Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXV – Almas Mortas, de Nikolai Gógol

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXV – Almas Mortas, de Nikolai Gógol

Tinha lido Almas Mortas quando adolescente, lá nos anos 70. O romance era o volume 42 da coleção Os Imortais da Literatura Universal, da Abril Cultural (livros vermelhos, capa dura, letras douradas, já viram?). Mas aquela velha tradução — mesmo sendo de autoria da ótima Tatiana Belinky — não se compara com o esplêndido trabalho de Rubens Figueiredo na edição recém lançada pela fundamental Editora 34.

Almas Mortas é um livro especialíssimo por diversas razões. Comecemos pelo fato de ser um romance inacabado. Explico: após publicar a primeira parte, Gógol tentou várias vezes completar o romance. Na segunda parte, ele demonstraria seu amor à Rússia e aos russos. Ele fez várias tentativas de escrevê-la e queimou várias vezes os manuscritos da mesma. O caso foi grave. Ele trabalhava um, dois anos e queimava. Escrevia mais e voltava a queimar tudo. Acho que o artista venceu. Ele não quis matar a primeira parte, dobrando-se a quem o criticara por ridicularizar seu país.

Em segundo lugar, há a modernidade. Na verdade, em muitos manuais de literatura o romance é qualificado como a primeira obra moderna da literatura russa. A leitura do livro confirma. O romance é moderno na criação de personagens nem bons nem maus, nem virtuosos nem exatamente corruptos, nem lindos nem feios, nem isso nem aquilo, nem gordos nem magros, como tantas vezes brinca Gógol. Durante a leitura, você esquece que aquilo foi escrito há quase dois séculos e com o romantismo ainda lacrimejando na Europa. Gógol concebeu uma obra que mostra a náusea da sociedade russa (e, por que não, de qualquer sociedade) através de uma história que se desenrola com extrema agilidade. Porque o enredo do livro, longe de ser um acessório, é um elemento importante. Vamos a ele SEM spoilers.

O hilariante Almas Mortas conta a história de Tchítchikov, um personagem que chega um dia à cidade de N. para empreender um negócio desconcertante. Ele busca estabelecer relações com os mais importantes proprietários de terra do lugar e faz a eles uma estranha oferta: comprar seus servos já falecidos a fim de que eles não precisem mais pagar ao Estado os impostos relativos àqueles. Ou seja, em linguagem do Brasil Imperial, ele comprava escravos mortos. As reações variam muito, mas ninguém sabe exatamente o motivo pelo qual Tchítchikov precisa das tais almas mortas.

As viagens de Tchítchikov dão-nos uma excelente visão da relação entre proprietários e servos e do funcionamento da economia da Rússia czarista. Mas há mais: de forma brilhante, Gógol cria alegorias, dando sentido a uma série de fatos aparentemente desconexos e de lógica escorregadia. Sob o manto de uma história cheia de humor e caricatura, de fervilhante energia, há outra realidade que o autor apenas nos deixa espreitar em momentos arrebatadores.

A resposta para a questão da compra de almas não é o ponto crucial do livro, mas contribui significativamente para criar uma atmosfera misteriosa em torno do personagem principal e de suas ações. Fundamental é o modo como Gógol retrata seus personagens. Tchítchikov é nobre na forma, mesquinho em pensamento. O cocheiro Selifán é bêbado e mentiroso. Nozdrióv é trapaceiro e escandaloso. Outros são corretíssimos e burros. Ou inteligentes. Ou corruptos. Enfim, uma fauna. São muitos personagens para descrevermos aqui, mas fica-se impressionado pela vivacidade deles. A gente devora o livro. Não há seres atormentados como em Dostoiévski. As criaturas de Gógol são mais amostras humorísticas de tipos sociais provavelmente existentes, acentuadas pela visão impiedosa do escritor.

Gógol ama descrever a figura do funcionário administrativo e retrata-o sempre de uma forma burlesca e satirizada. Todas as descrições apontam para uma sociedade extremamente burocratizada e de complexa hierarquia. Quando Tchítchikov chega à província, vai cumprimentar o governador, o vice-governador, o procurador, o presidente do tribunal, o chefe da polícia, os maiores donos de terra, os menores, os famosos alguéns, todo mundo. Ou seja…

O tema de Almas Mortas foi oferecido a Gógol por Púchkin. Os dois tinham-se conhecido em 1831. O seu relacionamento seria estreito e Gógol revelou a Púchkin os manuscritos do romance para serem avaliados. Púchkin esperava algo ainda mais cômico, mas aprovou o livro. Em 1842, os censores autorizaram a publicação do romance na Rússia e o escândalo, sobretudo entre as classes dirigentes, foi imediato. Acusaram Gógol de descrever uma Rússia falsa, muito pior do que ela seria. No livro, o país estaria afundado em tolice, ineficiência e corrupção.

Como já disse, a continuação de Almas Mortas foi destruída várias vezes. Naqueles anos, Gógol desenvolvera uma relação obsessiva com a religião. Sucessivas depressões levaram-no a recusar-se a ser tratado e alimentado, vindo a falecer em 1852, dez dias depois de ter queimado novamente o segundo tomo de Almas Mortas. Ainda hoje, gerações de leitores se perguntam como acabaria Tchítchikov. Um tanto cruelmente, podemos considerar a queima dos manuscritos de Gógol como seu último grande ato como escritor. Assim, ele nos legou uma obra incerta e ambígua. Sabemos que ele queria, nesta segunda parte, demonstrar a bondade do povo russo. Ele desejava melhorar a relação com quem o criticara… Ora, cremos que… Foi melhor deixar assim o herói canalha… A obra-prima está incompleta e isto é perfeito.

Trechos de uma carta de Nikolai Gógol:

Eu teria sido perdoado se [em ‘Almas Mortas’], tivesse retratado monstruosidades, mas por mostrar a vulgaridade não me perdoaram. O que assustou o homem russo foi a insignificância, mais do que os vícios e limitações. É um fenômeno impressionante! Um belo susto!

(…)

Quando eu comecei a ler para Púchkin os primeiro capítulos do livro, ele, que sempre rira com minhas leituras (ele era um apreciador do riso), foi aos poucos ficando soturno. Quando a leitura terminou, ele articulou em tom de voz melancólico: “Meu Deus, como é triste a nossa Rússia”.

Ele (Tchítchikov) percorre a nossa terra russa, encontra gentes de todas as condições, nobres e gente “pequena”. Se eu o escolhi foi para evidenciar não os méritos e as virtudes do povo russo, mas sim os seus defeitos e vícios.

