lindo menino emotivo, terno, dócil e espontâneo. Queria aprender tudo — como, por exemplo, matemática. Nasceu numa família unida: brincava bastante com Nannerl, a irmã mais velha e muito musical, e tinha como professor o notável pedagogo que era seu pai Leopold. (Leopold é, inclusive, autor de um Tratado sobre como tocar violino que é um clássico até hoje). E então aconteceu o milagre: aos seis anos, a criança revelou que poderia tornar-se um músico superdotado. Tocava cravo com grande habilidade, compunha promissoras pecinhas, mas, sobretudo, compreendia como a música se processava. Ou seja, assimilou rapidamente suas técnicas e estilos.
A família prestou mais atenção no virtuose do que no compositor. E papai Leopold largou tudo, dedicando-se exclusivamente a ensinar e a explorar o fenômeno. Dali por diante, entre 1762 e 1768, dos seis aos doze anos de Wolfgang, Leopold levou seu filho e irmã para exibições em toda a Europa. Salzburgo era apenas porto seguro onde, entre um sucesso e outro, eles vinham refazer suas forças.
Munique, Viena, Bruxelas, Paris, Londres, Haia, Paris, Zurique, Viena, as cortes e os soberanos, os diletantes e os curiosos maravilhavam-se diante do pequeno milagre. Para que mais patente ficasse o virtuosismo de Wolfgang, faziam-no executar proezas do tipo das que se exige de um cachorro amestrado, como tocar por cima de um pano que cobria o teclado ou de olhos vendados. O menino — afagado, presenteado e recompensado financeiramente — era a grande estrela. Ele literalmente sentava no colo de duquesas e príncipes e causava admiração por ter conservado sua humildade, simpatia e simplicidade. Mais proveitosas do que estas apresentações circenses, foram as relações travadas com compositores. Um deles iria marcar por muito tempo o estilo mozartiano: Johann Christian Bach, um dos filhos do homem.
Sua produção como criança e adolescente demonstram domínio da linguagem musical, mas ainda não aparecia a futura genialidade.
Durante todo o ano de 1769, Leopold e Wolfgang permaneceram em Salzburgo: o adolescente de treze anos foi nomeado Konzertmeister do arcebispo. Permaneceu no cargo por 12 anos, até 1781. Mas, entre 1770 e 1773, o jovem Mozart fez três viagens à Itália, com estadas mais longas em Verona, Florença, Nápoles, Bolonha, Veneza e Milão. E tome soberanos: o papa nomeou-o cavaleiro da Espora de Ouro; em Bolonha, o padre Martini, ilustre erudito, iniciou-o nos estilos da música antiga e fez com que Mozart fosse aceito como membro da Academia Filarmônica. Mozart tinha 14 anos e esta foi a última alta distinção que recebeu na vida. Mas, nessas viagens, recebeu da música e da vida italianas muito mais que lições de contraponto: aprendeu novos contornos melódicos e uma nova vivacidade, jamais sobrecarregada.
Pensando melhor, talvez o maior ensinamento que Mozart recebeu da Itália foi a revelação de si mesmo, tanto assim que italianizou o último de seus prenomes, Gottlieb (em latim, Theo-philus), para Amadeo ou Amadeus.
A autonomia
No filme, ele aparece adulto e livre de qualquer emprego regular. Isso não era muito comum na época
Sua maior aspiração era a de libertar-se da semi-escravidão na qual a maioria dos músicos da época se encontrava. Todos trabalhavam para as cortes ou igrejas. Em 1781, Mozart fez aquilo que depois foi chamado de “o 14 de julho dos músicos”. Ele passava uma temporada em Viena dando concertos e recebeu uma notificação do arcebispo com ordens para retornar imediatamente a Salzburgo, ficando proibido de, no futuro, dar concertos sem autorização expressa. Mozart desobedeceu, consciente do que fazia. Licenciou-se do cargo por sua própria conta e risco. Na tentativa de “convencê-lo” a retornar, um dos funcionários do arcebispo chegou a dar-lhe um pontapé.
Me disseram que eu era o patife mais devasso que já servira à igreja, que ninguém nunca tinha servido tão mal ao arcebispo, que me aconselhava a partir hoje mesmo, senão ia escrever para Salzburgo mandando cortar meus vencimentos… Chamou-me de mendigo, de piolhento, de cretino… Não quero mais saber de Salzburgo, odeio o arcebispo até a loucura. Lá em Salzburgo, ele é o senhor. Mas aqui não passa de um idiota, como eu sou aos olhos dele… Acredite-me, caríssimo pai, preciso de toda minha força viril para lhe escrever aquilo que manda a razão… Mas mesmo que eu tenha de mendigar, não vou querer mais, de forma alguma, estar a serviço de tal patrão.
Mozart desejava ser um músico independente em Viena e passou assim seus dez últimos anos de vida. Teve dias de glória, especialmente como virtuose do piano, mas conheceu também a amarga experiência dos imprevistos associados à “liberdade do artista”. Como compositor, teve admiradores, inclusive nas classes dirigentes. Só que depois de 1785, começaram os fracassos. Eles se iniciaram com os seis quartetos de cordas dedicados a Haydn. O fracasso não ocorreu junto ao homenageado, um dos raros que imediatamente souberam dar valor às composições, mas junto ao público de Viena que antes o amava.
“Música que nos faz tapar os ouvidos”, tal foi o julgamento. O hoje célebre quarteto “As Dissonâncias” (K. 465) continha, é claro, algumas dissonâncias em seu início. Quando o editor Artaria, depois de os haver publicado, enviou-os à Itália, os seis quartetos de Mozart foram logo devolvidos porque havia erros de impressão. Os erros eram simplesmente os acordes inusitados escritos por Mozart.
(Quando mostraram o Quarteto das Dissonâncias para Haydn, ele disse que era um equívoco, que aquilo não podia ser. Então, lhe disseram: “Mas é de Mozart”. E o velho respondeu: “Bem, neste caso, trata-se de um erro de minha parte. Eu é que não entendi.”).
Porém, para explicar o fracasso de Mozart em Viena, há que se levar em conta outros fatores que não apenas a originalidade e as “dificuldades” de sua música. Temos que mencionar seu pouco tino para negócios, e sobretudo dizer que, se Mozart houvesse vivido mais tempo, teria visto melhorar sua situação material e assistido a uma verdadeira revanche artística. Sim, a revanche veio de forma fulgurante logo após sua morte.
Apesar de tudo isso, o que permaneceu para a história foi o desencontro de Mozart com a sociedade vienense dos anos 1780.
