1984 x Fahrenheit 451, uma breve comparação

1984 x Fahrenheit 451, uma breve comparação

Estou lendo Fahrenheit 451 pela primeira vez. Como encontrei muitos pontos de contato entre este livro de Ray Bradbury e 1984, de George Orwell, fui dar uma pesquisada por aí. O texto abaixo é uma compilação bem simples do que encontrei em vários sites.

1984 foi publicado em 1948, Fahrenheit 451 em 1953. Os dois romances são obras de ficção distópica e ambos os personagens principais, no início, levam uma vida sem graça, sem sentido. Porém, um dia, uma mulher aparece e eles acabam por se rebelar contra as sociedades em que vivem.

Do ponto de vista individual, o personagem Guy Montag (de Fahrenheit 451) acaba vencendo sua guerra. Vi o filme e sei que ele conseguirá se livrar do controle governamental e encontrar a paz numa comunidade de pessoas afins. Já Winston Smith (de 1984) perde, sendo submetido a uma lavagem cerebral.

Em ambos os romances, há a ideia de uma sociedade cruel, onde (em Fahrenheit 451) as crianças atacam as pessoas e dão tiros umas nas outras para se divertirem. Já em 1984, há cenas como as de “um navio cheio de refugiados sendo bombardeado” que são utilizadas para diversão.

Os dois livros envolvem guerras como pano de fundo, mas de naturezas diferentes. A guerra de Orwell serve claramente ao governo como um instrumento para a perpetuação da escassez e da paranoia, enquanto que a de Bradbury visa a aniquilação total do inimigo.

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O governo em 1984 depende muito de lavagem cerebral e de políticas que envolvam vigilância em massa por parte de espiões semelhantes aos da Juventude Hitlerista. Em suma, o partido parece se preocupar mais com os pensamentos, do que com os atos. “Você é um traidor”, acusam. O governo de Bradbury mantém o controle sobre todos aqueles que se desviam da maioria, mas não se importa muito com as ideias de rebelião. O professor Faber é um inimigo que não age, então OK. Há uma tentativa de idiotizar todo mundo através da televisão. Em vez das torturas presentes nas lavagens cerebrais de Orwell, o governo de Bradbury gosta de queimar as pessoas que se desviam, assim como os livros, considerados altamente perniciosos.

As atmosferas: 1984 também pode ser considerado um romance satírico, enquanto Fahrenheit 451 jamais.

O cenário de ambos é o de uma pós-guerra nuclear. Um diz “Quando a bomba atômica foi lançada sobre Coventry”, e outro “Nós começamos e ganhamos duas guerras atômicas desde 2022”. Os efeitos de tais guerras são muito diferentes. Nos EUA de Fahrenheit 451, o país saiu de duas guerras e vai para uma outra. Algumas de suas cidades “parecem com pilhas de fermento em pó”. Porém, em 1984, o conflito nuclear fez cessar qualquer uso de armas atômicas e assegurou a permanência de ditaduras estáveis. No universo de Orwell há enormes “fortalezas flutuantes” para defender áreas estratégicas (“a nova fortaleza flutuante ancorada entre a Islândia e as Ilhas Faroe” ) e projetos incríveis de produção de terremotos artificiais.

Em 1984 não há nada que esteja fora da visão do governo. Ele tudo vê e tudo sabe. Já em Fahrenheit 451 há uma nova revolução silenciosa acontecendo fora da visão do governo. Aliás, o governo permanece em grande parte um mistério em Fahrenheit 451, mas, em 1984, sua estrutura é bem explicada. Na verdade, o funcionamento interno dos governo sob o qual Smith vive é a chave para o enredo do livro.

Os dois livros têm muitíssimas semelhanças, mas, curiosamente, estas não persistem após um exame mais minucioso de detalhes. Dentre os clássicos, temos também Admirável Mundo Novo, claro, mas este está realmente perdido em minha memória. Já A Guerra das Salamandras… Bem, aí entramos no campo das obras-primas e há que ter mais respeito.

Eram essas as anotações.

Divagando sobre Tchékhov e sobre a mais narrada das mortes

Divagando sobre Tchékhov e sobre a mais narrada das mortes
Olga Knipper e Anton Tchékhov
Olga Knipper e Anton Tchékhov

A morte de Tchékhov no balneário de Badenweiler é uma das mais recontadas da historia da literatura. Parece haver enorme sedução na cena do escritor moribundo, com sua mulher, seu médico, o estudante que chegou para ajudar e a garrafa de champanhe. Quem pediu a bebida? O médico ou Tchékhov? A sedução é tanta que o grande Raymond Carver escreveu um conto, Três rosas amarelas, no qual narra a cena, só que cheia de detalhes inventados. Talvez isso tenha nascido da narrativa de Olga Knipper, atriz e mulher do escritor. Em seu relato, a cena é contada com tanto, mas tanto romantismo que não parece verdadeira. O russo era um escritor que se caracterizava pela falta de artifício e de idealização dos personagens, pilares de um modelo de escrita totalmente ignorados por Olga em seu texto.

Não é estranha a admiração de Carver pelo russo. Basta ler ambos. Indiscutivelmente, o país onde mais profundamente influenciado pela prosa direta de Tchékhov foi os Estados Unidos, onde a afetação não desfruta de muito prestígio. Suas histórias da Rússia Czarista parecem as de um sujeito nascido para a pobreza, mas Tchékhov, neto de um escravo que comprou sua liberdade, acabou homem rico. Foi filho de um dono de armazém, terceiro de seis filhos, chefe de família — cuidava dos irmãos com especial cuidado –, estudou medicina, exerceu-a, parou de praticá-la para apenas escrever, apesar de nunca ter se sentido parte do mundo literário.

Tchékhov, segundo Tolstói, que não é exatamente uma besta para descrever pessoas, seria um homem “doce como uma mulher” e é crível que tenha dito em seu leito de morte que “fazia muito tempo tempo que não bebia champanhe” e mais crível ainda é que o médico o tenha servido, pois sabia da morte inevitável pela tuberculose. Estávamos em 1904. O detalhe do último suspiro e do voo da rolha… Mas voltemos a Tchékhov.

Os personagens de Tchékhov são cheios de boas intenções sobrecarregadas de estupidez, inatividade e finalidade. Ele é moderno em sua concisão, pouca adjetivação e principalmente na recusa em explicar o mundo. Confrontado com as idéias de Tolstoi — o qual em seus textos parece ter resolvido todos os impasses da humanidade — , Tchékhov era um apresentador de realidades complexas e insolúveis que habitam uma dentro da outra. Também defendia, uma novidade na época, os efeitos benéficos da ciência e do progresso.

Por que amamos tanto Tchékhov? Por que as pessoas fazem cara de “coisa fofinha” quando falam nele? Isso ocorre porque ele é o fundador do escritor moderno que não julga os personagens, deixando-os falar sua própria língua? Mas isso não comportaria uma certa dureza narrativa? E o que transparece da doçura de Tchékhov em seus textos? A pensar.

Tchékhov e Tolstói
Tchékhov e Tolstói

Anne Rice escrevendo contra a censura do politicamente correto na literatura. Dá-lhe

Anne Rice
Anne Rice

“Agradeço a todos os que participaram de nossas discussões sobre a escrita de ficção hoje. Eu quero deixá-los com um pensamento: acho que, em nome do politicamente correto, estamos diante de uma nova era de censura. Existem forças em ação no mundo do livro que querem controlar a escrita de ficção em termos de quem “tem o direito” para escrever sobre o quê. Alguns até defendem a censura de obras mais antigas que se utilizam de palavras que agora consideram totalmente inaceitáveis. Alguns são críticos dos romances envolvendo estupro. Alguns argumentam que os romancistas brancos não têm o direito de escrever sobre pessoas de cor e que os cristãos não devem escrever romances que envolvam ateus ou sobre temas que envolvam judeus. Acho que tudo isso é perigoso. Temos que defender a liberdade dos escritores de ficção para escreverem o que querem escrever, não importa o quão ofensivo possa ser a alguma pessoa. Temos de defender a ficção como um lugar onde o comportamento transgressivo e quaisquer ideias possam ser exploradas. Devemos defender a liberdade nas artes. Acho que temos que estar dispostos a examinar as pessoas e os temas desprezados. É uma questão de escolha pessoal se alguém compra ou lê um livro. Ninguém pode fazer isso por você. As campanhas de internet que tentam destruir autores ou assuntos “inadequados” são perigosas para todos nós. Essa é a minha opinião. Ignore o que você achar ofensivo. Ou fale a respeito de uma forma madura. Só não se proponha a censurar ou a destruir a carreira do autor de ofensa. Vejo vocês amanhã”.

Anne Rice, trazida por Mayquel Eleuthério
Tradução de Milton Ribeiro (em cima da perna)

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Um rascunho de Svetlana Alexievich, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015

Um rascunho de Svetlana Alexievich, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015

Publicado em 10 de outubro de 2015 no Sul21 (*)

O Nobel de Literatura, concedido à bielorrussa Svetlana Alexievich, 67 anos, na última quinta-feira (7), foi a senha para que se iniciassem duas barulhentas discussões em três países: a Bielorrússia (ou Belarus), a Rússia e a Ucrânia.

A primeira delas envolve a nacionalidade da literatura e da própria Alexievich. Os russos dizem que ela escreve em russo e nasceu na União Soviética. Colocando inadvertidamente lenha na fogueira, a própria autora disse, logo que recebeu o prêmio: “É muito perturbador. O Nobel evoca imediatamente os grandes nomes de Búnin, Pasternak e Brodsky”. Todos russos.

Ivan Búnin (Nobel de Literatura de 1933) e Boris Pasternak (recebeu em 1960) nasceram na Rússia czarista, produziram na União Soviética e foram opositores ao regime. Búnin, inclusive, emigrou e morreu na França. Joseph Brodsky (Nobel de 1987) nasceu durante a Segunda Guerra e morreu em Nova Iorque, exilado. Todos escreviam em russo. E Svetlana Alexievich também. Então, como ela não escreve em bielorrusso… Para os russos, ela é russa.

E a Ucrânia entre no jogo pelo simples fato da escritora ter nascido em seu solo e de ter mãe ucraniana, mesmo que tenha ido para Minsk ainda quando criança. Então é ucraniana.

Porém, para os bielorussos, ela cresceu, estudou e se formou como jornalista no país. O pai era um militar bielorrusso que fora transferido temporariamente para a Ucrânia. Além disso — e eles estão corretos –, ela sofreu enorme influência de grandes escritores do país, como Alés Adamóvich, o fundador do gênero de romance-documentário que a escritora pratica. Então é bielorrussa.

Lukashenko, o eterno
Lukashenko vê sua inimiga premiada

A outra discussão

A outra discussão gira em torno dos temas dos livros de Svetlana Alexievich. A partir de entrevistas — ela é uma extraordinária entrevistadora — a autora se dedica a criar painéis de vozes reais. Seus livros são “romances coletivos”, também conhecidos como “romances corais”, ou “romances de evidências”. São pessoas que falam de si mesmas numa espécie de coral.

Tais corais são formados por vozes de sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, do acidente nuclear de Chernobyl, da campanha no Afeganistão, etc. Também há um livro sobre como o povo sentiu a passagem do comunismo para o capitalismo. São relatos pessoais, onde, apesar de a política permanecer subjacente, têm um tom de forte crítica a várias gerações de governantes da União Soviética, Bielorrússia e Rússia.

(A Bielorrússia tem o mesmo presidente desde a implosão da União Soviética. Aleksandr Lukashenko, conhecido como O Último Tirano da Europa, está no cargo desde 1994 em sucessivas e mui discutidas reeleições).

Deste modo, o Nobel teria sido concedido a uma pessoa que dedica-se a tecer críticas à sociedade russa e bielorrussa, isto é, a uma pessoa de posições claras, non grata para muitos.

Então, na quinta-feira à noite, enquanto os amigos de Svetlana Alexievich faziam uma enorme festa numa vinoteca de Minsk, parte dos jornais e redes sociais referiam-se a um Nobel dado a uma autora que “odeia nosso país”.

A escritora em Portugal, na ocasião do lançamento de seu único livro traduzido para nossa língua
A escritora em Portugal, na ocasião do lançamento de seu único livro traduzido para nossa língua

Europeia

A escritora fala com grande tranquilidade sobre a primeira questão levantada, a de sua nacionalidade. “Eu sou europeia. Nasci na Ucrânia, de uma família que era metade do local e metade bielorrussa. Quase imediatamente após meu nascimento, fomos para a Bielorrússia. Durante mais de 12 anos eu vivi na Itália, Alemanha, França e Suécia. E há dois anos, voltei para Minsk”.

A Academia Sueca, anunciando sua vitória, elogiou os “escritos polifônicos” de Alexievich, descrevendo-os como “um monumento ao sofrimento e à coragem em nosso tempo”. Muito influenciada pelo escritor Alés Adamóvich, que considera como seu mestre, Alexievich tem a particularidade de deixar fluir diferentes vozes em torno de um tema. Ela esclarece diversos destinos individuais, descrevendo mosaicos que criam a certeza de tragédias reais. Alexievich trabalha decididamente na faixa do drama e da morte.

A edição portuguesa da Porto
A edição portuguesa da Porto

Os livros

Em 1989, ela publicou Tsinkovye Málchiki (Meninos de Zinco), sobre a experiência da guerra do Afeganistão. Para escrevê-lo, percorreu o país entrevistando mães de soldados mortos no confronto. Em 1993, publicou Zacharovannye Smertiu (Encantados pela morte), sobre os suicídios cometidos por aqueles que não haviam conseguido sobreviver ao fim do socialismo. Em 1997, foi a vez de Vozes de Chernobyl, um aterrador retrato da tragédia cuja devastação radioativa atingiu principalmente a Bielorrússia. O livro vendeu 2 milhões de exemplares em língua russa.

No ano passado, foi lançado O Tempo de Segunda Mão (ou O Fim do Homem Soviético, em Portugal). Nesse novo trabalho, Alexievich se propõe a “ouvir os participantes do drama socialista”. Para a escritora, o “homo sovieticus” ainda continua vivo, e não é apenas russo, mas também bielorrusso, turcomano, ucraniano, casaquistanês, etc. “Hoje vivemos em Estados distintos, falamos línguas distintas, mas somos inconfundíveis, rapidamente reconhecidos. Todos nós somos filhos do socialismo”, afirma, referindo-se a seus “vizinhos de memória”. “O mundo mudou completamente e não estávamos realmente preparados para isso”

Falando à emissora sueca SVT, Svetlana Alexijevich disse que o prêmio a deixou com um sentimento “complicado”. A academia telefonou para ela enquanto estava em casa “deixando passar o momento da divulgação do vencedor”, disse ela, acrescentando que os mais de 3 milhões de reais do prêmio “comprariam sua liberdade”. “Demoro muito para escrever meus livros, de cinco a 10 anos cada um. Eu tenho duas ideias para novos livros, por isso estou muito satisfeita: agora vou ter dinheiro e tranquilidade para trabalhar neles.”

Os romances corais

Alexievich nasceu no dia 31 de maio de 1948 na cidade ucraniana de Ivano-Frankovsk. Após a desmobilização do pai do exército, a família retornou à Bielorrússia e se estabeleceu em uma aldeia onde ambos os pais trabalhavam como professores. Ela deixou a escola para trabalhar como repórter no jornal local na cidade de Narovl.

Alexievich escreve contos, ensaios e reportagens, mas diz que só encontrou sua voz sob a influência de Alés Adamóvich. Na cerimônia de divulgação do prêmio, a crítica literária Sara Danius disse que “não se trata de uma escritora de eventos nem de análise política, é uma historiadora de emoções. O que ela nos oferece é realmente um mundo emocional. O desastre nuclear de Chernobyl e a guerra soviética no Afeganistão são pretextos para explorar a indivíduo soviético e pós-soviético”.

Chernobyl, o horror
Chernobyl, o horror

Em Vozes de Chernobyl, Alexievich entrevista centenas de pessoas afetadas pelo desastre nuclear, indo desde uma mulher que, agarrada a seu marido morto, ouve os enfermeiros lhe dizerem que “isso não é mais uma pessoa, é um reator nuclear”, até os soldados enviados ao local. Fala de suas raivas por terem sido “arremessados lá, como areia no reator”. Em Meninos de Zinco, ela reúne vozes da guerra do Afeganistão: soldados, médicos, viúvas e mães.

“Eu não pergunto às pessoas sobre a política, eu pergunto sobre suas vidas: o amor, o ciúme, a infância, a velhice”, escreveu Alexievich na introdução ao O Tempo de Segunda Mão (O Fim do Homem Soviético). “Me interessam não apenas as tragédias vividas, mas a música, as danças, as roupas, os penteados, os alimentos. Os detalhes diversos de uma maneira desaparecida de viver. Esta é a única maneira de perseguir a catástrofe”.

“A história está interessada apenas em fatos; as emoções são excluídas do seu âmbito de interesse. É considerado impróprio admiti-los na história. Eu olho para o mundo como uma escritora, não como uma historiadora. Eu sou fascinada por pessoas “.

Seu primeiro livro, A guerra não tem rosto de mulher, tem como base entrevistas com mulheres que participaram da Segunda Guerra Mundial. “É uma exploração da Segunda Guerra Mundial a partir de uma perspectiva que era, antes do livro, quase completamente desconhecido “, disse Danius . “Ela conta a história de mulheres que estavam na frente de batalha na segunda guerra mundial. Quase um milhão de mulheres soviéticas participaram na guerra, e esta era uma história desconhecida. A obra foi um enorme sucesso na União Soviética, vendendo mais de 3 milhões de cópias. É um documento comovente e íntimo, trazendo para muito perto de nós cada indivíduo.” 

Tradutores, editores e leitores

Embora Alexievich tenha sido traduzida para o alemão, francês e sueco, ganhando uma série de importantes prêmios por seu trabalho, as edições em inglês do seu trabalho são escassas. Em Portugal, O Fim do Homem Soviético saiu este ano pela Porto Editora.

Seu editor francês diz que este livro é uma pesquisa micro-histórica da Rússia da segunda metade do século XX, indo até os anos Putin. Aliás, Alexievich é uma das vozes de oposição, costumando criticar duramente Putin e Lukashenko em palestras para leitores.

Bela Shayevich, que atualmente está traduzindo Alexievich para o inglês disse que “esta vitória significa que mais leitores serão expostos às dimensões metafísicas de sobrevivência e desespero das tragédias da história soviética. Espero que mais pessoas entendam o sofrimento provocado por circunstâncias geopolíticas estranhas a elas”.

A opinião geral de seus admiradores é a de que seus livros são muito incomuns e difíceis de categorizar. São tecnicamente não-ficção, mas recebem um belíssimo tratamento literário e de trabalho de linguagem. Sua tradutora inglesa faz uma reclamação: “Os editores ingleses e americanos são relutantes em assumir riscos e não gostam de livros muito trágicos. Não investem em um livro só porque ele é bom. Agora, com Nobel, talvez a coisa mude”.

Nas entrevistas após o prêmio, perguntaram a Alexievich sobre os refugiados na Europa. “A Europa agora passa por mais um teste sobre sua própria humanidade. Estive recentemente em Mântua, na Itália, e alguns amigos me convidaram para “marchar de pés descalços”. Este tipo de marcha foi organizada pela primeira vez em Veneza e agora está indo para todas as cidades. As pessoas tiram os sapatos e caminham descalças pelas cidades em solidariedade aos refugiados. Lá estavam refugiados, imigrantes e italianos solidários a eles. E isto na Itália, onde o nacionalismo é muito forte. Espero que, desta vez, a Europa seja aprovada no teste”.

Svetlana Alexievich é apenas a 14ª mulher a receber o Nobel de Literatura. Ao todo, 111 autores já foram premiados.

(*) Com Elena Romanov

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Arthur Schnitzler e a virada do século XX refletidos em Juventude em Viena

Arthur Schnitzler e a virada do século XX refletidos em Juventude em Viena
A edição da Record de 'Juventude em Viena' com tração e notas de Marcelo Backes
A edição da Record de ‘Juventude em Viena’ com tradução e notas de Marcelo Backes

Publicado no Sul21 em 15 de fevereiro de 2015

Apesar de ter sua obra em grande parte traduzida no Brasil, Arthur Schnitzler (1862-1931), ainda é pouco conhecido em nosso país. O grande escritor é conhecido por referências, digamos, laterais. As mais comuns são duas. Ou se fala no fato de Stanley Kubrick ter adaptado Breve Romance de Sonho em seu filme De Olhos Bem Fechados, ou a referência gravita em torno da admiração que Freud tinha pelo autor. 

Mesmo vivendo na mesma Viena, os dois pouco se encontraram. Em uma carta enviada a Schnitzler em 14 de maio de 1922, Sigmund Freud faz algumas observações sobre a obra do escritor e confessa ter evitado, durante muito tempo, ser apresentado a ele, pois, ao ler seus textos, acreditava que se tratava de seu “duplo”. “Sempre que me deixo absorver profundamente por suas belas criações, parece-me encontrar, sob a superfície poética, as mesmas suposições antecipadas, os interesses e conclusões que reconheço como meus próprios. Ficou-me a impressão de que o senhor sabe por intuição – realmente, a partir de uma fina auto-observação – tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho.”

Além escritor prolífico, Schnitzler era médico e judeu como Freud. Mas sua obra é profundamente original e sobrevive facilmente sem o aval do criador da psicanálise. Numa sociedade de grandes progressos científicos e técnicos, numa época de tantas agitações e mudanças, era necessário que tal ambiente se refletisse nas artes e na literatura. E Schnitzler foi do tamanho de sua época.

Neste mês, a Editora Record está publicando o volume autobiográfico Juventude em Viena, com tradução de Marcelo Backes. Solicitamos permissão ao tradutor para publicar no Sul21 o posfácio do livro, de autoria do próprio Backes, o qual também é escritor e ensaísta. Aqui está. (Milton Ribeiro)

.oOo.

Marcelo Backes

Num tempo em que o gênero estava longe de alcançar a divulgação que tem hoje em dia, Arthur Schnitzler escreveu uma autobiografia de suma importância. Juventude em Viena é um documento central no sentido de compreender tanto uma época decisiva da história da humanidade, quanto a vida e a obra de um dos maiores autores da língua alemã. De quebra, ainda assinala a relevância que todo um gênero literário viria a adquirir apenas várias décadas depois.

Schnitzler já se encontra às voltas com a ideia de escrever uma autobiografia em 1901. Em suas anotações, aponta sempre para a “necessidade profunda” de ser “verdadeiro”, de “registrar suas recordações de modo completamente fiel à verdade”. Mas ao sentir as dificuldades do retorno ao passado, as falhas na memória, os enganos da recordação, já questiona em que medida a verdade é possível, apesar da inclinação reafirmada de ser “verdadeiro”, inclusive “contra si mesmo”.(1)

Desde o princípio, Schnitzler reconhece que não é necessária nenhuma coragem de caráter especial para registrar todas as piores oscilações nem as ações mais sórdidas das quais alguém se sabe culpado quando esse mesmo alguém está convencido de que antes de sua morte ninguém tomará conhecimento do que foi dito. Ele também logo se pergunta – autocrítico – se sua necessidade de verdade não viria, em parte, de uma característica radicada no sentimento patológico da ideia obsessiva, na tendência a um certo pedantismo exterior que no decorrer dos anos se desenvolveu de forma cada vez mais decidida como um corretivo ao desleixo interior.

Quando fala do antissemitismo – um dos assuntos essenciais de Juventude em Viena –nas mesmas anotações, diz ter sentido a necessidade de reagir, pois manifestar impassibilidade diante do assunto seria mais ou menos como ficar indiferente depois de mandar anestesiar a pele, mesmo vendo, de olhos arregalados, como facas sujas nos rasgam a carne até fazer o sangue jorrar.

Viena no início do século XX
Viena no início do século XX

Uma capital, um autor

Schnitzler compartilha seu destino com Viena, a capital em que nasceu, viveu e morreu.