É em vão que o senhor se indigna com o tom imoderado de alguns dos ataques a ‘Almas Mortas’. Isso tem seu lado bom. Por vezes, é necessário ter contra si os amargurados.

A apresentação de eventos ocorridos provam o caso muito melhor do que simples palavras e verborragia literária.

Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852)

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Esquerda direita esquerda direita

Esquerda direita esquerda direita

Esquerda direita esquerda direita (Links rechts links rechts):

Se alguém de esquerda pensa
que alguém de esquerda,
só por ser de esquerda,
é melhor que alguém de direita –
ele é preconceituoso a ponto
de ser como alguém de direita
Se alguém de direita pensa
que alguém de direita
só por ser de direita
é melhor que alguém de esquerda
ele é preconceituoso a ponto
de ser radical de direita

Como me oponho
aos de direita
e aos radicais de direita,
também me oponho
aos de esquerda
que pensam
ser melhores
que os de direita
e por me opor a eles
às vezes penso
que tenho razões de pensar
que sou melhor do que eles

Erich Fried (1921-1988) – Tradução de Victor Gans

Eric Fried

E a resposta inteligente e zombeteira de Marcos Nunes nos comentários:

No Centro

Ele está parado ali
naquele lugar
que escolheu

Aqui, ele diz
é o centro do mundo
onde estou só

Outros passeiam
indo à esquerda
à direita

O centro, no entanto
é só dele, o centro
sou eu, ele diz

O mundo só gira
para se manter
no mesmo lugar

Parado no centro
estou em movimento
filosoficamente correto

Tudo que ele diz
diz para si mesmo
no centro ele é tudo

Outros, como ele
ficam parados
há centro em todo lugar

Não falam uns
com os outros
onde estão não é preciso

Somente os que andam
à esquerda ou à direita
se debatem sobre direções

Quem está no centro
passeia em si mesmo
ele diz, e quase sorri

Parado ali
naquele lugar
alguém o colheu

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Aqueles que queimam livros, de George Steiner

Aqueles que queimam livros, de George Steiner

Este curto e brilhante ensaio de George Steiner, recém lançado pela Âyiné, divide-se em três partes: Aqueles que queimam livros, O povo do livro e Os dissidentes do livro.

Steiner é um mestre absoluto. Erudito e metódico, ele é autor de um impressionante número de clássicos para os estudiosos de humanidades — entre os quais Nenhuma Paixão Desperdiçada, Lições dos Mestres e este livro que ora comento.

Steiner não é um otimista, mas dá alguns remédios: os livros seriam um meio seguro para nos tornamos melhores. Pode parecer algo já muitas vezes dito, mas o que vale é a argumentação certeira de Steiner. Li o livro fazendo inúmeras anotações, não dá para abrir meu exemplar sem que se vejam frases ou parágrafos sublinhados. Tudo parece fundamental, necessário, perfeito.

A primeira parte trata do encontro, da relação entre leitor e livro. Esta é imprevisível, vulnerável à mudanças de espírito ou de idade, muito semelhante às afinidades mediadas por Eros.

O encontro com o livro, assim como aquele encontro com o homem ou a mulher destinada a mudar nossas vidas, pode ser completamente casual. O texto que vai nos converter a uma fé, que vai nos fazer aderir a uma ideologia, que dá a nossa existência um fim ou um critério, pode estar a nos esperar na estante de livros de ocasião, de usados, com desconto. Talvez empoeirado e esquecido, ao lado do livro que procurávamos. (…) Um texto é sempre capaz de ressuscitar. Walter Benjamin ensinava, Borges construiu sua mitologia: um livro jamais é impaciente. Ele pode esperar séculos para despertar um eco vivificante.

A segunda parte trata dos judeus e de seu amor pelos livros. Trata do fato de um religioso judeu ter de ler e estudar a Torá, de ser um povo que tem um lápis na mão ao ler um livro. Também fala na resistência da igreja católica à invenção da imprensa. A invenção de Gutenberg serviu muito mais aos protestantes, pois os católicos desejavam seguir com a informação oral, pelos padres.

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A terceira parte fala sobre a tirania do celular, o livro digitalizado e sobre as condições políticas e culturais que favorecem ou não o livro. Fala-se da postura dos escritores e filósofos nazistas — habitantes de um país altamente culto e produtivo mesmo durante Hitler –, de Wagner, da variedade demencial de lançamentos de livros — 121 mil novos títulos são lançados no Reino Unido a cada ano — e de sua efemeridade, pois se não vendem vão para o balcão de ofertas em 20 dias. Fala-se também na relação entre censura — a grande propulsora de metáforas, segundo Borges — e criatividade.

Sem dúvida, um livro de um mestre, um clássico moderno.

George Steiner (1929) | Wikimedia Commons

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A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, de José Eduardo Agualusa

A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, de José Eduardo Agualusa

Daniel, o narrador, sonha com pessoas que não conhece. Moira fotografa os próprios sonhos. Hélio construiu uma máquina de filmar os sonhos de seus pacientes. Hossi passeia por pelos sonhos alheios. Karinguiri sonha com utopias.

A Sociedade dos Sonhadores Involuntários fica um degrau abaixo de Teoria Geral do Esquecimento e de O Vendedor de Passados, o que é um elogio generalizado a estas três obras de Agualusa. Poético — claramente influenciado por García Márquez — e violento, é um gênero de literatura que cabe ao país sem perdão que talvez nos tornemos nos próximos quatro anos.  Hossi teve participação na Guerra Civil que sucedeu a independência de Angola, Karinguiri atua na luta pela democracia.

Eu fui um jovem que amava as grandes frases e citações. Sublinhava tudo. Tentava lembrar depois. Se tivesse lido este livro em minha juventude, eu o amaria pelas belas imagens e expressões perfeitas.

Como um avião atrasado, a trama passa muito tempo taxiando, isto é, demora a se colocar na pista para decolar. Só ganha velocidade quando o narrador nada na frente de hotel de Hossi e encontra uma máquina fotográfica boiando na água, com fotografias que incluem uma mulher nua. Daniel descobre que a máquina pertence a Moira Fernandes, a mulher que o visita em sonhos. E ele vai ao encontro dela na África do Sul para lhe devolver a máquina e tentar entender os próprios sonhos com gente que nunca conheceu.

Enquanto isso, sua filha é presa pelo regime de José Eduardo dos Santos e faz uma greve de fome — baseada num episódio real –, despertando um país que dorme acordado. Personagem fundamental do romance também é Lucrécia, ex-mulher e mãe da filha de Daniel, Karinguiri. Lucrécia é uma filha de um poderoso do regime. Ela culpa Daniel pela filha contestadora. Cada um de seus telefonemas rende…

Um dos melhores e mais originais livros de Agualusa.