Disso dá testemunho o que sucedeu com Haydn. Também ele conquistou sua autonomia, mas por outros meios e com outros resultados.
Casamento e angústias
A ideia, passada pelo filme, de que ele foi uma eterna criança
Ganhando bem a vida, requisitado e aplaudido pelo público vienense, saudado pelo genial Haydn, Mozart julgava-se um homem realizado no início da década de 1780. Ele casou em 1782 com Constanze Weber. Foi um casamento um tanto pressionado pela mamãe Weber. O casal se entendia bem, mas sabe-se que Mozart não era um exemplo de fidelidade. Em 1784, houve Theresa von Trattner, para quem ele escreveu a Sonata em dó menor precedida pela Fantasia em dó menor. Dois anos depois, apareceu a cantora Nancy Storace (a Susanna de As Bodas de Fígaro), para quem escreveu a admirável ária de concerto Ch’io mi scordi di te? [Que eu me esqueça de ti?] antes de ela partir de Viena.
Mozart era dúbio em muitas atitudes. Promovia a frivolidade em seu ambiente, mas dizia estar cansado da mesma. Queria ir mais longe com sua música, ignorando o ambiente musical de Viena, mas não saía da cidade. E reclamava:
Sinto uma espécie de vazio que me faz muito mal, uma certa aspiração que nunca se satisfaz e que por isso constante, dura sempre e que a cada dia cresce mais.
É significativo que os testemunhos deixados sobre Mozart por certas pessoas que lhe eram próximas insistam em traços de caráter e comportamento que condizem mais com a insatisfação do que a graça e a tranquilidade. “Ele estava sempre de bom humor, mas também muito absorto”, escreveu sua cunhada Sofia Haibel, prosseguindo: “Até quando lavava as mãos de manhã, ele ficava de lá para cá no quarto, nunca parecendo tranquilo e sempre pensativo.” Seu cunhado escreveu:
“Ele falava passando de uma coisa a outra, fazendo brincadeiras de todo tipo; descuidava-se na maneira de vestir. Parecia gostar de ver suas grandes ideias musicais contrastadas com as vulgaridades da vida cotidiana, fazendo ironias consigo mesmo.”
Esta angústia íntima pouco corresponde à lenda do menino eterno, que continuam sendo alimentadas por alguns. No entanto, quando se ouve certa música de Mozart é dessa “angústia íntima” que se é levado a lembrar.
Decadência
O gosto musical de Viena, a resposta para José II, Don Giovanni, as três sinfonias, a pobreza e o azar
Mesmo contando com a oposição do público de Viena, Mozart seguiu audaciosamente escrevendo suas obras exatamente como tinha vontade de as compor, sem preocupar-se muito com as conveniências e os hábitos do público.
O preço desta liberdade era previsível: Mozart deixou de ser o homem da moda em Viena. Os colegas e os críticos começaram a ter atitudes reticentes ou de desaprovação que foram se acentuando e dando o tom para um público que já não mais ia assistir aos concertos do compositor-virtuose. As preocupações com dinheiro apareceram. As Bodas de Fígaro nada rendem: em Paris, foi um grande escândalo, mesmo que as tiradas mais acerbas houvessem sido excluídas do libreto. Em Viena, foi um choque. Já por ocasião da representação de O Rapto do Serralho, José II — Imperador Romano-Germânico e Arquiduque da Áustria — observara: “Notas demais, meu caro Mozart.” Ao que respondeu o autor: “Nenhuma mais, Majestade, todas são necessárias” — frase que nunca sairia da boca de um cortesão experiente.
Porém no final de 1787, aconteceram dois meses marcados pelo estrondoso sucesso de Don Giovanni. Só que o fato ocorreu em Praga. Montado em Viena no ano seguinte, Don Giovanni só deu prejuízo. José II assim se expressou a respeito: “Isto não é prato para os meus vienenses.” Para Viena, Mozart, aos 32 anos, era um homem acabado, um antigo menino prodígio decadente e sem serventia.
As preocupações com dinheiro dão lugar à miséria. As dívidas e os pedidos de empréstimo a agiotas se multiplicam. Wolfgang e Constanze mudam-se constantemente e adoecem seguidas vezes. Tinham altos gastos com médicos e os filhos morriam — tiveram seis, mas apenas dois meninos sobreviveram –, tudo gerava despesas. Uma série de bilhetes suplicantes escritos pelo compositor dão testemunho de indigência.
Entre junho e agosto de 1788, com vistas a um grande concerto que esperava dar, Mozart escreveu a trilogia de suas mais belas sinfonias: as três últimas. Como poucos ingressos foram vendidos, não houve o concerto, pois daria prejuízo. No ano seguinte, a mesma coisa. Sem encomendas, a produção diminuiu.
Na primavera de 1789, aproveitando um dinheiro emprestado, Mozart fez uma viagem exploratória: Praga, Dresden, Leipzig, Berlim. Voltou de bolsos vazios, sem muitas encomendas, nem esperança de melhora, mas entusiasmado com a descoberta que fizera em Leipzig. Tivera contato com alguns Motetos, ainda inéditos, de Johann Sebastian Bach. Somente Joseph Haydn continuava a proclamar sua admiração por Mozart, “este ser único”.
No outono de 1789, o imperador José II — que, embora com reservas, ainda apreciava Mozart — encomendou-lhe uma ópera, escolhendo ele mesmo o tema para evitar escândalos e intrigas: Così fan tutte. A primeira representação da ópera foi bem sucedida, mas o imperador morreu alguns dias depois e o luto da corte suspendeu as apresentações.
Morte
A virada que chegou tarde, o Réquiem para o Conde von Walsegg, assistindo a Flauta Mágica
No começo de março de 1791, Emanuel Schikaneder, um velho conhecido que se tornara diretor de um pequeno teatro de um bairro popular de Viena, encomendou a Mozart outra ópera. Ele teria parte da bilheteria, nada de dinheiro adiantado. A Flauta Mágica foi escrita praticamente a seis mãos. Mozart, o diretor Schikaneder e Ignaz von Born, o líder mais eminente e progressista da franco-maçonaria vienense. O texto era formado por duas histórias entrelaçadas: um conto de fadas propício ao grande espetáculo feérico e popular, e uma viagem simbólica que leva à busca de si mesmo e à descoberta da sabedoria. Tudo isso fora dos grandes teatros.