Seu mundo é um dos maiores centros da arte, do pensamento e até mesmo do poder na época. A capital do império austro-húngaro é o universo de Robert Musil e Karl Kraus na literatura, de Gustav Mahler e Arnold Schönberg na música, de Oskar Kokoschka e Gustav Klimt na pintura – o mundo de Sigmund Freud na psicologia e o de Theodor Meynert na psiquiatria.

E não há escritor que melhor caracterize esse universo do que Arthur Schnitzler. Ele foi chamado de “Maupassant austríaco” por Alfred Kerr (o maior crítico alemão da época) e de “Tchekhov vienense” por Friedrich Torberg (um dos grandes autores austríacos do século XX). Torberg diz ainda que Schnitzler antecipou James Joyce com O tenente Gustl, e que a peça A cacatua verde já contém Pirandello inteiro.

Que Arthur Schnitzler é capaz de mergulhos profundos na alma humana em sua literatura, fica claro também em sua autobiografia. Na obra – quando a literatura ainda nem era de fato, já que Schnitzler conclui o relato de sua vida no momento em que começa a gozar os louros de sua escrita, mas a escreve bem mais tarde – o elemento erótico já mostra ser muito mais do que um passatempo social e Eros já evidencia querer muito antes expulsar a morte do que passar o tempo; exatamente como na ficção. Se a consciência da morte é onipresente – ainda que latente –, o autor mostra um sentimento quase amistoso em relação a ela, um ceticismo ameno que o leva a se entender com o fim definitivo. Nas memórias de Schnitzler fica claro mais uma vez que só podia ser ele o autor que veio a anotar já em uma de suas primeiras peças: “A alma é uma terra vasta”, referendando seu tantas vezes repisado parentesco com o já citado Freud. Mas Schnitzler vai ainda mais longe, por exemplo quando antecipa Fernando Pessoa, ao dizer, na peça Paracelso: “Não existe segurança em lugar nenhum. Não sabemos nada dos outros, nada de nós. Estamos sempre fingindo; quem sabe disso, é sábio.” Que é isso se não o “poeta fingidor” do poeta português?

A autobiografia de Schnitzler se caracteriza pela humildade sóbria, pela ausência daquela arrogância que finge inocência e caracteriza tantos autores quando se ocupam de si mesmos. É preciso lembrar que Juventude em Viena é obra de um autor cinquentenário, nos píncaros da fama, que já sabia que o jovem inseguro de décadas antes que ele se ocupa em caracterizar nem de longe preponderaria. Schnitzler não contempla a juventude com a ironia distante da velhice, e sim com uma espécie de carinho crítico e analítico, como se o homem de 25 anos inclusive se mostrasse irônico em relação ao de 50, querendo dizer que a maturidade não deixa de ser – pelo menos em parte – o resultado daquela crueza.

Schnitzler: profundos mergulhos e sóbria  humildade
Schnitzler: profundos mergulhos e sóbria humildade

Marcando as datas no calendário, Schnitzler escreveu Juventude em Viena entre 1915 e 1920. Planejava levar a história de sua vida até 1900 – que foi quando a fama o bafejou de vez com O tenente Gustl –, mas acabou por concluí-la em 1889, ao iniciar de fato sua atividade artística, ao se tornar definitivamente mais escritor do que médico. Coincidentemente, é também o momento em que conhece Olga Gussmann, aquela que viria a se tornar sua esposa.

E assim, lembrando uma grande autobiografia contemporânea – Nas peles da cebola, de um Günter Grass aliás nem de longe tão humilde –, Schnitzler termina seu relato praticamente antes do início de sua verdadeira carreira – a de escritor, a de médico não era mais que um preparativo para ela –, como se quisesse deixar claro que o poeta começa a se desenvolver quando o desenvolvimento do homem chegou ao fim. Um homem que à época ainda nem entrara em contato com Freud, que ainda não trocara suas inúmeras cartas com o crítico e filósofo norueguês Georg Brandes, que ainda não dialogara com Rainer Maria Rilke e Thomas Mann em suas correspondências.

A edição da Fischer de 'Juventude em Viena'
A edição da Fischer de ‘Juventude em Viena’

Algumas questões fundamentais

Schnitzler é um mestre no aproveitamento universal de manifestações periféricas. Elas sempre lhe proporcionam a possibilidade de grandes conclusões. É o que acontece inclusive em relação ao antissemitismo, cujo horror o autor não chegou a vivenciar em sua pior feição.

Desde o princípio de Juventude em Viena, Schnitzler já sinaliza para a questão judaica, debatendo-a com autocrítica, ao se perguntar se alguém que nasceu em determinado lugar, nele cresceu e nele continua trabalhando, deve contemplar outro país – não aquele no qual há décadas vivem seus pais e seus avós, e sim aquele no qual seus ancestrais estiveram em casa há milênios –, e não apenas por motivos políticos, sociais e econômicos (que de todo modo podem ser discutidos), mas também sentimentalmente, como sua verdadeira terra natal.

Diante dos ritos religiosos do judaísmo, Schnitzler manifesta a mesma indiferença – quando não resistência, ou inclusive sarcasmo – que caracterizava por exemplo a postura de Freud. Theodor Herzl, que veio a ser conhecido como o pai do sionismo, é referido inclusive por ter militado em organizações estudantis de índole antissemita; Schnitzler diz tê-lo encontrado num passeio usando o boné azul daqueles que eram então os seus irmãos reacionários de crença e de partido. E Schnitzler arremata, mais uma vez um tanto crítico: “O fato de estes o rechaçarem, ou, como dizia o verbo ofensivo dos estudantes, o repelirem de seu meio como judeu, sem dúvida alguma foi o primeiro motivo que transformou o estudante e orador alemão-nacionalista dos pódios acadêmicos (onde nos olhamos com troça, ainda sem nos conhecer pessoalmente, em uma noite de reunião) no sionista talvez mais entusiasmado do que convicto que ficou sendo para a posteridade.”

Quando fala do duelo, e dos judeus que se tornaram esgrimistas habilidosíssimos e agressivos para melhor encarar as ofensas dos antissemitas, Schnitzler chega a citar a macabra “Resolução de Waidhofen”, que declarava os judeus “incapazes de tomar satisfações”, e ao mesmo tempo deixava claro que o véu do holocausto que encobriria a Europa já começava a ser estendido: “Todo o filho de mãe judia, todo ser humano por cujas veias corre sangue judeu é desprovido de honra desde o nascimento, incapaz de qualquer sentimento mais sutil. Ele não consegue distinguir entre o que é sujo e o que é limpo. Eticamente, é um sujeito bem mais baixo. A relação com um judeu é por isso desonrosa; é preciso evitar qualquer espécie de comunhão com os judeus. Não se pode ofender um judeu, e por isso um judeu não pode exigir satisfação sobre uma ofensa sofrida.” A marca amarela que identificava racialmente os judeus desde a Idade Média – e que aliás é referida por Schnitzler – começava a se mostrar cada vez mais excludente e perigosa.

Num âmbito bem mais individual, o medo das doenças venéreas é outra constante que sinaliza um dos grandes problemas da época (e do sujeito). E Schnitzler mergulha em sua “ciranda” juvenil, buscando no sexo seu caminho pessoal para a liberdade. A peculiaridade do homem Schnitzler, que antecipa o autor Schnitzler é tanta que o historiador Peter Gay fez dele o personagem central e mais representativo de toda uma época numa obra já clássica, ainda que lançada em 2002, O século de Schnitzler.

A obra de Peter Gay 'O Século de Schnitzler'
A obra de Peter Gay ‘O Século de Schnitzler’

A leveza e o vazio – a leviandade – dos anos jovens de Schnitzler, cheios de possibilidades de duelos (outra questão debatida que se tornaria foco da narrativa em O tenente Gustl) e apostas em cavalos (a descrição do apostador envolvido no auge da corrida é maravilhosa), quando o dinheiro significava havanas e jantares no restaurante da moda, mais um camarote no teatro, é destrinçada de cabo a rabo na autobiografia. Schnitzler inclusive reconhece que até uma determinada época de sua vida muitas vezes se esforçou em se estilizar; e que, se chegou a ser esnobe – e o confessa –, diz que seu esnobismo foi curado completamente pelo contato com os esnobes que veio a conhecer.

Ele também relata uma dúzia de casos amorosos. De algumas dessas mulheres, Schnitzler – que chama a si mesmo de “galã de cinco florins” – se lembra apenas porque estão registradas em seu diário, de outras nem recorda mais o nome, sequer. Chegou a terminar o caso que tinha com uma delas anotando os seguintes versos: “Também esta cinta-liga eu te mando de volta, encontrei-a hoje pela manhã em minha cama.” O amor já se mostrava líquido e o torpedo do celular comunicando o fim da relação parece não ter sido usado tão-somente porque ainda não existia…

olgaAinda assim muitas de suas relações – como por exemplo a que teve com Olga Waissnix, a primeira grande mulher de sua vida – se alongam por meses em sua vida e dezenas de páginas em sua autobiografia. Outras precisam apenas de algumas linhas sintéticas e vertiginosas: “Uma jovem americana, Cora Cahn, de apenas dezesseis anos, que se encontrava em Ischl com seus parentes, me atraiu vivamente por causa de seu sotaque, de seus caprichos e de sua coqueteria. Em um túnel entre Gmunden e Ebensee as coisas se tornaram quase preocupantes, mas túneis são curtos e uma passagem por Ischl não chega a ser bem mais longa, sobretudo quando se tem de lidar com uma série demasiado grande de variáveis; e assim também essa aventura acabou dando em nada.”

A “doce mocinha” do subúrbio, uma criação do autor, que caracterizaria tantas de suas personagens, é definida também em Juventude em Viena, a partir de uma das mulheres que cruzou sua vida. Schnitzler diz que ela é o “protótipo de uma vienense, figura encantadora, feita para dançar (…), feita para beijar – um par de olhos brilhantes e vivazes.” Suas roupas são “de gosto simples e com uma certa feição de grisette”. Seu andar é “cheio de rebolado… lépido e natural…” E as qualidades não param por aí: “A voz clara… A língua vibrando em dialeto original. O que ela diz, apenas assim, como ela consegue dizê-lo, como é obrigada a fazê-lo, quer dizer, cheia de vontade de viver, com um leve toque de precipitação. ‘A gente é jovem, que fazer’, ela considera com um dar de ombros meio indiferente… Não há nada a perder nisso, é o que ela pensa consigo… E isso é a razão mergulhada nas cores luminosas do sul.” Impossível não mergulhar no poço da aventura!

A oficina literária do autor

Os personagens ingleses do romance O caminho para a liberdade, sua obra ficcional mais volumosa, parecem ter saído todos eles da “realidade” de Juventude em Viena, que aliás deixa claro porque uma certa Claire se torna tão importante no romance… No momento em que o autor – leviano como a juventude – ameaça se matar com um tiro porque seu diário foi descoberto, manifesta também um pouco daquela altivez melindrosa e problemática que caracterizaria o já citado tenente Gustl.(2)

Quando conta sobre as dificuldades que teve em escrever a peça Aegidius e critica sua concepção, somos levados mais uma vez diretamente a O caminho para a liberdade e às dificuldades de Georg von Wergenthin às voltas com Ägidius, o grande personagem da ópera que não consegue levar a cabo. Ao ler a autobiografia, confirma-se que o personagem central do romance tem muito a ver com o autor, inclusive na relação com seu irmão. Arthur está para seu irmão Julius exatamente como Georg está para Felician. A certa altura de Juventude em Viena Schnitzler chega a dizer: “Meu irmão passou do piano ao violino, e também na música, assim como em todas as questões escolares e mais tarde na medicina, acabou me superando com sua persistência e sua conscienciosidade, mas também por sua visão e seu talento.” Felician também era muito mais hábil, muito mais ágil e mais objetivo do que Georg.

O livro como um todo propicia uma bela olhada na oficina literária do autor. Descobrimos, por exemplo, que seus amigos pronunciaram algumas das frases que mais tarde seus personagens diriam. Também ficamos sabendo que Gustav Pick se tornaria o modelo do velho Eissler de O caminho para a liberdade, assim como seu filho, Rudi Pick, se tornaria o modelo de Willy. E Schnitzler ainda arremata dizendo que “os conhecedores do romance por certo haverão de ter percebido” as coincidências, arrematando que o velho Pick se mostrou mais compreensivo e bem humorado com sua ousadia do que muitos outros que compartilharam de seu destino e mostrando mais uma vez como a obra – ainda que ficcional – se encontra fortemente vinculada à vida vienense de sua época. Muitas outras peças e contos são referidos de passagem, bem como os motivos que os inspiraram. A passagem em que comenta a suposta origem da peça O véu de Beatrice é maravilhosa, e diretamente vinculada a seu grande, ainda que platônico, amor por Olga Waissnix. As páginas em que conta as venturas e desventuras desse amor, aliás, estão entre as mais interessantes da autobiografia.

O filme 'De Olhos Bem Fechados', de Stanley Kubrick foi baseado na novela 'Breve Romance do Sonho', de Schnitzler
O filme ‘De Olhos Bem Fechados’, de Stanley Kubrick, foi baseado na novela ‘Breve Romance de Sonho’, de Schnitzler

Schnitzler também fala das estratégias – lícitas e ilícitas – de autores no sentido de se tornarem conhecidos em uma época em que o mercado editorial estava longe de ter o vulto que alcançou hoje em dia. Em muitos momentos, o autor adquire fumos de homem frio, que pensa que são necessárias razões cadastráveis para retribuir a simpatia que alguém tem por ele, e não entende quando isso acontece sem as mesmas razões. O mesmo homem, no entanto, é capaz de ridicularizar a si mesmo citando longos versos ingênuos e pueris para arrematar em seguida que havia “provado ser um poeta talentoso”.

Ao longo da autobiografia há conceitos maravilhosos, como por exemplo o do “apoio dialético” que Schnitzler dava para um amigo entediado terminar o namoro. E sentenças precisas como: “Nos lábios de uma mulher o sorriso da recordação jamais se apaga completamente. Elas são mais vingativas, mas também mais agradecidas do que os homens costumam ser.” Avançado, e pedagogicamente cético, o autor declara a certa altura: “E, nesse sentido, quando se conheceu e se experimentou diante de que material pronto, apesar de toda a falta de maturidade, se encontram pais e professores, é que se sente por inteiro que problema em certo sentido insolúvel a educação representa.” Em dado momento, chega a levantar a hipótese avançada de que o alcoolismo provavelmente seja hereditário. Sua sabedoria de índole aforística fica clara em sentenças como: “Sempre temos de ver um punhal brilhando para compreender que um assassinato aconteceu”. E Schnitzler – que está falando de uma relação amorosa – ainda complementa dizendo que “muitas vezes o vemos brilhar, e em vez de arrancá-lo à mão do assassino, nos contentamos em fazer admoestações de leve, dizendo que ele não deveria fazer uma coisa dessas, se é que não nos mostramos indiferentes e acomodados demais até mesmo para uma admoestação assim.”

Schnitzler também fala – talvez pela primeira vez na história da literatura, sobretudo se levarmos em conta que está falando de uma mulher e suas reações por volta de 1880 – de uma personagem deprimida (gemütskrank). Uma moça, namorada de um amigo, que parece ter protagonizado algo como uma fotonovela erótica – já que é fotografada nua ao lado de um tenente, e a fotografia era coisa nova na época – é outra que dá as caras em determinado trecho. Também a primeira manequim – modelo (Probiermamsell) – da literatura universal parece ter sido registrada por Schnitzler. Não apenas registrada, aliás. O mundo incipiente da moda já visitava a cama da arte bem cedo…

Freud, o aluno de Meynart
Freud, o aluno de Meynert

Muitas das grandes figuras científicas do final do século são apresentadas na autobiografia de Schnitzler. Assim, por exemplo, o neurologista francês Jean-Martin Charcot em sua lida com a hipnose, e os trabalhos do psiquiatra Hyppolyte Bernheim, também francês. Moritz Kaposi, fundador da dermatologia moderna, é outro dos citados. Schnitzler ainda caracteriza com detalhes o psiquiatra e neuroanatomista vienense Theodor Meynert, com quem trabalhou, e que aliás também foi professor de Freud.

Ao mesmo tempo percebe-se, em vários momentos, como a higiene é uma coisa nova e a ciência da medicina ainda estava longe de ter sido dessacralizada à época, mesmo que o mundo esteja em vertiginosa transformação, o que é registrado por exemplo quando o autor conta, entusiasmado, sobre a primeira vez em que ficou em um quarto com iluminação elétrica. Ciente do caráter ainda pouco científico da medicina, Schnitzler chega a contar de um médico que acreditava ter descoberto “no hábito enfadonho de lavar as costas” o verdadeiro motivo do catarro bronquial. Schnitzler diz ainda que o referido médico “foi tão longe a ponto de afirmar com toda a seriedade que o lado direito adoecia menos vezes porque a mão esquerda, mais fraca e mais lerda, não costumava tratar o lado direito das costas com tanta crueldade quanto acontecia com o lado esquerdo, que era lavado pela mão direita, muito mais forte.” E, assim, Juventude em Viena também é, em vários momentos, uma história subjetiva da medicina em um dos períodos em que mais evoluiu: o final do século XIX.

Ibsen
Henrik Ibsen: viver e escrever

O mundo literário e artístico da época e mesmo anterior também comparece em massa. Goethe é multicitado, mas também os conterrâneos e coetâneos do autor, por exemplo Alfred Polgar e Peter Altenberg, dão as caras. O dramaturgo norueguês Henrik Ibsen é citado quando Schnitzler refere indiretamente o sentido que este dá ao “dia do juízo”, e somos obrigados a investigar para descobrir que Ibsen disse num de seus poemas, intitulado “Um verso”: “Viver significa – lutar contra o fantasma das forças estranhas dentro de si. / Escrever – fazer o dia do juízo contra seu próprio eu.” A citação é demasiado importante, e Ibsen conhecido demais à época, para que Schnitzler a repita em sua autobiografia tal qual o dramaturgo norueguês a registrou. Afinal de contas, é isso que ele faz ao longo de toda a obra.

Em vários momentos, Juventude em Viena assume uma construção quase romanesca, antecipando a confusão entre os gêneros que se tornaria evidente só décadas mais tarde. Quando Schnitzler diz que em Salzburgo, no inverno de 1891 para 1892, as relações teatrais na cidade invocavam seu interesse de modo bem especial – e por um motivo bem pessoal – insinua tangencialmente seu caso longo e ardente com a atriz Marie Glümer, que trabalhou vários anos em Salzburgo. Quando fala do suicídio, especula sobre a “carga ancestral inerente à descendência” dos seus, já que vários de seus parentes se suicidaram. Na época, o autor sequer imaginava que sua filha Lili também acabaria se suicidando, e que praticamente morreria de desgosto por causa disso três anos depois, em 1931.

Perto do final de Juventude em Viena, ademais, o autor começa a manifestar dúvidas de que as páginas autobiográficas terão um prosseguimento. E, de fato, cinco ou seis páginas depois elas chegam ao fim, compondo apenas o painel de uma juventude vienense, o caminho de um homem antes de se tornar artista, o devir de um escritor até o instante em que começa a bafejar a fama…

(1) Ver “Autobiographische Notizen” in: Jugend in Wien. Herausgegeben von Therese Nickl und Heinrich Schnitzler, Frankfurt a. M. 1985. 

(2) Tanto O tenente Gustl quanto O caminho para a liberdade já foram publicados nesta mesma coleção.

Bloomsday e modestos conselhos sobre como ler Ulysses

Bloomsday e modestos conselhos sobre como ler Ulysses

Lembra o Paulo Timm que hoje é o Bloomsday e eu simplesmente ignorei a data. Tem razão o Timm. Esqueci que hoje é o 16 de junho de 1904, o dia em que se passa o Ulysses de Joyce. Em todo o mundo, é o único feriado – falo da Irlanda — dedicado a um personagem de livro, a uma verdade ficcional, no caso Leopold Bloom. Hoje, em Dublin, há atores e leitores refazendo cenas do livro pelas 16h e 19 ruas onde se passa o romance.

Tenho uma boa relação com o livro, que li nas três traduções brasileiras. A melhor disparada é a última, de Caetano Galindo, que saiu pela Penguin. Nos últimos dias, vi que há também uma edição de bolso da mesma editora com o lindíssimo e quente monólogo de Molly Bloom que finaliza o livro (foto abaixo). São mais ou menos 80 páginas de um só parágrafo sem pontuação, um milagre que só o genial Joyce poderia criar e tornar compreensível.

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Creio que é ali que Molly conta — entre mil fantasias e recordações — como ela alimentava Bloom no ínicio do namoro, dando-lhe comida já mastigada num boca a boca ao estilo mamãe-pássaro. Pura nojeira poética, uma maravilha do ponto de vista literária.

Há inúmeras referências a Joyce e ao Ulysses neste blog, basta clicar aqui. Quase todas elas são sobre Bloom, mulher e amigos. É um romance que, se não muda uma vida, dá-lhe nova perspectiva e sensibilidades para outras realidades artísticas. Não é um livro fácil, mas dou um conselho aos futuros leitores: leiam Ulysses como se ouvissem uma música, procurem não ficar parando a toda hora para pensar no quebra-cabeças de cada frase. A tradução de Galindo é de longe a mais musical. E, gente, pensem que os escritos poéticos são normalmente inapreensíveis em sua totalidade. Como leitor de Ulysses, digo que, após a leitura, lembrei de algumas daquelas partes incompreensíveis dando-lhes significados que podem ser livres-associações, mas que… Por que não?

James JoyceO livro é muito explícito e não surpreende que tenha sido acusado de pornografia. Ele é pornográfico ao mais alto e inacreditável grau. Uma de minhas maiores alegrias foi poder falar em público por duas vezes sobre a originalíssima abordagem de Joyce à sexualidade no romance. Digo mais, digo que boa parte dos jovens de hoje encontrariam nele problemas de incorreção política no livro, pois penso que vivemos dias semelhantes aos que viveu Laurence Sterne enquanto escrevia seu Tristram Shandy. Os jovens são mais conservadores do que os velhos e certamente o fato de Gerty McDowell ser coxa acabaria em problema para a dignidade — altíssima — do concupiscente e por vezes feminino Bloom.

Amo este romance e termino este improviso dizendo só mais duas palavras: leiam Ulysses!

Uma abordagem pessoal no dia dos 140 anos de Thomas Mann

Uma abordagem pessoal no dia dos 140 anos de Thomas Mann

Thomas Mann

Sei lá se Thomas Mann está fora de moda — acho que está –, o fato é que ele foi um dos principais formadores deste que vos escreve. Casualmente, fui amigo do maior tradutor de Mann no Brasil, o Dr. Herbert Caro. Eu era um rapaz de uns 20 anos e o Dr. Caro, como o chamávamos, era 51 anos mais velho. Nossa principal ocupação aos sábados pela manhã, na King`s Discos, era a de discutir música, outras das especialidades dos dois mestres, Mann e Caro. Mas mesmo quando o assunto era este, Mann podia aparecer e não só através de seu romance Doutor Fausto, mas de seus comentários e opiniões a respeito.

Como quase todo mundo, conheci Mann através de Os Buddenbrook (tradução de Herbert Caro), o longo romance que publicou aos 26 anos. Depois fui para os pequenos Tônio Kroeger e A Morte em Veneza, empurrado pelo filme de Visconti. Quando conheci Caro pessoalmente, recém tinha lido uma tradução sua, a do maravilhoso A Montanha Mágica. De forma muito insistente, este livro, lido há aproximadamente 37 anos e nunca mais revisitado, permanece em minha memória e faz parte de minha vida interior. Às vezes brinco dizendo que a música é Politicamente Suspeita. Afinal, o personagem Settembrini diz, um tanto absurdamente:

A arte é moral na medida em que desperta. Mas que sucede quando ela faz o contrário? Quando entorpece, adormenta, estorva a atividade e o progresso? Também disso a música é capaz; sabe perfeitamente agir como ópio. Uma influência diabólica, meus senhores! O ópio é uma obra do Diabo, porque causa apatia, estagnação, passividade, inatividade servil… Há na música um elemento perigoso, senhores. Insisto no fato da sua natureza ambígua. Não exagero ao declarar que ela é politicamente suspeita.