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Sobre o dia 7

Sobre o dia 7

Trabalhar com livros já é um ato político nesse país, seja você autor, editor, tradutor, revisor, da equipe da editora, livreiro. Seja você leitor. Como tal, a Livraria Bamboletras não poderia deixar de pedir para votarmos domingo pensando em diálogo e liberdade, jamais em censura e cerceamento.

Afinal, somos a livraria de todos os gêneros. E esta é uma frase de sério duplo sentido.

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Um trecho de Karl Ove Knausgård

Um trecho de Karl Ove Knausgård

Há um trecho de “Um Outro Amor (Minha Luta 2)”, de Karl Ove Knausgård, que só é bem entendido pelos amantes de futebol. O autor estava jogando uma pelada quando caiu violentamente sobre o próprio ombro.

Como as dores eram lancinantes, seus colegas levaram-no a um hospital. Ele ficou aguardando por uma hora numa sala de espera — sim, em Estocolmo, Suécia — sentindo dores horríveis e sem conseguir uma posição confortável. Um inferno.

Chega então a médica e diz que provavelmente ele quebrara a clavícula, mas que ela teria que examiná-lo melhor. Sai da sala e retorna com uma tesoura na mão.

— O que a Sra. vai fazer?

— Vou cortar sua camiseta porque com essas dores que Sr. sente não é adequado mexer os braços.

— Cortar a minha camiseta da Seleção da Argentina?

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Passamos dos 4000 posts!

Passamos dos 4000 posts!

E a esmagadora maioria deles têm textos. Não são preguiçosos como este…

Homenagem de Jonathan Burton ao quadro de George Seurat “Uma Tarde de Domingo na Ilha de Grande Jatte“.

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Mudança, de Mo Yan

Mudança, de Mo Yan

Maravilhoso livrinho agridoce do chinês Mo Yan. Mudança só é passível de ser encontrado em sebos porque se trata de uma edição da pranteada Cosac Naify. Uma pena.

Bem, Mo Yan é um mestre. Mudança é um livro de memórias. Porém, além de lançar flashes biográficos com muito humor, o autor se propõe a mostrar algumas mudanças ocorridas na China durante a segunda metade do século XX. Digamos que ele vai da revolução à corrupção (última linha do livro).

Alternando com histórias de dois colegas de escola, Mo Yan cria um retrato singular e simpático da vida na China. Retrato singular e simpático da DIFÍCIL vida na China. É curiosa a participação que dois caminhões soviéticos Gaz 51 têm na narrativa. Delicadamente, em tom menor, Yan conta sem ênfases ou dramas como saiu do campo para o quartel e depois para a literatura.

Em 2012, Mo Yan (1955) se tornou o primeiro cidadão chinês a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Ele nasceu na província de Shandong, numa família de trabalhadores rurais. Deixou a escola durante a Revolução Cultural e, com 20 anos, alistou-se no Exército Popular de Libertação, as forças armadas do país. Nessa época começou a escrever. Seu pseudônimo foi escolhido logo no início da carreira e significa “não fale”. Numa entrevista recente explicou que o nome se refere ao período revolucionário da década de 1950, quando seus pais o instruíam a não falar tudo o que pensa quando em público.

A Cia. das Letras publicou faz poucos anos o também elogiadíssimo As Rãs.

Mo Yan: mestre.

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Um Outro Amor (Minha Luta 2), de Karl Ove Knausgård

Um Outro Amor (Minha Luta 2), de Karl Ove Knausgård

Neste segundo volume, lá perdido no texto, Knausgård diz que “apenas está tentando ser uma pessoa decente”. E céus, como é complicado! É óbvio que a tentativa dele me atinge profundamente, página a página, linha a linha. Difícil largar o livro. E aí a gente entende porque o título geral da obra é “Minha Luta”. 5 livros já foram traduzidos. Falta o sexto.

Impressiona a enorme capacidade do autor em transformar a vida comum em grande literatura. Além disso, a semelhança que vejo entre os pensamentos, modos, atitudes da criança, adolescente e adulto lá na fria Noruega e eu e as pessoas que conheço aqui no Brasil me deixam muito pensativo.

Depois de A Morte do Pai, neste segundo livro de sua autobiografia precoce, Karl Ove Knausgård está vivendo o início de seu segundo casamento e terá três filhos com Linda, uma poetisa sueca com aspirações à atriz pela qual teve súbita paixão. No volume, ele dá novo salto no tempo, indo direto para o período posterior ao final do primeiro casamento, quando decide sair da Noruega e ir morar na Suécia, praticamente de um dia para o outro.

Mas nada é tão fácil quanto parece. O casal discute e se irrita muito, a existência dos filhos muda suas vidas e os pressiona de todos os modos. Todos os problemas conjugais são descritos com a habitual franqueza do autor, que se irrita com a mulher e as crianças, que quer muitas vezes se isolar, que sofre humilhações que só ele nota…

Há também problemas de adaptação ao novo país. O autor chama os suecos de estúpidos, pensa que o politicamente correto adotado pelo país, com suas regras e posturas sociais, sufocam a individualidade. Knausgård é muitas vezes visto como um selvagem, tão notáveis são as diferenças entre as posturas norueguesas e suecas.

Este volume consegue o milagre de ser ainda mais fluido que o primeiro. Há muitos e bons diálogos, tanto entre o casal como entre seu melhor amigo Geir e grupos de amigos. Aliás, a arte de Knausgård torna bons quaisquer diálogos.

Também permanecem as digressões e saltos no tempo. Como “Em busca do tempo perdido” é impossível prever como será o próximo capítulo. O que novamente surpreende é a narrativa sem reservas — sem a menor intenção de esconder eventuais pontos escuros, egoístas e violentos — e a onipresença de fatos onde o autor decididamente não brilha.

O motivo do sucesso internacional? Ora, os temas são universais e humanos, narrados com notável franqueza, expondo a si, a mulher, os filhos e os amigos de uma forma pouco usual. Quem não morre de amor por seus filhos, ao mesmo tempo que se vê sufocado por eles, quem não se desespera? Knausgård descreve tudo isso com ritmo, fazendo-nos mergulhar em vidas completas, profissionais e íntimas. Dele e dos amigos.

O título sugere algum enredo romântico e ele existe. Ele, a dor, as hesitações, as idas e vindas preenchem cada espaço.

Recomendo fortemente.