A agitação de tanta atividade, o desgaste causado pelas privações e pelas angústias da miséria, a moléstia fatal talvez já em andamento (existe hoje o consenso de que se tratava de uma infecção renal), tudo isto minou as forças de Mozart, que começou a dar mostras de dificuldades para trabalhar. Mesmo assim, foi em frente. Na mesma época, havia a encomenda de um Réquiem, que deixou inacabado, e de outra ópera para Praga, A Clemência de Tito, a qual foi escrita a toda pressa, tendo passado a um aluno a parte dos recitativos.
Meses antes de Mozart morrer, teve lugar a estreia de A Flauta Mágica no pequeno teatro de Schikaneder. O cartaz mencionava em letras garrafais o nome do dono do teatro e, mais abaixo, em formato pequeno: “A música é do Sr. Mozart” — aquele Mozart que já fora a moda de toda Viena. O sucesso foi imediato, avassalador, contínuo. A cada dia o entusiasmo crescia. Viena inteira deslocou-se ao teatro de Schikaneder. As ofertas e as encomendas agora iriam chegar — tarde demais.
Uma lenda que por muito tempo persistiu, surgida logo depois da morte de Mozart, quer mostrá-lo vivendo na angústia obsessiva da morte que se avizinhava e obcecado pela ideia de estar compondo um Réquiem para si mesmo, após ter recebido a encomenda de um misterioso desconhecido no mês de julho. Nada deveria subsistir desta lenda — já posta em dúvida por mais de um biógrafo — depois de se ter recentemente encontrado o texto de um contrato entre Mozart e um certo Conde von Walsegg zu Stuppach que nada tinha de misterioso. De fato, as cartas de Mozart do mês de outubro, apesar do estado de extrema fadiga em que ele já se encontrava, deixam por vezes transparecer uma animação quase burlesca. Nessas cartas, Mozart fala muito das representações de Die Zauberflõte, do Concerto para Clarinete, que estava concluindo, e do enorme trabalho que passava para finalizar o Réquiem.
Entregue às alegrias do triunfo que se afirmava com toda evidência, Mozart viveu mais seis semanas escrevendo música de alta qualidade, embora seu estado de saúde só piorasse. Depois, passou um mês de cama e, em dezembro de 1791 morreu.
Nos últimos dias fora da cama, dedicou todas as suas noites para assistir A Flauta Mágica. Ele acompanhava, compasso por compasso, o desenrolar da representação no teatro. Ali, Tamino e Pamina cantavam: “Pela força da música, felizes, avançaremos pela tenebrosa noite da morte.”
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E Salieri? Ele não atentou contra a vida de Mozart como certas narrativas dizem? Não o envenenou? Não comprou um Réquiem? Não foi um vilão? Não foi sequer invejoso? OK, talvez possamos admitir a última característica. Qual compositor não invejaria tal talento? O fato é que ele sofreu uma tremenda sacanagem póstuma. E foi um bom compositor. Não era genial mas era bastante bom, nada autônomo, feliz com seu empreguinho na Corte de José II.
Ingmar Bergman, o cineasta que dedicou parte de sua obra a analisar o silêncio de Deus e a solidão do ser humano, morreu em Fårö no dia 30 de julho de 2007, na mesma data em que morria em Roma Michelangelo Antonioni, o cineasta da incomunicabilidade. Miguel de Cervantes faleceu em Madrid na data de 23 de abril de 1616, mesmo dia da morte de William Shakespeare em Stratford-upon-Avon. O fato de a morte dos dois maiores escritores da Idade Moderna ter ocorrido na mesma data apenas é deslustrado por uma verdade que destrói o mito temporal: Shakespeare faleceu sob a regência do calendário juliano, o que empurra sua morte para dez dias depois. Já Johann Sebastian Bach (1685-1750) não morreu no mesmo ano em que Antonio Vivaldi (1678-1741) faleceu, mas há muitas coincidências que ligam os dois maiores nomes da música barroca — para começar, ambos “escolheram” o 28 de julho como data de morte.
Bach e Vivaldi foram compositores totalmente diferentes. Basta uma audição de alguns segundos para que fique identificado um e outro. Eles criaram suas obras numa época especialmente complicada — são compositores do barroco tardio, ou seja, produziam no momento histórico em que se iniciava o período clássico. Eram, portanto, compositores antiquados em seu tempo. Os filhos compositores de Bach já encaravam o pai como alguém do passado e Frederico II, quando o convidou para visitar sua corte, ouviu-o sem o menor respeito, como quem ouve um animal em extinção, apesar do que dizem algumas lendas desinformadas. Já Vivaldi, il prete rosso, sem público em Veneza, vendeu grande parte de seus manuscritos para pagar uma viagem a Viena, onde Carlos VI o admirava, mas o imperador faleceu dias depois de sua chegada, frustrando os planos do italiano. A consequência é que ambos, Bach e Vivaldi, morreram pobres e fora de moda.
Se não havia relações de estilo, havia relações musicais entre ambos, ao menos no sentido de Bach ter sido um admirador do estilo italiano e de conhecer profundamente a obra de Vivaldi. Ele fez mais: transcreveu vários dos concertos de Vivaldi para o cravo e o órgão. Alguns concertos para violino do L’Estro Armonico (1712) e de outros ciclos foram transcritos por Bach e certamente interpretados por ele, seus filhos e alunos. Podemos citar também a quase inevitável religiosidade dos dois compositores numa época em que se ensinava religião por mais da metade do horário escolar. Por muito tempo, Bach foi considerado uma espécie de santo, ao menos até Emil Cioran colocar alguns empecilhos, separando Bach e Deus, com vantagem para aquele: Sem Bach, Deus seria apenas um mero coadjuvante. Sem Bach, a teologia seria desprovida de objetivo, a Criação fictícia, o nada peremptório. Se há alguém que deve tudo a Bach, é seguramente Deus. E Vivaldi? Vivaldi era padre. Il prete rosso, o padre ruivo, ou vermelho.
Apesar de sacerdote, Vivaldi teve muitos casos amorosos, um dos quais com uma de suas ex-alunas do conservatório de Ospedale della Pietà, a depois influente cantora Anna Giraud (ou Girò), com quem mantinha também relações profissionais na área da ópera veneziana. As biografias mais pudicas dizem que Anna foi a moça por quem o grande compositor se apaixonou, a inspiradora de suas óperas e a tormenta de todos os seus dias, até a morte. Ela teria muitas vezes beneficiado Vivaldi em troca de papéis adaptados a suas capacidades vocais. Tais trocas levaram outros compositores, como Benedetto Marcello, a escreverem panfletos contra Vivaldi e Giraud. Já Bach teve dois longos casamentos. O amor por suas esposas pode ser depreendido através de suas cartas e dos vinte filhos resultantes — sete com a prima Maria Bárbara e treze com Anna Magdalena, uma cantora profissional com metade de sua idade. O casamento com Maria Bárbara acabou em razão da inesperada morte da mulher e o com Anna Magdalena ocorreu em 1721. Bach tinha 36 anos; Anna, 18.