E, quando estou irritado, consigo enxergar bem na minha frente o titulo do capítulo A Grande Irritação. Também lembro frequentemente do fascínio de Hans Castorp (minha senha neste computador!), “o filho enfermiço da vida”, pela bela e estranha Clawdia Chauchat e de como tal fascínio serviu para que Hans repensasse os argumentos de Settembrini e formulasse seus próprios pontos de vista. Lembro do capítulo onde o casal travava uma conversação em francês… Lembro também das digressões sobre a passagem do tempo no Sanatório Berghof.

Mas o livro de Mann que mais amo é outra tradução de Caro: Doutor Fausto. O romance tem o formato e as qualidades dos romances do século XIX, mas é o conteúdo é moderno. Começa como uma serena farsa, mas acaba sendo uma amostra do que se veria num inimigo intransitivo de Thomas Mann: Thomas Bernhard.

Leio Doutor Fausto como quem lê uma novela curta. Não noto nada ali que não contribua para compor a narrativa, nada me parece estéril, da primeira a última linha. O nazismo é apenas um viés da narrativa. Seu assunto principal, e Caro falava nisso, é a imortalidade e aquilo que Mann chamava de “a crise da arte ocidental”, tanto que quem irritou-se com o livro foi a Segunda Escola de Viena, na pessoa de Arnold Schoenberg. (Lembrem-se da nota que Thomas Mann teve que acrescentar ao final do livro, atribuindo as teorias dodecafônicas ao Harmonielehre de Schoenberg, e dizendo que associou tais teorias apenas a seu diabólico personagem em contexto fictício, etc.?)

O romance é o canto de cisne de toda uma música e literatura que estava sendo abandonada. Um grande tema, ainda atual.

Meu respeito e, quem sabe, compreensão do livro de Thomas Mann faz com que eu releia sempre e saiba quase de cor toda a explicação do professor Kretzschmar para a Sonata Op. 111 de Beethoven, o capítulo VIII do livro. Muito mais conhecido é o diálogo com o Demônio (Cap. XXV), onde Adrian Leverkühn faz “alguns pequenos acertos” com o homem. São páginas arrepiantes e é curioso que, a partir da leitura do livro – lido quando tinha… de que ano é a tradução de Caro? … 1984? Então tinha 27 anos — passei a relacionar o diabo como algo que exala frio e não calor. Ah, as “impressões equivocadas” dos católicos… Não, nada de fogo, nada de diabinho infantil, estamos falando de um diabo real, meus amigos!

Doutor Fausto é uma história íntima, pessoal, ontológica. O texto fala muito ao sociológico, mas sempre de uma perspectiva íntima. Aquelas chatas argumentações que veem o livro como 100% político — seria uma metáfora do Nazismo e da Europa pré e pós-guerra — servem mais para A Montanha Mágica e o pré-guerra. Acho tão complicado reduzir o Fausto a tal modelo que bocejo só de pensar em reler o esforço de alguns comentaristas, que estreitaram um romance, cujo assunto principal é a mortalidade, a uma mera alegoria política.

A obra de Thomas Mann é imensa. Produzia 3 páginas por dia, todos os dias. Era uma máquina de reflexão e de escrever bem. Produziu romances, novelas, contos, escritos políticos e ensaios. Profundo analista psicológico e estilista consumado, Mann é um goethiano, herdeiro tardio da tradição idealista e romântica alemã e um dos principais autores modernos. Era um clássico em tempos revolucionários e conseguia refletir de forma original e particular o espírito de seu tempo. Sua obra apresenta planos sociais minuciosos, assim como um realismo psicológico preciso e de peculiar minúcia e particularidade. Expressou esteticamente do conflito entre a sociedade, o senso comum e o valor dado à vida — jamais esquecer do capítulo Neve, de A Montanha Mágica — contra o individualismo, o escapismo e o jogo artístico-estético.

Nascido em Lübeck no dia 6 de junho de 1875, Thomas Mann foi filho do comerciante Johann Heinrich Mann e da, curiosamente, da brasileira Júlia da Silva Bruhns, a quem destinou várias páginas descrevendo-lhe o carinho e os belos olhos escuros vindos dos trópicos. Ela escreveu que “A infância tropical na cidade colonial de Parati, cercada pela pujança da mata, as amas negras e as frutas tropicais, seria depois trocada pelas ruelas sombrias da antiga Lübeck, no norte da Alemanha.”

thomas mann sorrindo

Julio Cortázar — 100 anos

Julio Cortázar — 100 anos

Publicado em 24 de agosto de 2014 no Sul21

Por Ernani Ssó

Há cem anos – em 1914, dia 26 de agosto –, nascia Julio Cortázar. Eu poderia seguir assim por páginas, mas sei que o velho cronópio não tinha paciência com a burocracia, daí que pensei em comemorar a data redonda de um modo não muito redondo, às vezes me deixando levar por digressões entusiasmadas. Mais, como o texto foi escrito faz um certo tempo e retomado várias vezes, contém acréscimos em forma de ps, o que, em minha opinião, deixou tudo mais vivo, ou desleixado se você quiser.

Gabriel García Márquez disse que “Os ídolos infundem respeito, admiração, carinho e grandes invejas, claro. Cortázar inspirava todos esses sentimentos como muito poucos escritores, mas além disso inspirava outro menos frequente: a devoção”. Aí está: devoção. Mas por quê? Que diabos Cortázar tem que desperta devoção em tantos leitores? Eu mesmo, um leitor bastante crítico, até maledicente segundo os maledicentes, continuo devoto. Por quê? O texto a seguir é, entre outras coisas, uma tentativa de resposta a essa perguntinha.

julio cortazar

Um tal Julio ou amores literários

“A melhor qualidade de meus antepassados é a de estarem mortos; espero modesta mas orgulhosamente o momento de herdá-la. Tenho amigos que não deixarão de me fazer uma estátua em que me representarão de bruços no ato de chegar a um charco com rãzinhas autênticas. Botando uma moeda numa ranhura, me verão cuspir na água, e as rãzinhas se agitarão alvoroçadas e coaxarão durante um minuto e meio, tempo suficiente para que a estátua perca todo o interesse.”

Julio Cortázar, Rayuela.

Grandes escritores há muitos, mas amados são poucos, não? Faça as contas: quantos você ama? Admiração e simpatia não valem. Falo de amor a sério, tipo Romeu e Julieta, Dante e Beatriz, Jane Calamidade e Wild Bill Hickok, por aí.

Você ama Dostoievski? Ama Flaubert? Certamente há quem ame, como Mario Vargas Llosa a Flaubert e Robert Arlt a Dostoievski, mas você, mas multidões? Eu sou permissivo em matéria de literatura. Demais, quem sabe. Tenho paixões, casos, flertes: Julio Cortázar, Mario Quintana, Jorge Luis Borges, Stendhal, Gogol, Turguenev, Tchecov, Rabelais, Cervantes, Melville, Stevenson, Graham Greene, John le Carré, Georges Simenon, Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Sérgio Faraco, Ivan Lessa, Luis Fernando Verissimo, Rex Stout, Erle Stanley Gardner, Edgar Allan Poe, Dickens, J. D. Salinger, Philip K. Dick, Brian W. Aldiss, Stanislaw Lem, Raymond Chandler, Ross Macdonald, Sófocles, Henry Miller, Campos de Carvalho, Irmãos Grimm, Kafka, T. S. Eliot, Drummond, Rubem Braga, Ítalo Svevo, Anne Tyler – eu poderia continuar por páginas e assim mesmo esquecer alguns. Olha aí, tinha me esquecido de Nabokov, como é que pode?

Se alguém estranhar na mesma lista nomes como Borges e Stout, Melville e Gardner, meus mais sentidos pêsames. Isto aqui não é um concurso de seriedade. Isto é uma festa. Falo de amor ou de puro prazer. Também falo de inquietações, mas vamos deixar para os bustos de bronze a pose de intelectual preocupado com o grave destino deste vale de lágrimas.

Se na hora de subir na arca Noé reclamasse do excesso de bagagem? Se eu pudesse levar apenas um autor? Acho que escolheria Cortázar. Cheio de remorsos eu escolheria Cortázar. Sei que minha escolha será apoiada por muitos com grande algazarra. Com Cortázar sim pode-se falar de multidões. Por quê? Não acho que tudo o que ele escreveu seja divino, maravilhoso, pelo contrário, mas continuo fiel, mesmo com Borges tomando a dianteira todo santo dia, mesmo que hoje eu mal suporte algumas coisas que me encantaram na adolescência, como certa partes de Los premios, por exemplo. Isso apenas complica a pergunta, não?

Tenho uns palpites. Quer dizer, eu pensava que tinha, porque há meses tento escrever estas notas e em poucas frases acabo enrolado nos meus próprios argumentos. Quando consigo ser legível, não passo disso – falta cor e brilho ao meu texto. O pobre parece um anúncio de néon desligado: informa mas e daí? O mais sensato seria desistir, só que aí me sinto injusto: Cortázar faz parte da minha biografia, não posso, não devo nem quero silenciar.

O jeito talvez seja ir lembrando algumas leituras.

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Primeiro Round

Foi amor à primeira leitura. Uma colega de aula, a jornalista Heloísa Golbspan, me emprestou Los premios. Que susto! Então era possível escrever assim? Adolescente sem a mínima graça, ainda não tinha metido na cabeça ser humorista, mas era freguês de caderno (H) de Mario Quintana e fazia plantão na banca de jornal, toda semana, à espera do Pasquim. O diabo é que agora encontrava o humor e a irreverência num romance. Eu não era um ignorante total, conhecia Oscar Wilde, Mark Twain, o Machado de Assis de O alienista e o García Márquez de Cem anos de solidão, mas faltava a eles alguma coisa. Por mais que eu me divertisse, por mais que eu me encantasse, não poderia dizer: estão falando comigo, diretamente comigo, como a um camarada ali no bar da esquina – sem solenidade, sem impostura. Se você não é sensível a isso, sinto muito, meu nego, mas nunca me convide pra um chope.

Fiquei louco com a intimidade que sentia com os personagens. Mal tinha começado o livro, me vi sentado com Lopez no London bebendo uma Quilmes Cristal não muito gelada. Era isso. Até a temperatura da cerveja era real. Como esse tal Cortázar conseguia isso? Como conseguia que eu aceitasse tão prontamente o seu jogo? Por que eu me sentia participante desse jogo? Por que logo eu me esquecia de que era um jogo?julio_cortazar

Na certa o humor influi. Não uma série de tiradas, de gracinhas, que podem perturbar, mas um jeitinho, o astral de algo que está como quem não quer nada entre as palavras e vai se infiltrando em nosso sangue e logo rola manso em nossas veias como os primeiros goles de um bom tinto. Isso modifica nossa disposição para com a – suspiro – vida. Não é que a gente se torne indulgente, é que há uma espécie de desdramatização, ou a supressão daquele ar de peste que liquida com tantas ficções, porque Los premios tem muitos momentos dramáticos. Cortázar anota ridículos e infâmias dos seus personagens sem tremer a mão, mas há, sei lá, compaixão e ternura – ele nos diz as piores coisas sobre nós mesmos sem que haja aí uma ânsia de extermínio da humanidade.

Outra coisa: o mimetismo. Parece uma besteira, mas só quem tentou sabe como é difícil. Cortázar se cola nos personagens: o que está escrito é o que eles pensam, sentem e veem. Mais: o texto não nos informa sobre uma ação, tenta ser essa ação – isso nos puxa para dentro do livro. O autor é um intermediário invisível entre o que é dito e nós, leitores.

Releio os dois últimos parágrafos com cansaço. Explicam um pouco, mas não o que importa, o estado de graça efervescente em que o livro me deixou. Cortázar uma vez disse: “Essa biblioteca me deu milhares e milhares de horas de felicidade. Quando escrevo sou feliz e penso que posso dar um pouco de felicidade aos leitores. E quando digo felicidade não estou dizendo felicidade beata: pode ser exaltação, amor, raiva, digamos: potenciação”.

Estamos ficando quentes. Você, não sei, mas eu realmente me senti feliz, o que acabou sendo um problema. Depois de provar o gostinho da felicidade, a maioria dos autores se tornou muito chata, muito mais chata do que já me parecia. Na certa isso acontece com outras pessoas em relação a outros escritores e na certa, como eu, sentem que tiveram uma sorte danada, que de algum modo foram salvas. Salvas, entende-se, de passar o resto da vida à procura da ponta do próprio nariz.

Foto: Alberto Jonquieres
Foto: Alberto Jonquieres

PS: Outro dado nada desprezível: Cortázar procurava evitar os truques sempre, ou criava novos. É preciso muita cancha ou muitas releituras para se saber como foi que ele escreveu, principalmente os contos. Mas alguns desses contos me resistem até hoje. Parece que sempre existiram, como pedras, árvores, rios. Parece que apenas usaram Cortázar para se revelar. Eu ao menos não consigo pensar no mundo sem “La casa tomada”, “Después del almuerzo”, “Circe” ou “Las fases de Severo”. O próprio Cortázar repetia não ter mérito pelos contos, não ser responsável por eles, que era o primeiro a se surpreender com o que saía da máquina.

PS2: Pensando em contos como “Las fases de Severo”, “Circe”, “Después del almuerzo”, “Cefalea”, “Las puertas del cielo”, “Cartas a mamá”, “El perseguidor”, “Los venenos”, “La puerta condenada”, “Las Ménades”, “Final de juego”, “Intrucciones para John Howeell, “Todos los fuegos el fuego”, “El otro cielo”, “Los pasos en las huellas”, “Manuscrito hallado en un bolsillo”, “Verano”, “La noche de Mantequilla”, “Tango de vuelta”, “Fin de etapa”, “Satarsa”, “La escuela de noche”, “Pesadillas”, “Silvia”, “Siestas” e “Ciao, Verona” me pergunto: Cortázar é mesmo um autor só pra adolescentes? Deve ser. Tenho visto muitos adolescentes com quarenta ou cinquenta anos ou mais. Na verdade, tenho visto até alguns vovôs ainda em plena adolescência.

Outra coisa: muitos críticos dizem que lá pelas tantas Cortázar começou a se repetir, que contos como “Noche boca arriba” e “Todos los fuegos el fuego” ou “La puerta condenada” e “Cartas de mamá” são a mesma história contada do mesmo jeito. Nos primeiros, a mistura de tempos e lugares distantes. Nos outros dois, o horror despontando no final de uma situação cotidiana. Sim, e daí? São os mesmos problemas vividos por pessoas diferentes, daí o clima e as emoções serem outros. O próprio ritmo, que é fundamental em Cortázar, uma espécie de dança em que mete o leitor, também é diferente. Mas mesmo que nem clima, emoções e ritmo fossem diferentes, por que todo esse nariz torcido? Qual escritor não se repete? A rigor, pra não se repetir, o cara tem que escrever apenas um livro. Ninguém troca suas obsessões como quem troca de camisa ou cueca. Sem falar que, se vamos ver direito, temos uma tendência a usar camisas e cuecas do mesmo tipo.

JULIO CORTAZAR - palimpsestos-jf.blogspot.com

PS3: Muitos meses depois, mas com Cortázar me acontece isso, retomo a conversa como se não houvesse interrupção nenhuma. Em Conversaciones con Cortázar, de Ernesto González Bermejo (Edhasa, 1978), há um trecho revelador:

Bermejo: “Las fases de Severo” talvez seja o conto mais inquietante de Octaedro, e o mais desconcertante”.

Cortázar: “Inquieta a mim mesmo. É como aquele continho de Bestiário, ‘La casa tomada’. Um dia me perguntei por que entre todos os meus contos esse inquieta muito mais do que os outros e agora acho que tenho a explicação: esse conto é a escrita exata de um pesadelo que tive.

“Sonhei o conto – com a diferença de que não havia ali esse casal de irmãos; eu estava sozinho –, o típico pesadelo onde você começa a ter medo de algo inominável, que nunca chega a saber o que é porque o terror é tão grande que você acorda antes da revelação.

“Nesse caso se tratava de uns ruídos confusos que me obrigavam a me atirar contra as portas, a fechá-las e a ir retrocedendo enquanto os ruídos continuavam avançando e algo tomava a casa.

“É curioso como lembro: era pleno verão em minha casa de Villa del Parque, em Buenos Aires; acordei banhado em suor, desesperado, frente a essa coisa abominável, e fui diretamente para a máquina e em três horas o conto estava escrito. É a passagem direta do sonho para a escrita.

“E então acho que o interesse que as pessoas têm por esse conto tem que ver não apenas com o prazer literário que possa lhe produzir, mas com algo que toca suas próprias experiências profundas. O que dizíamos de Jung e o inconsciente coletivo.

“‘Las fases de Severo’ nasceu de uma espécie de alucinação visual. Um dia eu estava lendo ou escutando música – não lembro bem – e num certo momento me apareceu mentalmente um rosto humano totalmente coberto de mariposas, de traças.

“Me produziu uma sensação de horror aquele rosto prateado, móvel, recoberto de milhares de animais, como certas máscaras astecas ou equatorianas.

“Foi tudo o que vi e, de repente, senti que o conto estava aí, que isso fazia parte de uma série de rituais. Mas isso não bastava para fazer um conto. Severo é uma espécie de profeta, de xamã que naquele clima de velório – onde parece que o estão velando – prediz os destinos, anuncia a ordem em que os presentes vão morrer. É uma coisa inventada no momento em que vi todo o conto, porque se me limitasse a descrever as fases, isso não teria sido um conto”.

É isso, me parece: somos presas do fascínio da literatura de Cortázar porque ela lida com nossas experiências mais profundas, porque essas experiências passam direto, ou quase, do sonho para o papel. A carga de emoção é avassaladora. Só depois, só muito depois, a razão ensaia alguma reação. Eu ao menos leio Cortázar como uma criança ouvindo contos de fadas, ou o botocudo ouvindo os mitos da tribo.

Parece um dado menor, mas não é, não: se apenas descrevesse as fases, não haveria conto. Se apenas descrevesse as fases, teríamos jornalismo. Sentimos as fases se formando sob nossos olhos – há a surpresa, o mistério do instante. Sentimos intimamente que o próprio Cortázar não sabia aonde aquilo ia dar nem o que exatamente significava. Ele pressentiu alguma coisa e está atrás, tocando de ouvido.

CORTAZAR

Segundo Round

Para rebater Los premios, a Heloísa – gracias, Helô – me emprestou Final de juego. Em seguida fui correndo comprar Bestiario. Desde o começo os contos de Cortázar me deram a impressão de alguém que acorda com uma aranha andando pela cara e que tenta se livrar dela com um tapa, imagem usada pelo autor em algum lugar. Sinto em cada linha a tensão, o desespero do gesto – o gesto é quase sempre inútil para o personagem, mas o personagem não renuncia a ele, nem se lamenta. Romantismo? Talvez também se possa chamar isso de saúde.

A gente sabe que cada conto (ou pelo menos os melhores) era uma aranha que Cortázar tirava de cima de si mesmo. Ao contrário de muitos, não morria abraçado com a aranha. Porque, se uma literatura cheia de aranhas não me leva a um exorcismo qualquer, nem parece admitir que essas aranhas tenham um avesso ou nem deem um segundo de folga, me sinto num jogo de cartas marcadas. Sou prisioneiro e o autor, uma espécie de carrasco. Deve-se notar que o carrasco também é um prisioneiro: ao escrever, o autor vive a aventura que eu, leitor, vivo em seguida. No fundo o carrasco é mais prisioneiro, porque o autor não conseguiu deixar de escrever, não teve opção, enquanto que eu posso muito bem ler umas linhas e atirar o livro pela janela e escolher outro.

Pra mim a leitura de um bom conto de Cortázar sempre foi a revelação da aranha sobre meu rosto com o consequente tapa. O tapa é que faz a diferença. Cortázar uma vez disse que, se não tivesse escrito Rayuela, talvez tivesse se atirado no Sena. Em Rayuela Horácio Oliveira enfrenta o diabo a quatro e no fim se mata, ou enlouquece, ou afunda na mediocridade, ou espera pacientemente recuperar o fôlego antes de tentar de novo. Seja qual for o final preferido pelo leitor, Oliveira se dá mal. Mas Cortázar se salvou através dele e nós, leitores, de uma certa forma também. Não afundamos num maelström de aranhas.

Mas houve mais, houve a invenção, houve o senso lúdico e não fui capaz de passar o fio de uma navalha entre eles. Claro que eu acho que deve ter de tudo um pouco, mas Cortázar me converteu à invenção para sempre. Acho que a realidade é um bicho muito arisco. Não se deixa nem apontar com o dedo, muito menos pegar. É preciso grande astúcia e paciência para surpreendê-lo um instante antes que fuja de novo. Parece que quanto mais a gente o persegue, mais o danado do bicho escapa e mais zomba de nós. A invenção, por aparentar fazer pouco caso do bicho, por aparentar estar se afastando dele, acaba burlando suas defesas, sem falar no que existiu em nós mesmos trabalhando a seu favor. É, se você inventa e é fiel à invenção, à sua lógica interna, suas opiniões sobre a Vida, sobre a Existência, sobre tantas coisas que se diz em maiúscula, têm menos chances de interferir e estragar a festa. Quando se inventa, o inconsciente, esse outro bicho arisco, acaba mostrando o focinho ou deixando a ponta do rabo de fora.

Depois, a invenção quase sempre é mais plástica. O que um jornalista poderia nos dar sobre um homem botando um blusão? Se for inteligente, é capaz de intuir algumas coisas sobre o homem, mas acho duvidoso ainda que essa reportagem, no caso de ultrapassar a mera correção, consiga chegar à beleza. Cortázar nos deu “No se culpe a nadie”, em Final de juego, conto que é um verdadeiro bailado de suspense e terror.

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Mas veja, Cortázar não transformou uma situação cotidiana numa aventura mortal. Ele arrancou dela uma aventura mortal. Ele descobriu nela a aventura que estava latente – porque, estamos cansados de saber, não se inventa a partir do nada. Quem não lembra de se embaraçar com um blusão quando era criança? Aquela sensação de ficar meio amarrado, meio sufocado. O conto é essa sensação levada ao limite. Se Cortázar fosse realista, se dissesse que a gente sentiu isso, a coisa morria aí mesmo, podia ser um parágrafo não muito interessante numa outra história. Não. Ele nos faz reviver a sensação. O conto deu forma à sensação, como nos sonhos. A razão, as palavras vêm depois. Mas você pode muito bem passar sem elas. Algo em você, algo no fundo do seu sangue, já entendeu, já foi tocado. Ítalo Calvino, ao comentar esse conto, disse que se sentia surrado, fisicamente. Acho muito boa essa observação, não sei se porque senti a mesma coisa. A melhor parte do “sentido” desse conto é essa surra. Difícil explicar isso pra profe botar na ficha de leitura. Fica mais fácil a gente cavar com a pá da psicanálise ou encolher os ombros: ah, os fundos falsos da realidade.

Outro detalhe, talvez ligado a isso: os melhores contos de Cortázar me deixam a sensação de serem objetos, coisas entalhadas. Simenon é que dizia que escrevia assim, como um artesão trabalhando um pedaço de madeira. Cortázar tem um pequeno texto em que mostra como se veste uma sombra. Texto poético, erótico, mas podia muito bem ser uma metáfora da escrita, não? Com as palavras e o tato certos você pode vestir uma sombra mal entrevista entre outras. Se você a vestir direitinho, ela pode parecer sólida e tridimensional.

Quanto ao senso lúdico, nem sei por onde começar. Sabe-se, uma criança que não brinca é uma criança doente. O brinquedo é um espaço que a criança abre na realidade para instalar a própria realidade num modelo mais flexível e aí poder explorá-la, aí poder se expor. Mas e nós, marmanjos? Se alguns brinquedos já caducaram para nós, outros nos aguardam, basta termos preservadas essa disposição infantil de explorador e a capacidade de encarar a realidade não como um bloco de granito mas como uma massa de modelar.