Karl Ove Knausgard e sua esposa Linda | Fotos: Divulgação

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Tchékhov esteve no inferno e voltou para contar

Tchékhov esteve no inferno e voltou para contar

Do publico.pt

Tchékhov na ilha de Sacalina, em 1890: o escritor deixou a família e os amigos estupefactos ao anunciar uma viagem à temível colónia penitenciária do regime czarista

A perigosa viagem de Tchékhov ao lugar maldito do Império do Czar, para estudar a vida dos condenados a trabalhos forçados, mantém-se episódio mais estranho da vida do grande autor russo. “A Ilha de Sacalina” acaba de ser publicado (também no Brasil).

Em 1889, com o agravamento dos seus sintomas de tuberculose, o ainda jovem médico Tchékhov (1860-1904) – então já um conhecido autor nos meios literários russos – torna-se pessimista em relação ao seu estado de saúde. Nesse ano, morre-lhe um irmão vitimado pela mesma doença. Após assistir ao enterro, Tchékhov decide iniciar uma série de viagens aparentemente sem rumo (segundo disse mais tarde, essa constante mudança de ares salvou-lhe a vida). Mas é em Janeiro do ano seguinte que deixa a família e os amigos estupefactos, ao anunciar uma viagem ao longínquo Leste da Rússia, à temível colónia penitenciária dos desterrados do Império Czarista, no oceano diante da costa siberiana, a ilha de Sacalina. “Em redor o mar, no meio o inferno.”

Tchékhov prepara a viagem durante meses. Procura toda a informação disponível e lê o que encontra escrito pelos exploradores, quer sejam geógrafos, agrónomos, cartógrafos ou navegadores. O amigo e editor Suvórin empresta-lhe os rublos necessários para essa viagem arriscada e perigosa. Por essa época, ainda não existia o comboio transiberiano, e a viagem teria de ser feita de carruagem puxada por cavalos através da taiga e das estepes; o barco até à ilha seria a parte mais fácil. Contava demorar 30 dias de carruagem e o resto na “coberta de um navio”. Mas as coisas não correram assim: entre inesperadas paragens e incidentes, demorou 11 semanas a chegar ao porto onde subiria a bordo do barco que o levaria à ilha. É nessa cidade de Nikolaievsk, onde os habitantes vivem na “indolência e na bebedeira”, que ele inicia a narrativa, a 5 de Julho de 1890. Espera três dias até que o barco levante ferro: durante um almoço, ouve falar de um prestidigitador que chegou à cidade e de “um japonês que arranca os dentes com os dedos”. Mas as primeiras impressões a bordo parecem anunciar bons presságios: “Farto de leituras que só me falavam das tempestades e dos gelos, esperava encontrar a bordo caçadores de baleias com vozes roucas e a cuspirem tabaco de mascar; no entanto, só encontrei pessoas de estatuto social bem elevado.”

Mas não sabia o que o esperaria, apesar das muitas leituras. O seu espírito mantinha-se alerta e receptivo ao que os ventos e as ondas lhe trouxessem. O motivo da viagem era estudar o sistema prisional de modo científico, pagando assim, acreditava, o tributo que devia à medicina, outra das suas paixões para além da literatura. No entanto, receia ter cometido uma frivolidade, pois não leva cartas de recomendação, ou de autorização, apenas um documento que o apresenta como jornalista, mas do qual ele nunca fará uso pois não é sua intenção escrever alguma coisa do que vir em jornais. Passados três dias de mar, aproxima-se da ilha. Aquilo é “terra incógnita”. “O sentimento que se apossa de nós é sem dúvida semelhante ao de Ulisses, ao navegar num mar desconhecido e pressentindo vagamente que ia encontrar seres fabulosos.”

Um rebanho numa cloaca

Desembarca no Norte da ilha, sabe que “Sacalina não tem clima, só mau tempo”. Mais tarde consultará os registos meteorológicos para ficar a saber que a temperatura média anual da região é de 0,1º centígrados. Nos primeiros tempos fica hospedado em casa de um médico “parecido com Ibsen” que não gosta das autoridades da ilha.

Tchékhov consegue então obter autorização do governador para visitar todos os presídios e falar com os prisioneiros e os condenados a trabalhos forçados, à excepção dos presos políticos. Manda então imprimir dez mil exemplares de um questionário que ele próprio idealizou e mete mãos (e pés) ao trabalho. Percorre as partes Norte e Sul da ilha durante cerca de três meses. Não se limita aos inquéritos que faz aos presos e às suas condições. O livro, que são as suas notas de viagem, apresenta descrições da flora, da fauna, dos tipos de solos, das vias de comunicação, das paisagens, do quotidiano das populações (incluindo as nativas), da hipocrisia e da incúria dos funcionários, do sistema de servidão aproveitado pelos colonos, etc. E conclui que tudo é deplorável e pouco melhor do que o tratamento que é dado aos condenados. “(…) numa cela exígua onde se encontram uns vinte evadidos recentemente recapturados: esfarrapados, sujos e acorrentados, trazem nos pés sapatos disformes atados com trapos ou cordas; de um lado do crânio têm cabelos desgrenhados; do outro, os cabelos rapados há alguns dias já começam a crescer. Estão todos muito magros – parecem animais na muda da pele.”

Mas o “investigador” é também já o escritor; as histórias narradas, no seu estilo conciso, interrompido de vez em quando para introduzir descrições e reflexões, trazem agarradas as personagens tchekhovianas – alguns dos casos descritos são autênticos contos. Nos retratos que faz, quer de carcereiros, funcionários ou prisioneiros – os que vivem “esta vida de rebanho encerrado numa cloaca” – está já o Tchékhov da crítica social, o denunciador de injustiças, o que se insurge contra a “desproporção das penas em relação aos crimes”, como notam os tradutores (trabalho exímio) no interessante e informado prefácio que escreveram.

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Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (III): Mikhail Bulgákov, o homem que recebia ligações de Stálin

Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (III): Mikhail Bulgákov, o homem que recebia ligações de Stálin

Stálin tinha real interesse por arte, costumando ir a concertos, óperas e peças de teatro. Foi ele, pessoalmente, quem assistiu, reprovou e fez proibir uma ópera de Shostakovich, por exemplo. Também assistiu quinze vezes — não é exagero — à peça Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov. Simplesmente adorou. Stálin também costumava telefonar de madrugada para assessores e outras pessoas quaisquer com quem tivesse assuntos a tratar. Sofria de insônia e, com sua fama, é claro que assustava quem recebia as ligações. Telefonou uma vez para Bulgákov após este lhe enviar quase uma centena de cartas pedindo permissão para emigrar. A lenda diz que foram várias ligações, mas uma aconteceu com certeza.

