Fiquei desconcertado quando recebi, ontem, Vi uma foto de Anna Akhmátova. O livro veio num envelope branco com a caligrafia e a caneta preta inconfundíveis do grande recifense Fernando Monteiro. Meu desconcerto deveu-se ao fato de ser um poema de 85 páginas. Um poema desses editado? Coisa rara. Li quase todo o livro caminhando pela calçada da Av. Cavalhada, enquanto refazia o conhecido trecho até o correio e no ir e vir de meu calvário como trabalhador comunitário, por culpa de meu carro estar parado na frente de uma moto no ano de 2004. O resto do livro, li no “trabalho”.
Vi uma foto de Anna Akhmátova,
numa oferta de segunda mão
em livraria de terceira
fechando as portas também baratas
em liquidação de quarta despedida
dos leitores de páginas impressas
à tinta das antigas tipografias
condenadas aos museus,
setor dos tipos móveis de Gutemberg
que não mais importa.
Setembro se derramava lá fora,
estação de sol sobre a fonte
de águas espargidas em torno da lua
de Vênus nativa molhando a ponta
tímida de dedos de mármore.
Pensei naqueles de Clarice criança,
subindo e descendo escadas
da casa entre movelarias e sebos,
vinda da Ucrânia para o coração
deste bairro de esquecidos
textos em hebraico e iídiche
de emigrantes deslocados.
Logo que cheguei ao trabalho — normalmente eu vou lá para trabalhar de verdade! –, após cumprimentar as freiras do colégio de meu descontentamento, voltei a ler o pequeno grande volume, ouvindo os sons das rezas de uma missa, aquele lastimável lenga-lenga da crendice que evidentemente grassa na instituição onde presto serviços. A mim, parece uma melopéia árabe. Mas gosto de lá, sou muito bem tratado. Aquele som acompanhava adequadamente a tristeza e absurdo da vida de Anna e formava um curioso painel de sonoro quando da entrada dos poetas brasileiros.
Nossos épicos sem dentes, nossos líricos
sem lenços, nossos Valérys de cemitérios,
nossos engenheiros de versos, juízes
e usineiros sonetistas de paraquedas,
nossos cantores das palmeiras e da pedra
no caminho de quem ia cantar palmas
mais altas do que as primeiras,
os vates caindo no rio de penas
dos cães banguelas, os nossos poetas
emplumados no lugar daqueles,
são imortalizados precocemente,
antes da colheita do tempo.
Nossos trovadores, menestréis, poetinhas
e poetões se dedicam ao vício secreto
de deslustrar poemas dos concorrentes
ao posto de Príncipe dos Poetas brasileiros.
Nossos parnasianos, condoreiros, simbolistas,
modernistas, praxistas e taxidermistas
da poesia do pantanal depois da lama seca
descobrem de novo o Brasil de Cabral,
trabalham para Capanema e não faz mal,
tomam remédio para dor de cabeça
e vão dormir em Pasárgada,
onde são mais que amigos do rei
de espadas dos jogos de cartas
marcadas da carreira literária
do acadêmico Getúlio Vargas
Os poetas brasileiros não morrem em revoluções.
Quando elas acontecem, os bardos nacionais
preferem segurar os empregos.
Na Revolução de 30 não morreu um só Dante
de Cascadura para contar como é descer ao inferno.
Todos eles aspiram ao céu de palmas abertas
soltando as batatas quentes na corrida
dos mil metros para ocupar ministérios,
secretarias da cultura e bibliotecas nacionais
reservadas para os insistentes em Poesia Sempre
(palmas para eles com uma só mão no ar rarefeito
da imortalidade a cacete, chá e simpatia
de casca dos bóias-quentes).
E Fernando vai um pouco mais adiante neste filme:
Não, Fernando não é alguém indulgente nesta terra de mesuras gentis entre escritores e governantes.
Nenhuma Revolução pode ser gentil
quando começa ou termina
por cortar cabeças à nacional
maneira de Ivan, o Terrível
A cantoria das freiras recrudece e eu posso ler mais um pouco. Em minha mente, como pano de fundo, há a comparação de múltiplos exemplos entre a pouca combatividade de nossos escritores e a dos russos. Anna Akhmátova (1889-1966) tinha a extraordinária poesia íntima, grande patriotismo e combatividade — poderia utilizar também a gasta palavra feminismo, mas não, direi em seu lugar que ela nunca deixou de ver o mundo atráves de uma posição inteiramente feminina, sendo tal fato apenas um viés de sua originalidade.
Vi essa mulher, com meus olhos cegos.
Vi sua vontade de morrer,
um lenço diáfano de gaze
sobrevoando as pombas cansadas
Há a introdução de um violão na missa. As freiras ficam animadas. O poema de Fernando começa a me entusiasmar.
Você já viu a neve?
E o que vem a ser essa interrupção da carícia
em progressão indecente no ventre
de uma russa morta?
O poema me toma por completo e o trabalho fica esquecido num canto. Jogo o corpo para trás em postura de 100% não-trabalho. A freira do violão erra lastimavelmente… Depois dizem que o legislador, autor da punição, é sábio. Aposto que ele não previu tortura musical. Tenho sorte de consolar-me com o livro.
Ela não tem medo,
a mulher da foto do volume
que eu levo debaixo do braço
e da chuva para longe do cais,
rumo aos subúrbios do esquecimento
onde se pode dormir e, talvez,
sonhar, ó príncipe sem consolo!