A literatura é como o brinquedo, ou é um brinquedo, a criação de um território onde a gente ensaia outros gestos, onde busca um sentido. Mas Cortázar me pegou na hora em que o vi levando o brinquedo para dentro do brinquedo. Isso dobra as possibilidades de prazer de um livro e dobra a liberdade de movimentos do escritor, coisas que vão repercutir no leitor, se é que dois mais dois é quatro.

Cortazar, julio

Terceiro Round

Não li, tomei um porre de Rayuela. Por vinte anos eu o esperava sem saber que o esperava e sem saber que preparava meu fígado apenas para ele. Foi de uma violência e de uma maravilha difícil de explicar e mais difícil ainda de engolir. Levei quase outros vinte anos e outros dez ou quinze autores para fazer um quatro razoavelmente equilibrado. Reli mais outros livros, sim, mas uma coisa é certa: tudo o que me aconteceu depois em literatura foi para me defender de Rayuela. A defesa começou a ficar interessante na hora em que passei a usar contra Rayuela as armas que a própria Rayuela me deu.

Já se disse que é um livro que agrada aos jovens. Só pode. Trata-se de uma busca – e uma busca nada sóbria. Cada página se levanta como um galo de briga contra tudo quanto é certeza, contra o que um crítico e Cortázar chamaram de status quo literário. Como eles, acho que é uma crítica imperfeita, quer dizer, o galo apanha em muitos momentos, mas veja a sangueira e o andar trôpego do vencedor. O mero sucesso de Rayuela é um sinal claro de que há algo de podre no reino das belas letras, detalhe que jamais entrará na cabeça dos Josué Montello ou Nélida Piñon desta vida, ou daquela gente que caiu de quatro com os malabarismos técnicos de Cortázar e pensa que isso é o melhor Cortázar, que isso é Cortázar.

Mas antes da crítica, muito antes na verdade, o que me encantou na época e continua me encantando agora é a atmosfera, o uso da linguagem (a luta contra os lugares-comuns, incluindo ainda os narrativos e psicológicos) e a fluência espantosa de Cortázar. Num mundo ideal, nenhum escritor seria considerado como tal se não fosse fluente, porém, contudo, todavia, as coisas sendo como são, vemos as livrarias cheias de autores que precisam de papel pautado pra escrever e deixam à mostra a bengala que usam entre uma palavra e outra. Notei, sem estranhar, que vários autores que insistem que Cortázar é um autor pra adolescentes, que eles mesmos se deslumbraram na adolescência e depois caíram si, quando ficaram adultos, fazem parte dessa turma da bengala e do papel pautado. Eles podiam se conformar com a mediocridade de um modo mais digno, me parece.

Não custava nada a Cortázar pegar Rayuela e fazer cortes, amarrar pontas, preencher vazios. Provavelmente teríamos um livro perfeito, mais um livro perfeito, mas não teríamos Rayuela. Cortázar se propõe uma espécie de esponja monstruosa que tenta absorver tudo, mesmo o que não pode ou não deve. Temos o romance e sua cozinha, o serviço sujo, confundindo assim um pouco leitura e escrita, o que exige maior participação do leitor, o que o torna quase um cúmplice, como virou moda dizer. Nas palavras de Cortázar, ou do personagem Morelli, Rayuela é o romance em gestação, autor e leitor vivendo-o juntos, no mesmo instante.

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Isso tudo parece ligado ao improviso, que Cortázar amava no jazz e tentou transplantar para o papel. Mas não se pense que para Cortázar improviso era encher páginas de qualquer coisa que lhe passava pela cabeça e deixar por isso mesmo. O poder de associação e o senso de ritmo do homem são miraculosos, e treinados uma vida inteira. Logo nas primeiras palavras, nos grandes momentos, o texto acerta o passo, entra numa cadência e segue, nos levando juntos. Cortázar disse através de Morelli que “escrevo dentro desse ritmo, escrevo por ele, movido por ele e não por isso que chamam de pensamento e que faz a prosa, literária ou não (…). Esse balanço, esse swing em que a matéria confusa vai se formando, é para mim a única certeza de sua necessidade, porque apenas cessa compreendo que já não tenho nada que dizer. E é também a única recompensa de meu trabalho: sentir que o que escrevi é como as costas de um gato sob a carícia, com faíscas e um arquear-se cadenciado”.

Para isso é preciso uma entrega e uma vigilância totais. Qualquer interferência, qualquer cochilo, pronto, perde-se o fio das associações, perde-se o pulso do ritmo. Depois ainda tem que Cortázar revisava de forma implacável os seus textos – como disse Borges, nele cada palavra foi escolhida. Quer dizer, aquele ar de desleixo é apenas isso, ar. Como Juan, o herói de 62, Cortázar gostava de contar as coisas com uma espécie de desorganização artística, o que ajuda a disfarçar o esqueleto que sustenta a narrativa.

Por falar em ritmo, Cortázar era fanático por música. Inúmeras vezes disse que era um músico frustrado, que teria sido mais feliz na música do que na literatura. Pois é. Mas lendo-o, eu me pergunto: se ele não era, quem é músico, então?!

Cortázar é sempre movimentado, não tem nada de canção de ninar. Lemos longos trechos, onde não acontece grande coisa, de modo inflamado, como criança acompanhando o mocinho a toda no seu cavalo alazão, dando vinte tiros com seu revólver de seis. Isso é importante na medida em que muitos romances atulhados do que se chama ação se mostram intragáveis como ofícios burocráticos.

Rayuela ainda me deu o modo como Horácio Oliveira lida com as palavras, como já falei de passagem. Lembro direitinho de quando lia a cena final do primeiro capítulo, Oliveira às voltas com o cubo de açúcar no restaurante. O cubo caiu no chão e rolou, em vez de ficar parado “por razões paralelepípedas óbvias”. Não ri – não ri de pura surpresa. Eu acabava de descobrir um negócio chamado linguagem.

Foi uma sarna. Quanto mais eu me coçava, mais vontade tinha de me coçar. De tanto me coçar, com os anos comecei a achar que em grande parte do que escreveu Cortázar não se livrou das palavras: o fato de viver falando na traição delas, de surrá-las em público não demonstra como estavam ligados? Há momentos em que ele não nos deixa esquecê-las. Claro que as palavras são um prato cheio para o humor, mas não sei se não preferia um Cortázar menos luxuoso, menos exuberante às vezes. Balanço entre o autor que aponta para as palavras e o que as deseja invisíveis, como se fosse possível o leitor nem se dar conta de que lê.

Hoje, quando releio algum trecho de Rayuela, me dou conta de que continuo amando várias cenas, mas vejo com tristeza que outras parecem ter se esgotado. Quanto aos contos, bem, os que eu gostava mais são justo os que gosto cada vez mais. Talvez porque agora os compreenda melhor, porque agora sei das manhas e mesmo assim eles resistem.

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Quarto Round

A lua de mel continuou febril: Todos los fuegos el fuego, Las armas secretas, Historias de cronópios y de famas, La vuelta al día en ochenta mundos, Último round, 62 – Modelo para armar e Octaedro. Eu não era mais um leitor, era um crente. Esses livros me pareciam e me parecem mais interessantes do que outros mais bem acabados, ou profundos. Talvez eu aceite suas fraquezas porque, além do charme avassalador, Cortázar se arrisca sempre, não engorda sobre território conquistado. A literatura de Cortázar é de combate permanente, linha a linha, muitas vezes contra si mesma e contra a literatura em geral, talvez sem razão às vezes, mas e daí? Essa atitude de busca, de invenção contra a rotina, de luta mesmo quando a sabe perdida de saída, me toca e então torço, me orgulho e agradeço. Quero ser assim quando crescer. Como se vê, com Cortázar – como com todos os que realmente valem a pena – não se trata apenas de literatura, mas de visão de mundo, de postura frente a essa baderna que chamam de realidade.

Aí vieram os anos de cão.

Estava tentado a deixar pra lá, não por covardia e sim por cansaço de ver que nas discussões em que entram a política e a religião as pessoas ouvem apenas o que querem muito mais do que nas outras. Mas é aquilo, se a gente cala… Como Cortázar é um autor cheio de babados formais, manadas de oligofrênicos evadidos das faculdades de Letras, na calada da noite, cometeram todo tipo de atentado ao pudor. A política naturalmente atraiu novas manadas, pitorescas como as outras, mas bem mais sinistras.

Eu poderia citar uma porção de ataques a Cortázar, ataques que vão da canalhice ao absurdo, sem faltarem os chiliques do mais deslavado nacionalismo. Seria divertido e instrutivo, só que agora me interessam principalmente duas coisas, a literatura e o militante Cortázar. Como minhas informações sobre o militante não são muito profundas, fico num ponto que me parece chave, abrindo aspas para um pequeno texto de Cortázar que saiu em Último round, chamado “No te dejes”:

“É óbvio que tratarão de comprar todo poeta ou narrador de ideologia socialista cuja literatura influa no panorama de seu tempo; não é menos óbvio que do escritor, e só dele, dependerá que isso não aconteça.

“Em troca, será mais difícil e penoso para ele evitar que seus correligionários e leitores (nem sempre uns são os outros) o submetam a toda gama de extorsões sentimentais e políticas para forçá-lo amavelmente a se meter cada vez mais nas formas públicas e espetaculares do ‘compromisso’. Chegará um dia em que, mais do que livros, lhe reclamarão discursos, conferências, assinaturas, cartas abertas, polêmicas, idas a congressos, política.

CORTAZAR EM PARIS - LITRATURA.ORG.BR

“E assim esse justo, delicado equilíbrio que permite seguir criando uma obra com ar nas asas, sem se transformar num monstro sagrado, o prócer que exibem nas feiras da história cotidiana, se torna o combate mais duro que o poeta ou narrador terá de livrar para que seu compromisso continue se cumprindo ali onde tem sua razão de ser, ali onde brota sua folhagem.

“Amarga e necessária moral: Não se deixe comprar, garoto, mas tampouco vender”.

É, Cortázar não se deixou comprar, quando isso seria facílimo, mas – amarga e necessária observação – se deixou vender. Esteve em todas as feiras, com artigos, discursos, conferências, polêmicas. Até arriscou a pele algumas vezes em territórios quentes. Apoiou Fidel Castro sem reservas. Pôs toda a sua fama a serviço da publicidade cubana, depois nicaraguense. Segundo Saúl Yurkiévich, no suplemento de El País, “nunca deixou de ser escritor. Mas nos últimos anos escrever implicava literalmente se esconder do mundo, necessitando uma energia e uma vontade enormes que nem sempre encontrava. Dava escapadas, se refugiava em ilhas”. Agora, Cortázar não apenas entrou na roda-viva política, como passou a depreciar muito do que tinha escrito, dizendo por exemplo que os primeiros livros não problematizavam nada além da própria literatura, enfim, que eram livros do tempo da arte pela arte.

Sempre vi a expressão arte pela arte usada de modo pejorativo. Por quê? Se arte, para ser arte mesmo, precisa ir fundo no homem, jamais será uma coisa gratuita, feita de nada em pleno ar para admiradores de nada que vivem no ar. Um poema de amor é engajado, me parece, já que até o último mendigo ou o mais feroz revolucionário tem seus probleminhas amorosos. Se você acha que assuntos como a fome e a tortura têm primazia, escreva você mesmo. Para outros pode ser a solidão, a alegria, o sexo, o sonho, o brinquedo, sei lá. Mais: não se anda atrás dos temas, os temas é que vêm até a gente. Não é possível controlar o processo criativo na base da força de vontade, ou é, mas o resultado não vale um dólar furado. Limitar os temas que devem ser abordados, ou limitar os ângulos de abordagem desses temas, é o que foi dito: limitar. Qualquer pessoa, por mais imbecil que seja, é um bicho muito complexo para caber nos esquemas de crentes de qualquer espécie. Arte pela arte pode ser uma legenda pejorativa para gente que pensa que a arte é um adorno, um mero enfeite, ou deseja que ela funcione como um decreto governamental ou uma forma de assistência do tipo Exército da Salvação. Mas pode também ser a determinação do artista em ser fiel à arte, ao que a arte supõe de compromisso, quer dizer, ser profunda, tentar pegar o homem inteiro, da fome ao sonho mais delirante, não ser apenas um manual de sociologia ou economia, ou uma campanha publicitária de determinada causa, por mais justa que a causa possa ser.

Foto: fysm-149.wp.trincoll.edu
Foto: fysm-149.wp.trincoll.edu

Me perdoem o discurso, mas é que me tira do sério ver gente dizendo que o melhor de Cortázar está em Alguien que anda por ahí e Queremos tanto a Glenda (publicado aqui como Orientação dos Gatos). Penso que é exatamente o contrário. O pior da ficção de Cortázar está nesses livros. Em Queremos tanto a Glenda há uns bons contos, mas falta o brilho, aquela força que arrasta tudo pela frente. Bons contos? Talvez contos corretos, com uma exceção, uma senhora exceção: “Tango de vuelta”. Com uma história mínima, e sem esforço aparente, Cortázar dá um baile em muito joyceano de plantão em matéria de como se escreve um monólogo. Por falar nisso, as oficinas de literatura deviam dar cursos sobre a técnica de monólogo de Cortázar. Coisa simples, de uns cinco anos, três vezes por semana.

Essa falta de brilho tinha sido pior em Alguien que anda por ahí, também com uma exceção, o último conto, “La noche de Mantequilla”, onde temos a implacável descrição da execução de um militante pelos próprios companheiros durante uma luta de boxe, espécie de reedição melhorada de “Los amigos”, de Final de juego. Acho que se pode falar de outra exceção ainda: “Las caras de la medalla”. Um conto de amor angustiante, muito discreto e estranho dentro da obra de Cortázar, que só pode ser compreendido inteiramente ao se ler “Ciao, Verona” (um belo conto, por sinal), que foi publicado postumamente em Papeles inesperados. No conto “Alguién que anda por ahí” Cortázar dá um show de carpintaria literária, mas isso basta? Um bom conto não é algo mais do que um texto impecável? Em “Apocalipsis de Solentiname” Cortázar parte para a denúncia política. Muito bem, este Cortázar pode ser uma pessoa melhor do que a que escreveu “La casa tomada”, o mais famoso conto dos tempos da “arte pela arte”, agora, cá pra nós, como escritor é um arremedo desse Cortázar anterior.

Veja, “La casa tomada” vai mais fundo do que a denúncia de “Apocalipsis” porque “Apocalipsis” se esgota na comprovação da denúncia, quando sobre “La casa” você pode escrever um tratado. “Apocalipsis” só permite uma leitura. “La casa” quase tantas quantas forem seus leitores. Para se ter uma ideia, houve quem viu nela “a angustiosa sensação de invasão que o ‘cabecita negra’ (o povão peronista) provoca na classe média”. Não é uma piada minha, não, para reforçar meus argumentos – embora eu goste de humor grotesco –, nem uma tentativa de fazer um conto mais fantástico do que os que Cortázar produziu. Isso foi dito por um tal Juan José Sabreli em Buenos Aires – Vida cotidiana y alienación.

"Um autor que destruiu moldes, lugares-comuns na produção literária e, sobretudo, desacomodou o leitor" l Foto: federasur.org_.br
Foto: federasur.org_.br

Um texto que permite uma única leitura é um texto raso, mecânico, numa palavra: morto. A maleabilidade de “La casa tomada” – como a palavra do profeta, é tudo para todos, como diria Borges, que Alá o proteja para sempre – aproxima o conto da própria realidade, do que ela tem de inquietante e misterioso, de ambíguo. Isso é vivo – e nada que é vivo é inofensivo, nada que é vivo nos deixa indiferentes. Através do pesadelo dos irmãos de “La casa tomada” sei mais sobre as pessoas, sobre o que há de sombra nelas, o que me deixa mais armado para compreender o que há de sombra em mim mesmo. Com “Apocalipsis” eu não tenho nada além da informação que eu teria em qualquer página de jornal.

Penso que Cortázar só acertou o passo entre sua vocação de contista fantástico com seu interesse pela política, alcançando a velha e mortal eficácia dos melhores momentos, no último livro de contos, Deshoras, com “Pesadelos”, “Satarsa” e “La escuela de noche”. Aqui a gente até agradece seu interesse pela política, porque isso ampliou o território de sua literatura, ou quem sabe do conto fantástico, que em termos de política quase nunca ultrapassou a sátira, não? Aqui a gente sente assombro por um talento que sobreviveu a uma máquina de moer carne que trabalhou incessantemente por mais de duas décadas.

PS: Quando reclamaram de sua militância política, invocando os altos destinos da literatura, já que a relegara a um segundo plano, ele disse que pouco ligava pros altos destinos da literatura, que pra ele uma ação ética valia qualquer livro que pudesse escrever. Pode parecer um peitaço da vaidade, não? Uma bela enrustida, não? Mas ele publicou Libro de Manuel sabendo que, literariamente, o livro deixava a desejar, mesmo que tenha inúmeras páginas de dar água na boca. Publicou por motivos pedagógicos — note-se, em benefício da esquerda, não da direita, e nenhuma delas parece ter entendido patavina, a julgar pelas resenhas. E não ganhou um tostão com ele. A grana foi toda pra oposição a Pinochet. Entre parênteses: admiro essa banana a uma carreira literária, mas sou egoísta, preferiria mais livros de Cortázar. O que ele escrevia, só ele escrevia. Já sua contribuição política, em termos práticos, foi mínima e poderia ser dada por quase qualquer pessoa. Mas ele tinha esperanças e era um bom sujeito, ao contrário de mim.

Julio Cortazar Portrait Session

Quinto Round

Em algum ponto de Rayuela se discute o momento certo de parar. Fala-se de Armstrong e Picasso.

“Agora os dois estão feito uns porcos. Pensar que os médicos inventam curas de rejuvenescimento… Vão continuar nos fodendo outros vinte anos, vai ver.

“– Nós não – disse Etienne. – Nós já demos um tiro neles no momento certo, e tomara que me acertem quando chegar minha hora.

“– A hora certa. Não pede nada, cara – disse Oliveira, bocejando. – Mas é isso, já demos o tiro de misericórdia neles. Com uma rosa em vez de uma bala, digamos. O que continua é costume e papel carbono (…).”

Com Alguien que anda por ahí e Queremos tanto a Glenda me senti traído: Cortázar estava na fase papel carbono e não tinha se dado conta. Não é fácil, como nota Oliveira, mas eu estava mal acostumado com tanta lucidez e ironia. Levei um bom tempo para digerir o sapo.

A notícia da morte de Cortázar me pegou como a notícia da morte de um tio distante. Morria o Cortázar de Alguien que anda por ahí, não o das Armas secretas, digamos. É horrível dizer, mas esse morto não me fazia muita falta. Tempos depois li Un tal Lucas, um bom livro, me parece, mas meio rarefeito, meio como se tivesse sido escrito por um discípulo aplicado de Cortázar. O próximo, Deshoras, veio realmente fora de hora. Na época, não consegui o original e a tradução brasileira tardou mais do que devia. Deshoras fechou minha boca. Cortázar não estava velho, não estava acabado coisa nenhuma. Apenas tinha estado fora de órbita uns tempos. Mas continuo achando que devia ter posto no lixo os maus contos, tenho a mesma sensação do grupo do conto “Queremos tanto a Glenda”, o desejo de corrigir as imperfeições do nosso amor nem que seja apelando para o assassinato.

Minha última leitura, Los autonautas de la cosmopista, foi uma tristeza. A ideia da viagem me parece bela. Apenas a ideia já deixa entrever o que foi Cortázar, esse homem com jeito de menino travesso brincando de gente grande que brinca de ser menino travesso. Mas é isso, uma bela ideia muitos podem ter. O que fez a diferença foi que Cortázar a executou. Mais: executou-a em péssimas condições, ele e a mulher à beira da morte. A gente sente isso em cada linha. O livro parece escrito porque Cortázar e Carol resolveram escrever, porque precisavam escrever como se não escrever fosse admitir a derrota. Não há alegria, não há entusiasmo, não há prazer nas palavras. Até as tentativas de humor não têm graça nenhuma. Admiro a atitude dos autores, esse compromisso com o brinquedo, o compromisso de brincar com toda a seriedade até o fim, de não desobedecer as regras.Mas o livro é penoso. Não consegui terminá-lo e não consigo afastar a imagem de Cortázar nos últimos meses de vida, doente, sozinho, acabando de escrever a última linha e pensando: aí está, Carol. Posso vê-lo juntando a página ao resto do manuscrito e depois o queimando lentamente.

PS: Muitos anos depois dos Autonautas, li Papeles inesperados e Clases de literatura – Berkeley, 1980. Em Papeles, como já mencionei, há “Ciao, Verona”, um conto excepcional. Apenas ele vale o preço do livro. Em Clases, destaco o capítulo sobre o que Cortázar entendia por música na literatura. Melhor eu recolher os adjetivos, pra não parecer boboca. Aí se entende por que a atmosfera e a fluência de um texto podem ser mais poderosas que o dito conteúdo, o tema explícito, a mera informação, como elas fazem parte do sentido do texto, um sentido mais profundo e misterioso. Talvez seja por elas que é tão prazeroso reler histórias que sabemos de cor. Como ouvir música, não?

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Último Round

Não preciso reler os rounds anteriores para saber que falhei. Tudo o que disse talvez explique por que Cortázar é um bom escritor, ou o que pra mim faz um bom escritor, mas não explica por que eu e muitos leitores temos amor por ele, por que seus textos são dos que despertam afeto.

Pablo Neruda descreveu uma doença pavorosa que ataca as pessoas que nunca leram Cortázar. É isso. Se você não leu Leon Tolstoi, por exemplo, o que acontece? Sim, trata-se de uma grave lacuna intelectual, mas e daí? Eu guardava Guerra e paz para o caso de ser preso um dia*. Cortázar pode não ter a metade da importância de Tolstoi, mas se você não o leu a gente pensa na hora: coitado. É como nunca ter visto o mar ou provado o sabor do vinho. Exagero conscientemente. É que para quem ama Cortázar é assim, algo vital.

Quase no fim, após anos de exílio, esteve na Argentina. Como sempre sem se anunciar, praticamente clandestino. Uma tarde, numa esquina no centro de Buenos Aires, foi reconhecido por uma multidão que vinha em passeata. Na mesma hora mudaram as palavras de ordem. Em coro, a multidão gritou esta frase, intraduzível sem perder a graça:

– Bienvenido, carajo!

As pessoas, antes de continuar a passeata, compraram todos os livros que encontraram numa banca próxima. Cortázar autografou até livros de outros autores.

Me pergunto: que país, que escritor produziria essa cena? Me pergunto: ela vale ou não vale mais que um Nobel? Mas ainda houve uma melhor.

Um pouco antes de morrer, Cortázar estava em Barcelona, andando à noite pelo Bairro Gótico. Havia uma garota, americana, bonita, que tocava violão e cantava meio como Joan Baez. Um grupo de jovens estava ao redor, ouvindo. Cortázar parou, meio afastado, nas sombras. Dali a pouco, um jovem de uns vinte anos se aproximou dele com um bolo na mão e disse: “Julio, pegue um pedaço”. Ele pegou, comeu e disse: “Muito obrigado por ter vindo e me dado o bolo”. O rapaz: “Olhe, eu lhe dei tão pouco comparado com o que você me deu”. Cortázar: “Não diga isso, não diga isso”. Então se abraçaram e o rapaz foi embora.

* Como a cana demorava, acabei lendo. Mas pulei horrores. Não sei se o releria mesmo preso.

CORTAZAR - JAZZ - LITERATURA.ORG

Notinha sobre a literatura de Georges Simenon

Notinha sobre a literatura de Georges Simenon

simenon2Georges Simenon vendeu aproximadamente 500 milhões de volumes de suas novelas e romances. Trata-se de um excepcional caso de sucesso popular e de crítica. Durante toda a sua vida, os leitores e editores pediram-lhe um grande romance através do qual o autor pudesse ser apresentado. A resposta era sempre a mesma:

– Minha grande obra é o mosaico formado por meus pequenos romances.