O conteúdo desta ligação é bem conhecido. Bulgákov ficou com medo e teve receio de insistir quando Stálin disse que preferia que ele permanecesse na URSS. O líder prometeu-lhe um emprego em um teatro, o que acabou acontecendo. Assim ele encontrou trabalho no Teatro da Juventude de Trabalho de Moscou (TRAM), e depois no Teatro de Arte de Moscou. Neste século, o dramaturgo espanhol Juan Mayorga escreveu uma peça que começa com o famoso telefonema de Stálin para Bulgákov, chamada Cartas de Amor para Stálin.

Leia mais:
— Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (I): Dmitri Shostakovich
— Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (II): Serguei Prokofiev

Anos depois da conhecida ligação, Bulgákov tentou se tornar um escritor “soviético”, dentro dos padrões do realismo socialista. Em 1939, ele começou a trabalhar em uma peça laudatória ao líder. Mas Stálin, ao ler os esboços, parece não ter ficado satisfeito e, sem falar com o autor, indiretamente proibiu Bulgákov de terminá-la, não permitindo o acesso do escritor e de sua esposa aos arquivos em Batumi, cidade georgeana onde Stálin iniciou sua vida política. A peça era cheia de clichês socialistas, nada era vivo. E o Secretário-Geral sabia como Bulgákov podia escrever.

Nós também. Bulgákov morreu em 1940 e sua maior obra, O Mestre e Margarida, veio a público somente em 1966-67. Ou seja, ela permaneceu desconhecida de seus contemporâneos. Mas ele já tinha publicado peças de teatro e outras obras em prosa, como as extraordinárias novelas Os Ovos Fatais e Um Coração de Cachorro. Sua arte é de absoluto virtuosismo. Se o campo onde se sente melhor é o da sátira corrosiva, ele também sabia descrever cenários bíblicos, como fez em partes de O Mestre.

Mikhail Bulgákov (1891-1940) nasceu em Kiev, na Ucrânia, que era então parte do Império Russo. Ele foi o primeiro filho de Afanasiy Bulgákov, professor da Academia Teológica de Kiev. Seus avôs eram clérigos da Igreja Ortodoxa Russa. Em 1916, formou-se médico na Universidade de Kiev e depois, junto com seus irmãos, alistou-se no Exército Branco. No início da Primeira Guerra Mundial, como médico voluntário na Cruz Vermelha, foi imediatamente enviado para o front, onde foi gravemente ferido em duas ocasiões.

Após a Guerra Civil, com a derrota dos brancos e a ascensão do poder dos soviéticos, sua família emigrou para o exílio em Paris.  Apesar de sua situação relativamente privilegiada durante os primeiros anos da Revolução, Bulgákov viu-se impedido de emigrar da Rússia devido a um insistente tifo. Nunca mais viu sua família.

As lesões da guerra tiveram graves efeitos sobre sua saúde. Para aliviar sua dor crônica, especialmente no abdômen, foi-lhe administrada morfina. Ficou viciado, mas parou de injetá-la em 1918. O livro Morfina, publicado em 1926, atesta a situação do escritor durante esses anos. Em 1919, ele decidiu trocar a medicina pela literatura.

Elena Shílovskaya

Em 1932, Bulgákov casou-se com Elena Shílovskaya, que seria a inspiração do personagem Margarida de sua novela mais famosa. Durante a última década de sua vida, Bulgákov trabalhou em O Mestre e Margarida, além de escrever peças, fazer revisões, traduções e dramatizações de romances. Alguns foram para o palco, outros não foram publicados e ainda outros foram destruídos.

Para quem hoje lê Bulgákov, o fato do escritor não apoiar o regime comunista é apenas uma informação complementar. O que interessa é que ele foi o mais brilhante dos gozadores, dos zombeteiros. O autor ria da burocracia e dos governantes. Porém, como dissemos acima, Stálin adorava de uma de suas peças. Não obstante o amor do chefe, o escritor suportou grande assédio da NKVD, que chegou a procurá-lo em casa e prendeu-o em mais de uma ocasião.

Muitas evidências sobreviveram sobre a atitude do escritor em relação ao poder soviético na década de 1920.  Entre eles há artigos na imprensa branca e materiais de interrogatórios. Porém, curiosamente, os brancos o criticavam por ser pró-revolução e os revolucionários pelo motivo contrário. Para os comunistas, sua arte era um “brancovanguardismo” e ele seria um “reacionário social”; para os brancos, ele seria apenas um vendido. É curiosa a posição de admiração de Stálin, apesar da polêmica. Muitos escritores que não apoiaram a liderança de Stálin foram presos. Bulgákov não.

Bulgákov morreu de um problema renal em 1940, aos 48 anos.

Dois assessores do diabo numa escultura em Moscou: o gato Behemoth e Korovin com seu monóculo quebrado

Em vida, Bulgákov ficou conhecido principalmente pelas obras com as quais contribuiu para o Teatro de Arte de Moscou de Konstantín Stanislavski. Foram muitas comédias e adaptações de romances para o teatro, casos, por exemplo, de Dom Quixote e Almas Mortas. Bulgákov também escreveu uma comédia grotesca fazendo com que Ivan, o Terrível, aparecesse em Moscou na década de trinta. Um sucesso.

Em meados de 1920, Bulgákov conheceu os livros de H. G. Wells e, profundamente influenciado, escreveu várias histórias com elementos de ficção científica. Um exemplo é a extraordinária novela Um Coração de Cachorro, onde Bulgákov critica abertamente — e com impressionante cinismo e ironia — a primeira década do poder soviético. Outro é a hilariante Os Ovos Fatais.

Morfina merece menção especial. Trata-se do diário de um companheiro do protagonista, o médico Poliakov. É uma crônica da autodestruição, escrita em termos perturbadores. Ele escreve no início do livro: “Eu não posso ajudar a louvar quem primeiro extraiu a morfina das cabeças das papoulas”. No mais, é uma história clínica escrita por um mestre. “Como viciado, eu declararia que o ser humano só pode funcionar normalmente após uma injeção de morfina, mas eu era médico”.

A grande obra-prima

A novela satírica O Mestre e Margarida, escrita para a gaveta, sem chances ou tentativas de publicação durante sua vida e que foi publicada por sua esposa vinte e seis anos após a morte do escritor, certamente lhe garante a imortalidade literária. Por muitos anos, o livro só pôde ser obtido na União Soviética como samizdat, antes de sua aparição por capítulos na revista Moskva. É o grande romance do período soviético e que contribuiu para criar várias expressões do dia a dia russo.

