Machado de Assis e a Exibicionista

Machado de Assis e a Exibicionista

Cada qual sabe amar a seu modo; o modo, pouco importa; o essencial é que saiba amar.
Machado de Assis, em Missa do Galo

Anteontem, me senti como o Nogueira da Missa do Galo, o que não entendeu D. Conceição.

Eu esperava a Elena chegar enquanto uma mulher roçava-se em seu amigo ou amante ou marido, olhando para mim. Sempre olhando para mim. Na hora, achei que fosse algo casual — vocês sabem, estou a anos-luz de ser um Paul Newman ou Alain Delon, além disso, estou perto dos sessenta, isto é, sou feio e sem atrativos –, mas quando voltava meus olhos para lá, ela me olhava.

Impossível dizer que seja envergonhado, mas também não sou cara-de-pau. Minha possível vergonha fica sob o Homo Faber que sou e aquilo que posso chamar de Homo Ludens, alguém sempre pronto a se divertir. Esta criança interior ri, avacalha e satiriza muito. De certa forma, ela me protege.

E comecei a ficar irônico. Eu dava um tempo, mas quando passava meus olhos pela cena, estava sendo observado. E aguardava… Era um local absolutamente público, aberto, na rua. Cada um se excita a seu modo, talvez dissesse Machado. Há parafilias para todos os gostos. O exibicionista tem a fantasia de que o observador ficará sexualmente excitado, o que só aumenta sua própria excitação. Então, eu era um reles apoio. Como não se divertir, ainda mais que estava esperando, sem fazer nada?

Elena chegou toda linda e feliz. Sempre fico surpreso com sua alegria ao me ver.

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O conto Missa do Galo é uma das obra-primas de Machado. As histórias de Machado costumam ser assim: ele conta o que ocorreu trinta anos. A Missa também é um conto retrospectivo. Maduro, o narrador Nogueira relata um acontecimento do passado. Menino do interior, quando tinha 17 anos, Nogueira morava na casa do escrivão Meneses. Estava ali, no Rio de Janeiro, para estudar. Naquele ano, já de férias, prolongou sua estada na Corte a fim de assistir à Missa do Galo. O escrivão Meneses, mesmo casado com dona Conceição — uma santa, segundo o narrador — mantinha um caso extraconjugal. Todos sabiam disso, inclusive sua esposa. Uma vez por semana, dizia que iria a um teatro ou outro lugar e ia encontrar-se com a amante. A noite de Natal foi uma dessas ocasiões e Conceição devia estar especialmente ofendida.

E a santa provavelmente pensou que a saída do marido propiciaria condições para que ela própria tivesse uma aventura. Assim, ao que tudo indica — pois como sempre Machado não afirma nada —  premedita um encontro com o jovem. Lendo na sala, o jovem Nogueira aguarda o horário da Missa e ela chega, procurando ser envolvente. E ele não capta as intenções de Conceição. Suas roupas, seus gestos, suas atitudes, seu andar, suas frases ambíguas são de sedução. Mas, vocês sabem, há o momento da sedução. Quando este passa, o reaquecimento é complicado. E tudo esfria, só reaquecendo inutilmente na memória de Nogueira, muito tempo depois.

Sim, não tem muito a ver com a situação que vivenciei, só o fato de eu ter ficado sem entender nada.

“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta.”

Pode-se entender, se nem mesmo o narrador entende?

cinema leo

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O Marabá está morto

O Marabá está morto

Não há quase mais cinemas de rua em Porto Alegre. Todos os cinemas se internaram em shoppings. À noite, não se vê mais placas luminosas com letras quase sempre tortas ou faltantes anunciando filmes. Além, disto, os cinemas reduziram seu tamanho. Já faz tempo que desapareceram aquelas imensas salas em que funcionários com lanterninhas nos indicavam os lugares livres depois de iniciar a sessão. O VHS, a televisão, o DVD, o Now, o Netflix, a pandemia e o streaming, aliados à falta de espaço, de tempo e de charme transformaram nossas salas em coisas diminutas.

Mas a época do Marabá era diferente. O Marabá era um cinema que ficava em um bairro contíguo ao centro da cidade. Ou no bairro mais próximo a ele, se considerarmos que nosso centro é, na verdade, uma ponta enfiada no rio-lagoa-estuário Guaíba. O Marabá não tinha nenhum charme, não era frequentado por mulheres elegantes que deixavam rastros não de ódio, mas de perfume, atrás de si. Essas iam a outros lugares. Nenhuma surpresa nisto, pois o Marabá, fora construído para passar reprises e porcarias. Os filmes mais artísticos que lá vi foram as obras-primas kitsch de Jack Arnold: O Monstro da Lagoa Negra, O incrível homem que encolheu e — como esquecer dos gritos da mocinha? — A Revanche do Monstro. O enorme cinema ficava na rua Cel. Genuíno, 210, próximo à Av. José do Patrocínio. Só que, um dia, cansado de tanto passar filmes ruins, alguém de lá enlouqueceu e começou a passar somente grandes filmes em programas duplos. Eram apenas duas sessões — uma iniciava às 14h e outra às 20h — mas, meus amigos, que sessões! Um belo dia, estando eu na casa dos quinze anos, abri o jornal e li que o Marabá passava A Noite, de Antonioni, e Viridiana, de Buñuel, em seu programa duplo. Talvez a nova geração desconheça a expressão “programa duplo”. É o seguinte: semanalmente, eram apresentados dois filmes com um pequeno intervalo no meio para irmos ao banheiro e ao bar comprar balas, fumar, conversar, beber, namorar ou simplesmente esticar as pernas. Só que os programas duplos apresentavam normalmente filmes pornográficos ou de pancadaria. Nunca coisas daquele calibre.

Eu e um bando de loucos por cinema começamos a acorrer ao lúgubre Marabá. Aposentados e desocupados também pagavam o ingresso baratíssimo do cinema não muito limpo. Grupos de estudantes vinham ver e rever filmes enquanto matavam aulas. Minha sessão habitual era a das 14h. Formávamos uma peculiar fauna de jovens secundaristas, universitários, velhos e desempregados. Lembro de ter saído muitas vezes rapidamente de casa, batido a porta, lembro de pegar e pagar o ônibus, de parar nas imediações do centro e de correr como Catherine, Jules e Jim (ou Lola, para os mais jovens) em direção ao cinema. Comigo, chegavam outros esbaforidos. Trocávamos um cumprimento rápido e entrávamos. Comigo, muitas vezes veio Maria Cristina, minha primeira namorada. Quando víamos os filmes pela primeira vez, não protagonizávamos grandes cenas de amor nas poltronas desconfortáveis de encosto de madeira, deixávamos para fazer isto no corredor do edifício onde ela morava, na rua Santana. No máximo, trocávamos alguns beijos apaixonados no intervalo — afinal, estávamos ali pelo cinema. Porém, quando conseguíamos ir duas vezes na mesma semana, a segunda tarde era dedicada quase que inteiramente ao amor. Foi numa cadeira do Marabá — ou em duas, mais precisamente — que minhas mãos e boca tiveram seu primeiro contato com o seio feminino. Inesquecível. Não entrarei em detalhes sobre tudo o que fiz pela primeira vez no Marabá, mas não exagerem na imaginação, pois nossa primeira relação sexual, a minha e a dela, ocorreu numa noite, atrás do sofá da sala de sua casa… Voltemos ao cinema.

Depois vieram outros programas duplos. Houve Gritos e Sussurros (Bergman) e Amarcord (Fellini), Jules e Jim (Truffaut) e Ascensor para o Cadafalso (Malle), O Mensageiro (Losey) e Petúlia, um Demônio de Mulher (Lester), Janela Indiscreta e Um corpo que cai (ambos de Hitchcock), Cidadão Kane e A Marca da Maldade (ambos de Welles), Paixões que alucinam (Fuller) e O Sétimo Selo (Bergman), O Magnífico (de Broca) e A Malvada (All About Eve, de Mankewicz), West Side Story (Wise-Robbins) e O Criado (Losey), e, comprovando que a loucura tomara conta do programador, houve Andrei Rublev (Tarkovski) e Acossado (Godard), evento que deixou nossas bundas quadradas por longo tempo. Em 1975, após um programa duplo que apresentava Contos da Lua Vaga (Mizoguchi) e Morangos Silvestres (Bergman), comecei a ter aulas à tarde e a estudar para o exame vestibular. Planejava voltar ao Marabá quando entrasse na universidade, em 1976. Só que, neste ínterim, o Marabá morreu para virar garagem. Sim, após Dillinger está morto (Ferreri) fazer dupla com Um Caso de Amor ou O Drama da Funcionária dos Correios (Makavejev) começou a demolição. Ou seja, a glória do Marabá, um cinema de 1800 lugares fundado em 1947, foi sua agonia, a agonia de um querido dinossauro.