Ela lê Shakespeare em russo,
Ofélia armada de audácia misturada
à suportação de indizíveis sofrimentos:
já deixou que um comissário do povo
a sodomizasse, e agora tenta se preparar
para não vomitar quando chegar a hora
de chupar o oficial de plantão.
Vi tudo isso na foto.
Como estarei de aniversário amanhã (ou hoje, 19 de agosto), penso em como seria bom se ganhasse a biografia de Anna ou mais de seus poemas, mas ninguém irá adivinhar isso. Volto ao poema e leio estes versos aterradores de Anna, citados por Fernando já na página 43.
“Há dezessete meses que eu grito
chamando-te para casa.
És meu filho e meu terror”.
Reflito que não saberei a avaliar a real grandeza do que estou lendo, que não saberei escrever um post a respeito. Penso sobre minha incapacidade poética e em como, paradoxalmente, estou apaixonado, grudado, dentro do poema. Penso que raras tive tanto prazer e curiosidade com um livro aberto à minha frente.
Ela me contou tantas histórias
de transgressores, de ladrões das estepes!
Penso que seu seio, então, já arfava
ao alcance da minha mão.
Penso no banho.
Penso na água aquecida, nos sais,
nas lavandas francesas da Rússia
voltada para o Ocidente da língua
na qual Pais e Filhos está escrito
tão elegantemente:
somos nós?
Mês passado, uma freira apareceu para falar comigo vestindo as roupas de sempre, mas com chinelinhos vermelhos adornados por distintivos do Inter. Eu garanti a ela que aquilo a fazia superior espiritualmente a qualquer outra irmã. Ela riu muito. Aliás, ri sempre que me vê. Esta é a parte boa, porém o sofrimento de Anna, da Rússia, das mulheres e da cultura ocidental me parece agora incompatível com aquele desafinado Deus pra lá, Jesus pra cá. Céus, que cantoria diabólica!
Não, não somos nós, Mãezinha
Rússia, que mais próxima está do Fiodor jogador,
do estuprador da criança de Moscou,
aquele mendigo santo que foi procurar
o pior castigo, a suprema humilhação,
a confissão do seu crime
a ninguém menos que o belo, o rico,
o aclamado Ivan Sergueivitch,
nascido no seio de uma família de alta classe de Oröl
e falecido em Bougival, nas proximidades da cidade iluminada…
Penso na liberdade do autor em buscar, viver e amar Anna Akhmátova. Volto sobre suas páginas e começo a procurar todos os versos que começam por “Vi uma foto…”. São muitos e o ritmo deles passa a sobrepujar por completo a música da missa. Sigo lendo. Acaba meu horário, bato meu ponto e volto para casa como vim, a pé. Lembro que uma vez, lendo um jornal na rua, dei de cabeça num poste. Mais exatamente num parafuso que saia do poste. Tinha uns vinte anos. Trinta e dois anos depois, lembro do inesperado sangue que pingou sobre a folha de jornal. Isto sou eu?
Vi uma foto de Anna Akhmátova…
e não a prova de que o céu a perdoou.
Fernando resolveu ter um caso com Anna. Na verdade, desde o momento em que, naquela livraria de setembro, vira sua foto, apaixonara-se por seu olhar e decidira seu Réquiem paralelo. Saiu-lhe belíssimo. Como não se apaixonar por ela, ainda mais que sei o que daquele sujeito e que não está no poema de Fernando:
Ele gostava de três coisas neste mundo:
o coro das vésperas, pavões brancos
e mapas da América já bem gastos.
Não gostava de crianças chorando,
nem de chá com geléia de framboesa
e nem de mulheres histéricas
…e eu era a mulher dele.
Dona de uma poesia simples na aparência e sem o peso de palavras desnecessárias, Anna é uma narradora que tem em Fernando um equivalente masculino. É curioso notar o quanto Anna é feminina e pessoal, ao passo que Fernando é masculino e dedicado a ela. Também está cioso de ser simples e de encontrar as imagens inusitadas e significantes que habitam a poesia de Anna.
Quando Anna começou a usar
o verbo assim corroendo
o que antes fora belo,
triste e selvagem (um passo de afronta
envolto em delicadeza),
e havia sido lícito para nós;
quando tudo foi sendo minado
no cerne da carne que se permite
um instante de incerteza,
uma quebra da quebra da interdição
posta de lado como se abandona
um pente sobre uma penteadeira;
quando isso se anunciou
na forma do pretérito,
na hesitação tardia demais,
eu me desesperei contra ela,
não podia suportar a agulha no fogo,
o gelo na cama, a mudança do tanto
que já havia mudado no nosso amor
desviado para mais do que “sensualidade”,
“luxúria”, “emoções sem freio”,
suas palavras contaminadas do veto,
desconfiadas da nossa conjunção
condenada do modo mais severo,
enquanto tudo era leve na forma
de voltarmos a ser árvore e fruto
das noites geladas de dezembro.
Chego em casa e finalizo a leitura.
Eu já estou morto e este poema é a minha alma
profana vagando em busca da amada Mãe
amante de todas as Rússias que em todos os lugares
caminham para o esquecimento nos verdes túmulos
que há muito deixaram de ser verdes
como verdes eram as aves
pelas quais pergunta o poema:
todos os pássaros cujo piar nublado
eu escutei nascendo na dobra
de uma manhã do passado,
estarão mortos?
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