Sabem aqueles livros que valem por cada palavra? Que é engraçado, profundo, social, histórico, existencial e grudento? Pois O Mestre e Margarida satisfaz todas as condições acima. A influência do livro pode ser medida pelo reflexo da obra não somente na cultura russa, mas na mundial. O livro Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, tem clara e confessa influência de Bulgákov; a letra da canção Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, foi escrita logo após Mick Jagger ter lido o livro, assim como Pilate, do Pearl Jam, e Love and Destroy da Franz Ferdinand, a qual é baseada no voo de Margarida sobre Moscou. Mas nem só a literatura e o rock homenageiam Bulgákov: o compositor alemão York Höller compôs a ópera Der Meister und Margarita, que foi apresentada em 1989 na ópera de Paris e lançada em CD em 2000.

A recente e excelente edição da 34.

O romance começou a ser escrito em 1928. Em 1930, o primeiro manuscrito foi queimado pelo autor após ver censurada outra novela de sua autoria. O trabalho foi recomeçado em 1931 e finalizado em 1936. Sem perspectiva alguma de publicação, Bulgákov dedicou-se a revisar e revisar. Veio uma nova versão em 1937 e ainda outra em 1940, ano de sua morte. Na época, apenas sua mulher sabia da existência do romance.

Uma versão modificada e com cortes da censura foi publicada na revista Moscou entre 1966 e 1967, enquanto o samizdat publicava a versão integral. Em livro, a URSS só pôde ler a versão integral em 1973 e, em 1989, a pesquisadora Lidiya Yanovskaya fez uma nova edição — a que lemos atualmente — baseada em manuscritos do autor.

Uma amiga russa me escreve por e-mail: “Eu tinha uma colega de quarto que lia apenas O Mestre e Margarida. Ela terminava e voltava ao início. E dava gargalhadas e mais gargalhadas. Na Rússia o livro foi tão lido que surgiram expressões coloquiais inspiradas por ele. A frase dita por Woland, Manuscritos não ardem, é usada quando uma coisa não pode ou não será destruída. Outra é Ánnuchka já derramou o óleo, para dizer que o cenário de uma tragédia está montado”.

As cenas de Pôncio Pilatos, a do teatro, a do belíssimo voo de Margarida e a do baile são citadas aqui e ali com enorme admiração. E a fama é justa.

A ação do romance ocorre em duas frentes, alternadamente: a da chegada do diabo a Moscou e a da história de Pôncio Pilatos e Jesus, com destaque para o primeiro. O estilo do romance varia espetacularmente. Os capítulos que se passam em Moscou têm ritmo vivo e tom de farsa, enquanto os capítulos de Jerusalém estão escritos em forma clássica e naturalista. Em Moscou, o demônio (Woland) vem acompanhado de uma improvável claque composta por Korovin — altíssimo com seu monóculo rachado –, o enorme gato Behemoth (hipopótamo, que rima com gato em russo), o pequeno Azazello e a bruxa Hella, sempre nua.

Arte: Elena Martynyuk

Moscou surge como um caos: é uma cidade atolada em denúncias e na burocracia, as pessoas simplesmente somem e há comitês para tudo. No livro, o principal comitê é uma certa Massolit (abreviatura para sociedade moscovita de literatura, que também pode ser interpretada como literatura para as massas) onde escritores lutam por apartamentos e férias melhores. Há também toda uma incrível burocracia, tão incompreensível quanto as descritas por Kafka, mas que formam uma atordoante série de cenas hilariantes.

Naquela Moscou o diabo está em casa e podem deixar tudo com ele, pois Woland e sua trupe demonstram notável criatividade para atrapalhar, alterar, sumir e assombrar. O escritor Bulgákov responde sempre à altura das cenas criadas. A cena do teatro onde é distribuído dinheiro e a do baile — há ecos dos bailes dos romances de Tolstói — são simplesmente inesquecíveis. Falei em Tolstói, mas a base de criação de Bulgákov é outro cômico ucraniano: Gógol.

O livro pode ser lido como uma comédia de humor negro, como alegoria místico-religiosa, como sátira à Rússia soviética ou como crítica à superficialidade das pessoas. Há mais pontos bem característicos: Bulgákov jamais demonstra nostalgia da Rússia czarista — apenas da religião — e Woland não está em oposição direta a Deus. Ele é como um ser que pune os maus e a covardia — é frequente no livro a menção de que a covardia é a pior das fraquezas. E as punições de Woland são criativas, desconcertantes.

Em 2006, o Museu Bulgákov, em Moscou, foi vandalizado por fundamentalistas. O museu fica no antigo apartamento de Bulgákov, ricamente descrito no romance e local dos mais diabólicos absurdos. Os fundamentalistas alegavam que O Mestre e Margarida era um romance satanista.

Mikhail e sua Margarida

Nas imagens finais de O Mestre, Mikhail Bulgákov dá uma dura avaliação do mundo que encontrou. Ele seria infernal e sem esperança. Era óbvio que as tentativas de se tornar parte do mundo soviético falharam. Ele não entendia aquele novo idioma.

Obs.: A tradução de Zoia Prestes, para a Alfaguara, é bastante superior à antiga, lançada lá por volta de 1993 pela Ars Poetica. Mas a mais recente, de Irineu Franco Perpétuo, para a Editora 34, é ainda melhor.

~ Curiosidades ~

A venda da alma

Sabe-se que Bulgákov foi muitas vezes ao Bolshoi para ver e ouvir a ópera Fausto, de Charles Gounod. Esta ópera sempre o animava, ele voltava feliz para casa. Mas, um dia, Bulgákov voltou do teatro em estado muito sombrio. Ele tinha começado a escrever sua peça sobre Stálin, Batumi. Bulgákov reconheceu-se na imagem de Fausto. Como escrevemos acima, a peça jamais foi concluída por ter sido indiretamente reprovada por Stálin.

Personagem desaparecido

Em 1937, nos 100 anos de aniversário da morte de Pushkin, vários autores apresentaram peças dedicadas ao poeta. Entre elas, havia uma de Bulgákov. Alexander Pushkin distinguia-se das obras de outros autores pela ausência do personagem principal. Bulgákov acreditava que a aparição do homenageado no palco tornaria tudo vulgar e insípido. Sua peça foi considerada a melhor daquele ano.

Tesouro

No romance A Guarda Branca, Bulgákov descreveu com bastante precisão a casa em que morara em Kiev. Lá, haveria um tesouro. Os novos proprietários da casa quase a derrubaram, quebrando paredes ao tentar encontrar o dinheiro descrito no romance. É óbvio que não encontraram nada e ainda ficaram irritados com o escritor.