Não há mais cinemas de rua em Porto Alegre e também não há nenhuma cinemateca alucinada e radical como o Marabá. Quando as salas menores pareciam ter o poder de reabilitar para nós a gloriosa história do cinema, algo as trouxe para a isonômica mediocridade dos blockbusters. Resta-nos ver os filmes em nossa casa, às vezes na cama, podendo a sessão ser interrompida pelo telefone ou pela campainha da porta. Apesar das imagens perfeitas, não há o ritual de ir ao cinema, nem a sala escura onde somos ininterrompíveis, nem — perversão minha — o divino cheiro de mofo do Marabá, hoje substituído pela fuligem dos automóveis e pelos gritos dos manobristas.

A Cel. Genuíno hoje. Ela é a da direita.

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Anotações sobre censura. Ou autocensura

Anotações sobre censura. Ou autocensura

Isto é mera anotação, então, para efeito de organização, vou dividir o texto em três partes: a dos grandes jornais, presentes na mídia impressa e na eletrônica; a das mídias nanicas ou alternativas, muito mais presentes na mídia eletrônica do que na impressa; e a liberdade de expressão artística. Só pitacos.

censuraA censura no Brasil acabou oficialmente no dia 3 de agosto de 1988, quando foi votada a Constituição Brasileira ainda em vigor, porém, dificilmente alguém poderá falar em plena liberdade de expressão, seja ela impressa ou eletrônica.

Falemos um pouco sobre a liberdade de expressão dentro da mídia tradicional. Boa parte do trabalho da grande imprensa é o de acomodar interesses, próprios e de anunciantes. As famílias Marinho, Civita, Mesquita, Frias, Abravanel, Sirotsky, Sarney e outras têm suas visões particulares estampadas em suas publicações. O jornalista que trabalha nestes órgãos necessita ter cuidado para não elogiar políticos ou políticas de esquerda, nem atacar anunciantes.

Os anunciantes. Dificilmente um grande anunciante do jornal será criticado. Ele sustenta o jornal e quem paga a festa escolhe a música. Então, a loja ou o fabricante que tem anúncios de página inteira dificilmente será criticado por alguma ação, postura ou fato que o envolva. Mas há mais. Às vezes, os próprios grupos de comunicação têm outras empresas associadas, tais como construtoras, vinícolas e outras. E o jornal protegerá os produtos de seus afilhados, obviamente.

E há algumas coisas que acho duvidosas, apesar de permitidas.

Um grande jornal de Porto Alegre começou a veicular “gratuitamente” uma série de anúncios de uma determinada loja sob a condição de que tivesse participação nos lucros. É claro que os concorrentes desta loja reagiram, pagando anúncios… no mesmo jornal. E o jornal passou a ganhar dos dois lados. Eles chamam isto de “abrir mercado”. Não é proibido fazê-lo, mas talvez não seja uma interferência lá muito ética.

Para deixar a vida da grande imprensa mais confortável, o grosso das verbas publicitárias federais – mesmo durante os governos do PT – continuaram em seu caminho para os grandes grupos, que apenas não cresceram durante este período em razão do surgimento da internet.

E estes oligopólios existem incrivelmente à margem de uma Constituição que não regulamenta a atuação da mídia. A Constituição diz, vagamente, que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio” (parágrafo 5º do artigo 220), porém apenas uns poucos grupos privados controlam os meios de comunicação através de “redes” de afiliadas cuja “formação” não obedece a qualquer regulação. Só a RBS tem doze emissoras de tevê no RS. Tinha mais nove em SC. E apresenta boa parte da programação da Globo.

Evidentemente, a concentração dos meios de comunicação resulta em pouca pluralidade de informação. Para piorar, assim concentrada, a informação vem de uma elite econômica que não costuma ter horizontes muito longínquos de si.

Já a mídia alternativa caracteriza-se principalmente por sua pobreza. Ela não tem TVs ou rádios e poucas são impressas. Usam a internet, onde também os grandes grupos trabalham. Os anunciantes não lhe dão muita importância. As próprias agências de propaganda dizem que a diferença do discurso dela em relação à grande mídia é assustadora para seus clientes. O jornal onde trabalho tem 100 mil seguidores no facebook e 1,5 milhão de acessos mensais. Não é pouca coisa e não houve mês em que não tenhamos crescido. Mesmo assim, poucos anunciantes se arriscam.

Como são empresas sem muito capital, tudo o que não desejam são processos na Justiça. Mesmo que os ganhem, o custo dos advogados podem ser fatais para seus modestos fluxos de caixa. Esta é a forma de intimidação que sofrem.

Imaginem que já vi processos movidos por brigadianos cujos rostos apareceram em matérias de jornal. Eles estavam fardados, trabalhando, mas disseram que suas imagens foram utilizadas e prejudicadas. Já ouvi alguns autores de ações deste tipo serem questionados por juízes. E fica claro que quem sugeriu o processo a eles foram seus superiores.

O próprio ministro do STF, Gilmar Mendes, processou por danos morais Guilherme Boulos, coordenador do MTST, por um artigo que este escreveu criticando a atuação do magistrado. Gilmar pedia R$ 100 mil. Perdeu a ação, mas poderia ter ganho. E Boulos deve ter gastado o que não tem com advogados.

Já eu fui processado pela atual vereadora Mônica Leal. Não vou entrar em detalhes, mas perdi. Paguei 11 mil. Adivinhem se sigo criticando e rindo de Mônica. É óbvio que não.

Depois disso me senti como ela queria: intimidado. Não tenho 11 mil para distribuir a cada texto que publico. Muita gente sentiu peninha e até pensei em pagar por vaquinha virtual (crowdfunding ou financiamento coletivo). Mas não tive cara de pau suficiente. Paguei do meu mesmo. Ou seja, aqui a falta de liberdade de expressão é estabelecida pela intimidação.

E creio que outro gênero de pressão é feita sobre os artistas. Se um escritor combativo escrever contra um prefeito ou governador, poderá perder rendimentos. É que hoje uma das principais fontes de renda de escritores e músicos são os festivais e feiras. Os autores passaram a viver de suas participações em eventos. Não há mal nenhum nisso. Porém, quando um deles se posiciona, acaba por decepcionar 50% e fecha mercado para si mesmo.

Se você, por exemplo, for convidado por uma Secretaria de Cultura do PSDB e se declarar eleitor do PSOL, deixará de ser convidado. Então, atualmente, boa parte dos autores brasileiros são chapa branca, isto é, agradam a quem estiver no poder. A maioria demitiu-se da nobre posição histórica de serem uma espécie de consciência de suas sociedades. Eles não opinam e, obviamente, não influenciam suas sociedades. Vários deles são especialistas em aderir ao novo Secretário de Cultura. Claro que, se conseguem uma boa relação com PT, PMDB e PP, significa que nunca fizeram comentários políticos públicos, ou seja, sempre praticaram a autocensura.

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Caminhando para o trabalho

Caminhando para o trabalho

Venho diariamente a pé para o trabalho. Saio em horários muito próximos. Às vezes às 7h10, outras às 7h20 e, se estiver muito atrasado, às 7h40. Quando se caminha numa cidade como Porto Alegre, a gente tem que estar atento a quem está próximo. Ainda não fui roubado, mas é somente questão de tempo, se depender de nosso governador. Ando com fones de ouvido, ouvindo um CD completo cada manhã, sempre de música erudita ou jazz. E vejo como os grupos de cada horário se repetem de forma diferente.

Ali do lado direito, eu poderia estar descendo a Rua da Praia | Imagem distorcida: Google Maps
Ali do lado direito, eu poderia estar descendo a Rua da Praia | Imagem distorcida: Google Maps

Se saio no primeiro horário, logo vejo o homem negro no café em frente ao Colégio Rosário. Ele sempre usa alguma coisa do Inter em sua roupa. Não o vi hoje, pois saí no terceiro horário, mas tenho certeza que ele estaria com um abrigo perfeitamente colorado, defendendo-se do frio. Ele come torrada e bebe de uma xícara grande. Acho que café com leite. Ainda no primeiro horário há a loira alta e desajeitada que agora passou a usar óculos para deter a luz de seu olhar azul. Ela é muito apressada, tem menos de 20 anos e, pela pressa, dorme muito ou demora para sair.

Saindo no segundo horário, os das 7h20, há o guri dos músculos. Ele sempre dá um jeito de mostrar seus bíceps ou outra coisa que julgue poderosa. Como faço este caminho há quase três anos, sei que suas tatuagens têm menos de um e mostram lutas terríveis entre pássaros e cobras. Tenho vontade de lhe perguntar porque ele desenhou no braço uma galinha comendo uma minhoca, mas é melhor não. Neste horário, temos também o grupo de estudantes que desce a Independência de skate pelo corredor de ônibus e lotações. Mas eles passam muito rápido e jamais os reconheceria.