Bach escreveu mais de mil obras. Muitas são curtas, mas há mais de 200 Cantatas com duração aproximada de vinte minutos e Paixões com 3 horas de duração. Sua obra completa foi gravada numa coleção da Teldec: são 153 CDs, mais ou menos 153h ou 6 dias e 8 horas de música, sem repetições. Já Vivaldi escreveu 477 concertos — segundo o hostil Stravinsky, tratava-se de 477 concertos iguais — , mais 46 óperas e 73 sonatas. Em seu caso, ainda há muitas óperas não gravadas — porém, considerando o porte das óperas gravadas, é crível que o tamanho de sua obra seja semelhante ao de Bach.
Vivaldi parecia ter nascido pronto, seu estilo de composição variou pouco durante sua vida. Já a música de Bach, se não teve seu estilo alterado de forma radical, foi ganhando qualidade de forma inacreditável. Grosso modo, suas últimas composições foram as Variações Goldberg, A Oferenda Musical e A Arte da Fuga. Estas são monumentos, verdadeiras catedrais construídas em homenagem ao contraponto e à polifonia. No final de sua vida, Johann Sebastian Bach estava em seu auge, criando, se não suas obras mais perfeitas, aquelas que mais recebem tempo e dedicação dos especialistas.
Bach fora míope durante toda a vida e, durante a composição de A Arte da Fuga, sua visão se apagou. Porém, em fins de março de 1750, ano de sua morte, o famoso cirurgião oftalmológico John Taylor esteve de passagem em Leipzig. Ele foi levado até Bach e o operou. Taylor afirmou que em dois os três dias o paciente voltaria e enxergar. Depois de algumas semanas, como o paciente não apresentasse melhoras, houve uma nova operação, além de sangrias, ventosas e bebidas laxativas para limpá-lo. Apareceu um outro médico que brigou com Taylor. Então foi utilizado sangue de pombo nos olhos do compositor, além de açúcar moído e sal torrado. Dizem que em 18 de julho, dez dias antes de morrer, ele voltou a enxergar, mas no mesmo dia teve febre alta e caiu na inconsciência.
Não era alguém importante para a época. Nem sequer seu túmulo foi indicado. O corpo se perdeu. É um fato tristemente cômico que aquilo que está na catedral de São Tomás, em Leipzig, uma espécie de jazigo construído em sua honra em 1950 — por ocasião do bicentenário de sua morte — não sejam seus restos mortais, mas apenas o testemunho de seu esquecimento. Sua obra começou a ser recuperada por Felix Mendelssohn em meados do século XIX. Mas não é mera casualidade o fato de Mozart e Beethoven terem conhecimento de parte da obra do mestre. Eram estudiosos. Tanto que Beethoven escreveu que seu nome não deveria ser Bach (regato, ribeiro) e sim mar.
Já Vivaldi foi esquecido por muito mais tempo. Sua ressurreição começou apenas em 1939, quando o compositor italiano Alfredo Casella organizou uma exótica Semana Vivaldi. Depois veio a guerra e só em 1947 foi fundado um tímido Istituto Italiano Antonio Vivaldi com o propósito de promover a música de Vivaldi e publicar novas edições de seus trabalhos. O longo inverno vivaldiano começou logo após sua morte. Quando morreu, era um mendigo em Viena. Teria morrido de “infecção interna”. Em 28 de julho, ele foi enterrado em um túmulo simples no cemitério do hospital de Viena. Seu corpo, assim como o de Bach, foi perdido. Hoje existe apenas uma placa de homenagem na parede da Universidade de Viena registrando um dos possíveis locais do seu túmulo.
Em alemão, Führer significa “guia”, “líder”, “chefe”. Deriva do verbo führen, “conduzir”. Embora a palavra permaneça de uso comum em alemão, está tradicionalmente associada a Adolf Hitler, que a usou para se autodesignar líder da Alemanha Nazista.
Há 80 anos, às 9 horas de 2 de agosto de 1934, o Presidente Paul von Hindenburg, de 87 anos, faleceu. Três horas depois, ao meio-dia, foi divulgado que, de acordo com uma lei emanada “no dia anterior”, os cargos de Chanceler (Reichskanzler), o qual Hitler já ocupava, e Presidente (Reichspräsident) tinham sido unificados e que Adolf Hitler, de 45 anos, assumiria poderes de chefe de estado e comandante supremo das forças armadas. O título de presidente ficava abolido e Hitler seria Líder e Chanceler (Führer und Reichskanzler). Em 19 de agosto, foi realizado um referendo em que o povo alemão aprovou a posse de Hitler no cargo. Sua vitória foi, pela primeira vez, esmagadora. Cerca de 95% dos eleitores inscritos votaram e 90% – mais de 38 milhões – votaram a favor, com apenas 4,25 milhões votando contra. Então, Hitler exigiu de todos os oficiais e membros das forças armadas um juramento de fidelidade para com ele próprio. O juramento era muito pessoal:
“Faço perante Deus o sagrado juramento de que renderei incondicional obediência a Adolf Hitler, o Führer do povo e do Reich alemão, comandante supremo das forças armadas, e de que estarei pronto como um corajoso soldado a arriscar minha vida a qualquer momento por este juramento”.
E o que é o Reich? O Terceiro Reich seria um novo período de supremacia alemã. O governo nazista tinha por hábito glorificar o passado do país que, de acordo sua visão, tivera dois períodos de grande destaque mundial. O primeiro fora o estabelecimento do Sacro Império Romano-Germânico no ano de 962; o segundo, a criação do Império Alemão em 1871, que consistia em uma Alemanha unificada ao modo dos estados modernos e que, além disso, possuía um considerável império ultramarino, com colônias na África, Ásia e Oceania. O Terceiro Reich, proposto pelo partido nazista, viria recriar os momentos de glória do povo germânico e deveria durar mil anos.
Um detalhe importante é que nestes mil anos haveria uma seleção de etnias na qual a raça ariana deveria ter a supremacia.