História de Woland

Woland recebeu seu nome a partir do Fausto de Goethe. No Fausto, ele é citado apenas uma vez, quando Mefistófeles pede para que espíritos malignos abram espaço pois “O nobre Woland está chegando!” Em outros Faustos ele aparece como Faland ou Phaland. A primeira edição de O Mestre continha uma descrição detalhada (15 páginas manuscritas) de Woland. Esta descrição está perdida. Além disso, na versão inicial, Woland era chamado Astaroth (um dos demônios mais altos do inferno, de acordo com a demonologia ocidental). Mais tarde, Bulgákov o substituiu.

O protótipo de Behemoth

Em russo, diz-se Begemot. O ultrafamoso assistente de Woland tinha um protótipo real, só que este não era um gato, mas um cachorro: o grande cão preto de Bulgákov chamava-se Behemoth. Esse cachorro era muito inteligente. Uma vez, quando Bulgákov estava comemorando o Ano Novo com sua esposa, logo após o relógio de parede dar doze badaladas, o cachorro também latiu 12 vezes, embora ninguém lhe tivesse ensinado.

Escultura de Behemoth em Kiev | Wikimedia Commons

Memória

Desde os primeiros anos de vida, Bulgákov demonstrou possuir uma memória excepcional. Lia muito. Diz a lenda que ele leu tantas vezes o romance Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, que o sabia de cor.

Coleção

Bulgákov tinha todos os ingressos de teatro — peças, ópera e concertos — a que compareceu.

Crítica soviética

O escritor também colecionava, coladas em um álbum, recortes de jornais e revistas com críticas de suas obras. Dava ênfase às mais devastadoramente hostis. De acordo com Bulgákov, ali havia 298 críticas negativas e apenas 3 elogiosas.

Defesa de Stanislavski

A primeira produção no Teatro de Arte de Moscou de Os Dias dos Turbin foi garantida por Konstantín Stanislavski. Ele simplesmente afirmou que, se a peça fosse banida, fecharia o teatro.

Stálin e Os Dias dos Turbin

Stálin gostava muito da peça e assistiu-a peça pelo menos 15 vezes, aplaudindo com entusiasmo desde o camarote destinado a membros do governo. Oito vezes ele desceu para falar com os artistas após a peça, a fim de incentivar a necessidade da luta política na literatura.

Uma das últimas fotos. Mikhail Bulgakov, com sua esposa Elena Shilovskaya

(*) Com pesquisa de Elena Romanov

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXIV – Anna Kariênina, de Liev Tolstói

KariêninaEm meio a leitura fiz a seguinte anotação:

Li rapidamente um terço do livro de 814 páginas. Incrível como minha lembrança do romance era distorcida. É ainda melhor do que eu lembrava. Tolstói não é aquele estilista perfeito — usa estranhas pontuações e repete palavras tal como o tradutor Rubens Figueiredo (excelente) referiu no prefácio. Por exemplo, nas páginas 241-242 há um parágrafo de quase uma página onde a palavra “camponeses” aparece 15 vezes. Sem problemas, o homem sabe contar uma história como ninguém. Tais repetições não revelam descaso com o texto. Tolstói era um escritor cuidadoso, revisava muitas vezes seus textos que depois eram passados a limpo à noite por sua mulher. Ele usa as repetições em seu hábil discurso livre indireto, inserindo-se nas idiossincrasias e vícios de linguagem dos personagens.

Outra coisa é que as descrições nunca são contadas sem o filtro e a emoção de um personagem. Não são descrições mortas, sem ação, Tolstói integra tudo, fica lindo. Vemos a propriedade de Liêvin enquanto o mesmo sofre e trabalha nela. Nada para, tudo narra.

Esta tremenda obra de arte muito bem planejada é cheia de pequenos detalhes significativos. Há dois personagens principais, Liêvin e Anna. Em torno deles gira toda a ação, com apenas dois ou três pontos de contato mais claros, Kitty, Oblónski e sua mulher Dolly. Duas perspectivas da mesmíssima Rússia. Um painel? Sim, mas um painel de câmara, sem e com maior grandiosidade do que em Guerra e Paz.

Tal como na primeira leitura, que fiz aos 17 anos, o bovarismo de Anna me parece mais antipático do que o da heroína de Flaubert, mas sua impulsiva irreflexão é um dos pontos altos do romance. Uma coisa de que não lembrava era da ironia de frases que se contradizem em grande parte do romance. Às vezes umas contra as outras, às vezes internamente.

(Paixão de outros: estou num banco para falar com uma gélida gerente de contas. Ela se levanta para ver se um cartão está na agência. Quando volta, interrompe arregalada o ato de sentar. Fica suspensa olhando para o livro de Tolstói e me diz lenta e saborosamente: Anna Kariênina… eu simplesmente amo esse livro! Senta-se e começa a falar comigo com se fôssemos velhos amigos).

.oOo.

Bem, alguns dias após a leitura, procurando olhar o livro com impossível distância — durante um mês travei de grande intimidade com todos aqueles russos e não dá para negar que me envolvi com eles… — , dá para notar que a obra-prima de Tolstói funciona como um Gioco delle coppie (Jogo das Duplas). A narrativa vai todo o tempo em dois focos: de Anna-Vronski para Liévin-Kitty e de volta para Liévin para Anna. Mas há também Moscou e São Petersburgo (Moscou parece São Paulo; Petersburgo, Rio de Janeiro…), Vronski e Kariênin, os dois filhos de Anna, o campo e cidade, Aglaia e a modenidade. E podemos formar outras duplas contrastantes entre Liévin e seus irmãos, Anna e Kitty, etc.

Além da boa e famosa trama, da extrema habilidade de Tolstói como narrador — que se manifesta de forma espetacular quando das crises de Anna e na cena do parto de Kitty –, chama atenção o caminhão de realismo despejado pelo autor sobre seus personagens. Anna está a léguas de poder aspirar a condição de boa pessoa do século XIX ou de qualquer tempo. Na época, ser virtuoso era o que mais contava e ela, passando por cima de Kitty, largando o marido por pura concupiscência (OK, bom motivo), renegando a filha ainda bebê e sendo suscetível a atitudes muito, mas muito impulsivas, está longe da perfeição e muito próxima do que vemos por aí. Tolstói não faz o gesto de justificá-la assim ou assado. O leitor da época devia ter ficado bastante desconfiado… Vronski, o amante, é bem melhor, mas sua entrada no romance é a de um militar bonito (o autor gosta de citar seus dentes perfeitos), vaidoso e bastante chato. Kariênin, o marido traído, é um carola que obedece aos mandamentos divinos e consegue errar em tudo, principalmente na avaliação de si mesmo. Melhor é Liévin, o alter ego das maluquices idealistas de Tolstói que tem consciência de que todos o acham meio louco. Talvez, à exceção de Anna, que vive de amor e de impulsos, seja muita gente bem intencionada vivendo junto.