No terceiro horário, temos a velha anoréxica e o velho das meias. A velha anoréxica é isso mesmo. Ela caminha e treme um pouco a cada passo. É como se fosse cair de tão magra. A coitada deve trabalhar demais e seu cabelo, repartido do lado, toma-lhe tempo, porque é visível e minuciosamente alisado, formando uma franja estilo Hitler que lhe cobre diagonalmente a testa. Lava roupas em casa, pois algumas vezes carrega uma trouxa branca. Já o velho das meias fica na frente de um edifício quase na Senhor dos Passos. Ele e mais dois amigos ficam conversando, creio que sobre futebol ou fazendo observações sobre as mulheres que passam. Ouvi alguma coisa rapidamente. Certamente tem problemas circulatórios, pois usa meias de compressão para ajudar na circulação de sangue nas pernas. No verão, usava bermudas e as tais meias. Eu sempre olhava para elas. Tem um grande queixo de prognata e olhos de gente que se irrita facilmente. Como saí tarde, hoje foi o dia em que os vi.

Mas há muito mais. Temos a perua da Praça Dom Feliciano que desce na direção da Pinto Bandeira, o barítono cego vendedor de bilhetes que grita olha a megasena premiada e minha preferida, a vendedora de jornais da esquina da Rua da Praia com a Borges. Quando compro alguma coisa dela, sempre pergunto o preço e ela me responde terminando a frase com amado. Tem ar de mãe de toda a Borges e sorri muito. Um dia, estava perigando chover e ela me mandou apressar o passo.

Quando subo a Travessa Acelino de Carvalho, que liga o calçadão da Rua da Praia à Rua Andrade Neves, sinto o cheiro do mijo de quem passou ali à noite e a moça da lancheria à direita que quase sempre me dá bom dia. E chego ao edifício onde trabalho. Nosso porteiro é um gremista meio de lua que raramente diz alguma coisa quando chego. Afinal, está concentrado no jogo de xadrez do computador.

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A última resistência cai e a mulher vai tomando definitivamente a batuta

A última resistência cai e a mulher vai tomando definitivamente a batuta

A nomeação de uma regente titular para a orquestra de Birmingham é sinal inequívoco de novos rumos.

No Dia Internacional da Mulher,
Para todas as mulheres que trabalham em orquestras medievais.

Mirga Grazinyte-Tyla
A regente lituana Mirga Grazinyte-Tyla

O último bastião sexista da música erudita está indo ao chão. A City of Birmingham Symphony Orchestra, mais conhecida como CBSO, uma das mais respeitadas do planeta, anunciou no início de fevereiro que seu maestro titular será uma maestrina: a lituana Mirga Grazinyte-Tyla (Vilnius, 1986). Seus dois antecessores no cargo foram gigantes: Simon Rattle e Andris Nelsons. Rattle de saiu de Birmingham em 2002 para o cobiçado posto na Filarmônica de Berlim e Nelsons recentemente foi para a Sinfônica de Boston e a Gewandhaus Leipzig.

Grazinyte-Tyla é, de certa forma, ligada a outro craque da regência, o venezuelano Gustavo Dudamel. Ela foi assistente dele Dudamel na Filarmônica de Los Angeles a partir de 2012. Dois anos depois, ela começou a dirigir seus próprios concertos matinais no Walt Disney Hall. E logo surgiu na cidade californiana o que um crítico do Los Angeles Times denominou de “Mirgamanía”. Adjetivos como “naturalidade”, “dinâmico” e “forte” costumam acompanhá-la. Trata-se de uma excelente maestrina, e esta é sua outra conexão com Dudamel.

A maestrina lituana Mirga Grazinyte-Tyla
Mirga mandando ver.

Tais fatos vão mexendo as peças do jogo. Grazinyte-Tyla não faz o estilo fora de moda do gerentão irritado. Carrega com leveza aquilo que Elias Canetti chamou de “a expressão mais óbvia de poder”. Dona de grande carisma, ela constrói um modelo diferente com base na cumplicidade e empatia com os músicos: “Reger é algo que fica entre a inspiração e a comunicação. Com os músicos, busco encontrar uma forma de soar e de interpretar. A sensação de compartilhamento deste milagre é fundamental”, disse em uma entrevista para o site da CBSO.

A escolha do Grazinyte-Tyla para o chefia da CBSO não é um fenômeno isolado. É parte de uma tendência que está se consolidando.

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Naturalidade

O feminino no pódio é um movimento ascendente. Para a mexicana-norte-americana Alondra de la Parra (Nova York, 1980), a chave reside na naturalidade do gestual: “Sou pianista e violoncelista, é claro que isto foi fundamental na minha formação, mas há que considerar como as mulheres são. Nós crescemos cantando, dançando e expressando-nos corporalmente”. De la Parra tem impressionado na Orquestra de Paris e na Filarmônica de Londres, o que lhe rendeu uma recente nomeação como chefe de uma das principais orquestras australianas. Já Karina Canellakis (Nova York, 1982) é uma violinista que trocou o arco pela batuta e trabalha em Dallas Symphony como assistente. Ela estreou na Europa em junho passado, substituindo Nikolaus Harnoncourt, já adoentado, na direção da Orquestra de Câmara da Europa. Outro caso de instrumentista transformada em maestrina é o da coreana Han-Na Chang (Suwon, 1982).

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“Se um chefe de orquestra sabe o que quer, se tem conhecimento técnico de cada instrumento, se tem uma visão clara, a orquestra o segue sem se importar se é homem ou mulher”. É o que diz a única mulher a ganhar o Prêmio Alemão de Maestros, a estoniana Kristiina Poska (Turi, 1978), atualmente trabalhando na Komische Oper Berlin: “As diferenças entre os diretores de orquestra vêm mais da personalidade e caráter do que sexo”.

As pioneiras

Houve muitos obstáculos para as mulheres que se tornarem regentes. A geração anterior sabe muito bem disso. A australiana Simone Young (1961) ou as norte-americana Marin Alsop (1956) e Anne Manson (1961), abriram brechas nas salas de concerto, auxiliadas por seus mestres Daniel Barenboim, Leonard Bernstein e Claudio Abbado. Mas usavam um figurino artificial, masculinizado. Foi ainda mais difícil para as pioneiras no passado, que enfrentaram condições ideológicas e culturais totalmente hostis, vindas de músicos, críticos, agentes ou público como Ethel Leginska e Antonia Brico, que atuaram no pódio das Filarmônicas de Nova Iorque e Berlim em 1925 e 1930. A célebre Nadia Boulanger — formadora de toda uma geração de músicos notáveis — evitou a batuta. Outras tiveram uma carreiras confinadas no poço de um teatro para não serem visíveis ou ficaram em seus instrumentos sem poderem orientar uma orquestra.

Antonia Brico
Antonia Brico

Mas a melhor notícia sobre uma mulher conduzindo orquestras será quando… Isto não for mais notícia.

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O movimento é ascendente mesmo, tanto que já tenho três maestrinas em minha timeline do Facebook: Alessandra Arrieche, Ligia Amadio e Valentina Peleggi.

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Tradução livre (e certamente traidora) deste blogueiro a partir do El Pais espanhol. Sugestão de Helen Osório.

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Como a praia nos ensinou a gostar de música sertaneja…

Como a praia nos ensinou a gostar de música sertaneja…

A Elena quer que eu conte como a praia nos ensinou a gostar de música sertaneja. Foi um fenômeno súbito. Nós frequentemente íamos a uma pastelaria na Rua Rio Tapajós, a principal de Zimbros.

Acontece que bem na frente da pastelaria havia uma igreja cfe. foto abaixo. A cantora da igreja pegava o microfone e cantava, puxando a pequena congregação. Olha, só estando muito necessitado para aguentar aquilo. A pobre moça berrava, alcançando muito raramente a nota procurada. Para que seus erros não ficassem plasmados, ela procurava demonstrar “pegada”. É um vício de maus músicos e cantores. Como não sabem tocar ou cantar, saracoteiam, fazem cara de inspirados ou de extremo esforço e tocam e cantam alto, errando tudo, mas com “garra”. Certo público e a torcida do Grêmio deixam-se enganar pelo esforço, vão esforço.

Até o dono da pastelaria dizia que as músicas da igreja doíam nos ouvidos. E, bem…

Em contraposição, dentro da pastelaria havia uma TV alimentada por um DVD que passava shows de duplas, trios e solos de música sertaneja. Que maravilha… Eles acertavam um pouco mais no tom, e sua música e temas ainda tinham algum sentido. Pouco, mas tinham. Soube que a ideologia deles é a de ser solteiro, beber muito, dançar e pegar e ser pegado por mulher. É um mundo de péssimo gosto, porém hedonista e mais eufônico do que o das igrejas evangélicas. Por isso, eu passei a amar um pouquinho os sertanojos.

Elena Romanov Zimbros

P.S. — Mais da metade das músicas da pastelaria eram assim mesmo. O cara chegava cansado em casa, mas tinha marcada uma festa com mulher, música e muita bebida. Ou o cara tirava sarro do amigo que tinha que ir ao cinema porque estava namorando e, assim, perdia o menu de mulheres das festas. Ou era a respeito de mulheres poderosas que pegavam um cara por noite e não tavam nem aí. As letras são deste tipo.

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Zimbros, a cumplicidade feminina

Zimbros, a cumplicidade feminina

Ontem, fomos pela centésima vez ao supermercado aqui em Zimbros. É um super de praia que fica próximo de nossa pousada. Pequeno, vende desde leite e frutas até biquínis e estendedores de roupa. Quando chegamos ao caixa, paguei, recebi o troco e a dona do super me falou que precisava falar com ela. Ela?