Grosso modo, podemos dividir sua obra em duas partes: os romances policiais com ou sem o célebre detetive Maigret e os duros romances psicológicos que lhe valeram o apelido “Balzac de Liége”, recebido de ninguém menos que André Gide. A popularidade destes livros não deixa de impressionar, pois são escritos em tom menor, são nada solares, sendo antes cheios de personagens deprimentes e deprimidos. Com suas ações quase sempre em cidades pequenas, Simenon envolve-nos numa triste realidade provinciana, onde o mal comanda.

O método de produção de Simenon é curioso. Ele escrevia seis ou sete romances ou novelas por ano, mas elas não lhe saiam continuamente e sim como espasmos. A história era inventada em 30 ou 40 dias em sua imaginação. Era o período de não escrever, de caça à história, quando ele passeava, ia a bares e convivia com as pessoas. Então, ele avisava aos familiares que trabalhar e todos sabiam o que aconteceria – ele sumiria em seu escritório por algo entre 10 e 20 dias. Nestes períodos, ninguém deveria falar com ele e a ordem era apenas alimentá-lo. Se um fato externo o interrompesse, abandonava o trabalho.

De certa forma, tal concentração está presente em seus trabalhos. As narrativas, a forma de envolver o leitor são via de regra impecáveis. A modernidade não está num trabalho de linguagem ou em tramas complexas ou contrapontísticas, está no fato de que o autor se exime dos princípios morais, apresentando tramas simples onde as atitudes são descritas de forma distante, muitas vezes cruel. Não há Deus nem julgamento, há sucessão de fatos que são jogados ao leitor no momento exato e que fazem excelente literatura.

Acabo de ler O Burgomestre de Furnes, um extraordinário estudo sobre o embrutecimento, o ódio e a avareza. Joris Terlink é o burgomestre que comanda a população, a economia e os conselheiros do povoado. Todos o temem e ele é consultado para tudo. Sua vida pessoal está associada a diversas tragédias, recentes e antigas: uma filha doente mental que é mantida presa em seu quarto sob o argumento de que não haveria um lugar melhor para ela, o câncer da mulher, os vários filhos fora do casamento – o quais são ignorados por Terlink – e a própria gestão de Furnes, cuja falta de solidariedade produz um suicídio no início da história. Há algo menos sedutor? Terlink é um monstro absoluto, circundado de idiotas que têm dificuldade de viver sem ele, mas a segurança com que Simenon leva sua narrativa não é menos monstruosa e sem compaixão.

Além do Burgomestre, os maiores romances desta face de Simenon provavelmente são Sangue na Neve, O homem que via o trem passar, O gato e Em caso de desgraça. Todos podem ser encontrados bem baratinho por aí. Saíram também em pockets.

Louis-Ferdinand Céline, os 120 anos do brilhante escritor antissemita

Louis-Ferdinand Céline, os 120 anos do brilhante escritor antissemita

Publicado pelo Sul21 em 1º de junho de 2014

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Céline: censura póstuma oficial

O fato de um escritor tão imenso quanto Louis-Ferdinand Céline (1894-1961) ter sido um antissemita dos mais abjetos sempre foi, no mínimo, perturbador. Em 2011, quando completou 50 anos de morte, Céline recebeu uma curiosa “des-homenagem” oficial. O Ministro da Cultura da França, Frédéric Mitterrand, retirou o nome de Céline das Célébrations Nationales. O motivo era o de sempre: “o antissemitismo virulento” do escritor e seus desprezíveis panfletos. O Ministro afirmou que apesar de seu talento, “não se deve esquecer o homem que fez a apologia do assassinato de judeus durante a ocupação. Não é digno que a República o celebre”. Um intenso debate seguiu-se e o Ministro afirmou que a retirada consistia numa moção de repúdio.

O professor emérito da Sorbonne, Henri Godard, ficou indignado: “É uma forma de censura. É perfeitamente possível distinguir os dois Céline: o grande escritor e o antissemita. O ato não constitui numa reparação às vítimas do antissemitismo, só as transforma em culpadas involuntárias de um ato de censura a um excepcional escritor”. Frédéric Vitoux, da Academia Francesa e biógrafo de Celine, afirmou que remover o nome de Céline de um catálogo é tão bobo quanto o fato de Stalin ter apagado das fotos oficiais os líderes comunistas de quem não gostava. “Isso não contornará o fato de que Céline foi um escritor genial, traduzido inclusive em hebraico. O que fazer, devemos queimar a tradução hebraica de Viagem ao Fundo da Noite?”.

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O escritor viu seu asilo na Espanha de Franco impedido por de Gaulle.

Amado e odiado, Céline é uma glória das letras europeias. Em 1950, foi julgado e condenado pela Repú­blica Francesa a um ano de prisão e a pagar 50 mil francos de multa. O governo confiscou cerca da metade de seus bens. O escritor ficou proibido de votar e ser votado, de portar armas e pleitear cargos públicos e não podia trabalhar em jornais, escolas e bancos. Quando a Segunda Guerra acabou, Céline pediu asilo a Franco, mas de Gaulle impediu pessoalmente que o ditador espanhol o recebesse, dizendo a Franco que tal asilo atrapalharia as relações diplomáticas e comerciais entre os dois países.

Nesta semana, ao completar 120 anos de nascimento, as homenagens a Céline partiram mais dos países de língua inglesa do que da França. Mas por que Céline é importante? Porque, na primeira metade do século passado, numa época em que os escritores e compositores experimentalistas tornavam suas obras mais e mais impenetráveis, Céline renovava a literatura utilizando-se da língua falada. É claro que a expressividade de Céline era muito estilizada, tratava-se de uma linguagem fabricada, mas o gosto pelas expressões orais e populares faziam parte de seu projeto, mesmo que seus temas fossem tão pouco seculares quanto a morte e a guerra. Suas posições políticas e opiniões não se fazem presentes em seus romances, apenas nos panfletos.

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Amor às reticências. Um pontilhista como Seurat e Signac…

Seu primeiro romance foi o citado Viagem ao Fundo da Noite.  A “viagem” é a aventura que se vive até a morte certa. Seu segundo romance, chama-se Morte à Crédito.

Quando se abre um livro de Céline, em qualquer página, toma-se um susto. O escritor simplesmente adorava as reticências. Suas páginas estão cheias delas, ao lado de uma linguagem fácil e fluida, raivosa e debochada. “As reticências arejam a frase”, dizia. A impressão que se tem é a de que o escritor raramente finaliza suas frases… Ele mesmo brincava que era pontilhista como os pintores Seurat e Signac. Já os estudiosos de sua obra garantem que a linguagem simples era resultado de uma elaboração rigorosa. Ou seja, ela parece simples, porque calcada na linguagem oral, mas é finamente elaborada. A tradutora Rosa Freire d’Aguiar anota: “Desde seu romance de estreia, Viagem ao Fim da Noite, de 1932, Céline forjou uma língua própria, incorporando gírias, corruptelas e palavrões, criando onomatopeias, elipses, rimas e neologismos”.

Seu estilo é raivoso e requer estômago forte. Por exemplo, a descrição que ele faz de uma viagem de barco em Morte à Crédito (1936) é algo inacreditável. O barco começa a jogar de um lado para outro e Céline não recua ao descrever a verdadeira epidemia de vômito que acomete os participantes. Não é um escritor que evite descrições por pudor.

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Herói e inválido na Primeira Guerra Mundial.

Nascido em 1894 em Courbevoie, periferia de Paris, em uma família de classe média baixa, Céline recebeu uma instrução escolar convencional antes de se incorporar ao exército francês em 1912, durante a primeira Guerra Mundial. Por ter levado a cabo uma missão de reconhecimento arriscada no setor de Ypres (Flandres Ocidental), foi condecorado como Herói de Guerra. No conflito, sofreu ferimentos na cabeça que lhe deixaram um zumbido recorrente no ouvido. Foi declarado inválido de guerra.

Depois, em 1916, esteve em Camarões trabalhando numa empresa francesa de madeiras. Retornou à França no ano seguinte. Trabalhou também numa fábrica de automóveis, enquanto começava o curso de Medicina. Em 1919 casou-se com Edith Follet, filha do diretor da Escola de Medicina de Rennes. Em 1920 nasce a sua filha Colette e dois anos depois Céline recebe a licenciatura em Medicina, tendo por tese um trabalho sobre o médico Ignaz Philipp Semmelweis.

Semmelweis em 1858, tese lida até nossos dias
Semmelweis em 1858. A tese de Céline é lida ainda em nossos dias

Esta tese é pura literatura e está publicada no Brasil, em livro da Companhia das Letras. É um relato espantoso e envolvente sobre a perseguição sofrida por Semmelweis pelo simples fato de ele ter sido o médico que tentava introduzir o ato de lavar as mãos e a esterilização de instrumentos e utensílios antes de quaisquer operações cirúrgicas. As estatísticas mostravam que seus pacientes morriam menos, mas a novidade era tão incompreensível para a época que o húngaro Semmeweis (1818–1865) só podia estar brincando ao fazer pouco da habilidade de quem fazia os procedimentos sem lavar as mãos.

O húngaro constatou que, quando se obrigava os médicos obstetras a lavarem as mãos antes de se aproximarem das parturientes, a proporção de infecções caía de 30% para menos de 1%. Vítima da hostilidade e da zombaria dos círculos médicos, Semmelweis foi expulso do hospital, teve de deixar Viena e acabou não somente alijado do mundo científico como internado num hospício… Tornou-se o primeiro grande personagem de Céline. A repercussão da tese de Céline, que não continha nenhuma novidade, ultrapassou muito o campo da medicina.

A morte, portanto, está presente na obra de Céline desde sua tese. Na verdade a morte já estava em sua vida desde a Primeira Guerra Mundial. Céline disse que tinha matado uma dezena de pessoas no conflito e que aquilo o afetava. Talvez tenha sido para aliviar a própria dor que Céline começou a escrever, o que acabou dando origem ao seu primeiro e melhor romance: Viagem ao Fundo da Noite.

Viagem narra a história de Ferdinand Bardamu, que luta na Primeira Guerra Mundial, envolve-se em uma empreitada de colonização na África, trabalha na linha de montagem da Ford nos Estados Unidos e termina em um subúrbio pobre de Paris, trabalhando em um manicômio. O romance é um grande retrato da loucura, mas da loucura não de um homem só, mas de toda a sociedade. Os caminhos de Bardamu reproduzem a própria história da França no começo do século passado, ingressando numa guerra genocida onde ninguém poderia ganhar, num projeto colonial e numa industrialização desumana ao estilo norte-americano da época… Não é casual que pareça que estamos recontando a biografia de Céline. Assim como seu alter ego, o escritor não guardava boas lembranças de nenhuma de suas experiências.

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“O amor é o infinito ponto fora do alcance”

O romance é dividido em duas partes. A primeira refere-se à descoberta de um mundo onde a paz e o amor entre os povos parecem impossíveis — por todo lado há homens explorando-se uns aos outros.  A segunda parece um prolongamento íntimo do primeira, notavelmente bem escrito. Serve para confirmar que o amor é impossível. Aqui, Céline examina a vontade de dominação e dependência nas relações amorosas. O romance desloca-se do social para o particular a fim de demonstrar que, de forma geral, “o amor é o infinito ponto fora de alcance”.

Morte a Crédito é tão autobiográfico quanto Viagem, só que voltado à infância do escritor. Como Céline, o protagonista também é um médico que descreve suas experiências no subúrbio da capital francesa, atendendo pessoas pobres. Com acidez, o narrador demonstra sua descrença a respeito de tudo. (Talvez seja importante citar que Céline, como médico, era amado por seus pacientes, sendo considerado um modelo de bondade e dedicação). Porém, a descrição de seus pacientes e parentes — dos quais recebia quantias miseráveis — é tão ressentida e permeada pelo ódio que se torna hilária. Todavia, num certo ponto da narrativa há uma ruptura e recuamos no tempo, dirigindo-se para a infância do escritor. O leitor, então, é levado à casa de Céline e de sua família. A vida era complicada. O pai trabalhava numa empresa de seguros e é um homem sem perspectivas e energia. A mãe mantinha a lojinha da família, enquanto a avó vive da renda de alugueis que quase não recebe e os tios não possuem um emprego fixo. Ou seja, todos sofrem com a falta de dinheiro. A narrativa é primorosa na descrição dos sentimentos humanos envolvidos.

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Um médico e escritor obcecado pela catástrofe

Mas, ao lado destes romances e de Norte, há os panfletos. O primeiro é Mea Culpa, onde manifesta seu desencanto com o comunismo. Depois vieram os políticos… A pedido do autor, Bagatelas para um massacre, A Escola dos cadáveres e Bonitos os Panos nunca foram reeditados. Dos panfletos antissemitas, apenas o célebre Vão Navios Cheios de Fantasmas pode ser lido.

O ensaísta Dau Bastos frisa que Céline “fez da escrita uma briga só” e nota que “ele mostrou-se tão obcecado pela catástrofe que a ela submeteu seu próprio texto”. Já Simone de Beauvoir confessa que chegou a saber de cor algumas das páginas de Viagem ao Fundo da Noite. O universo de Céline, que nos fala de desastres e das ruínas humanas, foi desfeito após a Segunda Guerra. E ele terminou sua vida exercendo a profissão de médico e não a de escritor em Meudon, no ano de 1961, sentindo a medicina como sua verdadeira vocação e a escrita como um acidente.

A necessidade de justiça e a solidão de Michael Kohlhaas

A necessidade de justiça e a solidão de Michael Kohlhaas
A recente edição da Civilização Brasileira
A recente edição da Civilização Brasileira

Publicado em 20 de abril de 2014 no Sul21

Michael Kohlhaas, de Heinrich von Kleist, foi escrito em 1810, porém, apesar dos mais de 200 anos, é o mais atual dos livros. As discussões que suscita vão desde os meios que são permitidos na busca da justiça até questões mais amplas como o ideal subjetivo versus a realidade mundana, a liberdade individual versus a opressão governamental, o povo versus o poder. Trata-se de uma história de impotência. Tanto o tema da busca fanática pela justiça quanto o estilo, espécie de crônica longa, são surpreendentemente modernos.

Como Marcelo Backes escreve no excelente texto a seguir, Kafka “nasceu em Heinrich von Kleist, Joseph K. é bisneto de Michael Kohlhaas. Mais que isso, o autor tcheco se proclamou parente do personagem alemão, aproximando e confundindo de uma só tacada os dois escritores e suas figuras”. Comerciante de cavalos, Michael Kohlhaas é um homem simples,  justo e exemplar. Mas, face à arbitrariedade, vemos sua bonomia dar lugar à cólera. Desprezando a felicidade do lar, a fortuna e o futuro, encara sua vida como se esta estivesse destruída e contra-ataca. Ele pretende mostrar ao mundo que não se conformará com um caso onde acabou injustiçado e que para ele é fundamental viver numa terra onde seus direitos estejam assegurados.

O presente texto corresponde ao Posfácio de Michael Kohlhaas, de Heinrich von Kleist, publicado recentemente na coleção Fanfarrões, Libertinas & Outros Heróis, da Editora Civilização Brasileira, organizada por Marcelo Backes. A novela de Kleist também mereceu recentemente um filme do diretor Arnaud de Pallières, com Mads Mikkelsen no papel de herói. Mesmo que tenha sido selecionado para o Festival de Cannes, Michael Kohlhaas, o filme, fica a léguas de distância da grandiosidade do livro. (Milton Ribeiro)

A primeira página da novela em sua edição original
A primeira página da novela em sua edição original

Por Marcelo Backes

Heinrich von Kleist (1777-1811) é considerado o poeta do sentimento absoluto, o precursor do eu nômade e abandonado a si mesmo, o arauto do sujeito sem unidade, que já se encontra além dos limites da mera identidade. Foi trágico tanto na vida quanto na arte, tanto como homem quanto como autor. Seu gênio atormentado e cético sofreu com a orfandade transcendental, cortejou constantemente o fracasso e ultrapassou os limites da estética romântica e da arte clássica. Sua obra, tanto a narrativa quanto a teatral, é inclassificável sobretudo pela profundidade que manifesta, e antecipa movimentos literários bem posteriores como o expressionismo e o existencialismo.

Se Goethe via em Kleist a confusão de sentimentos que o impedia de chegar à harmonia, Deleuze registra nele, 150 anos depois, um autor bem contemporâneo na abordagem da desestruturação do sujeito, embora Kleist sofra e acabe sucumbindo diante daquilo que o filósofo francês de certo modo saúda auspiciosamente. Kleist estudou Voltaire e Rousseau, viu o mundo entrar em convulsão ao ler Kant – ou então encontrou no filósofo o fundamento para o distúrbio que já o revolvia internamente – e circulou com escritores como Ludwig Tieck, Adelbert von Chamisso, Wilhelm Grimm, Joseph von Eichendorff e Clemens von Brentano, além de pintores como Caspar David Friedrich.

Foi espião, preso como tal, exigido demais na vida e censurado sem cessar na literatura. Jamais encontrou seu verdadeiro lugar. Tentou na vida militar, depois na ciência, na vida comum e por fim na arte, e terminou se suicidando junto com uma amiga. Michael Kohlhaas, sua novela mais conhecida,é uma das maiores obras breves da história da literatura ocidental, junto com outras do calibre de A morte de Ivan Ílitch, de Tolstói, de A metamorfose, de Kafka, e de Coração das trevas, de Joseph Conrad.Criticada de forma avassaladora pelos leitores contemporâneos devido à falta de nexo, à estrutura confusa e por causa da aparente “pressa” do talhe formal, Michael Kohlhaas é uma narrativa de estilo lacônico que atinge a concretude de passar ao bom leitor a sensação quase física do perigo que ameaça o personagem. Tanto que Kafka, não por acaso, diria um século depois que se sentia “parente consanguíneo” de Kohlhaas, o personagem, percebendo como Kleist, o autor, já abria veredas num mundo que ele mesmo trilharia tantas décadas mais tarde. Diante de uma obra como Michael Kohlhaas, não são poucos os que pensam, impotentes diante da própria arte, que talvez tudo já tenha sido dito.

Heinrich von Kleist
Heinrich von Kleist (1777-1811)

A vida

Bernd Heinrich Wilhelm von Kleist (1777-1811) nasceu em Frankfurt an der Oder, na Prússia, descendente de uma família de nobres e soldados.

Com 15 anos, e já órfão, decide seguir o mandado familiar e busca a carreira militar, mas acaba desistindo das armas mais tarde para estudar direito, matemática e outras ciências. Interessado pela filosofia, foi marcado decisivamente pela leitura da Crítica da faculdade do juízo de Kant, que o abalou a ponto de fazer com que não mais acreditasse – definitivamente – na objetividade do conhecimento humano. A obra kantiana ainda o ajudou a sistematizar o descalabro interno, formalizando a percepção de uma ruptura já existente e concedendo a seus escritos um tema básico: o conflito permanente entre razão e emoção, o choque entre a subjetividade do ideal interno e a dureza da realidade externa. Em carta de 5 de fevereiro de 1801 a sua irmã Ulrike, Kleist se queixa dizendo que a vida é um jogo difícil porque constantemente se é obrigado a ir ao baralho e buscar uma nova carta, e mesmo assim não se sabe qual dessas cartas significa um verdadeiro trunfo. Em missiva a sua noiva Wilhelmine, alguns dias mais tarde, o autor aguçaria a percepção de sua crise escrevendo: “Não podemos decidir se aquilo que chamamos de verdade é verdadeiramente verdade ou se apenas assim nos parece (…) Meu único, meu maior objetivo sucumbiu, agora não tenho mais nenhum.”

Depois de se desiludir com a carreira militar – assim como Kafka não acreditava na vida de funcionário e mesmo assim era bem-sucedido, ele não acreditava na vida de soldado e continuava a ser promovido –, Kleist se volta para a ciência, buscando a formação do espírito e abrindo mão de um caminho voltado para a riqueza, para a dignidade e para a honra militar privilegiadas desde sempre por sua estirpe nobre. Em pouco, no entanto, vê que também a ciência perde o sentido diante do relativismo da verdade e abandona os estudos. Fica noivo de Wilhelmine von Zenge, filha de um general, moça que conhecera um ano antes, ao perceber que a sabedoria dos livros também não é capaz de satisfazê-lo. A família da noiva exige que Kleist tenha um cargo oficial, e o escritor, mais uma vez seguindo o mandado dos outros, teria até exercido as funções de agente secreto do ministério, e participado de espionagens econômicas a favor do governo prussiano. Mas, ao final das contas, Wilhelmine não se curva ao novo ideal de cultivar candidamente o próprio jardim de uma vida simples, que o próprio Kleist aliás acaba por reconhecer pouco verde depois de várias viagens pela Europa na companhia de Ulrike, sua irmã.

"O céu não lhe concede a fama, o maior bem da terra"
O céu não lhe concede “a fama, o maior entre os bens da terra”

Em carta de 26 de outubro de 1803, Kleist volta a se queixar à irmã de que o céu não lhe concede “a fama, o maior entre os bens da terra”. Decide lutar contra a Inglaterra, ingressando no exército francês, a fim de “buscar a morte na batalha”. Mas conhecidos convencem-no a retornar a Potsdam. Depois de mais um breve intervalo como funcionário, Kleist começa a esboçar o plano de deixar o serviço público para ganhar a vida como escritor e dramaturgo, mas em 1807 é preso como espião pelas autoridades francesas e levado ao Fort de Joux, em Pontarlier, e em seguida como prisioneiro de guerra a Châlons-sur-Marne. Kleist ainda tenta o trabalho jornalístico, e em 1808 volta a Berlim, onde conhece vários escritores de sua época e onde permanece até a morte.

Passando por necessidades, acossado pela censura e internamente “tão ferido que eu quase poderia dizer que, quando ponho o nariz para fora da janela, a luz do dia que brilha sobre ele me dói”, conforme carta de 10 de novembro de 1811 a Marie von Kleist, começa a ser dominado por pensamentos suicidas. Logo encontra uma companheira para o caminho previsto, a amiga Henriette Vogel, doente de câncer. A pedido de Henriette, Kleist a mata com um tiro e depois se suicida em 21 de novembro de 1811, aos 34 anos, junto ao Wannsee, um lago de Berlim. Henriette pede em carta de despedida que ambos sejam enterrados juntos “na fortaleza segura da terra”. Os dois jazem exatamente no local do suicídio, hoje um local de peregrinação, já que os que tiravam a própria vida não podiam ser enterrados em um cemitério.

Não haviam sido poucas as vezes em que Kleist falara sobre o suicídio em suas cartas. Na derradeira, dirigida à sua meia-irmã Ulrike na manhã do sucedido, há uma sentença definitiva: “A verdade é que nada na Terra poderia me ajudar.” Tranquilo, Kleist ainda agradece por todas as tentativas feitas no sentido de auxiliá-lo, e em seguida se despede, pedindo que seja dada à irmã pelo menos metade da alegria e da serenidade indizível que sente no momento em que decide levar o princípio sublime do fracasso às últimas consequências.

Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

A obra

Heinrich von Kleist é, simplesmente, o autor de uma das novelas mais grandiosas da Alemanha (Michael Kohlhaas), da maior tragédia alemã (Pentesileia)e da principal comédia em sua língua (A moringa quebrada). Se a vida de Kleist se caracterizou pela busca incansável da felicidade e pelo encontro constante da desilusão, isso também se reflete em sua obra de maneira indelével. Bailando entre o romantismo e o classicismo, seu caminho é, antes de tudo, pessoal e subjetivo. Os temas são clássicos, os gestos são românticos e o resultado é subjetivamente aterrador.

Na obra de Kleist o sujeito ideal, autônomo e com uma identidade claramente definida é questionado talvez pela primeira vez de maneira radical na história da literatura ocidental. A desmedida da explosão sentimental é levada às últimas consequências, a violência das imagens atinge os píncaros. Experimental e subjetivo, Kleist permaneceu esquecido por algum tempo, e só começou a ser revalorizado pela geração de Gerhart Hauptmann, Frank Wedekind e Carl Sternheim.

