Publicado no Sul21 em 28 de dezembro de 2014
Foi com certo esforço que selecionamos os dez melhores filmes de 2014. Conversamos com diversas pessoas da área e a conclusão geral era a de que fora um ano muito fraco. Foi complicado chegar ao implacável número dez. Então, podemos dizer que selecionamos oito filmes e colocamos dois intrometidos no final.
Para nossa sorte, A Grande Beleza estreou em 17 de janeiro de 2014. O italiano forma o pódio com outros dois excelentes filmes, o argentino Relatos Selvagens e o indiano The Lunchbox. O cinema brasileiro está na lista com três filmes: o gaúcho Castanha, o suspense O Lobo Atrás da Porta e documentário Os Dias com Ele. Os três foram pouco vistos, infelizmente.
Segue a lista:
~ 1 ~
A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino
A Grande Beleza é uma ressurreição — quiçá efêmera — do cinema italiano. Trata-se de uma estupenda releitura tanto de A Doce Vida, de Federico Fellini, como de A Noite, de Michelangelo Antonioni, transposta para a berluscolândia atual, palco do vazio e do carreirismo. Há dois lados no filme: o desconsolo, a necessidade de arte, sentido e inspiração que sente o debochado escritor Jep Gambardella (Toni Servillo) e a vida dos novos ricos e quem eles exploram, um leque do que há de pior na elite romana, maculando o cenário milenar da cidade. O formato vertiginoso escolhido pelo diretor Sorrentino cabe perfeitamente para contar a história do escritor Gambardella, que reflete sobre sua vida durante um verão romano. Com 65 anos de idade, não concluiu nenhum outro livro desde o grande sucesso do romance O Aparelho Humano, escrito há décadas. Desde então, a vida de Jep se passa entre as festas da alta sociedade, os luxos e privilégios da fama. Um dia, fica desorientado, chafurdando no tédio e na nostalgia. Quando lembra de sua juventude, Jep pensa finalmente em mudar sua vida. Talvez saia do vácuo e volte a escrever. Um tremendo filme.
~ 2 ~
Relatos Selvagens, de Damián Szifron
A distância entre o cinema e a arte em geral brasileira e argentina talvez nunca tenha sido tão grande. Basta comparar qualquer comédia nacional com o humor sofisticado e inteligente deste que é o filme de maior sucesso comercial argentino dos últimos anos. Nada de flatulências ou eructações como em nossas comédias globais, apenas bom roteiro, direção, atores, etc. São histórias simples sobre fatos rotineiros que por isso provocam identificação quase imediata. Com ironia, Szifron faz um comentário tão inteligente quanto engraçado sobre a falta de civilidade e a selvageria urbana. São personagens unidas pelo fato de estarem fora de controle, dispostas a fazer justiça pelas próprias mãos: um músico reúne todos os seus inimigos em um só lugar, uma garçonete que tem a chance de se vingar do homem que arruinou sua família, uma briga de trânsito, um engenheiro indignado com uma multa indevida e a burocracia sem limites, um milionário que tenta livrar o filho da cadeia, uma noiva que descobre a traição do marido. E um filme espetacular.
~ 3 ~
The Lunchbox, de Ritesh Batra
Os Dabbawalas indianos são as pessoas, que fazem parte de um complexo sistema de entrega que recolhe marmitas de comida recém feitas pelas esposas no final da manhã e faz a entrega aos maridos no horário de almoço, em seus locais de trabalho. São utilizados vários tipos de transporte, com predomínio de bicicletas. As marmitas retornam vazias para as esposas ao final da tarde. É considerado um sistema infalível, onde circulam milhões — sem exagero — de refeições diariamente. The Lunchbox recebeu, compreensivelmente, Prêmio do Público no Festival de Cannes de 2013. Uma entrega equivocada coloca em contato uma jovem dona de casa e um desconhecido já no fim da vida. Ela enviara quitutes especiais para o marido, porém, quando este chega em casa, não comenta nada. No dia seguinte, ela envia um bilhete junto com a refeição e recebe outro, só que de um estranho. Então, começam uma inusitada troca de mensagens nas marmitas. A conversa é cheia de interesse humano. Filme delicado e cheio de detalhes.