Como Hitler chegou a Führer
O pai, Alois Hitler, era funcionário da alfândega e filho, como se dizia na época, ilegítimo, isto é, não nascera dentro de um casamento. Até os quarenta anos, Alois usou o sobrenome da sua mãe, Schicklgruber. Em 1876, passou a empregar o nome do seu pai adotivo, Johann Georg Hiedler, cujo nome foi alterado para Hitler por erro de um escrivão. Alois casou-se e teve seis filhos com Klara Pölzl. Apenas Adolf, o quarto, e sua irmã mais nova, Paula, sobreviveram à infância. Viviam em Linz, no interior da Áustria. Adolf era muito mais devotado à mãe, Klara, que faleceu em 1907, do que ao pai, morto em 1903. Aos 18 anos, em 1907, órfão de pai e mãe, ele partiu para Viena, onde tinha vagas aspirações de se tornar artista plástico. Tinha, então, direito a um subsídio para órfãos, que acabaria por perder aos 21 anos, em 1910.
No mesmo ano fez dois exames de admissão na Academia de Belas-Artes de Viena, sempre sem sucesso. Nos anos seguintes permaneceu em Viena, sem emprego fixo. O dinheiro era curto e ele chegou mesmo a pernoitar, por vezes, em asilos para mendigos. Depois, começou a copiar postais e pintar paisagens de Viena — ocupação com a qual conseguiu financiar o aluguel de um apartamento. Com suas pinturas copiadas, ganhava mais dinheiro do que se tivesse um emprego regular. Ele gostava de frequentar a Ópera Estatal de Viena, especialmente para assistir as óperas de Richard Wagner.
Foi em Viena que Hitler começou a perfilar-se como antissemita. O antissemitismo estava profundamente enraizado na cultura católica do sul da Alemanha e na Áustria, onde Hitler cresceu. Viena tinha uma grande comunidade judaica, incluindo muitos judeus ortodoxos do leste da Europa. Na cidade, Hitler tomou contato com os judeus ortodoxos, que, ao contrário dos judeus de Linz, distinguiam-se pelas suas vestes. Foi em Viena que ele comprou e leu os primeiros panfletos abertamente antissemitas que relata em seu livro Mein Kampf.
Também foi em Viena que tomou contato com a doutrina marxista, tendo “aprendido a lidar com a dialética deles, incorporando-a para os meus fins”.
Em 1913, mudou-se para Munique. Como relata em Mein Kampf, desejava viver numa cidade alemã a fim de afastar-se do por demais multiétnico Império Austro-Húngaro. Queria viver num país mais homogêneo do ponto de vista racial. Ao mudar-se, também fugia do serviço militar obrigatório. Só que foi localizado e obrigado a um exame físico no qual foi considerado inapto. Então, regressou a Munique, onde retomou sua atividade de pintor, vendendo seus quadros na rua.
A Primeira Guerra Mundial
Em agosto de 1914, quando a Alemanha entrou na Primeira Guerra Mundial, alistou-se imediatamente no exército bávaro. Serviu na França e Bélgica como mensageiro, uma posição muito perigosa, que envolvia exposição a fogo inimigo. A folha de serviço de Hitler foi exemplar, mas nunca foi promovido além de cabo, que era a patente mais alta oferecida a um estrangeiro no Exército Alemão.
Foi condecorado duas vezes por coragem em ação. A primeira medalha que recebeu foi a Cruz de Ferro de Segunda Classe, em dezembro de 1914 . Depois, em agosto de 1918, recebeu a Cruz de Ferro de Primeira Classe, uma distinção raramente atribuída a não oficiais.
Apesar de não ser cidadão alemão, durante a guerra Hitler desenvolveu um patriotismo apaixonado. Ficou chocado pela capitulação da Alemanha em novembro de 1918, sustentando a ideia de que o exército alemão não tinha sido, de fato, derrotado. Como muitos nacionalistas alemães, culpou os políticos civis pela capitulação.
Ao término da Primeira Grande Guerra, Hitler permaneceu no exército, agora ativo na supressão das revoltas socialistas que surgiam pela Alemanha. Participou de cursos de “pensamento nacionalista” e chegou a uma nova conclusão: a Alemanha capitulara na Primeira Guerra Mundial em função do “judaísmo internacional”, dos comunistas e dos políticos de todos os setores.
1923
Então, escreveu aquele que é geralmente tido como o seu primeiro texto antissemita, um “Relatório sobre o Antissemitismo”. Nele, Hitler fazia a apologia de um “Antissemitismo racional” que não recorreria aos pogroms, mas que “lutaria de forma legal para remover os privilégios gozados pelos judeus em relação a outros estrangeiros. O objetivo final era o da remoção irrevogável dos judeus”.
Hitler foi liberado do exército em 1920. A partir dessa data, começou a participar ativamente das atividades do Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei – NSDAP (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães), normalmente conhecido como partido Nazi, ou Nazista, palavra que tem origem na junção das palavras “National Sozialistische”, em contraste com os Sozi, um termo usado para descrever os social-democratas. O partido adotou a suástica (supostamente um símbolo ariano) e a saudação romana, também usada pelos fascistas italianos.
O partido servia -se do apoio da Sturmabteilung (SA), uma milícia paramilitar que costumava vagar pelas ruas atacando comunistas, minorias religiosas e gritando palavras de ordem. Por volta de 1923, Hitler conheceu Julius Streicher, editor de um jornal violentamente antissemita chamado Der Stürmer, que o apoiaria em sua propaganda de promoção pessoal e de ódio aos judeus.
O Partido Nazista era nesta altura constituído por um pequeno número de extremistas de Munique. Mas Hitler tinha duas armas potentíssimas: a oratória pública e o poder de inspirar lealdade pessoal. A sua oratória de esquina, atacando os judeus, os comunistas, os liberais e os capitalistas, começou a atrair simpatizantes. Alguns dos seguidores desde o início foram os futuros ministros Rudolf Hess, Hermann Göring, e Ernst Röhm, líder da SA. Outro admirador foi o marechal de campo Erich Ludendorff.
O crescimento do partido apoiava-se no ressentimento pela derrota e no mal-estar econômico, político e social decorrente da derrota de 1918 e, depois, da crise de 1929.
Intermezzo 1. Curiosamente, o melhor retrato da Berlim deste período foi criado pelo mais intimista e filosófico dos diretores de cinema. Em O Ovo da Serpente, Ingmar Bergman mostra a ascensão do nazismo, captando com grande acurácia e brilhantismo o ambiente da República de Weimar, com o caos econômico, moral e político aflorando e alterando as pessoas. No final do filme, o médico Hans Vergerus fala sobre a formação do nazismo: (…) qualquer um que fizer o mínimo esforço poderá ver o que nos espera no futuro. É como o ovo de serpente. Através das membranas finas pode-se distinguir o réptil já perfeitamente formado. Infelizmente e sabe-se lá por quê, a imagem, roubada por Bergman de Shakespeare, tornou-se lugar-comum de nove entre dez políticos de parca cultura. Fim do intermezzo.