Foi na Suíça que Kleist escreveu seu primeiro drama, A família Schroffenstein, entre os anos de 1801 e 1802. Orientada no estilo dramático de Shakespeare, A família Schroffenstein tematiza, assim como as obras do bardo inglês, a disputa entre destino e acaso e a oposição entre juízo subjetivo e realidade objetiva. Da mesma época é a tragédia inacabada Robert Guiscard, na qual Kleist pretendeu unir os valores da tragédia grega às conquistas – outra vez – de Shakespeare, ao abordar a fatalidade do herói em meio às desgraças da peste. Kleist queimaria os trechos concluídos da tragédia por achar que não conseguira realizar literariamente o que esboçara mentalmente.

Quando Kleist se muda para Dresden, já bastante desiludido e alimentando pensamentos sombrios, escreve a comédia A moringa quebrada (1802-1806), talvez a mais conhecida de suas obras. No grande cenário do teatro universal, essa comédiaé uma espécie de irmã espúria de Édipo Rei e o juiz Adão, seu personagem principal, não deixa de ser um ridículo labdácida de peruca que vai se desnudando em toda sua culpa aos poucos. Aliás, tanto o herói da tragédia grega quanto o juiz da comédia alemã investigam, e o fato de Édipo, apesar de todos os alertas, querer descobrir e por fim descobrir aquilo que não sabe – ou seja, que é o culpado – dá o caráter trágico à peça de Sófocles, ao passo que o fato de o juiz Adão, apesar de todos os esforços e esquivas, ter deinvestigar aquilo que sabe e acabar sendo descoberto por todo mundo – ou seja, que é o culpado – dá o caráter cômico à peça de Kleist.

Mesmo nas comédias de Kleist – tome-se o Anfitrião, de 1807, fundamentado em Molière, como exemplo, embora A moringa quebrada também seja perfeita nesse sentido–, o que resta no final é o amargor da visão de mundo kleistiana. Se o crítico italiano Benedetto Croce, sempre preocupado em ver humor apenas mais ao sul do planeta e incapaz de compreender de verdade a contenção sorridente – amargamente sorridente – do norte, criticou uma obra como A moringa quebrada, Bjönstjerne Björnson, o dramaturgo norueguês, disse que poucas vezes lera algo tão divertido. Theodor Storm, um dos grandes representantes do realismo europeu, chegou a dizer que a peça era a única comédia alemã que lhe agradava do princípio ao fim. A moringa quebrada também foi traduzida por Boris Pasternak em 1914, e elogiada como uma das grandes obras do cânone literário alemão por Georg Lukács.

Goethe: hostil a Kleist
Goethe: hostil a Kleist

Em 1808, Goethe, que já esfacelara A moringa quebrada, partindo-a em três atos, recusa-se a permitir a encenação da tragédia Pentesileia no teatro de Weimar. Inspirada pelas tragédias de Eurípedes, a peça veria a luz do público pela primeira vez apenas em 1876. A dimensão moderna e profundamente psicológica alcançada pela linguagem de Kleist nessa tragédia em versos e a sequência de diálogos que se encadeiam um ao outro de maneira vertiginosa adquirem caráter musical, dionisíaco – sinfônico. Pentesileia, a obra mais avançada de Kleist,seu Michael Kohlhaas vestindo saia sobre o palco, inspiraria duas grandes peças da música: a composição de Hugo Wolf e a ópera de Othmar Schoeck.

Em 1810 Kleist publica dois volumes de novelas, interessantes e adiantadas em relação a seu tempo. Duas dessas novelas são verdadeiras obras-primas: Michael Kohlhaas e A marquesa de O. Ainda assim ambas são criticadas de forma avassaladora pelos críticos contemporâneos. Também narrativas mais breves como O terremoto do Chile mostram que Kleist vai às últimas consequências na abordagem da alma humana.

Assim como em Shakespeare, muitas das obras de Kleist são fundamentadas em figuras históricas, caso inclusive de Michael Kohlhaas. A diferença é que Kleist leva temas apenas esboçados por outros autores à perfeição de um grande debate e a um acabamento narrativo extraordinário, como no caso do príncipe de Homburgo, de Robert Guiscard, do já citado Kohlhaas e até do terremoto do Chile. O príncipe de Homburgo, sua última peça, elabora a condenação à morte de um general prussiano do século XVII. Já o drama A batalha de Armínio, de 1808, abordara a derrota de Varo ante o exército germano no século. Mas o nacionalismo de Kleist e seu amor à pátria alemã se revelam sobretudo em poemas como “Germânia a seus filhos” (“Germania an ihre Kinder”) e “Canção guerreira dos alemães” (“Kriegslied der Deutschen”).

O tom sombrio característico da obra de Kleist aparece logo em suas primeiras peças, notadamente na já mencionada A família Schroffenstein. A tragédia – que aborda com maestria o tema de Romeu e Julieta – evidencia o colapso do arcabouço otimista que orientava Kleist. O autor também percebe a incongruência existente entre a alma aqui dentro e o mundo lá fora, entre as exigências do eu e as obrigações familiares e civilizatórias, e antecipa de modo absolutamente simétrico – consideradas as diferenças de época e de contexto – sua própria obra Michael Kohlhaas e a obra inteira de um dos maiores autores do século XX: Franz Kafka.

Kohlhaas, o vingador | Ilustração de uma edição alemã
Kohlhaas, o vingador | Ilustração de uma edição alemã

Michael Kohlhaas

Franz Kafka nasceu em Heinrich von Kleist, Joseph K. é bisneto de Michael Kohlhaas. Mais que isso, o autor tcheco se proclamou parente do personagem alemão, aproximando e confundindo de uma só tacada os dois escritores e suas figuras.Kleist teria começado a escrever Michael Kohlhaas em 1805, quando tinha apenas 29 anos de idade. A novela seria publicada em sua versão definitiva em 1810, no primeiro volume de suas narrativas. Dois anos antes, em 1808, um trecho da obra já surgira na revista Phöbus, dirigida pelo próprio Kleist, que se orientou em uma coletânea de relatos históricos de Christian Schöttgen e Georg Kreysig [1] para criar seu personagem. No fundo, o Michael Kohlhaas de Kleist tem pouco a ver com o Hans Kohlhasen da vida real, comerciante em Cölln junto ao rio Spree, executado em 22 de março de 1540. Os autos do caso, de 1539, não chegaram às mãos de Kleist, mas sabe-se que o Kohlhasen histórico teve dois de seus cavalos roubados por um fidalgo Zachnitz, e que por isso tenta fazer justiça com as próprias mãos, incendiando várias casas em Wittenberg, mas não chega a perder a mulher, nem sofre às últimas consequências como o Kohlhaas literariamente bem construído de Kleist.

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É sempre bom lembrar: O VIAGRA É UM PRODUTO AUTENTICAMENTE BRASILEIRO E EXISTE DESDE O SÉCULO XIX!!!

É sempre bom lembrar: O VIAGRA É UM PRODUTO AUTENTICAMENTE BRASILEIRO E EXISTE DESDE O SÉCULO XIX!!!

O escritor Bernardo Guimarães (1825-1884), nascido em Ouro Preto e cuja notável austeridade pode ser apreendida na foto abaixo, escreveu A Escrava Isaura. OK, mas comecemos a leitura de seu clássico poema Elixir do Pajé.

O ínclito Bernardo Guimarães
O ínclito Bernardo Guimarães

Que tens, caralho, que pesar te oprime
que assim te vejo murcho e cabisbaixo,
sumido entre essa basta pentelheira,
mole, caindo pela perna abaixo?

Ao mesmo tempo em que escrevia o citado romance e também O Seminarista, O Garimpeiro e O Ermitão de Muquém – todos romances medíocres filiados à vertente regionalista da ficção romântica brasileira -, Bernardo….

Nessa postura merencória e triste
para trás tanto vergas o focinho
que eu cuido vais beijar, lá no traseiro,
teu sórdido vizinho!

…criou uma obra poética dotada de dimensão crítico-humorística incomum em meio aos indianismos, arroubos de eloquência e subjetividades lacrimejantes do romântismo brasileiro. (Flora Sussekind).

Que é feito desses tempos gloriosos
em que erguias as guelras inflamadas,
na barriga me dando de contínuo
tremendas cabeçadas?

O Elixir do Pajé, assim como o extraordinário A Origem do Mênstruo, só teve impressões clandestinas em folhetos de poucas páginas.

Qual hidra furiosa, o colo alçando,
co`a sanguinosa crista açoita os mares,
e sustos derramando
por terras e por mares,
aqui e além atira mortais botes,
dando co`a cauda horríveis piparotes,
assim tu, ó caralho,
erguendo o teu vermelho cabeçalho,
faminto e arquejante,
dando em vão rabanadas pelo espaço,
pedias um cabaço!

Um escritor da época, Artur Azevedo, nos revela que “de todos os livros de Bernardo Guimarães, o escrito mais popular é um poema obsceno intitulado Elixir do Pajé, que nunca foi impresso com o nome de seu autor. Porém é raro o mineiro que não o saiba de cor. Há na província um sem-número de cópias desse Elixir inútil e brejeiro.”

Um cabaço! Que era este o único esforço,
única empresa digna de teus brios;
porque surradas conas e punhetas
são ilusões, são petas,
só dignas de caralhos doentios.

A edição oficial das “poesias completas” de Bernardo Guimarães pelo Instituto Nacional do Livro, com data de 1959, omite sem (ou com) pudor alguns de seus poemas e mantém uma atitude de incompreensão diante de sua veia satírica e humorística.

Quem extinguiu-te o entusiasmo?
Quem sepultou-te neste vil marasmo?
Acaso para teu tormento,
indefluxou-te algum esquentamento?
Ou em pívias estéreis te cansaste,
ficando reduzido a inútil traste?
Porventura do tempo a dextra irada
quebrou-te as forças, envergou-te o colo,
e assim deixou-te pálido e pendente,
olhando para o solo,
bem como inútil lâmpada apagada
entre duas colunas pendurada?

Mas além de banir a produção satírica e humorística de Bernardo, os critérios românticos também não se ajustavam à sua lírica, nem sempre em consonância com os padrões da época.

Caralho sem tesão é fruta chocha,
sem gosto nem cherume,
linguiça com bolor, banana podre,
é lampião sem lume,
teta que não dá leite,
balão sem gás, candeia sem azeite.

Coube a Haroldo de Campos, em linhas sumárias mas decisivas, apontar de modo pioneiro a importância deste novo e ignorado Bernardo Guimarães.

Porém não é tempo ainda
de esmorecer,
pois que teu mal ainda pode
alívio ter.

…..

Terá Bernardo descoberto um Viagra indianista e romântico?

Eis um santo elixir miraculoso,
que vem de longes terras,
transpondo montes, serras,
e a mim chegou por modo misterioso.

…..

Com mais de cem anos de clandestinidade e antecipação, o Elixir impõem-se como a manifestação mais integral e debochada daquele indianismo às avessas que Haroldo de Campos teria visto em Oswald de Andrade.

Esse velho pajé de piça mole,
com uma gota desse feitiço,
sentiu de novo renascer os brios
de seu velho chouriço!

…..

No Elixir, uns dos alvos de Bernardo é o ritmo e a retórica de Gonçalves Dias em poemas como I-Juca-Pirama e Os Timbiras. E olha o ritmo do I-Juca-Pirama chegando aí, gente!!!

E ao som das inúbias,
ao som do boré,
na taba ou na brenha,
deitado ou de pé,
no macho ou na fêmea
da noite ou de dia,
fodendo se via
o velho pajé!

…..

E, na sátira ao indianismo, o índio vira sátiro.

Vassoura terrível
dos cus indianos
por anos e anos
fodendo passou,
levando de rojo
donzelas e putas,
no seio das grutas
fodendo acabou!
E com sua morte
milhares de gretas
fazendo punhetas
saudosas deixou…

José Veríssimo declarou que a metrificação de Bernardo é em geral mais rica, mais correta e mais variada que a de outros românticos. E completa dizendo que a forma é também mais clássica, mais simples, mais calma e mais fria. Sintam a calma do próximo trecho.

Feliz caralho meu, exulta, exulta!
Tu que aos conos fizeste guerra viva,
e nas guerras de amor criaste calos,
eleva a fronte altiva;
em triunfo sacode hoje os badalos;
alimpa esse bolor, lava essa cara,
que a Deusa dos amores,
já pródiga em favores
hoje novos triunfos de prepara,
graças ao santo elixir
que herdei do pajé bandalho,
vai hoje ficar em pé
o meu cansado caralho!

Só em Oswald de Andrade (O Santeiro do Mangue) e Gregório de Matos, encontra-se algo próximo a esta grossa prosa de palavrões, erotismo satírico e escatológico, tramada em tão inventiva poesia antipoética.

Vinde, ó putas e donzelas,
vinde a mim abrir as vossas pernas
ao meu tremendo marzapo,
que a todas, feias ou belas,
com caralhadas eternas
porei as cricas em trapo…
Graças ao santo elixir
que herdei do pajé bandalho,
vai hoje ficar em pé
o meu cansado caralho!

…..

Sem mais interrupções, deixo vocês com o final da epopeia.

Este elixir milagroso,
o maior mimo da terra,
em uma só gota encerra
quinze dias de tesão…
Do macróbio centenário
ao esquecido marzapo,
que já mole como um trapo,
nas pernas balança em vão,
dá tal força e valentia
que só com uma estocada
pôe a porta escancarada
do mais rebelde cabaço,
e pode um cento de fêmeas
foder de fio a pavio,
sem nunca sentir cansaço…

Desculpa, tive que interromper novamente. Quinze dias de tesão? O Cialis dá umas 6 horas, o Viagra menos!

Eu te adoro, água divina,
santo elixir da tesão,
eu te dou meu coração,
eu te entrego minha porra!
Faze que ela, sempre tesa,
e em tesão sempre crescendo,
sem cessar viva fodendo,
até que fodendo morra!

Sim, faze que este caralho,
por sua santa influência,
a todos vença em potência,
e, com gloriosos abonos,
seja logo proclamado
vencedor de cem mil conos…
E seja em todas as rodas
d`hoje em diante respeitado
como herói de cem mil fodas,
por seus heróicos trabalhos,
eleito – rei dos caralhos!

Os fragmentos do Elixir aqui publicados foram copiados do livro “Poesia Erótica e Satírica” de Bernardo Guimarães (Imago, 1992). Esta edição tem organização e prefácio de Duda Machado, do qual roubei algumas interrupções que fiz ao clássico Elixir.

Gulliver, os Houyhnhnms e os Yahoos

Gulliver, os Houyhnhnms e os Yahoos

As Viagens de Gulliver foi publicado em 1726. É um dos textos fundamentais do rabugento e genial satírico Jonathan Swift (1667-1745). Lembrei do livro em razão do Yahoo Notícias

Único sobrevivente de um naufrágio, o médico Lemuel Gulliver consegue alcançar uma praia desconhecida. Exausto, desaba e adormece. Quando desperta, está totalmente amarrado, sendo observado por centenas de homenzinhos minúsculos, armados de arcos e flechas. Este primeiro encontro em Liliput é o mais conhecido do livro, mas suas viagens o levarão a outros lugares estranhos. Em Brobdingnag, ele é um ser minúsculo perto dos nativos gigantes. Em Laputa, terra dos intelectuais (atenção: La Puta), os habitantes investem seu tempo em complôs e conspirações enquanto o país se esvai. Finalmente, ele encontra os Houyhnhnms, sobre os quais pensei hoje.

(Ah, em carta a Alexander Pope, Swift afirmou que escrevera Gulliver Travels para a atacar o mundo, nunca para diverti-lo. O autor erra na segunda afirmativa. Gulliver ataca e diverte, mas fica claro que Swift odiava a organização social de seu tempo).

Os Houyhnhnms são uma raça de cavalos inteligentes. O nome é pronunciado de modo a ecoar o relinchar destes animais. Eles contrastam fortemente com os Yahoos, criaturas humanóides, selvagens. Enquanto os Yahoos representam tudo o que é ruim, os Houyhnhnms formam uma sociedade tranquila, confiável e racional. Gulliver prefere a companhia dos Houyhnhnms, não obstante o fato dos Yahoos serem-lhe biologicamente mais próximos.

gulliver

A interpretação dos Houyhnhnms é dúbia. Por um lado, podem ter sido criados como uma crítica de Swift ao tratamento do império britânico aos não-brancos. Estes seriam tratados como uma sub-raça, como seres humanos inferiores. Por outro lado, ampliando, seria uma crítica geral às sociedades formadas pelos homens. A preferência de Gulliver recai sobre os Houyhnhnms. Em um improvável contexto moderno, a criação deles pode ser vista como um dos primeiros exemplos das preocupações com os direitos dos animais, especialmente no trecho em que Gulliver conta de como os cavalos são cruelmente tratados em sua sociedade. A história é uma possível inspiração para o romance O Planeta dos Macacos, de Pierre Boulle.

A sociedade Houyhnhnm é baseada na razão. Por exemplo, os cavalos praticam a eugenia com base em análises de custo e benefício. Lembrem que estamos em 1726 e Swift não conheceu Hitler… Eles também não têm religião e sua única moralidade é baseada no pragmatismo. Não são movidos por piedade ou por crenças no valor intrínseco da vida. Uma visitante pede desculpas por ter chegado atrasado para uma festa. É que seu marido tinha acabado de morrer e ela teve que tomar as medidas adequadas para o funeral, que consiste num enterro no mar. Logo depois, ela participa do almoço como todos os outros Houyhnhnms. Passou, passou. Suas leis exigem que cada casal produza dois filhos, um macho e uma fêmea. No caso de um casamento produzir dois filhos do mesmo sexo, os pais levam seus filhos para a reunião anual e negocia uma das crianças um com um casal que produziu duas crianças do sexo oposto.

gulliver Houyhnhnms

Os Houyhnhnms têm uma sociedade ordeira e pacífica. Também não têm nenhuma palavra para “mentira”. “Dizer uma coisa que não é?”.

Os Houyhnhnms vêem Gulliver como apenas um mero Yahoo, até que um deles nota que Gulliver é diferente, toma-o sob sua proteção e procura aprender sobre sua cultura. Este Houyhnhnm se afeiçoa a Gulliver, tornando-se seu amigo. Gulliver, por sua vez, tenta aprender tudo o que pode. E passa a desprezar a raça humana, fazendo a apologia da cultura local, que valoriza a razão e o respeito à verdade, nunca mente e vive pelo bem estar comum. No entanto, após quatro anos, a Assembléia dos Houyhnhnms decide expulsar Gulliver do país, pois ele é muito parecido com um Yahoo. Gulliver fica profundamente triste, mas respeita as leis do país e se conforma com a decisão. Junto com Gulliver, os cavalos constroem as velas de seu barco com peles de Yahoos. Então Gulliver retorna à Inglaterra.

Sua família já o tinha dado como morto e fica chocada ao vê-lo. Ao revê-los, Gulliver acha-os detestáveis. O tempo que ele passou com os Houyhnhnms alterou sua perspectiva da sociedade para sempre, fazendo sua vida infeliz na Europa. Ele se acostuma novamente à vida na Inglaterra, mas compra dois cavalos para mantê-los como companhia. E fala com eles por várias horas. diariamente, contando sobre suas experiências e explorações pelo mundo, As Viagens de Gulliver.

gullivers.travels

Literatura e sensibilidade feminina

Literatura e sensibilidade feminina

Publicado em 26 de janeiro de 2014 no Sul21

Houve tempo em que elas eram poucas, houve tempo em que Erico Verissimo dizia com certa ironia à Lygia Fagundes Telles que era bela demais para ser escritora. Este panorama, porém, alterou-se completamente. Um tanto irresponsavelmente, pinçando nomes aqui e ali, temos uma nominata nada desprezível de escritoras mulheres no Brasil. Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Maria Alice Barroso, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Teles, Nélida Piñon, Sonia Coutinho, Ana Cristina César, Hilda Hilst, Adélia Prado, Zelia Gattai, Ana Miranda, Marina Colasanti, Lygia Bojunga Nunes, Maria Adelaide Amaral, Flora Sussekind, Leyla Perrone-Moisés, Cora Coralina, Walnice Nogueira Galvão, Lucia Abreu, Regina Zilbermann, Marilena Chauí, Zulmira Ribeiro Tavares, Patricia Melo, Jane Tutikian, Fernanda Young, Claudia Tajes, Carol Bensimon, Mariana Ianelli.

O fato é que há muito tempo o termo “Literatura de Mulherzinha” tornou-se anacrônico. Apesar da dificuldade para caracterizar os elementos que fazem a literatura feminina ser diversa, os leitores reconhecem sua poética, parecendo pressentir seus elementos próprios: de modo geral, acertaremos dizendo que ela é habitualmente mais sensorial, poética e livre. Não se pode falar em gênero, pois os estilos e as temáticas variam muito. “Não se pode dizer que a literatura feminina seja sempre feita por mulheres, assim como boas narrativas gays podem ser escritas por heterossexuais e boas narrativas carcerárias podem ser escritas por gente que nunca esteve presa. Ao menos não há nada, nenhuma barreira física ou moral, que impeça isso.”, escreveu Nelson de Oliveira. “Da mesma maneira que a literatura policial não é a literatura escrita apenas pelos policiais, a literatura feminina não precisa necessariamente ser a literatura escrita apenas pelas mulheres. É certo que há policiais escrevendo literatura policial, mas também há professores, psicanalistas, filósofos… O mesmo acontece com a literatura feminina da maneira como eu a vejo: há homens e mulheres trabalhando dentro dos limites desse gênero”, completa.

Mas, se hoje Lídia Jorge é acompanhada de muitas outras, tivemos precursoras seminais. E a maior delas foi Virginia Woolf, que escreveu um curioso — e muito feminino — livro fundador.

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Virginia Woolf: a teórica e incentivadora de uma literatura feminina
Virginia Woolf: a teórica e incentivadora de uma literatura feminina

Um teto todo seu (A Room of One`s Own, 1929) é um dos mais surpreendentes livros da célebre ficcionista inglesa Virginia Woolf. A primeira surpresa é o fato de não ser ficção; a segunda é a absoluta ousadia no trato do assunto abordado: o feminismo.

O livro nasceu a partir de duas palestras chamadas “As mulheres e a ficção”, proferidas por Virginia para uma plateia essencialmente feminina da Sociedade das Artes, na Londres de outubro de 1928. O texto de Virginia tem a qualidade estupenda de seus livros da época. Mrs. Dalloway (1925), Passeio ao Farol (1927) e Orlando (1928) foram seus predecessores; As Ondas (1931) deu continuidade à série de grande livros. Encrustado na sequência mais importante de romances de Virginia, o ensaio Um teto todo seu não decepciona de modo algum. O livro tem cerca de 140 páginas. Não pensem que ela o leu por inteiro nas duas palestras – algo como 70 páginas por dia; na verdade o texto foi bastante ampliado para publicação logo após as palestras.

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Meus encontros com Kafka

Meus encontros com Kafka

franz-kafka

No livro de ensaios Reflexo e Realidade, de Otto Maria Carpeaux (1900-1978), há uma deliciosa e emocionante narrativa que descreve os encontros do autor com Kafka. Imaginem que Carpeaux recusou ser pago através de toda a primeira edição de um romance encalhado. Tratava-se apenas de O Processo. Se tivesse aceitado, seria milionário, quem sabe? Mas este é apenas um dos muitos comentários do esplêndido texto de Carpeaux.

Por Otto Maria Carpeaux

“Kauka.”
“Como é o nome?”
“KAUKA!”
“Muito prazer.”

Esse diálogo, que certamente não é dos mais espirituosos, foi meu primeiro encontro com Franz Kafka. Ao ser apresentado a ele, não entendi o nome. Entendi Kauka em vez de Kafka. Foi um equívoco.