http://youtu.be/RZdpPui8DqY
~ 4 ~
Castanha, de Davi Pretto
O ator João Carlos Castanha tem 52 anos, trabalha no teatro, faz participações em filmes e, à noite, se apresenta em boates gays de Porto Alegre como transformista. Vive com a mãe, Celina, de 72. Dia após dia, João passa a confundir a realidade que vive com a ficção que interpreta. Este é o mote e a marca do filme, que tem as situações da vida do ator — vividas ou imaginadas — como roteiro do documentário ficcional. A linha entre o real e o possível é delineada de forma fluida, e a intenção do diretor, Davi Pretto, não é deixar claro o que do que está na tela realmente aconteceu. Complementam o dia-a-dia de filho e mãe a morte como fantasma presente na figura do pai, internado em um asilo, e a do sobrinho viciado em crack, que interfere na rotina dos dois. (Roberta Fofonka)
~ 5 ~
Boyhood: Da Infância à Juventude, de Richard Linklater
Para gravar Boyhood, o diretor Richard Linklater trabalhou doze anos, acompanhando o crescimento do ator Ellar Coltranem, que interpreta o protagonista do filme. Ele gravou poucos dias por ano com o elenco, a fim de contar a história do menino que cresce em meio à separação dos pais, dos cinco aos 18 anos de idade. Mesmo se não fosse muitíssimo aclamado pela crítica, ainda valeria a pena ser visto pela sua forma de filmagem peculiar. Feito de maneira inédita, o filme ainda tem o mérito de retratar com verossimilhança a passagem do tempo e as mudanças que ela provoca, tanto no âmbito coletivo e político (ao mostrar a evolução dos celulares e tecnologias com o passar dos anos, por exemplo), quanto no âmbito particular. (Débora Fogliatto)
~ 6 ~
O Lobo Atrás da Porta, de Fernando Coimbra
Um excelente e surpreendente thriller de suspense brasileiro, gênero praticamente ignorado no país. Talvez Hitchcock ficasse em dúvida entre chamar o filme de um whoduint (ou who done it?, quem fez isso?) ou de um macguffin (filme onde onde todos procuram o alguma coisa, apelidado de macguffin), pois O Lobo é tanto um quanto o outro. Quem fez o sequestro? Onde está a menina? Uma criança é sequestrada, o que faz seus pais, Bernardo (Milhem Cortaz) e Sylvia (Fabiula Nascimento), irem até uma delegacia. O caso fica a cargo do delegado (Juliano Cazarré), que resolve interrogá-los separadamente. Logo descobre que Bernardo mantinha uma amante, Rosa (Leandra Leal), que é levada à delegacia para averiguações. A partir de depoimentos do trio, o delegado descobre uma rede de mentiras, amor e ciúmes. Há drama nas cenas entre os pais e comédia nas cenas da delegacia. Grande final. Extraordinária estreia em longa metragem do diretor Fernando Coimbra.
~ 7 ~
Ninfomaníaca I e II, de Lars von Trier
É uma convenção — é até chique — falar mal de Lars von Trier, mas o criador de Ondas do Destino, Dançando no Escuro, Dogville, Anticristoe Melancolia é um enorme e provocativo artista. E ele não chega de outra forma com este Ninfomaníaca. Os cartazes são impressionantes, o marketing associado é muito diverso do habitual, mas talvez as exigências do diretor sejam ainda mais: ele exigiu que os atores praticassem as relações sexuais do filme e não apenas as simulassem. Um filme erótico? Ora, a crítica do The Guardian tem uma frase que resume bem esta faceta: Contains sex in abundance, but is often rigorously unsexy. O Volume 1 tem duas horas, o 2, outras duas. A exibição integral, de seis horas, só foi vista no Festival de Berlim. Joe (Charlotte Gainsbourg na maturidade, Stacy Martin na juventude) confessa-se a Seligman (Stellan Skarsgard), que a encontrou desacordada e ferida num beco. Ela se vitimiza ao contar sua história de vida, ele é racional e age como um terapeuta sem sê-lo. O distanciamento e certos aspectos burlescos produzem não somente espanto, mas reflexões de que, na verdade estamos assistindo a um filme sobre… Bem, vá e veja!