— Sim, poderia chamar a moça que te acompanha e que está lá na porta, por favor?

Chamei a Elena, que ouviu a seguinte pergunta.

— Esse tênis é bom?

sketchers shape-ups air cooled

A Elena respondeu que para ela é ótimo. Disse que sua região lombar dói quando faz caminhadas com tênis comuns, mas que com aquele ela podia caminhar por horas. Tanto que, quando aquele deixou de ser vendido no Brasil, ela chegou a procurar em sites como o Mercado Livre por eles, mas que agora eles voltaram. Então, os olhos da moça brilharam na direção da Elena e ela tascou rápido:

— E funciona?

A Elena riu e disse que não sabia, mas que eram extremamente leves e confortáveis, que era o terceiro que comprara daquele estilo.

Eu não entendi patavina daquele “E funciona?”. Porém, quando saímos de lá, Elena me explicou que a fabricante do tênis vendeu a ideia de que seu produto tonificaria pernas e glúteos, deixando o traseiro com aquele formato interessante. Rindo, ela me explicou que o tênis obrigaria a que se pisasse primeiro com o calcanhar, fazendo com que o usuário sentisse o chão como se este cedesse conforme a pisada, simulando uma caminhada com os pés descalços em uma superfície semelhante à areia da praia… E que aquilo, na imaginativa propaganda, resultaria em maravilhas estéticas.

E eu, que nem olhei como era a bunda — tá bom, sejamos delicados –, o bumbum da dona do supermercado…

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Zimbros, as velhinhas

Zimbros, as velhinhas

Estamos, eu e Elena, aqui na praia de Zimbros em Bombinhas (SC). Fui buscar nosso almoço num restaurante próximo de nossa pousada e fiquei alguns minutos sentado numa mesa. Entraram quatro pessoas. A primeira era uma velha de uns 85 anos que vinha de bengala mas rápida, seguida por seu filho que devia estar pelos 60. Logo depois, junto com uma auxiliar de idosos, entrou uma senhora que devia ser quase centenária. A moça a segurava por trás, enquanto ela jogava para a frente um andador de idosos na esperança de chegar de novo até ele.

Por algum motivo, achei que havia certa animosidade entre as duas velhas, ambas de cabelos branquíssimos. Uma entrando na frente a toda velocidade, como se desse uma demonstração de força; a outra vindo lenta e inexoravelmente atrás.

O filho começou a negociar o pedido. A primeira queria comer uma anchova grelhada, mas já foi dizendo que a mana não poderia dividir o prato com ela porque anchovas tinham espinhas e ela poderia morrer com uma delas enfiada na garganta. A outra disse que queria anchova, é claro. O filho emitiu uma voz toda carinho:

— Tia, pode ser perigoso. Acho que a mãe pode ter razão.

A velhíssima foi sensível à delicada voz de tenor do sobrinho. Sorriu, fez uma cara de sacaninha e disse:

— Quero risoto de mariscos.

A velha rápida deu um salto:

— Você sempre odiou mariscos. A vida inteirinha. Quem AMA mariscos sou eu! Viu só, Amâncio, ela passa todo o santo dia, 24h, me provocando.

Amâncio olhou para mim. Desviei meu olhar para o livro que estava aberto à minha frente enquanto o ouvia dizer:

— Tia, é isso que a senhora realmente deseja comer?

— Sim, hoje eu quero mariscos.

— Amâncio! Ela só quer me deixar irritada — atalhou velha rápida.

— Ora, mas por que você pediu logo anchova? Você come a minha anchova e eu me refs… refes… refestelo com teus AMADOS mariscos. Hoje, eles estarão maravilhosos. Tenho certeza.

Rindo para mim, Amâncio chamou o garçom.

Zimbros

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Das tias e da falta de diálogo

Das tias e da falta de diálogo
Robert Mapplethorpe. Poppy. 1988
Robert Mapplethorpe. Poppy. 1988

Eu tive uma tia-avó solteirona que poderia ser chamada de a reserva moral da família. Meu núcleo familiar era pequeno — é ainda menor hoje — e a tal tia atuava de forma muito próxima. Ela era professora, não tinha filhos e não há notícias de amores. Mas ela dava palpites sobre tudo o que pudesse. Quando estourava um problema, era chamada. Hoje, pensando retrospectivamente, acho que ela era como a ex-freira virgem de Amateur, de Hal Hartley, vivida por Isabelle Huppert, que escrevia contos eróticos. Minha tia dava palpites sobre a criação dos filhos e sobre os casais em crise. Ou seja, dava palpites sobre tudo o que lhe era estranho.

Ela é uma boa metáfora para certo comportamento politicamente correto. Pois minha tia policiava todo mundo e obrigava todos a se policiarem. Desde que inventaram a correção política, a ação de amplificar alguma característica suposta ou claramente errada do pensamento alheio passou a ser uma virtude. Eu acho equivocada esta generalização do PC, pois ele costuma atacar mais o discurso do que as ações. As atitudes ficam subalternas. São pessoas, como disse o Erico Verissimo em O Senhor Embaixador — se a memória não me falha –, que têm medo de palavras, mas não de certas ações. Já vi coisas, meus amigos, que não devo contar.

Eu acho curiosíssima a forma como o politicamente correto, tão bem-intencionado, tornou-se também um guarda-chuva protetor de absurdos. O discurso de ódio de uma minoria, dentro do movimento feminista, invoca o politicamente correto como abrigo. Como conceitos não têm curadoria, a postura de que homem não pode falar de mulher está virando um braço do PC. Simples, seria errado o homem falar de mulher, pois os homens são dominante e, portanto, não têm nada a contribuir. Mas o feminismo não busca a igualdade? Falam em empoderamento, mas discriminam os homens e tudo vira luta e ofensas. Ora, tal exclusão não “empodera” ninguém, apenas cria um gueto resistente e surdo, formado por mímicos que fazem sinais hostis. Lembrem de minha tia!

O fato é que o PC guarda um parentesco muito próximo com a repressão, mas não acreditava que tais posturas discriminatórias pudessem fazer parte da ideia original do politicamente correto.

Um dia, um amigo meu conversou no Facebook com uma feminista que aderiu a esse discurso de ódio aos homens e que possui um pequeno grupo de acólitas. Como piada, o diálogo é sensacional. Leia o que está na imagem e depois meu comentário.

dialogo no face machista

Querida X.

Estou entrando no banho e venho por meio desta solicitar teu consentimento para te objetificar durante o mesmo. Prometo não fantasiar com nada além de um sexo oral e de um ato rotineiro com penetração. Aguardando autorização, subscrevo-me atenciosamente.

É, a falta de diálogo cria monstros.

Aliás, imaginem a masturbação feminina. Já pensaram quantas solicitações George Clooney, Brad Pitt e Johnny Depp teriam que responder?

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O dia em que meu avô enfrentou a ditadura

O dia em que meu avô enfrentou a ditadura
Quartel Militar de Cruz Alta

Para meus filhos Bárbara e Bernardo Ribeiro

Da minha perspectiva, meu avô João Cunha, pai de minha mãe, sempre foi um homem muito velho. Nascido em 1888, tornou-se pai de minha progenitora em idade madura, aos 39 anos. Eu, por exemplo, já tinha dois filhos aos 39. Quando nasci, ele já ia pelos 69. Viveu até os 81 anos, idade suficiente para que eu mantivesse bastante contato com seu Mal de Alzheimer. Porém, em 1º de abril de 1964, aos 76 anos, o velho João Nepomuceno Cunha teve uma dessas janelas de lucidez que ocorrem aos que não estão no estágio terminal da doença. Naquele dia, ele compreendeu perfeitamente que o país fora vítima de um Golpe Militar. E resolveu agir para impedi-lo.

Vestido de pijamas, saiu de casa sem que minha vó notasse e dirigiu-se ao quartel mais próximo. Importante dizer que a família de minha mãe é de Cruz Alta e que, a algumas quadras da casa de meus avós, havia um enorme quartel, ao menos na minha ótica infantil. Para lá foi meu avô. Então, com gestos enérgicos, iniciou aos berros um violento discurso. Chamou os militares à ordem com as palavras fortes que fazem parte do folclore familiar e que iniciavam assim:

— Parasitas da nação!

E depois passou a desafiar os milicos, sempre aos gritos. O pessoal do quartel ficou em dúvida se deveria prender meu avô. Na verdade, prendê-lo era complicado. Em primeiro lugar, por ser um velho doente; depois, por ser uma figura muito conhecida e respeitada na cidade. Além de ser o construtor de muitíssimas das casas de açorianos da cidade, ele fora um importante maçom, tendo chegado ao mais alto grau na organização. E, na época, ser maçom era dispor de uma inesgotável reserva moral…

O comandante do quartel resolveu ligar para meu tio João Cunha Filho, dando-lhe um ultimato.

— O seu pai está aqui na frente do quartel acusando os militares de quererem entregar o país aos americanos e outras bobagens.