Hoje, o “Kauka” daquele distante ano de 1921 é um dos escritores mais lidos, mais estudados e — infelizmente — mais imitados do mundo. Mas só Deus sabe quantos são os equívocos que formam essa glória. O romancista de “O Processo” é, para alguns, o satírico que zombou da burocracia austríaca; e para outros o profeta das contradições e do fim apocalíptico da sociedade burguesa; e para mais outros o porta-voz da angústia religiosa desta época; e para mais outros o inapelável juiz da fraqueza moral do gênero humano e do nosso tempo; e para mais outros um exemplo interessante do Complexo de Édipo, etc., etc., etc. Tudo, em torno de Kafka, é equívoco. Equívoco também foi aquele meu primeiro encontro com “Kauka”.

Foi em 1921, em Berlim. Embora só contando os anos do século, eu já tinha passado por duras experiências de guerra e revolução. Estudante universitário, agora, que sonhava com uma carreira literária. Berlim, naqueles anos do primeiro pós-guerra, foi um centro de vanguardas: expressionismo, dadaísmo, os primeiros pintores abstracionistas, simpatizantes do comunismo e fundadores de seitas religiosas e vegetarianas, uma boêmia na qual os jovens austríacos desempenhavam papel grande e barulhento — e alguns grandes escritores de verdade: Döblin, Arnold Zweig, Werfel. No Café Românico, centro da boêmia, esses homens feitos ocupavam mesas especiais, de que ninguém ousava aproximar-se sem ser especialmente convidado; o que não aconteceu nunca. Olhávamos para lá com inveja, escutando para apanhar, talvez, um pedaço de conversa. Rara foi a oportunidade de um convite para as tardes de domingo, no apartamento de um ou outro daqueles escritores, no bairro boêmio, mas elegante, do Bayrischer Platz, hoje um montão de ruínas. E numa dessas tardes cheguei a conhecer pessoalmente Franz Kafka.

Conheci poucos entre os presentes. Fui sumariamente apresentado. Sentindo-me um pouco perdido no meio dessa gente toda, não tendo a coragem de aproximar-me do centro da reunião, da grande e belíssima atriz D. F. — que tinha fama de Messalina — retirei-me para um canto já ocupado por um rapaz franzino, magro, pálido, taciturno. Eu não podia saber que a tuberculose da laringe, que o mataria três anos mais tarde, já lhe tinha embargado a voz. E então se desenrolou “aquele” diálogo:

“Kauka.”
“Como é o nome?”
“KAUKA!”
“Muito prazer.”

Foi este o começo e o fim do meu primeiro encontro com Franz Kafka. Ao sair do apartamento, perguntei a meu amigo e introdutor: “Quem é aquele rapaz magro com a voz rouca?” Respondeu: “É de Praga. Publicou uns contos que ninguém entende. Não tem importância”.

II

Kafka e o amigo Max Brod
Kafka e o amigo Max Brod

Meu segundo encontro com Franz Kafka, talvez cinco anos mais tarde, foi outra vez em Berlim, no escritório de uma casa editora. Antes de ir para a Itália, onde continuei os estudos universitários, tinha feito alguns trabalhos para aquela editora, chamada Die Brücke (A Ponte), mas nunca consegui receber dinheiro. Voltando para Berlim, em 1926, ouvi que a casa acabava de entrar em falência. Fui para lá. O diretor me deixou esperar na antessala, mais de meia hora. Num cantinho vi um montão de livros, todos iguais. Tirei um exemplar, abri: “O Processo”, romance de Franz Kafka. Distraído, comecei a ler sem prestar muita atenção, quando o ex-diretor da ex-Brücke me bateu nas costas.

“Pagar não posso, querido”, dizia o homem, “mas se você quiser, pode levar, em vez de pagamento, esse exemplar e, se quiser, a tiragem toda. O Max Brod, que teima em considerar gênio um amigo dele, já falecido, me forçou a editar esse romance danado. Estamos falidos. Nem vendi três exemplares. Se você quiser pode levar a tiragem toda. Não vale nada”.

Fiquei triste. Tinha esperado um pagamento de 130 marcos, e o homem me quer dar seu encalhe. Agradeci vivamente, e com certa amargura. Mas levei comigo aquele exemplar que já tinha aberto.

Foi a maior burrice de minha vida inteira. Toda aquela tiragem foi vendida como papel velho e inutilizada. Um exemplar da 1ª edição de “O Processo” é hoje uma raridade para bibliófilos. Nos Estados Unidos paga-se mil dólares por um livro desses, ou mais. Se eu tivesse aceito o presente, seria hoje milionário… Aliás, fugindo da fúria nazista, em Viena, março de 1938, perdi minha biblioteca inteira, que foi depois confiscada e dispersada. Mas cheguei, mais tarde, a receber na Bélgica um grupo de volumes que tinha, pouco antes do desastre, emprestado ao cônsul geral dos Estados Unidos em Viena e que este fez questão de devolver ao legítimo dono. Um desses livros foi aquele exemplar da 1ª edição de “O Processo” que, desse modo, fica até hoje comigo. E não me pretendo separar jamais do livro, pois foi meu segundo encontro com Kafka.

Li mesmo, naqueles dias distantes de 1926, “O Processo”; a história de um homem, de vida normalíssima, que é, certo dia, preso por esbirros de um tribunal desconhecido, interrogado em porões sinistros, denunciado por ter cometido crime do qual ignora a natureza, instruído numa catedral escura e vazia que “a culpa sempre está acima de todas as dúvidas”, condenado e executado. Li, sem compreender o alcance e significação do relato. Mas impressionou-me fundo o ambiente do romance, as ruas estreitas, as casas decaídas e sinistras, a catedral escura e vazia, a irrupção do incompreensível e irracional em nossa vida de rotina. O romance deu-me a impressão do déjà vu: quando nos encontramos, no sonho, numa paisagem onde nunca estivemos e que, no entanto, nos é estranhamente familiar, como se já a tivéssemos visto. Um pesadelo.

Deu-me a mesma impressão no segundo romance, “O Castelo”, que saiu naqueles dias, levando à beira da falência mais outra editora. A história de um homem que pretende fixar residência numa cidade tiranicamente dominada pelos senhores do imponente castelo em cima da colina. Não lhe dão permissão para ficar. Só precariamente lhe toleram a existência incerta. É uma luta desesperada, e a autorização de residir, só a alcançará o homem na agonia. Outro mau sonho, do qual custou despertar.

Nesse meu segundo encontro com Kafka despedi-me dos seus livros com a firme convicção de se tratar de visões de extrema irrealidade. Como se Kauka estivesse morto e Kafka, nunca existido.

III

praga-kafka

Descobri a realidade de Kafka em Praga: onde nunca antes estive.

Naqueles anos, fiz várias vezes a viagem Berlim-Viena, ida e volta, passando por Praga. Mas nunca antes me ocorrera saltar do trem na Estação Presidente Wilson, situada fora da cidade, que mal vi de longe, as luzes noturnas ou então a névoa fina da madrugada.

Numa madrugada assim — parece que foi em 1930 — assaltou-me a vontade de descer do trem para ver a cidade. Não sei o tcheco, e tinham-me dado o conselho de falar francês, de preferência ao alemão, pois era tensa a atmosfera em Praga; quase todos os dias, choques violentos entre tchecos e alemães. Cheguei no centro da cidade justamente para assistir a um choque de rua, mas foi de antissemitas contra judeus, odiados pelos tchecos porque costumavam falar alemão, e odiados pelos alemães porque eram judeus. Contaram-me um pequeno diálogo entre dois judeus praguenses:

— Veja como estamos sendo perseguidos.
— Em compensação, somos o povo eleito por Deus.
— Mas eu acho que já está na hora para Deus eleger um outro povo…

Vi, na Cidade Velha de Praga, um desses judeus, à porta de sua loja, esperando fregueses, uma cara em que milênios de perseguição e de estudo talmúdico tinham inscrito mil rugas, mas a boca cheia de sarcasmo e nos olhos um ar de grande suficiência, um complexo de superioridade. Um velho assim, intolerante como o diabo por causa da intolerância diabólica dos outros, deve ter sido o severo pai de Kafka, subjugando o filho – e assim encontrei a imagem de Kafka nas ruas estreitas e entre as sinistras casas decaídas em torno da sinagoga onde, conforme velha lenda, um rabino medieval tinha construído o Golem, um homem de barro, vivificado por um pedaço de papel com o secreto nome de Deus na boca. Certamente, uma daquelas lojas tinha pertencido ao velho Kafka. Certamente, nos porões daquelas casas tinha-se reunido o misterioso tribunal que condenou à morte o inocente culpado de “O Processo”… Preferi fugir desse ambiente.

Mas Praga é Praga. É uma das cidades mais belas do mundo. Atravessando o rio, o Vltava imortalizado pelo poema sinfônico de Smetana, levantei, na ponte, os olhos e vi lá em cima na colina o enorme Hradschin, o antigo Palácio Real, muito perto e no entanto parecendo inacessível nas alturas; e reconheci o “Castelo” de Kafka. Subi. Entrei, ao lado do castelo, na catedral gótica de São Vito, escura e vazia: e reconheci a igreja na qual o condenado, no Processo”, ouve a voz da Lei. Enfim, eu tinha encontrado a realidade atrás daquele sonho fantástico.

Foi este meu terceiro encontro com Franz Kafka. Tinha-o reconhecido como filho de sua cidade de Praga, que lhe foi madrasta: o homem era austríaco, alemão, tcheco e judeu ao mesmo tempo, tipo dos “displaced persons” cujo lamento enche este nosso século. Kafka antecipara o destino de milhões de judeus e alemães, italianos e franceses, holandeses, poloneses e russos, “displaced persons” todos eles. E por isso tinha ele sentido tão bem que o próprio gênero humano é uma “displaced person” no Universo. E sua obra estava destinada a tornar-se expressão simbólica da angústia do nosso tempo.

Entreato

Pouco depois, eu mesmo era “displaced person”. Vim, enfim, para o Brasil, onde escrevi, salvo engano, o primeiro artigo em língua portuguesa sobre Franz Kafka. A repercussão foi considerável. Não teria sido tão grande se não começasse, logo depois, a “onda de Kafka” nos Estados Unidos e, depois, no mundo inteiro. E tão imitado se tornou o escritor de Praga que, enfim, se chegou a confundir o original e as cópias, até nosso grande poeta Carlos Drummond de Andrade, secamente acertando como sempre, notar: “FRANZ KAFKA, escritor tcheco, imitador de certos escritores brasileiros”.

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Dois anos sem o furioso, brilhante e desigual Ernesto Sabato

Dois anos sem o furioso, brilhante e desigual Ernesto Sabato
O escritor argentino Ernesto Sabato, falecido em 2011, a menos de dois meses de completar 100 anos.

Publicado em 5 de maio de 2013 no Sul21

Toda a obra de ficção é catártica.
(Ao menos para) Ernesto Sabato

A última terça-feira, 30 de abril, marcou o segundo aniversário de morte de um dos maiores mestres da literatura latino-americana, o argentino Ernesto Sabato. O autor de Sobre Heróis e Tumbas nasceu em 1911 e morreu em 2011, a menos de dois meses de tornar-se centenário. Vista em perspectiva, a trajetória de Sabato – brilhante, desigual e surpreendente – não está nada longe de seus personagens tortuosos. Jogador de futebol na juventude, comunista, físico de grande futuro, súbita desistência da carreira científica, ficcionista, artista plástico, equívoco e espetacular correção de rumos frente à ditadura argentina, o que não fez Sabato?

Sabato com Jorge Luis Borges: a amizade foi diversas vezes interrompida com críticas de parte a parte

Aos 22 anos, estudante na Faculdade de Ciências Físico-Matemáticas de La Plata, foi um dos fundadores o Grupo Insurrexit, de tendência comunista, que atuava na reforma da universidade. Ainda no mesmo ano de 1933, foi eleito Secretário Geral da Juventude Comunista e conheceu Matilde Kusminsky Richter, uma estudante de 17 anos que abandonou a casa de seus pais a fim de viver com ele.

Quando jovem, Sabato foi um promissor físico. Aos 25 anos, trabalhava no Laboratório Curie de Paris, realizando estudos sobre radiação atômica, e um ano depois, já estava no renomado MIT (Massachusetts Institute of Technology) nos EUA. Trocou Paris pelos Estados Unidos antes do início da Segunda Guerra Mundial. Em 1940, retornou à Argentina para ser professor na Universidade de Buenos Aires e, em 1943, em crise existencial — ele cita que via “um vazio de sentido” naquilo que fazia — , desistiu das ciências exatas pela literatura e pintura.

Sabato era torcedor e ex-jogador do Estudiantes de la Plata

Os romances e ensaios de Sabato não traem o cientista que ele fora, nem o humanista que sempre demonstrou ser. O poeta, romancista e ensaísta Fernando Monteiro chama-o com toda a razão de “o último dos renascentistas”. Dotado de uma vasta cultura, escreveu sobre os mais variados assuntos como se deles tudo soubesse – e parecia sabê-lo. Politicamente, causou espanto por ter sido um anti-stalinista de primeira hora. Sua posição, mais facetada e complexa a que a do comum dos militantes, fez com que fosse atacado como imperialista pela esquerda e como comunista pela direita. “Não vou ser complacente com o stalinismo e o que ele representa, não sou comunista de salão”, disse na época. Também o intelectual não traía a paixão mais chã pelo futebol – ele era um interessado hincha do Estudiantes de Plata – e pela música popular. Na música popular, há uma história recente contada pelo grande compositor e músico sérvio Goran Bregovic numa entrevista ao El Pais.

Disse Bregovic: “Ao chegar a meu hotel em Buenos Aires, me deram um pacote da parte de Ernesto Sabato, escritor que conhecia muito bem. Ele continha sua obra-prima Sobre Heróis e Tumbas, além de uma carta em que me pedia desculpas por não poder ir ao concerto em função da idade. Me explicava que minha música o havia salvado em momentos de depressão. Aquilo era incrível. Quando eu cumpria o serviço militar em Niš, na época do comunismo da Iugoslávia, roubei um exemplar deste livro do quartel. Era um romance extraordinário! Eu tinha o livro na biblioteca de minha casa em Sarajevo. Com a guerra perdi tudo, inclusive a biblioteca. Você pode começar uma nova vida, mas não pode começar duas vezes uma biblioteca”.

Um almoço para esquecer: com Videla, líderes militares, religiosos e Borges (clique para ampliar)

Mas Sabato também cometeu erros incríveis: levado por seu ódio ao peronismo, dois meses após o golpe militar de 1976, participou de animado convescote com Jorge Rafael Videla, representantes religiosos e Jorge Luis Borges. Sabato elogiou a cultura de Videla, a quem tomou por um líder moderado. Escritor à antiga, Sabato manteve sempre uma independência que não levava em conta quem eram os beneficiários ou as vítimas de suas opiniões.

Porém, quando deu-se conta de onde tinha embarcado, retirou imediatamente seu apoio e, após o final da ditadura, colocando-se a 180 graus da posição inicial, tornou-se o presidente da Conadep (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas) que teve por objetivo investigar as graves e reiteradas violações aos direitos humanos durante o Terrorismo de Estado entre 1976 e 1983. Sabato foi o responsável por reunir o testemunho e a documentação de 8960 desaparecimentos, assim como da existência de 340 centros de detenção e tortura. A Comissão recebeu milhares de declarações e depoimentos, verificando in loco a existência de centenas de locais de tortura e prisão em todo o país. Foi este o instrumento que permitiu o início dos processos e a condenação dos responsáveis máximos das juntas militares, começando justamente por Jorge Rafael Videla. Foi uma correção e tanto de rumo.

Sabato não foi um escritor prolífico. Em 1945, publicou seu primeiro livro, Nós e o universo, uma série de artigos filosóficos nos quais critica a neutralidade moral da ciência e alerta sobre os processos de desumanização nas sociedades tecnológicas.

Sabato, presidente da Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas, entrega a Raúl Alfonsin um informe bem mais circunstanciado que o célebre ‘Informe sobre cegos’.

Em 1948, publicou a novela O Túnel, a qual fez com que os hofolotes se voltassem para ele a partir do entusiasmo de Albert Camus pela narrativa. Trata-se de uma curiosa história policial, narrada pelo autor de um assassinato, o artista plástico Juan Pablo Castel. Seu tema é a solidão e a incapacidade de criarmos conexões com outras pessoas. A obra termina com uma oração que diz “Senhor, livra-me de mim”. O Túnel é uma espécie de um longo desabafo — de notável fluência e eficiência — que reconstrói os fatos e os sentimentos que levaram ao crime. Castel apenas busca que alguém, “ainda que uma só pessoa”, compreenda seu ato. Logo, o leitor entende que Castel matara a “única pessoa” que poderia ouvi-lo, Maria. “Adotei a narrativa em primeira pessoa depois de muitas tentativas, porque era a única técnica que me permitiria passar a sensação da realidade externa a partir de um coração e de uma cabeça, a partir da subjetividade total…”.

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Daniel Defoe, o grande cronista da Londres do século XVII

Daniel Defoe, o grande cronista da Londres do século XVII
Imagem anônima criada durante a Grande Peste de 1665

A chamada Grande Peste de Londres (1665-1666) foi uma epidemia que vitimou entre 75.000 e 100.000 pessoas, ou seja, um quinto da população da cidade. Um Diário do Ano da Peste (A Journal of the Plague Year) é um livro muito enganador escrito por Daniel Defoe (1660-1731), escritor e jornalista que completa mais um aniversário de morte neste domingo, 21 de abril. Até Gabriel García Márquez, que não é exatamente um tolo, quando se encantou pela obra, caiu no conto de que era uma reportagem da lavra do grande jornalista que o inglês também era. Sua perspectiva alterou-se muito ao ser informado de que Defoe tinha entre quatro e cinco anos de idade quando ocorreu a peste bubônica londrina. O autor descreve a peste como um repórter gonzo que, espicaçado pela curiosidade, vive de rua em rua cada drama, apesar do receio de contrair a doença. Como Defoe conversa com famílias que contam seus dramas em detalhes, é óbvio que se trata de um relato parcialmente ficcional. Defoe também era um ficcionista de mão cheia e estilo bastante original: num ambiente em que os escritores eram cheios de floreios e de citações à mitologia, ele era o escritor simples e direto que criara o livro mais mais vendido da Inglaterra três anos antes: Robinson Crusoe.

Os locais onde os mortos eram queimados

No livro, todo o esforço é para que o contato com os doentes seja minimizado a fim de que fosse evitada a transmissão da peste. Casas eram fechadas com doentes dentro. Também eram tomados cuidados extremos com a água. A angústia do leitor moderno aumenta muito ao saber que tudo aquilo era em vão. Os contemporâneos do escritor ignoravam como a peste bubônica era disseminada: a doença contaminava os ratos, as pulgas sugavam sangue contendo bacilos e as mesmas atacavam homens, inoculando-os. A contaminação dava-se de rato para homem através da pulga. O incrível é que Defoe faz referências aos grande número de ratos, mas não chega a apontá-los como um potencial problema. Os sintomas eram dor de cabeça, frio, dores nas costas, pulso e respiração aceleradas, febre alta e grande inquietação. Em 70% dos casos, a morte acontecia entre três e quatro dias.

Daniel Defoe (1660-1731)

Daniel Foe, de pseudônimo um pouco mais nobre – Daniel Defoe –, foi o autor, dentre outros, de três livros extraordinários: além de Um Diário do Ano da Peste e do conhecidíssimo Robinson Crusoe, Defoe foi o autor do igualmente clássico Moll Flanders, outro exemplo de romance realista “com interesses práticos e imediatos, não clássicos e remotos”, como escreveu Anthony Burgess (autor de Laranja Mecânia). Com efeito, sua formação foi o jornalismo. Pode-se dizer que a primeira versão de Defoe foi a do jornalista combativo e posicionado. A segunda foi ainda jornalística: ele percorreu seu país em busca de relatos rápidos, curiosos e despretensiosos. Será que eram todos ficção? A pergunta se justifica. Afinal, às vezes, Defoe trazia entrevistas surpreendentes com criminosos à beira do patíbulo. Ninguém testemunhou nenhuma delas, mas tais “confissões” ainda quentes, presumivelmente saídas da boca do inferno, faziam enorme sucesso.

Aos 43 anos de idade, na época da Rainha Ana, Defoe — um dissenter, nome dado aos protestantes ingleses não anglicanos — passou a atacá-la em razão de ela ser anglicana. O escritor acabou preso e condenado à exposição no pelourinho. Voltou a liberdade mas, dez anos depois, voltou ao cárcere em razão de outros panfletos contrários ao governo. Cansado das lutas, quando já tinha mais de 60 anos, veio a terceira versão e ele passou a dedicar-se exclusivamente ao romance. Mas mesmo o romancista não abria mão do jornalista. O estilo de Defoe é direto e abre mão de floreios e das demonstrações de erudição e outros que tais, tão apreciados por seus colegas. Ele sempre utilizou o verídico e o crível como apoio.

Capa do DVD de uma das versões de Robinson Crusoe: capa de gosto duvidoso

Em 1719, ele publicou Robinson Crusoe. Naquela primavera, esgotaram-se quatro edições do livro, revelando-se um excelente negócio para Defoe, que o considerava uma mercadoria, uma ficção popular, algo que dava mais lucro que o jornalismo. A história é conhecida. O personagem-título é um náufrago que passou 28 anos em uma remota ilha tropical, encontrando índios – alguns deles canibais – e todo o gênero de aventuras pelo caminho. De grande sucesso, o livro recebeu considerações inclusive de Karl Marx, que escreveu que Crusoe não representava aquilo que diziam dele – uns diziam que ele seria uma representação do homem universal, outros da superioridade do homem branco – e sim o homem capitalista em seu momento heroico. A leitura de Marx, assim como as outras citadas podem ser facilmente reconhecidas no livro de Defoe.

Mas seus grandes livros são Moll Flanders e Um Diário do Ano da Peste. Na época de Defoe, os romances tinham títulos enormes. O de Moll Flandres diz quase tudo a respeito:

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As contribuições de Carpeaux, Caro e Zweig, ilustres imigrantes que chegaram com a guerra

As contribuições de Carpeaux, Caro e Zweig, ilustres imigrantes que chegaram com a guerra
Carpeaux chegou em 1939 e foi trabalhar numa fazenda

Quem conheceu Otto Maria Carpeaux descrevia-o como uma espécie de monstro. O escritor José Roberto Teixeira Leite era seu amigo e desenhava assim a figura do austríaco: “Carpeaux foi um dos homens mais feios que conheci. Sua aparência neandertalesca, todo mandíbulas e sobrancelhas, fazia a delícia dos caricaturistas: parecia um troglodita, mas um troglodita que lia Homero e Virgílio no original, que se deliciava e ensinava sobre Bach e Beethoven, que diferenciava e palestrava sobre Rubens e Van Dyck”. Carpeaux também era gago. Carlos Drummond de Andrade, outro amigo, disse que, numa viagem de carro, ele foi citar Kierkegaard. “Começou a falar quando saímos de Juiz de Fora, Ki… Ki… Ki… e só completou o nome do autor dinamarquês em Barbacena, uns 80 quilômetros adiante’.

Antes de ser Otto Maria Carpeaux no Brasil, ele foi Otto Karpfen, um austríaco que estudou filosofia (doutorou-se em 1925), matemática (em Leipzig), sociologia (em Paris), literatura comparada (em Nápoles) e política (em Berlim); além de dedicar-se à música. Mesmo gago, ele falava e escrevia em inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, flamengo, catalão, galego, provençal, latim e servo-croata. Mas não sabia muito da língua portuguesa quando chegou ao Brasil no final de 1939, fugido da Alemanha nazista. Tinha pai judeu e mãe católica. Identificava-se como católico. Quando chegou, foi trabalhar no interior do Paraná, numa fazenda, no campo.

Stefan Zweig veio para uma série de palestras, voltou e morou com a esposa em Petrópolis.

O austríaco Stefan Zweig chegou aqui já famoso. Era um romancista muito popular. Judeu e austríaco, foi também poeta, dramaturgo, jornalista e biógrafo. Para as gerações mais antigas, Zweig era principalmente o autor de biografias. Escreveu várias: de Dostoiévski, Dickens, Balzac, Nietzsche, Tolstoi, Stendhal e uma famosíssima na primeira metade do século XX, de Maria Antonieta. Conseguiu o reconhecimento como romancista nas décadas de 20 e 30. Neste período, destacam-se os romances “Amok” (1922), “Angústia” (1925) e “Confusão de Sentimentos” (1927).