O putsch da Cervejaria
O célebre putsch da Cervejaria foi uma malfadada tentativa de golpe de Adolf Hitler e seu Partido Nazista contra o governo da região alemã da Baviera, ocorrido em 9 de novembro de 1923. O objetivo era tomar as rédeas do governo bávaro para, em seguida, abocanhar o poder em todo o país. Mas a ação foi rapidamente controlada pela polícia bávara, sendo que Hitler e vários correligionários – entre eles, Rudolf Hess – acabaram presos.
Hitler usou o seu julgamento como uma oportunidade para espalhar a sua mensagem por toda a Alemanha. Era um eficiente político que não cansava de fazer proselitismo, falando aos jornais e a todos que buscassem contato. Em abril de 1924, Hitler foi condenado a cinco anos de prisão, mas foi anistiado depois de seis meses. Na prisão, ditou o primeiro volume do livro chamado Mein Kampf (“Minha Luta”), primeiramente a Emil Maurice, e posteriormente ao seu fiel ajudante Rudolf Hess. O livro é essencialmente biográfico.
Intermezzo 2. Os direitos autorais do livro caem em domínio público em 2015, quando dos 70 anos da morte do autor. Está sendo preparada uma edição crítica para esta data. Fim do intermezzo.
Mein Kampf prega a militarização da Alemanha. Descreve a visão de Hitler sobre psicologia de massas, a maneira certa e o melhor momento de fazer um discurso político. Analisa o conteúdo que cada discurso deve ter de acordo com o público alvo. Expõe também a ascensão de Hitler no Partido Nazi que não fundou, mas que mudou o rumo. Expõe também a visão de Hitler sobre o jogo político partidário. Mostra-se totalmente avesso às coligações, afirmando que “O forte é mais forte sozinho”, frase que é título de um capítulo do livro. Também critica o colonialismo francês prevendo que a intromissão na África traria, no futuro, problemas para a França.
O segundo volume do Mein Kampf foi escrito em 1926, quando Hitler já estava fora da prisão. Neste são expostas as ideias Nacional-Socialistas, sem mais informações biográficas. A compilação dos dois volumes recebeu primeiramente o nome de Viereinhalb Jahre des Kampfes gegen Lüge, Dummheit und Feigheit (Quatro anos e meio de luta contra mentiras, estupidez e covardia), mas foi alterado para simplesmente Mein Kampf antes de ser publicado. Após a leitura, a conclusão a que se chega é simples: os dois males do mundo são o comunismo e o judaísmo. E a solução é a erradicação de ambos.
Além disso, em Mein Kampf, ele divide os seres humanos com base em atributos físicos e psicológicos. Hitler afirma que os “arianos” estavam no topo da pirâmide, cuja base era formada por judeus, polacos, russos, checos e ciganos. Segundo ele, aqueles povos se beneficiavam aprendendo com os superiores arianos. Ele também afirmava que os judeus estavam a conspirar para evitar que a raça ariana se impusesse como era seu direito, ao diluir sua pureza racial e cultural e ao convencer os arianos a acreditarem na igualdade.
Ascensão ao poder
Após sua prisão, Hitler foi considerado relativamente inofensivo. Enquanto isso, ele trabalhava. Fundou um grupo que mais tarde se tornaria fundamental. Uma vez que o Sturmabteilung (“Tropas de choque” ou SA) de Röhm, não eram confiáveis e formavam uma base separada de poder dentro do partido, ele estabeleceu uma guarda para sua defesa pessoal, a Schutzstaffel (“Unidade de Proteção” ou SS). Esta tropa de elite em uniforme preto seria comandada por Heinrich Himmler, que se tornaria o principal executor dos seus planos relativamente à “Questão Judaica” durante a Segunda Guerra Mundial. Criou também numerosas organizações de filiação (Juventudes Hitleristas, associações de mulheres, etc.).
E, a partir de 1929, o Partido Nazista teve uma progressão semelhante à do partido fascista de Benito Mussolini.
Um elemento vital do apelo de Hitler era o sentimento de orgulho nacional ofendido pelo Tratado de Versalhes, imposto ao Império Alemão pelos Aliados da Primeira Guerra Mundial. O Império Alemão perdeu territórios para a França, Polônia, Bélgica e Dinamarca e teve de admitir a responsabilidade única pela guerra, desistir das suas colônias e da sua marinha e pagar uma grande soma em reparações de guerra, um total de 32 bilhões de marcos. Uma vez que a maioria dos alemães não acreditava que o Império Alemão tivesse começado a guerra, nem que tinha sido efetivamente derrotado, eles se ressentiam amargamente. Apesar das tentativas iniciais do partido de ganhar votos culpando o “judaísmo internacional”, os Nazistas aprenderam rapidamente uma propaganda muito mais sutil e eficaz que combinava o antissemitismo com ataques aos políticos.
Explorando habilmente as frustrações e o sentimento antissemita enraizado na sociedade alemã da época, o ponto da virada em benefício de Hitler veio com a Grande Depressão que atingiu a Alemanha em 1930. Os social-democratas e os partidos tradicionais de centro e direita eram incapazes de lidar com o choque da depressão. As eleições parlamentares de setembro de 1930 foram de vitória para o Partido Nazista, que se ergueu da obscuridade para ganhar mais de 18% dos votos e 107 lugares no Reichstag (parlamento alemão), tornando-se o segundo maior partido do país.
Intermezzo 3. É desta época o romance Berlin Alexanderplatz, obra-prima de Alfred Döblin. É a esplêndida narrativa da história de Franz Biberkopf, um operário saído da prisão no ano de 1929, após quatro anos cumprindo pena. Ele recomeça sua vida arranjando um emprego, mas não consegue levar uma vida decente, quer do ponto de vida material, quer do moral. Rainer Werner Fassbinder filmou a história para a televisão em 1980. O filme tem a duração de 15 horas e meia. Fim do intermezzo.
Hitler ganhou sobretudo votos entre a classe média alemã, que tinha sido atingida pela inflação dos anos 20 e o desemprego oriundo da depressão. Agricultores e veteranos de guerra foram outros grupos que apoiaram os nazistas. As classes trabalhadoras urbanas, em geral, ignoraram os apelos de Hitler. As cidades de Berlim e da Bacia do Ruhr (norte da Alemanha, protestante) eram-lhe particularmente hostis.