— Como? O Sr. tem certeza que é ele?

— Sim, ele está vestindo pijamas e já tem uma plateia de imbecis ouvindo, aplaudindo e rindo de nós. Nós teremos que tomar providências, a menos que o Sr. venha AGORA a fim de levá-lo para casa.

E lá foi meu tio, em pânico, salvar seu velho pai das garras dos militares. Enfiou-o em seu carro sob vaias dos populares que queriam ver e ouvir mais. Foi um momento de glória para toda nossa família.

Antes de mergulhar nas brumas definitivas da doença, ele ainda alternou bons e maus momentos. Nos bons, sentava-se em sua cadeira de balanço para recitar de memória poesias de Casimiro e Machado. Eu achava aquilo muito estranho, mas notava a beleza. Nos maus, ele me perseguia com pedras na mão pelo quintal do pátio. Depois, era advertido aos berros por minha avó e literalmente chorava, dizendo que não reconhecera seu neto.

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Charlie Hebdo satiriza imagem de Aylan Kurdi em novas charges

Charlie Hebdo satiriza imagem de Aylan Kurdi em novas charges

aylanEnquanto o mundo têm se comovido com o destino de Aylan Kurdi, a criança síria que se tornou o símbolo da crise dos refugiados, o jornal satírico francês Charlie Hebdo tratou de zombar do fato.

Oito meses após o ataque terrorista que atingiu a sua sede em Paris , em janeiro, Charlie está de volta à cena com um novo set controverso de desenhos, nos quais faz piada com a imagem de Aylan, recentemente encontrado morto em uma praia turca.

Intitulado “Tão próximo de seu objetivo”, o primeiro desenho caracteriza Aylan deitado de bruços na praia perto de uma placa de publicidade de um “2 pelo preço de 1” da McDonald`s que diz “Dois menus criança pelo preço de um “.

charlie hebdo 1 aylan

Digamos que o primeiro ainda posa ser chamado de humor, mas o segundo vai contra o próprio ateísmo da revista. Ou não? Este chama-se “A prova de que a Europa é cristã”, mostrando uma criança afogando-se nas águas. No lado esquerdo, um homem, supostamente Jesus, caminha sobre as águas. o texto diz: “Cristãos caminham sobre as águas. As crianças muçulmanas crianças afundam. ”
charlie hebdo 2 aylan

O debate sobre estas imagens e sobre a verdadeira intenção da publicação está nas redes sociais. Há quem acuse o Charlie Hebdo de racismo. No entanto, há quem discorde e que argumente que estes cartoons versam sobre a reação europeia em relação à crise dos refugiados. Há oito meses atrás, eu disse que a Charlie era uma revista de humor grosseiro e quase fui fatiado. Sou a favor da liberdade de expressão da revista e de todos, sou contra bombardearem uma redação, claro, mas sigo achando a Charlie uma publicação de considerável mau gosto.

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Sartori garantiu um sábado à noite triste em Porto Alegre

Sartori garantiu um sábado à noite triste em Porto Alegre
Sartori pensando: "Por que D. Elsa quis que eu fosse governador? | Foto: Ramiro Furquim/Sul21.com.br
Por que D. Elsa quis que eu me tornasse governador? | Foto: Ramiro Furquim / Sul21

Saímos para jantar às 22h. Fomos a um bom restaurante perto de casa, aqui no Bonfim. Ele está sempre lotado. A parrilla ao fundo, a carne bem preparada e a cerveja uruguaia garantem o barulho alegre das conversas. Porém, ontem, quando chegamos, ele estava com as luzes acesas e as portas fechadas. O silêncio era total, parecia uma cerimônia de velório. Dentro, apenas um casal. Já imaginando a resposta, perguntei o que estava acontecendo. “Pouca gente está saindo de casa por causa da insegurança dos últimos dias. Também estamos preocupados, mas podem entrar.”

Pois é, as mortes desta semana e o policiamento rarefeito — e por vezes assassino — apavorou a cidade que está vazia de uma forma esquisita para esta época do ano. A redução do efetivo da Brigada Militar fez o comércio de Porto Alegre adotar medidas para se precaver. As medidas são: fechar mais cedo ou nem abrir. Nunca vi um governante administrar tão mal uma crise. Credo, parece o Planalto!

É estranho. O governo não tem dinheiro, mas suas ações criam um clima que atrapalha o comércio que lhe dá impostos. No mês passado, a arrecadação caiu em 100 milhões. Certamente, vai cair ainda mais este mês, aprofundando a crise. O que é ruim vai ficar pior. Este problema foi cultivado por anos, através de muitos governos. Muitos sabiam e avisaram. O muro que estava longe aproximou-se sem que ninguém tivesse tomado a iniciativa de desviar, seja pagando a dívida quando era possível; seja depois, alterando as regras de pagamento de forma substancial. Orgulho-me de ter sugerido a pauta que gerou a melhor reportagem publicada recentemente em nosso estado a respeito da divida e que comprova o fato de ela ter sido criada por bem mais do que duas ou quatro mãos. Tivemos uma série de governos estaduais ridículos ou razoáveis e todos são igualmente culpados, desde a sumidade que criou a bola de neve, o nada saudoso primeiro governador da ditadura, Euclides Triches. Em seu governo arenista, o crescimento da dívida chegou a 194.4%…

Triches nasceu em Caxias, Sartori em Farroupilha. Nasceram perto um do outro. Não lembro de Triches, mas sei que, no quesito comunicação, Sartori só encontra rival em Dilma Rousseff. Só que ela fala bobagens longamente, enquanto que ele prefere pequenas e exatas frases infelizes. Às vezes ele nem precisa falar, basta dançar que já irrita. E os dois não param. Creio que a recessão federal e a crise gaúcha nos inquietem tanto porque ninguém acredita nas ações de gente tão atrapalhada com as palavras. Tanto jornalista desempregado e ninguém para editar aqueles discursos da Dilma no site do Planalto. E Sartori? Seu staff deve ficar em pânico cada vez que ele pega um microfone.

Hoje, fomos tomar café na outra esquina. Tinha pouca gente na rua, o pessoal está comprando suas coisas no supermercado e sumindo dentro de casa. Os donos dos supermercados devem estar felizes. Só eles pagarão belos impostos. Mas tergiverso. O fato é que estou louco para ir ao cinema. Vou caminhar por nossas ruas tristes.

Se não voltar até a noite, chamem a polícia. Polícia? Bem, sei lá, chamem alguém.

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Recadinho a alguns comentaristas:

policia mata

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Elena e a guerra

Elena veio para o Brasil no começo de 1998. Era verão aqui, inverno na sua Bielorrússia e ela mal falava inglês. O português era-lhe inteiramente desconhecido, mas a vida estava difícil na Europa Oriental, às vezes era complicado até conseguir cumprir as necessidades mais básicas — como, por exemplo, comer –, mas ela tinha uma arma: uma sólida formação musical que a ensinara a tocar maravilhosamente o violino. E ela viajou algum tempo depois de seu marido na época, que já fora aceito na Orquestra do Teatro Amazonas, em Manaus. E Elena foi para o mesmo local a fim de fazer um teste.

Era uma jovem mãe com uma filha de 5 anos e uma gravidez de 5 meses. O avião da Aeroflot chegou 2 DIAS (!!!) atrasado ao Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, fazendo-a, é claro, perder a conexão para a capital amazonense. Era uma bielorrussa falando russo em Congonhas. Ou seja, ampliando o quadro, era uma mulher falando russo num local onde ninguém a entedia, acompanhada de uma filha pequena, um inquilino na barriga e mais bagagem. A confusão e o nervosismo já tomava conta de nossa heroína quando apareceu uma pessoa que conhecia a língua num balcão que não tinha nada a ver com o problema. A moça se apresentou e encaminhou Elena para Manaus.

Lá chegando, ela não conseguia acreditar. Saíra de Minsk com -35°C e chegara a Manaus com 35°C. Mas não eram só os 70° de variação. Quando saiu do avião, ela teve a sensação de que se chocara contra uma desconhecida parede de calor úmido. E a inacreditável umidade tornava qualquer movimento difícil, ainda mais grávida, com filha e bagagem. Detalhe: e tendo que cuidar de dois violinos — o dela e o da filha –, o que não é o menor problema de um músico.

Mesmo com a notória barriga, foi aceita na orquestra como violinista. Cada vez mais grávida, por assim dizer, e sem saber uma palavra da língua que hoje fala tão bem, costumava tomar banho, levar a filha para passear nas calçadas quentes, sujas e esburacadas da cidade, e voltar para tomar outro banho. E a vida ia se ajeitando. Porém, um dia, ela saiu para a rua e voltou rapidamente para o apartamento. Estava em pânico. É que algo de muito grave tinha acontecido. Entrara em pânico. Não havia ninguém na rua. O que ocorrera? Do que eles, os russos, não sabiam?

De repente, ela ouviu explosões e ficou tão agitada que quase fez Nikolay nascer prematuramente. Viera certamente para um país em guerra. Começou a chorar e a pensar numa forma de proteger a si e à família. Mas as explosões eram apenas a comemoração de um gol.