Em 1934 deixou o país e passou a viver na Inglaterra, entre Londres e Bath, onde se naturalizou cidadão britânico. Com o início da Segunda Guerra Mundial e o avanço das tropas de Hitler, o casal atravessou o Atlântico em 1940 e se estabeleceu nos Estados Unidos. Em 22 de agosto do mesmo ano, veio pela primeira vez ao nosso país. Ao todo, Zweig e sua esposa Lotte fizeram três viagens ao Brasil. Durante a primeira, entre 1940 e 1941 para uma série de palestras, escreveu:

“Você não pode imaginar o que significa ver este país que ainda não foi estragado por turistas e tão interessante. Hoje estive nas cabanas dos pobres que vivem aqui com praticamente nada (as bananas e mandiocas estão crescendo em volta), as crianças se desenvolvem como se estivessem no Paraíso — , a casa inteira, desde o chão, lhes custou seis dólares e, por isso, são proprietários para sempre. É uma boa lição ver como se pode viver simplesmente e, comparativamente, feliz — uma lição para todos nós que perdemos tudo e não somos felizes o bastante agora”.

É uma visão sociologicamente ingênua, mas demonstrava algum amor pelo país que adotaria.

Caro veio para o Brasil porque lhe disseram que era barato

O judeu Herbert Caro veio da Alemanha para Porto Alegre. Tinha em comum com Carpeaux a cultura literária enciclopédica e o profundo amor pela música. Na Alemanha, fora impedido de exercer a advocacia devido à promulgação das primeiras leis antissemitas pelo governo nazista. Primeiramente, refugiou-se na França, onde estudou Letras Clássicas na Universidade de Dijon. Para sustentar-se, dava aulas de latim e pingue-pongue – Caro havia integrado a seleção alemã de tênis de mesa durante seis anos e sido um dos dirigentes da federação de 1926 a 1933. Permaneceu um ano na França. Pressentindo a proximidade da guerra, buscou novo exílio. O Brasil surgiu como a melhor opção. Afinal, um amigo dissera que era um país barato de se viver. E Herbert Caro chegou a Porto Alegre em 7 de maio de 1935. Na mala, pouca coisa; no cérebro, um vocabulário de cerca de três mil palavras que aprendera em algumas aulas de português antes da viagem.

O vocabulário permitia que ele entendesse o Correio do Povo e pedisse informações na rua sem compreender perfeitamente a resposta. O ouvido ainda não estava acostumado. Seus conhecimentos de Direito eram inúteis e o doutorado em Filosofia também pouco valia na Porto Alegre da década de 30. O domínio de várias línguas proveu a subsistência nos primeiros anos e direcionou sua vida.

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Proust ou de como a vida só faz sentido na arte

Proust ou de como a vida só faz sentido na arte
Sete livros e quatro mil páginas inauguradas em 1913

Por Marcelo Backes *

Publicado no Sul21 em 3 de março de 2013

Eis que tenho meio segundo para descrever as peculiaridades do avanço gracioso e ponderado de uma tartaruga. Pronto, e já se passaram cinco.

Às voltas com as quatro mil páginas de Em busca do tempo perdido (A la recherche du temps perdu), de Marcel Proust, cujo primeiro livro, No caminho de Swann, foi publicado há 100 anos, alguém que se debruça sobre as incontáveis linhas só pode se manifestar impotente ao ver o abismo de uma tela em branco bem restrita e cheia de ameaças à sua frente. O espaço será sempre parco diante de um universo tão vasto, e os milhões de páginas escritas sobre as referidas quatro mil são apenas mais uma prova disso.

Vá lá. Os sete livros de Em busca do tempo perdido, essa obra maior da literatura universal, foram publicados entre 1913 e 1927. Proust morreu em novembro de 1922; quer dizer, metade de seu romance monumental foi publicada postumamente. Desde o segundo volume do quarto livro, Sodoma e Gomorra (1923), passando pelo quinto (A prisioneira, 1923) e sexto livros (A fugitiva – Albertine desaparecida, 1925) até chegar ao sétimo e último, O tempo reencontrado, publicado em 1927, sua obra foi póstuma. Dos livros anteriores, o primeiro, No caminho de Swann, foi recusado pela Gallimard, na época sob o comando de André Gide, e publicado às custas do autor há exatos 100 anos, em 1913, na pequena editora Grasset; o segundo, À sombra das raparigas em flor, já seria publicado pela Gallimard em 1918; o terceiro livro em dois volumes, O caminho de Guermantes (em Portugal o livro leva o título de O lado de Guermantes), foi publicado entre 1920 e 1921; e, por fim, o primeiro volume de Sodoma e Gomorra chegou aos olhos do público também em 1921, um ano antes da morte do autor.

A primeira edição da pequena Grasset custa 7.700 euros no eBay

O primeiro livro de Em busca do tempo perdido não chegou a causar sensação, e Proust só alcançou a fama depois que o segundo, À sombra das raparigas em flor, ganhou o Prêmio Goncourt, em 1919. Nos tempos da primeira guerra mundial, Proust ousava lançar uma obra marcadamente subjetiva, adquirindo desde logo a pecha de reacionário, que o acompanha até hoje segundo o conceito de boa parte da crítica que desconhece sua obra e não sabe o quanto Proust se ocupa da mesma primeira guerra no sétimo volume e que todas as transformações pelas quais passa não apenas a sociedade parisiense e francesa, mas o mundo inteiro, jorram livres no subsolo da narrativa.

A obra antes da Recherche

Antes de sua obra-prima, Marcel Proust se ocupou de um livro ensaístico intitulado Contra Sainte-Beuve, entre os anos de 1908 e 1910, publicado apenas em 1954. Mais do que uma obra autônoma, Contra Sainte-Beuve apresenta uma série de textos dos Cahiers, selecionados segundo pontos de vista específicos e também para clarear as diferentes etapas do desenvolvimento de Em busca do tempo perdido. Na obra, Proust ataca Sainte-Beuve e não se limita a acusá-lo de não ter reconhecido os verdadeiros gênios de seu tempo, emparelhados com autores de terceira categoria, mas inclusive questiona o método de abordagem do maior crítico francês da época. Segundo Proust, Sainte-Beuve encara os livros como uma espécie de salão ao qual dirige seus comentários em uma conversação elegante, mas sem substância – corrigindo aqui e retocando acolá, para elogiar além –, que jamais atinge o âmago da questão literária e vincula em demasia o comportamento do artista à qualidade de sua obra.

Retrato de Proust quando jovem

Mas Proust estreou mesmo na literatura com Os prazeres e os dias, uma coletânea de narrativas e esboços em prosa também publicada a suas próprias expensas em 1896. A narrativa mais conhecida da coletânea é “A confissão de uma jovem moça”, e principia com a mãe da moça contemplada no título morrendo de ataque cardíaco ao surpreender a filha em abraços proibidos com um homem. O sentimento de culpa leva a filha a uma tentativa de suicídio. Antes de morrer, ela ainda confessa por escrito como havia sido feliz com a mãe durante a infância e como passou a se sentir dilacerada entre as tentações do instinto e a severidade vã em relação a si mesma mais tarde. O clima da Combray da infância de Marcel, típico sobretudo do primeiro livro da Recherche, já aparece descrito em detalhes, e os efeitos da tão decisiva “memória involuntária” são antecipados de maneira pujante, por exemplo quando um momento fundamental da infância da filha é despertado e trazido de volta à memória em toda sua intensidade através de um beijo da mãe.

O livro Pastichos e escritos diversos (Pastiches et mélanges) reúne paródias e ensaios de Proust e foi publicado em 1919. A maior importância da obra – de qualidade irregular – é o fato de também desvendar detalhes que seriam desenvolvidos mais extensiva e intensivamente em seu romance definitivo, a Recherche.

Mas a obra que se aproxima mais de perto de Em busca do tempo perdido é o romance Jean Santeuil, no qual Proust trabalhou provavelmente entre 1896 e 1904, e que também seria publicado apenas postumamente, em 1952. O romance funciona como uma espécie de esboço à Recherche, como um manancial de matéria ainda não burilada suficientemente e nem de longe esgotada. Vários dos elementos temáticos da obra-prima já se encontram reunidos em Jean Santeuil. Ainda falta no romance, contudo, a estrutura decisiva que amarra a matéria “recordada” a um Eu mergulhado na atividade de recordar, bem como a dialética labiríntica do outrora e do agora, do ontem dos acontecimentos cheios de saúde e do hoje da lembrança enferma, posta em movimento pela já citada mémoire involuntaire.

O Trocadero no início do século XX (clique para ampliar)

A Recherche

Marcel Proust trabalhou quase vinte anos – e intensamente – em sua obra-prima.

Em busca do tempo perdido canalizou e catalisou de modo tão absoluto a energia produtiva do autor, que a obra está tão intimamente ligada a ele como nenhuma outra obra se encontra ligada a seu autor. A Recherche significa o supra-sumo quase único da produção de Proust, o turbilhão que devorou todo o resto de suas obras, transformando-as em meros esboços daquilo que viria mais tarde, em veredas que levam à grande clareira onde pôde enfim ser levantado o monumento de um romance imortal. Se James Joyce é lembrado pelo Ulisses, escreveu também os Contos dublinenses, o Finnegans Wake e o Retrato do artista quando jovem. Se Robert Musil é lembrado por O homem sem qualidades, escreveu também O jovem Törless, os três contos grandiosos de Três mulheres, uma série de peças teatrais, ensaios como “Sobre a estupidez” e as duas novelas de As reuniões. Se Guimarães Rosa é marcado pelo Grande sertão: veredas, também é o autor de Sagarana, de Tutaméia etc.

Em busca do tempo perdido fez de Marcel Proust um mito.

O quarto de Proust

Tanto que hoje em dia todo mundo sabe – ou poderia saber – até mesmo o que o autor apreciava em seu café-da-manhã (duas xícaras de café bem forte, da marca “Corcellet”, com leite quente, e dois croissants da Rue de la Pépinière), servido pela fiel Cèlèste em uma bandeja de prata, porém jamais antes das quatro ou cinco horas da tarde. E inclusive conhece – ou poderia conhecer – o número fabuloso de toalhas que o autor usava para secar sua pele sensível (seriam cerca de vinte por dia, mostrando que todas as estrelas contemporâneas não passam de plagiárias). Depois de não atender aos desejos do pai, o médico Adrien Proust, que o queria na carreira diplomática, Marcel Proust tentou a advocacia e mais tarde foi corretor da bolsa. Nada deu certo, nem a profissão de bibliotecário, que jamais chegou a desempenhar de verdade, apesar de ser detentor do cargo. Do fracasso profissional do homem, nasceu o artista…

Pouco antes de começar efetivamente os trabalhos na Recherche, Proust ainda participou da tradução de duas obras do crítico de arte, escritor e poeta inglês John Ruskin, A bíblia de Amiens, publicada na França em 1904, e Sésamo e flor-de-lis, publicada em 1906. O trabalho nas obras e o entusiasmo de Proust em relação ao autor inglês é decisivo no desenvolvimento de alguns conceitos artísticos trabalhados em Em busca do tempo perdido.

Mas que é de Em busca do tempo perdido?

A obra é circular e o narrador planeja, ao final da mesma, escrever a obra que acaba de concluir, apresentando o plano daquilo que realizou. Quer dizer, no fundo o autor apenas está começando a escrever o romance que o leitor acaba de ler. Em uma visita ao salão da nova e surpreendente princesa de Guermantes, ao qual só vai por mais uma vez não conseguir começar a escritura da obra – se não nasci para a arte, não vou abrir mão da vida, pelo menos, ainda que enfadonha –, o narrador tem uma grande epifania e descobre como as coisas devem ser ditas e volta pra casa pra viver na solidão e reconstruir sua vida. E seu romance é, ao mesmo tempo, a história de uma vida individual, e um grande romance societário de arcabouço semelhante ao de A comédia humana, de Balzac, ainda que bem mais concentrado, e fundamentado sobre um único personagem, que poderia se chamar Marcel.

Gide nem leu o livro levado à Gallimard, convencido de que o autor era apenas mais um dândi

Ele caracteriza-se pela complexidade de planos temporais paralelos, pelas nuances de luz e sombra projetadas sobre o narrado. São círculos concêntricos de narrativas e personagens incontáveis, abandonados agora para voltar a ser retomados centenas de páginas adiante, revelando sempre novos e surpreendentes aspectos de sua personalidade. O universo das figuras é tão vasto que a edição da Recherche feita pela Plêiade entre 1987-1989 traz um índice de personagens com mais de 120 páginas.

Realidade e ficção

Muitas das personagens de Proust são baseadas em figuras reais, que viveram na época em que o autor frequentava assiduamente os salões de Paris.

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Orgulho e preconceito: os 200 anos de um livro arrebatador

Era a mais bela capa para o Sul21. Na época, o lay-out de nossa página tinha uma foto grande e a capa do jornal ficara assim por alguns minutos:

orgulho e preconceito caoa

Só que, justo naquele domingo, houve a tragédia na boate Kiss e tivemos que mudar tudo. Abaixo, o extraordinário artigo de Nikelen Witter sobre um dos melhores livros de todos os tempos.

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A página inicial da primeira edição de 1813. Ironia desde o princípio: “É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de esposa”. (Clique para ampliar).

Publicado no Sul21 em 27 de janeiro de 2013

Por Nikelen Witter (*)

No final do século XVIII, uma jovem inglesa escreveu um romance. Não era algo incomum em sua época, nem era seu primeiro texto de ficção. Como era de costume, ela fez leituras para sua família que, depois de alguns debates, parece tê-lo aprovado. Sua intenção, inicialmente, era a de fazer um romance epistolar, algo muito em voga no período, mas as cartas minguaram dentro do texto, mesclando-se com a narrativa. O pai da jovem, acreditando no talento da filha mais nova, levou o manuscrito a um editor, que recusou a história. Este poderia ter sido o fim de First Impressions, título do romance recusado, mas, como qualquer escritor sabe: a primeira versão de um livro nunca é sua versão final. A jovem aspirante voltou a trabalhar seu texto, ao mesmo tempo em que escrevia outros. Em 1811, ela publicou seu primeiro romance e, aproveitando o sucesso deste, no dia 28 de janeiro de 1813, há 200 anos atrás, finalmente o texto anteriormente recusado chegou ao público. Tinha um roteiro melhor trabalhado, um texto mais perspicaz e um novo título: Pride and prejudice ou, em nosso idioma, Orgulho e preconceito. Nascia, assim, o romance mais popular de Jane Austen – uma das mais brilhantes escritoras inglesas – e, com ele, uma notoriedade que já perdura por duzentos anos.

Jane Austen: uma moça simples e, curiosamente, muito letrada

A autora

Quem nunca leu nada de Jane Austen pode acabar tendo uma ideia errada de seus leitores-amantes, vendo-os como cegos seguidores de um certo tipo de culto, que elegeu a autora inglesa como musa e deusa. A quantidade (e o tipo) de menções na mídia à escritora, por outro lado, pode fazer com alguns venham a imaginá-la como uma espécie de Norah Efron (**) da virada do século XVIII para o XIX. De fato, já conheci leitores que interpretaram seus livros superficialmente, como quem lê um roteiro hollywoodiano, acreditando que seus romances não passam um conjunto bem amarrado dos clichês do tipo moça encontra rapaz e vice-versa. E, desde sempre, houve aqueles que a acreditaram como autora de livros tipicamente femininos, contos conservadores para “mulherzinhas” sonhadoras. Contudo, nada poderia ser mais enganoso. Primeiro, porque nenhum fã de Austen deixará de lhe fazer críticas na mesma medida em que reconhece sua genialidade. Segundo, porque se as comédias românticas beberam em Austen, fique-se certo que ela nunca bebeu delas. Por fim, dispensar um grande escritor com base num conceito duvidoso de literatura de meninos e meninas, diz mais sobre o leitor do que sobre o livro em questão, então, melhor deixar pra lá.

Keira Knightley e Matthew MacFadyen: A adaptação mais famosa: a de Joe Wright, realizada em 2005

O fato é que Jane Austen continua, após dois séculos de existência de sua obra, um fenômeno tanto de crítica, quanto de público. O número impressionante de adaptações pelas quais seus livros são lembrados e recriados, porém, não é o suficiente para que se compreenda como inglesa de vida obscura tem conseguido manter tanta vitalidade. Arrisco a dizer que, para entender o fenômeno Jane Austen é preciso lê-la e, se me permitem, fazer isso mais de uma vez. O gênio de Austen é o de fazer muito com o mínimo. E tal talento exige um leitor capaz de divertir-se como quem observa pessoas pelos buracos das fechaduras, entendendo-as mais pelo que fazem e dizem, do que por longas apresentações retóricas sobre quem realmente são. Os livros da Jane Austen são como pinturas delicadas, dadas como um presente aos observadores atentos. Sem “efeitos bombásticos” (usando as palavras de Sir Walter Scott, seu grande admirador), Austen dominava como ninguém a arte de representar o cotidiano em suas grandezas e misérias, em sua beleza e mediocridade. O resultado é um espelho atemporal das relações humanas que ultrapassam em muito as relações amorosas entre homens e mulheres. Em Austen, o minúsculo da existência aparece como um caminho que, em qualquer época ou lugar, pode refletir o que somos e onde estamos. Sobretudo, o fato de que, na grande maioria das vezes, não conseguimos estar onde gostaríamos, apesar de nossas melhores intenções.

Elizabeth (Keira Knightley) e seu pai (Donald Sutherland): raro entendimento

Austen escrevia sobre pessoas e sobre gerações. Falava dos mais velhos acomodados a suas manias, controles, posições e fracassos. E escolhia como protagonistas jovens que precisavam abrir caminho ante tudo isso. Destes jovens, ela se ocupou mais das mulheres, criaturas sem qualquer poder ou destinação que não o casamento; muitas vezes, prisioneiras da ignorância, da vida sem perspectiva ou ilusões, assombradas pela decrepitude física (decretada antes dos 30 anos) e pela ruína econômica. Jane Austen colocava o amor como uma questão importante, mas o via por meio de um caleidoscópio, pois ninguém ama ou é amado solitariamente. O difícil relacionamento amoroso com a família na fase adulta é, para a autora, um tema tão forte quanto à busca de um amor companheiro para construir um novo núcleo familiar.

Porém, ledo engano dos que, sem a terem lido, imaginam-na como uma autora sentimental. Se bem que Mark Twain, que detestava seus livros – especialmente Orgulho e Preconceito –, talvez acreditasse nisso. Já Charlotte Brönte, autora de Jane Eyre, a acusava de ser fria, de não ter fogo ou paixão e classificava seus romances como insípidos. Minha leitura de Jane Austen a percebe como uma racionalista, até mesmo um tanto radical em seus termos. Isso é claro em Razão e sensibilidade e não menos em Orgulho e Preconceito. Os muito românticos podem ficar chocados, mas Jane Austen parece defender a ideia de que o amor é, antes de tudo, uma mistura de desejo, afeto e discernimento. A receita para o desastre está na falta de qualquer um destes. Claro que não se há de ler nenhuma declaração de amor em seus livros como a que Edward Rochester faz a Jane Eyre, porém, para Austen, o amor, mais que por palavras, é demonstrado por ações que nada exigem em troca. Numa sociedade tão apegada ao jogo de favores e cortesias, nada poderia ser maior que o desinteresse na retribuição, que a paz e felicidade do outro como único reconhecimento.

A casa dos Austen em Steventon: nada de herança para mulheres

Vida e morte

A biografia de Jane Austen é bem conhecida, quando não, esmiuçada para explicar a escritora e a impressionante longevidade e popularidade de sua obra. Houve críticos que, inclusive, se utilizaram de sua trajetória para opor-se a seus escritos. Ora, o que, afinal, uma solteirona provinciana poderia saber de amor, de casamentos e, especialmente, das universalidades do gênero humano?

Jane nasceu em 16 de dezembro de 1775, em Steventon, um vilarejo ainda hoje de aspectos rurais, ao norte do condado de Hampshire, no sul da Inglaterra. Originária da gentry, pequena nobreza rural, ela era oriunda de uma numerosa família, sendo a sétima filha do pastor George Austen e de sua esposa Cassandra, o mesmo nome de sua única irmã e confidente. O pai era também reitor e tutor de alunos, os quais recebia e educava em sua casa.

É difícil saber se por atenção às novas exigências da época quanto ao ensino das moças – nos últimos 50 anos do século XVIII, sob influência da burguesia ascendente, se passou a valorizar a educação feminina no mercado de casamentos – ou se por convicção professoral, o fato é que os Austen preocuparam-se em fornecer às duas filhas instrução de alto nível. Cassandra e Jane moraram com uma tutora em Southampton e, mais tarde, no internato de Reading. Sabe-se, porém, que o próprio pai foi um dos grandes educadores dos próprios filhos. Ele mantinha em sua casa uma ampla biblioteca e se orgulhava da família ser ávida na leitura de romances, além de outros tipos de literatura.

O manuscrito de Orgulho e Preconceito: leiloado por 5 milhões de reais em 2011. (Clique para ampliar).

É interessante notar que se as bibliotecas particulares já não eram nenhuma novidade por esta época, o estímulo à leitura, em especial de romances e pelas mulheres, estava ainda sob forte ataque. São bastante conhecidos os textos do período que criticam a chamada “fome por leitura”, a qual, no entanto, espalhava-se pelos alfabetizados num volume cada vez maior. Tais textos eram opositores à leitura feita “por qualquer um”, e acreditavam que nada poderia ser mais pernicioso para a vida de uma moça do que a leitura de romances. Os detratores do gênero acusavam-no de estar repleto de fantasias e aventuras absurdas, que só fariam adicionar à cabeça “fraca” das jovens desejos que nunca poderiam ser satisfeitos, mergulhando-as na melancolia. Pior, poderia fazê-las falhar com seus deveres de boas filhas, irmãs e esposas, tornando-as ávidas de sensações moralmente recrimináveis e passíveis de se lançarem nas mãos dos aproveitadores e inescrupulosos que rondavam as famílias. Em prol da segurança das jovens e das linhagens, devolveu-se grandemente uma literatura moralista, baseada em textos bíblicos, que tinha função de orientar as moças em direção à caridade e a conformação com a vida limitada, que todas tinham pela frente.

Alguns destes livros devem ter passado pela biblioteca do reverendo Austen e Jane os conhecia bem. Pode-se acreditar nisso porque determinadas ideias destes textos estão presentes em seus escritos. Afinal, Jane não se furtava em criticar romances com perspectivas irrealistas da vida ou das relações amorosas. Northanger Abbey, sua obra de juventude publicada postumamente, é justamente sobre as tolices das jovens que se deixam levar pelo imaginário dos romances. Por outro lado, Austen não era nenhuma entusiasta da longa e aplicada leitura dos moralistas. Em Orgulho e preconceito, este detalhe é inserido como parte da personalidade patética de pelo menos dois personagens: o infame Mr. Collins e Mary Bennet, a menos encantadora das cinco irmãs.

Cena de Becoming Jane, com Anne Hattaway.

Das leituras à escrita, Jane revelou precocemente o talento e o desejo de compor seus próprios textos. Pequenos esquetes representados pela família na reitoria, paródias da literatura da época em que ela exercitava seu humor e capacidade crítica, presentes igualmente nas longas cartas escritas para a irmã Cassandra, nos breves períodos em que ficavam separadas. Os biógrafos apontam que entre 1795 a 1799, Austen também teria desenvolvido o cerne de alguns de seus principais romances, os quais foram, depois, longamente retrabalhados. No início dos anos 1800, fala-se da existência de alguns pequenos interesses de cunho amoroso, porém, nenhum deles seguiu adiante. (Em 2007, esses quase enlaces de Jane Austen, foram costurados num único – Thomas Lefroy – pelo roteiro do filme Becoming Jane, que se utilizou de Orgulho e Preconceito para construir um argumento romântico, numa livre interpretação da vida da escritora).

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