http://youtu.be/Bd5dnx-eAgA
~ 8 ~
Os dias com ele, de Maria Clara Escobar
Os dias com Ele, de Maria Clara Escobar, é um grande documentário. A cineasta tenta fazer um filme com seu pai, Carlos Henrique Escobar, intelectual auto-exilado em Portugal, com quem teve uma relação mínima. Nesse filme, a diretora quer resgatar a memória da ditadura em seu pai, relacionando-a com a memória ausente da relação dos dois. Logo na primeira cena, as regras do jogo se esclarecem: Carlos afirma não querer fazer uma entrevista convencional; Maria Clara, fora de quadro, tenta guiar o pai para conseguir o que deseja. Ao aviso da realizadora, seu pai, assume uma personagem, formal, articulada, fria — o intelectual que Maria Clara quer derrotar para alcançar seu pai. Carlos não quer fazer o filme proposto por Maria Clara; e esta não quer o filme que seu pai está disposto a fazer. Os dias com Ele é uma luta em pai e filha, o conflito é o motor de condução do filme. Assim, o filme parte da força dessas duas personagens que vão pouco a pouco mostrando suas armas, questionando-se mutuamente, expondo-se, colocando em perigo a existência do filme.
~ 9 ~
Mommy, de Xavier Dolan
Canadá, 2015. Diane Després (Anne Dorval) é surpreendida com a notícia de que seu filho, Steve (Antoine-Olivier Pilon), foi expulso do reformatório onde vive por ter incendiado a cafeteria local e, com isso, provocado queimaduras de terceiro grau em um garoto. Mãe e filho voltam a morar juntos, mas Diane enfrenta dificuldades devido à hiperatividade de Steve, que muitas vezes se torna agressivo. Os dois apenas conseguem encontrar um certo equilíbrio quando a misteriosa vizinha Kyla (Suzanne Clément) entra na vida de ambos. A trama se passa em um Canadá fictício, onde uma lei permite que pais infelizes com o comportamento de seus filhos problemáticos, possam interná-los em um hospital. O diretor Dolan é um fenômeno: de apenas 25 anos de idade, já conta com seis longas-metragens. No Festival de Cinema de Cannes de 2014, o jovem realizador foi não só o mais jovem da competição, como também foi uma das grandes sensações. Conquistou o Prêmio do Juri e teve a maior ovação do público, sendo aplaudido efusivamente de pé.
~ 10 ~
Filha Distante, de Carlos Sorín
Carlos Sorín retorna com mais um belo filme. Autor de Histórias Mínimas e O Cachorro, o diretor volta à Patagônia neste Filha Distante, confusa tradução do título original argentino Días de Pesca. Marco Tucci (o excelente Alejandro Awada) é um homem de 50 anos, que está largando o álcool e que decide viajar à Patagônia para reencontrar a filha Ana (Victoria Almeida). Nesta tentativa de restabelecer os vínculos familiares, Tucci procura a filha, pesca em cenário belíssimos da região e acaba por… Os sofrimentos passados são sutilmente destacados. Há uma cena absolutamente tocante em que Alejandro canta uma ária que habita a memória da filha. Mas não espere grande arroubos. Sorín é um cineasta e roteirista sutil, que narra suas histórias de forma quase silenciosa.