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Um dia glorioso de trabalho em Montevidéu

Elena Romanov, Roberto Markarian e eu na sala do reitor
Elena Romanov, Roberto Markarian e eu na sala “del Rectorado”

Fizemos uma bela entrevista com Roberto Markarian, Reitor da Udelar, Universidade da República do Uruguai. Na entrevista, fica claro o que é uma ‘pátria educadora” e a dimensão humana de um sistema gratuito e laico de ensino. Foram 63 minutos de perguntas e respostas, mas a Elena disse que o conteúdo equivale a um livro. Pedi ajuda a vários amigos acadêmicos para melhorar minhas perguntas e o resultado foi estupendo.

Acho que vou dividir a entrevista em duas partes para que não seja cansativo para o leitor e lhe dê certo tempo para refletir sobre modelos totalmente diferentes — e mais racionais — dos nossos. Tive a sorte de conhecer o genial Markarian durante os anos 80 quando ele fazia mestrado em Porto Alegre após sete anos de prisão durante a ditadura militar uruguaia. A mim, resta agora ser digno de Markarian, dos amigos e da Elena, que me ajudou com fotos, sugestões 100% aceitas e também com alguns questionamentos..

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O “Não” talvez não ganhasse no Brasil e outros temas

O “Não” talvez não ganhasse no Brasil e outros temas

Tenho certeza de que o “Não” venceu com tanta facilidade em razão da Grécia não possuir voto obrigatório. A obrigação do voto leva milhões de desinteressados em política às urnas. E estes votam segundo suas vagas impressões. Na Grécia, o “Não” recebeu 3,6 milhões de votos; o “Sim”, 2,2; e o número de nulos, brancos e abstenções foi de 4,1 milhões. É normal, o tema era fundamental para o país e foi uma boa participação. 59% das pessoas votaram e 41% não foram às urnas.

Foi uma vitória legítima e esmagadora.

Creio que, se passássemos a circunstância grega para o Brasil, um plebiscito desses seria sujado com todo tipo de ruído sem sentido vindo do pessoal que não está nem aí. Aqui, o voto não é um direito, mas um dever. É mais ou menos como suportar as opiniões daqueles comentaristas esportivos que se tornam especialistas em futebol de quatro em quatro anos, durante as Copas do Mundo.

A célebre frase de Arnold Toynbee, “O maior castigo para aqueles que não se interessam por política é que serão governados pelos que se interessam, não vale no Brasil. A versão brasileira é “O maior castigo para aqueles que se interessam por política é que serão governados pelos eleitos da maioria que não se interessa”.

 Como seria nosso Congresso com o voto facultativo? Ah, duvido que fosse pior.

greece-referendum-no-vote-bailout não oxi

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Conheço gente que está vibrando com a vitória do “Não” na Grécia e que apoia o ajuste fiscal no Brasil.

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Conta-se que quando Churchill convocou a Inglaterra para um redobrado esforço de guerra, a fim de avançar com medidas que eram tidas como imperiosas para a resistência aos avanços nazistas, foi abordado pelo Ministro da Cultura do seu governo. Este teria lhe dito, conformado, “Vamos ter de cortar na Cultura!”, ao que Churchill teria respondido: “Nem pense nisso! Então, estamos a fazer esta guerra para quê?!”.

Não há comprovação de que esta resposta tenha sido de Churchill, mas que é perfeita é. E, pior, a Cultura não consome valores monetários muito importantes em nosso país, mas forma outros valores.

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Coluna social do blog. Cesare Battisti casou com Joice Lima, a companheira que sempre esteve ao seu lado nos bons e maus momentos pelos quais tem passado no Brasil. O casal tem uma filhinha.

Battisti-2

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Saindo da política. Não creio que toda pessoa infiel seja mau caráter nem que toda fiel seja portadora de maior mérito. Afinal, talvez alguns destes só não tenham tido oportunidade de trair. Ou tenham negado amor a quem depois os traiu. Mas um subproduto defensivo de preconceitos burros é o fato de que conheço pessoas que traíram e que guardam raiva mortal do parceiro ou ex-parceiro fiel, inclusive mentindo a seu respeito. É como uma profilaxia contra a improbabilidade de este sair berrando por aí fui traído, fui traído! E criam todo o tipo de factoides a respeito, produzindo um fictício fracasso pessoal do outro. É como justificar o envenenamento de seu cão inventando que ele cagava toda a sala e mordia as visitas. É uma forma de recusa à veracidade causada pelo medo do julgamento.

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 53 anos da morte de William Faulkner, ontem.

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Esta manhã, ouvi os belíssimos Vingt regards sur l’enfant-Jésus (Vinte olhares sobre o menino Jesus). É uma suíte de 20 peças para piano solo do compositor francês Olivier Messiaen (1908-1992) . Foi composta em 1944 e tem duração aproximada de duas horas. A obra é uma meditação sobre a infância de Jesus. Mas sou ateu e, para mim, trata-se de música absoluta e fim. Simplesmente não faço conexões. Apenas gosto e acho que o carolão Messiaen foi um dos maiores compositores do século XX. Minha igreja é a sala de concertos, Messiaen.

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O Inter teve 24 jogadores lesionados em 2015. Um recorde.

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A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa, ou Identidade Cultural, Sistema Métrico Decimal e Canudos

A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa, ou Identidade Cultural, Sistema Métrico Decimal e Canudos

a guerra do fim do mundoEu amo o mar, mas sou de origem e de alma um sujeito do sertão, que sei de vivência e não de notícia dos Euclides e Guimarães.

Adalberto de Queiróz

Pois eu só conheço o sertão de notícia, Beto, infelizmente só de notícia. A frase acima faz parte de um e-mail que meu amigo enviou-me anos atrás. Falávamos sobre férias, viagens e trabalho. Estava pensando em reler Os Sertões, mas ao notar que ainda não tinha lido o livro de Mario Vargas Llosa sobre Canudos — A Guerra do Fim do Mundo –, escolhi o peruano. O livro fora comprado em 21 de dezembro de 1981, conforme a anotação da primeira página. Nunca fora aberto.

A história de Canudos é riquíssima como documento humano e político. Os acontecimentos são regidos de um lado pelo fanatismo religioso e de outro pelos tortuosos caminhos da política brasileira. Os interessados no conflito são tantos que — guardadas as proporções — às vezes parece que estamos lidando com a Revolução Francesa. Há monarquistas que mudam seus apoios conforme os ventos, há o povo nordestino que tinha Antônio Conselheiro por santo, há os jagunços convertidos, há os republicanos que acabarão por realizar o massacre, há socialistas que viam na ação do Santo Conselheiro uma espécie de vanguarda intuitiva de suas idéias, etc. Ou seja, não é uma história simples e os interesses muitas vezes são acomodados de forma surpreendente.

Porém, o que desejavam os amotinados da terra santa de Canudos? Ora, livrar-se do Anticristo representado pela República e de seus “avanços”. O juramento que os novatos em Canudos faziam explica bem suas motivações:

Juro que não sou republicano, não aceito a expulsão do Imperador nem sua substituição pelo Anticristo. Não aceito o matrimônio civil, nem a separação da Igreja do Estado, nem o sistema métrico decimal. Não responderei às perguntas do censo. Nunca mais roubarei, nem fumarei, nem me embriagarei, nem apostarei, nem fornicarei por vício. E darei a vida por minha religião e o Bom Jesus.

Surpresos com a citação sobre o censo? Canudos era monarquista mas anti-escravatura. A ojeriza ao censo pode ser explicada da seguinte maneira: por que pretendia a República saber a raça e a cor das pessoas senão para, outra vez, escravizar os negros? E por que interessava-se ela pela religião da população, senão para identificar os crentes antes da matança? A rejeição ao sistema métrico decimal tinha motivações ainda mais disparatadas: é que as medidas inglesas eram, digamos, mais monarquistas… Digo-vos, meus caríssimos sete leitores: havia demência no ar. Ainda há hoje, não?

Além do completo massacre dos habitantes da vila de Canudos, houve enorme sacrifício de vidas no exército brasileiro, que não conseguia entender aquela guerra sem ética. Despreparado para ações de guerrilha, o Exército via os amotinados como um inimigo sinuoso, covarde, que se emboscava e desaparecia quando os “patriotas” tentavam encará-lo e que desconhecia as leis e os procedimentos da guerra. Além disto, os amotinados resistiam com inacreditável bravura, certos de que a morte lhes renderia o caminho dos céus. Os soldados, crentes em sua maioria, atacavam outros brasileiros que, paradoxalmente, cantavam hinos ao Senhor sob qualquer pretexto. Isto custou a todos muitas vidas, além de ódio mortal. O episódio Canudos pode ser dividido em 4 campanhas: a primeira e a segunda vencidas facilmente pelos amotinados — o que só fez com que se reforçassem e crescessem –, sendo a terceira foi uma guerra muito longa e tática à espera de reforços e a quarta o massacre no qual foram mortos TODOS os habitantes de Canudos.