Mas nenhum partido conseguiria governar sem os nazistas e, nas eleições presidenciais de julho de 1932, o governo procurou obter o apoio dos nazistas para estenderem o mandato do presidente Paul von Hindenburg. Hitler recusou qualquer acordo, e acabou concorrendo com Hindenburg na eleição presidencial, obtendo o segundo lugar na primeira fase da eleição. Era mais um grande resultado. Uma vez que nazistas e comunistas tinham muitos representantes no Reichstag , a formação de um governo estável de partidos do centro era impossível. Para colaborar, Hitler passou a fazer grandes exigências, incluindo o posto de Chanceler da Alemanha.
Após novas eleições em novembro, Hindenburg acabou nomeando Hitler como Chanceler, num gabinete que ainda incluía dois nazistas: Göring e Wilhelm Frick.
Curiosamente, Hitler e seu partido jamais obtiveram maioria absoluta. Nas últimas eleições livres, os nazistas obtiveram 33% dos votos, obtendo 196 lugares num total de 584. Mesmo nas eleições de março de 1933, que tiveram lugar após o terror e violência terem varrido o Estado, o partido de Hitler chegou aos 44% dos votos, sem alcançar a maioria absoluta. Contrariando a proposta do Mein Kampf, os nazistas só obtiveram a maioria do Reichstag através de coligações formais. E os votos adicionais conseguidos para aprovar a lei que deu a Hitler autoridade de ditador só foram assegurados pela expulsão de deputados comunistas e da intimidação de ministros dos partidos do centro.
Numa série de decretos que se seguiram pouco depois, outros partidos foram suprimidos e toda a oposição foi proibida. Em poucos meses, Hitler tinha adquirido o controle autoritário do país e enterrou definitivamente os últimos vestígios de democracia.
E então, em 2 de agosto de 1934, Hindenburg morreu. E Hitler fundindo as funções de Presidente e de Chanceler, tornando-se o Führer, requerendo um juramento de lealdade a cada membro das forças armadas. Esta fusão dos cargos, aprovada pelo parlamento poucas horas depois da morte de Hindenburg, foi mais tarde confirmada pela maioria do eleitorado em 19 de agosto. O regime teve débil oposição interna. Os grupos oposicionistas existentes eram pequenos, sem forças, carentes de coordenação e sistematicamente intimidados. Começava o Regime Nazista.
(*) A maior parte do texto consiste de compilação feita a partir de várias fontes.
Em 2006, o Retrato de Adele Bloch-Bauer foi vendido por 135 milhões de dólares. Tal fato – e principalmente tal preço – demonstra a força da arte de Gustav Klimt, nascido há exatos 150 anos, em 14 de julho de 1862. Acadêmico nos primeiros anos, depois simbolista e modernista, é complicado associar o austríaco a qualquer movimento estanque. Também seus temas são muito particulares, principalmente se considerarmos seu grande interesse no feminino, fato que fez parte de sua produção ser chamada de erótica no início do século passado. Enquanto o rosto de Gustav Klimt e sua túnica permanecem pouco conhecidos do grande público, seus traços lentamente passaram a fazer parte da memória comum da humanidade, aparecendo em cartazes, propagandas e posters. Por exemplo, seus dourados, linhas e a palidez de suas mulheres – características muito marcantes em seus quadros – estavam nesta sexta-feira (13) aparecendo em uma vitrine da Rua da Praia, em Porto Alegre, servindo de demonstração para a qualidade de um monitor de computador.
Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “Comumente, o que é pornográfico para uma geração, é clássico para a geração seguinte”. A frase parece ser perfeita para boa parte da arte produzida na virada do século XIX para o XX. Se os EUA e a Grã-Bretanha consideraram pornográfico o romance Ulisses, de James Joyce; se a França e a Rússia acharam que os balés de Diaghilev eram pornográficos (e eram mesmo, não obstante o fato de serem belíssimos), o que se dizia das pinturas finais de Gustav Klimt e o que se diz hoje delas?
Primórdios
Gustav Klimt nasceu na Áustria Imperial, na pequena localidade de Baumgarten, ao sul de Viena, quase na fronteira com a Hungria. A Áustria Imperial durou somente até 1867, substituída pelo Império Austro-Húngaro, o qual foi dissolvido em 1918, ano da morte do pintor. Klimt viveu num grande e efêmero país europeu que agregava as atuais Áustria, Hungria, República Tcheca, Eslováquia, Croácia, Bósnia Herzegovina, além de partes da Itália, Polônia, Romênia e Ucrânia.
Em 1876, com 14 anos, Klimt ingressou na Escola de Artes e Ofícios de Viena, juntamente com um de seus irmãos. Os dois ganhavam algum dinheiro desenhando e vendendo retratos a partir de fotografias. Em 1879, Klimt, seu irmão Ernst e o amigo Franz Matsch auxiliaram seu professor de pintura de murais na decoração do átrio do Kunsthistorisches Museum (Museu de História da Arte) de Viena. Devido ao excelente trabalho realizado, no ano seguinte começam a receber encomendas, passando a realizar trabalhos de cidade em cidade: quatro alegorias para o teto do Palácio Sturany em Viena, teto do estabelecimento termal de Karlsbad na Tchecoslováquia, decoração da Villa Hermès a partir de desenhos de Hans Makart, etc. Porém, em 1886, num trabalho para o Burgtheater, o estilo de Klimt começou a diferenciar-se do de seu irmão e do de Matsch e ele iniciou o processo de afastamento do academismo aprendido na Escola de Artes.
A Secessão de Viena
Em 1897, Klimt fundou e presidiu, juntamente com outros artistas, a Associação Austríaca de Artistas Figurativos. O objetivo era o de contrapor-se à Casa dos Artistas, tradicional instituição conservadora que era dona da única sala de exposições importante de Viena. Em represália, a Casa decidiu não expor ou apoiar os artistas que fossem membros da nova instituição. Foi o estopim para a fundação da Secessão Vienense (Sezession Wiener), uma iniciativa de protesto de artistas da época contra as normas tradicionais. Alguns hostis chamavam essa insurgência de “revolta edipiana”, como se fosse uma espécie de movimento de fundo apenas psicológico, que consistia numa questão de filhos que se desencaminharam de seus e pais e da tradição.
O estatuto da nova associação resumia bem seu objetivo: o fomento de um novo sentido artístico na Áustria. Seus sucesso e importância foi acachapante. O grupo presidido por Klimt apresentou propostas revolucionárias para a época, equiparando o trabalho de pintores, artesãos, arquitetos, desenhistas, ilustradores e tipógrafos. O Secessão tinha por objetivo unificar a pintura e as artes aplicadas. Rapidamente, o Secessão virou o cenário artístico de Viena de cabeça para baixo, a ponto de receber o apoio do Imperador e de boa parte da alta burguesia. Seus 40 membros trabalhavam para expor trabalhos de jovens pintores não convencionais, além de divulgarem ao público vienense a obra dos melhores artistas estrangeiros e as novas tendências artísticas por meio de uma revista própria, a “Ver Sacrum” (Primavera Sagrada). Logo fundaram seu próprio salão de exposições.