O livro não é e nem se tornará um clássico com o de Euclides; é antes um romanção com dezenas de personagens e histórias que se desenvolvem ao mesmo tempo nas várias frentes: Canudos, Exército, jagunços, política e jornais baianos 1, 2 e 3, surpresa e raiva federal, etc. O livro se vale de quatro personagens principais: o monarquista Barão de Canabrava, o republicano Epaminondas Gonçalves, o jornalista míope e o anarquista escocês Galileu Gall. Não é por acaso que o intelectual da história seja um jornalista míope que teve seus óculos quebrados e que anda pela Vila de Canudos sem ver nada claramente.

Por que há tão poucas obras sobre Canudos, por que nosso cinema e a televisão não exploram mais o massacre? Lá foram mortas 25.000 pessoas! Será que Euclides da Cunha, com seu impecável estilo empolado e sua justa aura de fundador da sociologia brasileira, tornou-se intocável? Bobagem, Canudos não é dele. E por que há tantas recriações, abusadas ou não, de Machado de Assis e quase nada da grande história contada por Euclides? Trata-se de um equivocado respeito, de uma distância inexplicável de um fato que fala muito sobre nossa identidade cultural. Por que ignoramos Canudos? Sei lá. O que sei é que veio um peruano destituído deste respeito, fez pesquisas no local e enfrentou a complexa história em 560 páginas. Vale a pena ler, antes ou depois de Os Sertões.

nuestra identidad cultural el roto

Observações: (1) A charge acima, do El Roto, foi retirada do jornal El Pais e refere-se à Espanha. Deve ser a globalização… (2) Sugiro a leitura do livro no original em espanhol, mesmo para aqueles que têm pouca vivência com a língua. A tradução brasileira deste best-seller (na capa acima) é, digamos, média.

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Os Bondes de Porto Alegre

Os Bondes de Porto Alegre

bonde 1957

Nasci em Porto Alegre no ano de 1957. Quem nasceu aqui antes de 1960, certamente andou de bonde. Eu os adorava. Numa época em que as crianças iam sozinhas ao centro da cidade sem a menor preocupação dos pais, ele foi uma de minhas glórias infantis. Com ele, eu ia a todos os lugares que me interessavam; todos no centro da cidade. Para a criança que eu era, o bonde elétrico tinha duas vantagens principais: o preço irrisório e o fato de andar em trilhos. Explico: eu sempre desconfiava que os ônibus, por não andarem em trilhos, poderiam me levar por caminhos desconhecidos de onde não saberia voltar. Já os bondes, por estarem presos àquelas ranhuras de ferro cravadas no chão, davam-me total segurança… Eu era esperto, não?

Ir até o fim linha, no centro, proporcionava ao passageiro uma emoção extra: a de ver o trabalho do motorneiro e do cobrador para o retorno. O bonde era bidirecional; não era, portanto, manobrado e nem havia um local para ele fazer uma curva e retornar. Chegávamos ao fim da linha e voltávamos em direção contrária, apenas mudando de um par de trilhos para outro, vizinho e paralelo ao da vinda. Então, o motorneiro retirava os comandos de um lado do bonde e os levava para o outro, ao mesmo tempo que o cobrador caminhava pelo corredor do bonde com os braços abertos, empurrando os encostos para o outro lado, a fim de que as pessoas não trafegassem de costas. Isto era feito, no centro, em frente ao Mercado Público, de onde foi tirada esta foto da Av. Borges de Medeiros.

Aliás, durante o percurso, os cobradores caminhavam sem parar de um lado a outro do bonde pegando o dinheiro dos passageiros. Em horários de pico, com o bonde cheio, muitos diziam que já tinham pago sua passagem, o que podia gerar curtos e barulhentos bate-bocas. Mas digo por experiência própria que a melhor maneira de não pagar era andar como eu gostava, lá na porta dependurado e sentindo o vento bater no rosto, a uma velocidade máxima de uns 40 ou 50 Km/h, calculo eu. Era o momento de maior emoção, quando podia ficar com um dos braços e uma das pernas no ar. Curiosamente, ninguém achava aquilo perigoso, só umas velhas chatas perguntavam se eu e outros meninos queríamos morrer.

À velocidade máxima, o bonde Brill dava a impressão de que ia desmanchar-se, tal era o barulho. O barulho era esquisito e parecia a mim o de garrafas de leite batendo-se umas nas outras. A gente podia ir ao Estádio dos Eucaliptos (o Beira-Rio é de 1969) ver os jogos do Inter de bonde. Em dias de jogo, com o bonde lotadíssimo, era inacreditável o número de torcedores adultos dependurados nas quatro portas. Ao fazer a curva na esquina da Av. José de Alencar e da Rua Silveiro (a rua do estádio), tínhamos a mais espetacular lição de física que se pode imaginar. Nossos gritos, enquanto tentávamos desesperadamente segurar nas barras do bonde, deviam ser dilacerantes. Lembro de ter superado a força centrífuga criada pela curva com a ponta dos dedos, quase caindo. Mas lembro também de vários que saíam pela tangente, às vezes dando de costas nos paralelepípedos. Estranhamente, era normal; nunca vi o motorneiro da Cia. Carris ser advertido por excesso de velocidade, pelo fato de colocar em risco a vida dos pingentes.

Tudo era maravilhoso naqueles tempos para mim românticos, tempos em que andava livremente de bonde pela cidade enquanto o AI-5 dava respaldo a uma ditadura que torturava presos a uma quadra de minha casa, do outro lado da rua (morava na Av. João Pessoa perto do DOPS – Departamento de Ordem Política e Social). Anos em que o Inter, ao sair dos trilhos da rua Silveiro, mudava-se para o Beira-Rio e o asfalto da Av. Padre Cacique.

bonde porto alegre

Durante o ano de 1961 foram transportados 89 milhões de passageiros em bondes da Carris. Havia bondes belgas, ingleses e norte-americanos. Todos elétricos. Eles existiam desde 1908. Em 1926, já eram mais de cem. Os bondes seguiram operando durante décadas, continuando a arcar com grande parte do transporte de passageiros, que os ônibus pouco a pouco tomavam conta. Finalmente, em 8 de março de 1970, às 20h30, o último bonde fez seu percurso em Porto Alegre. Eu tinha 12 anos e fiquei muito triste, sem entender. Naquele dia, houve solenidade de despedida, à qual compareceram o Prefeito e autoridades.

bonde redencao

Uns burros. Ou espertos, como sabemos hoje da relação do poder público com as empresas de ônibus. Afinal, o serviço da Carris era público.

bonde criancas

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Meu primeiro toque retal

Meu primeiro toque retal

toque retalPisando a linha do vulgar, sem jamais ultrapassá-la.

Foi no início dos anos 90. Repentinamente, eu passei a sentir fortes dores. Não conseguia sentar direito, era obrigado a sentar de lado, levantar da cama exigia um esforço de rolamento especial, qualquer caminhada de uma quadra era difícil e ir aos pés era algo indizivelmente desagradável e penoso. O alívio só vinha mesmo se eu ficasse deitado de bruços.

Meu pai logo fez o diagnóstico: era uma crise hemorroidária. Vocês sabiam que por culpa de suas hemorróidas Napoleão ficou impedido de montar em seu cavalo e que, para aliviar as dores, ele teria ficado por horas e horas em posição fetal, ou genupeitoral, perdendo com isso tempo precioso para aplicar sua estratégia militar em Waterloo? Vocês sabiam que essa posição acabou conhecida como “a posição em que Napoleão perdeu a guerra”? Vocês sabiam que tal posição apenas agrava o problema? Pois é. Resolvi marcar uma hora no proctologista. Perguntei a uma amiga médica o nome de um. Ela me disse:

— Vai no Ignácio Mallmann. É muito bom.

Confesso que queria evitar, mas a dor era violenta e persistente.

— Sabe qual é o apelido do Ignácio?

— Não — respondi.

— É tala larga… Ele tem mãos grandes!

Arrã. Engraçadinha. Fui perguntar para minha irmã, que também é médica e ela confirmou que Ignácio era excelente médico.

— Diziam que ele era apaixonado pela M., mas não deu certo.

Eu não estava nada preocupado com a vida sexual do Dr. Ignácio… Ou deveria?

— Ele é muito hábil. O apelido dele é Paganini.

Sempre foi assim, sempre estive cercado de piadistas que não me levam a sério nem quando caminho todo torto, de lado, tentando não movimentar as pernas.

— Ah, é?

— Sim, ele é bom com dedos, além de acromegálico.

— Que interessante!

— Ele tem as mãos, os pés, o nariz e todas as extremidades gigantescas!

Ri de minha adorável irmã e marquei hora com o já lendário Ignácio. Devo ter chegado lá com ar de súplica. Contei para ele a desgraça enquanto media seus dedos. Não eram nada excepcionais e só naquele momento dei-me conta de que deveria ter ido numa doutora tamanho mignon, de delicadas e diminutas mãos. Se fosse um pouquinho inteligente, nunca escolheria um homem. Ele era simpático e eu nem por sonho falaria na sua paixão adolescente por minha amiga M. Imagina se ele pensasse nela durante o exame? Seria empalado.

Depois daquela conversinha que para mim assemelhava-se àqueles acertos que alguns fazem com as putas na janela de seus carros. Entrei no car…, digo, fui para uma salinha auxiliar onde havia uma espécie de poleiro de formato ameaçador. Logo imaginei a posição que ficaria, já a tinha visto no Kama Sutra. Olhei em volta procurando correntes, roupas de látex, chicotes ou algemas, mas era mesmo só o poleiro.

Deveria ter pedido um mordedor, mas nem pensei nisso. Tirei a roupa e fui para o poleiro ouvindo vozes do filme A Vida de Brian.

Crucifixion?

Yes, please.

Good!

Ignácio começou a rir. Eu recém tinha me empoleirado, de pernas abertas, mostrando com toda a clareza o problema para ele. Mas ele estava rindo de pena.

— Nossa, deve estar doendo muito. É aparente e está muito inchada. Dá para ver daqui.

Não sei a quantos metros ele estava de mim, mas achei que, já que era visível a olho nu, podíamos encerrar sem utilizar a luneta. Mas vocês conhecem os médicos. Como eu não estava ali pelo SUS, ele faria o serviço completo. Senti algo. Olha, a coisa doía tanto que não vou negar que a luva úmida e gelada do médico foi até agradável. O local parecia queimar. Ele disse que não era grave. Limpeza local e uns quinze meses de antiinflamatório resolveriam. Não, nada a ver com comida. Era constitucional, ou seja, a culpa era minha. Em três dias eu estaria bem.

Seu discurso era tranquilizador e eu ia pouco a pouco relaxando, entrando no clima. No clima de Waterloo. Olha, conversamos muito. Eu na posição napoleônica, ele na do Duque de Wellington. Mal sabia eu que aquelas eram as preliminares, pois, sem maior aviso, enquanto eu sustentava uma opinião qualquer, ele subitamente pontificou com tudo, ao mesmo tempo que dizia animadamente

— vamos aproveitar para dar uma olhada na tua próstata!

Não lembro se doeu muito ou não, só sei que pensei

— que merda, esse cara está me enrabando!

E acho que pus as mãos no rosto em gesto de absoluto pasmo. Minha honra, meu reto antes inexpugnável! Ele ainda falava, agora dizendo maravilhas de minha próstata, tão pequenininha em comparação a seu dedo. Eu devia ser muito bonito por dentro pois seu entusiasmo era realmente contagiante, se houvesse por ali alguém a fim de contágio. O exame finalizou como finalizamos qualquer ato sexual, com a retirada do dito cujo.

Após a curra, podia vestir-me, mas havia um problema. Eu ficara sem graça, meu rosto deixara de se mexer e a fala tornara-se monocórdica. Passei a responder a tudo sem sorrir, pensando porque diabos M. não curara aquele tarado em seus dias de juventude. Saí de lá direto para meu trabalho na Hewlett Packard. Sentei na minha mesa. Nem sentia mais dor. Ou não me importava mais. Foda-se… quero dizer… Ah, sei lá. Olhei para o lado e disse para meu amigo Dario:

— Porra, Dario, fui enrabado!

Quase vinte anos depois, no ano de 2007, durante a festa de aniversário do Dario, estávamos numa situação em que faríamos qualquer bafômetro acender a luz vermelha a cinquenta metros. E ainda havia aquele narguilé… Bom, o fato é que tínhamos nadado num mar de espumante da melhor qualidade. Repentinamente, o Dario olhou para mim e deu uma trovejante gargalhada. Não sei por quê, adivinhei na hora o motivo. E ele começou a contar para TODOS minha reação ao Dr. Ignácio Mallmann e, pior, confessou que rira alto quando fizera seu primeiro exame de toque retal. Por quê?

Ora, porque lembrara de minha cara ao chegar na HP.

Podemos, todos nós, fazer suposições sobre o que o médico dele pensa de uma pessoa que dá risadas durante o ato, digo, exame, mas não explicito as minhas em respeito a um grande amigo.

Dedicado ao Dario. Abaixo, uma foto muito bonita de seu casamento.

Obs.: Ignácio Mallmann é excelente médico e espero que, se ele vier um dia aqui, perdoe-me a brincadeira. Afinal, o primeiro a gente nunca esquece.

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Em Israel, entre as oliveiras

Em Israel, entre as oliveiras
Quando visto à noite, é ainda mais bonito
Quando visto à noite, é ainda mais bonito

No início do ano 2000, minha Elena foi visitar seus familiares em Israel. Entre um passeio e outro, foi aos grandes mosteiros russos erguidos no Monte das Oliveiras. Os prédios são belíssimos. Um deles, o da foto acima, foi construído em 1886 pelos Romanov, a mandado do czar do antigo Império Russo Alexandre II, em homenagem a sua mãe, a imperatriz Maria Alexandrovna. Sim, os prédios foram pagos pelos russos de então.

Não se enganem, esta torre é enorme.
Não se enganem, esta torre é enorme.

O outro mosteiro ortodoxo, o da foto ao lado, é de 1870, é imenso e tem até uma fábrica de azeite de oliva em seus 5,4 hectares. O Monte das Oliveiras tem três picos dispostos no sentido de norte-sul. É um local sagrado para judeus, cristãos e muçulmanos.

Após visitar detalhadamente os mosteiros, por interesse histórico e por ser cristã ortodoxa, a querida Elena, namorada deste ateu que vos escreve, caminhou para a região católica do Monte, entre suas árvores milenares. Foi quando deu-se conta de que estava no Jardim de Getsêmani, ao lado das famosas oliveiras sob as quais Judas deu o beijo fatal em Jesus. Para quem não sabe, um beijo foi a forma escolhida por Judas Iscariotes para identificar Jesus aos soldados que vieram prendê-lo. A combinação era de que Judas beijaria o homem que deveria ser preso. Tal traição a Jesus ocorreu exatamente no Getsêmani, debaixo das oliveiras, após a Última Ceia. E o ósculo levou Jesus à prisão pela força policial do Sinédrio (assembleia de 70 juízes que a lei judaica ordenava existir em cada cidade). Tal fato criou a expressão “Beijo de Judas”.

A azeitona hoje
A azeitona de Judas após 15 anos, sobre um livro de Dostoiévski | Foto: Elena Romanov

Elena viu uma azeitona seca no chão e levou-a como um troféu de peregrinação (ao lado, a coitada da azeitona). Neste mês, num espaço de sete dias — mais bíblico ainda –, aconteceram dois casamentos diferentes de pessoas conhecidas. Por mera coincidência, havia pessoas de igual sobrenome. Minha Elena é cheia de superstições e me veio com esta história de azeitonas, achando que era um bom sinal e “que devemos abençoar, de coração puro, estas uniões”. Estamos livres para o que der e vier.

Ela gosta de azeitonas, eu detesto.

(Há um pacto. Quando formos a Israel, ela vai sozinha a estes lugares santos — apesar de que aquela coisa toda é chamada de Terra Santa… Tô ralado).

As oliveiras do Jardim de Gersêmani
As oliveiras do Jardim de Getsêmani

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O Google não gosta de aréolas nem de bundas. Então, sumiremos com elas

O Google não gosta de aréolas nem de bundas. Então, sumiremos com elas
Velasquez, meu menino, tape essas vergonhas...
Velasquez, meu menino, tape essas vergonhas…

Você pode fazer a apologia da pedofilia, negar o holocausto judeu, armênio e indonésio, aprovar o último estudo de gênero da FEE ou elogiar o time do Grêmio. Você pode qualquer absurdo por escrito, mas jamais mostrar a sombra de uma aréola ou a redondez de um traseiro. Assim é o mundo do Google, que aceita conviver, levar uma grana e divulgar as mais disparatadas igrejas, mas jamais ter uma propagandinha ao lado de um corpo que não esteja devidamente velado.

Não interessa se é uma estrela pornô ou a Angela Merkel durante sua juventude na praia, não interessa se é uma atriz em uma cena de Bergman; uma aréola é uma aréola, uma bunda é uma bunda. Drummond escreveu um poema chamado, A bunda, que engraçada, que começa dizendo que tal parte dos corpos masculino e feminino Está sempre sorrindo, nunca é trágica. Pois o Google não gosta, não vê graça, acha feio, nojento e não mistura seus produtos com tal gênero de sorriso.

Faço todo este destampatório para anunciar que o Sul21 fará um teste com alguns produtos do Google e, para tanto, teremos que tornar nosso blog de sete leitores bundas-free, aréolas-free. Então, nesta semana, estou retirando pouco a pouco todos os posts que contenham tais partes do corpo que o pudor deve recatar.

E eu dou razão ao Google. Noto quão nervosos ficam os espectadores durante as cenas de sexo nos cinemas. Noto o constrangimento das pessoas nos museus, locais habituais de putaria. No país do carnaval, das plásticas e dos discretos implantes em seios e bundas, onde também é comum verem-se outros lugares pudendos sem a vestimenta que a natureza lhes deu, estamos — de forma coerente — ocultando vergonhas.

Goya
Goya, seu incorreto!

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