O pintor
Mas nem só de política vivia Klimt. Vivendo em meio ao fervilhante cenário artístico e intelectual da Viena do início do século XX, Klimt criava uma arte subjetiva e erótica de grande intensidade. Viena fervilhava. Passando um rigoroso filtro, podemos citar Freud e sua nova ciência psicanalítica; Wittgenstein e o positivismo lógico de seu Tractatus Logico-Philosophicus; Arnold Schoenberg e a música serial. Era um bom momento para a vanguarda e Klimt fez sua parte ao introduzir o colorido simbolista no cenário artístico vienense, formando a ponte para a vanguarda expressionista.
Klimt não apenas era talentoso como combativo e irreverente. Apresentou os esboços de “Filosofia” e “Jurisprudência” para os afrescos da Universidade de Viena. O projeto causou indignação devido aos nus femininos e às cores escuras. Klimt ignorou as críticas e deu continuidade ao projeto original. Nesta etapa de sua carreira, já se disseminavam em suas obras os nus femininos, representados nas mais diversas formas. A tela Nuda Veritas apresentava uma mulher inteiramente nua e Klimt parecia ter esquecido de suprimir os pelos pubianos da figura, um grande tabu na época. Acima da imagem havia uma frase provocativa: “A cada época a sua arte; à arte, sua liberdade”.
Ao deixar a Secessão, sua arte passou a conter uma perspectiva muito mais pessoal, distanciando-se na necessidade de agradar a uma clientela específica. O pintor passou a criar suas telas com total liberdade. Também demonstrou ser um sensível intérprete da mulher. O ouro e a prata, objetos de desejo num período pré-feminista, servem para disfarçar a nudez. Quando o homem aparece, é acessório. e recebe tratamento totalmente diverso. Klimt nunca casou e para que realizasse seus retratos, duas ou três modelos permaneciam a seu dispor, além, é claro de seu grande amor, Emilie Flöge. Em suas pinturas, pe evidente que ele primeiro desenhava seus modelos nus para depois recobri-los com tintas. Klimt nos torna voyeurs e cúmplices.
Porém, não nada nele de cruel ou vulgar. Ele não tinha a agressividade de seu discípulo Egon Schiele nem o cinismo calculado de Picasso. Sempre houve requinte e elegância em seus nus.
Klimt mantinha um estilo rebelde também na forma de vestir-se. Usava batas e afirmava que nunca usava roupa de baixo. Pode parecer um detalhe ocioso referir-se a isto, porém esta postura contribuiu em muito para que lhe dessem uma desejada cátedra na Academia. Embora muito bem relacionado na alta sociedade que o financiava, sempre foi uma espécie de outsider em relação aos meios oficiais. Outro detalhe curioso era o hábito de pintar várias telas ao mesmo tempo.
Duas obras fundamentais: O Beijo e Judith
O Beijo (1907-1908) é uma das obras culminantes da carreira de Klimt. A obra foi aclamada desde o início, sendo imediatamente comprada pelo governo austríaco. Aqui, o esplendor decorativo chega aos extremo com belos motivos florais. As figuras enlaçadas ressaltam grande sensualidade em traços econômicos e vigorosos. O xadrez frio e retangular apontaria para os valores masculinos, enquanto os cálices das flores servem ao feminino. A beleza decorativa do quadro serve tem efeito catártico sobre o erotismo das poses. Realizada na revolucionária, mas ainda conservadora Viena, a obra provocava fascínio e estranhamento.
Judith (1901) é uma representação plástica que fica entre a morte e a sexualidade, drama que fascinava o autor. O dourado atenua a figura da mulher no fundo. Distante e imaterial, o corpo da modelo contrasta com a sensualidade de um rosto quase fotográfico. Por algum tempo, o quadro foi denominado Salomé, a mulher sedutora que provocou a morte de João Batista, já que muitos recusavam-se terminantemente a admitir qua a retratada era a virtuosa Judith — a heroína judia que matou um general inimigo. Seus lábios entreabertos e os olhos semicerrados lhe conferem um ar intensamente erótico, mas também de sensualidade mórbida.
A propósito, sua fase dourada foi marcada pela reação altamente positiva de crítica e público. Em muitas pinturas daquele período, ele utiliza folhas de ouro, como no citado Retrato de Adele Bloch-Bauer e em O Beijo, talvez sua mais famosa tela. Klimt foi um pintor soberbo de paisagens e de arte decorativa, mas suas obras de modelos femininos – habitualmente de forte apelo sexual – são as criações mais importantes. Sua consagração em vida trazia-lhe muitos clientes, mas também tornou-o altamente seletivo. Pintava com extrema minúcia, muitas vezes obrigando seus modelos a longuíssimas sessões.
Foi apaixonadíssimo por Emilie Flöge, com quem teve um longo caso de amor. Ela foi sua musa e companheira durante muitos anos, de 1891 até sua morte, em 1918. Klimt escreveu pouco sobre sua pintura e métodos. Não deixou diários, apenas cartões-postais escritos para Emilie. Mas há um raro escrito seu com o título de “Comentário sobre o inexistente autorretrato” que diz “Estou menos interessado em mim do que em outras pessoas como tema para pinturas. Me interesso acima de tudo por mulheres. Não há nada de especial em mim. Sou um pinto que trabalha dia após dia, de manhã à noite. Quem quiser me ver deve olhar minhas fotos”.
O dia de hoje em Viena
No Museu Leopold, serão expostas as 400 cartas e mensagens trocadas por Gustav e Emilie. Igualmente serão expostos objetos pessoais.
O Museu de Viena esporá sua coleção completa de Klimt, incluindo a máscara mortuária do artista e mais de 400 obras. Também serão expostos objetos pessoais, como uma inusitada tampa de privada decorada por ele.
Já o austero Museu de Belvedere, que possui sua obra O Beijo, organizou um “Concurso de sósias de Gustav Klimt e de Emilie Flöge”.
Por fim, a Galeria Secessão vai expor sete paineis do famoso “Friso de Beethoven”, apresentado em 1902.
O dia de hoje no Google
Mais algumas obras de Klimt
E uma bela homenagem que acaba de aparecer no YouTube, por Cau Barata