Oblónski, irmão de Anna, é o brilhante personagem que liga os dois lados do romance, o de Anna e o de Liévin. É um tipo bem Turguêniev: é simpático, tem impecável trato social, trai a esposa sem deixar margem à dúvidas e vive muito feliz, endividado e endividando-se. Mas chega de personagens.

O livro de Tolstói é de açambarcante virtuosismo. As descrições estão totalmente permeadas de humanidade, a trama e os mais mínimos conflitos são construídos com cuidado. As cenas de amor pelo povo e pelo campo, protagonizadas por Liévin, poderiam ser um porre na mão de um escritor médio. Na mão de Tolstói, deixam a gente repleto de literatura.

Não me arrependi de modo nenhum de relê-lo. Foi um bom investimento em 814 páginas perfeitas.

Ah, a tradução do russo de Rubens Figueiredo acompanha pari passu a qualidade de Tolstói.

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O Vendedor de Passados, de José Eduardo Agualusa

O Vendedor de Passados, de José Eduardo Agualusa

Vendedor de Passados AgualusaExcelente livro de José Eduardo Agualusa, O Vendedor de Passados tem como narradora principal uma lagartixa. E esta conta a história de Félix Ventura, um negro albino que vende passados para quem não gosta muito do seu. Seus clientes são prósperos empresários, políticos e militares que têm assegurados seus futuros em Angola. Todavia, falta-lhes um passado que possa ser divulgado. O cartão de visitas de Ventura diz: “Dê a seus filhos um passado melhor”. A lagartixa Eulálio acompanha o trabalho de Félix dentro de sua enorme biblioteca, cheia de recortes de jornais e revistas de várias épocas, para consulta. Afinal, o passado tem de ser plausível, se possível colorido e sedutor. Deve ser real, ou quase.

Se a história de Agualusa é boa, a execução é ainda melhor. Sem spoilers, posso dizer que um dia aparece na casa de Félix um estrangeiro que precisa de uma nova identidade, uma identidade angolana. O livro foca-se neste trabalho. Félix arranja-lhe um passado caprichado, que é curiosamente bem complementado pelo cliente. Tudo acaba de forma surpreendente, deixando em pé a narrativa de Agualusa, a qual conta, ao final, com outros narradores. Não é possível  em alguns trechos identificá-los.

Diz Felix Ventura, citando um escritor:

Sou mentiroso por vocação. Minto com alegria. A literatura é a maneira que um verdadeiro mentiroso tem para se fazer aceitar socialmente.

E o próprio Félix acrescenta:

Acho que aquilo que faço é uma forma avançada de literatura. Também eu crio enredos, invento personagens, mas em vez de os deixar presos dentro de um livro dou-lhes vida, atiro-os para a realidade.

É claro que o livro é uma bela fantasia lúdico-poético-política de Agualusa. Ao final do narrativa, há uma súbita e bem construída tensão. Sim, o cliente não tinha tido vida fácil.

O Vendedor de Passados (2004) foi multi-premiado. É um raro livro simples que não é raso, inteligente sem ser pedante, porém, um tanto paradoxalmente, requer atenção para ser degustado adequadamente.

Recomendo!

A realidade fere, mesmo quando, por instantes, nos parece um sonho. Nos livros está tudo o que existe, muitas vezes em cores mais autênticas, e sem a dor verídica de tudo o que realmente existe. Entre a vida e os livros, meu filho, escolhe os livros.

José Eduardo Agualusa
José Eduardo Agualusa — fantasia lúdico-poético-política.

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Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo

Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo

Caderno de Memórias ColoniaisO impacto deste livro em Portugal foi imenso. Isto deve-se ao fato de que o texto quebrava o mito de certa versão cor-de-rosa que boa parte da sociedade portuguesa seguia cultivando sobre o período colonial africano. Este teria sido muito mais um auxílio ao continente do que violência e opressão… Mas o livro de Isabela Figueiredo vai adiante de meras observações sociológicas, tratando da traição da autora às opiniões e à memória de seu pai, um colonizador daqueles bem típicos. Na verdade, Isabela sempre foi uma loira-negra, permanecendo solidária ao sofrimento dos negros e identificado-se com sua cultura. Seu pai era excelente como pai e a autora o amava, mas havia o lado B do colonizador que podia agredir funcionários e tinha a opinião de que todo e qualquer negro era incapaz de se organizar e era tolo, mesmo que sua pele tivesse sido salva por um deles, seu vizinho.

A autora sabe do que fala. Nasceu em Lourenço Marques, hoje Maputo, e permaneceu no país até alguns dias depois da descolonização. Na verdade, saiu fugida porque os colonizadores estavam sendo perseguidos. É um livro raro porque há pouca informação sobre a vida real nas colônias, mesmo sob a perspectiva dos retornados. e retornadas. Caderno de Memórias Coloniais (Todavia, 180 págs.) nos conta tudo isso em 51 brilhantes textos escritos na primeira pessoa do singular, sem poupar detalhes. O livro reescreve a história oficial, mostrando desde o racismo do dia a dia — nosso íntimo também no Brasil — até às agressões que sofreram os colonos depois do 25 de Abril.

O testemunho de Isabela nos mostra a diferença de tratamento através dos olhos de uma criança que se retirou do país aos 13 anos, também fala da exploração do trabalho — os “pretos do meu pai” — e o medo colonial que gera e justifica a violência.

Há também o sexo. Os colonos gostavam de transar com as negras e as pagavam na frente de seus maridos, humilhando-os. As mulheres dos colonos “compreendiam” tal atração: afinal, as negras estariam mais perto da natureza, teriam a vagina mais aberta (?), fácil e convidativa… Isso era o que elas diziam.

Porém, além de toda a informação, há a excelente escritora que é Isabela Figueiredo. Sua prosa é de primeira qualidade, ao mesmo tempo clara e lírica. Se fosse um livro comum, ficaria como documento. Seu sucesso de crítica e público deveu-se à linguagem de Isabela, que catalisa sentimentos, impulsiona e dá colorido adequado a tudo que é contado.

Recomendo fortemente!

Isabela Figueiredo
Isabela Figueiredo

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O Vendedor de Passados, de José Eduardo Agualusa

O Vendedor de Passados, de José Eduardo Agualusa

Já tivemos Ian McEwan no Fronteiras. Ele comentou um livro seu, Enclausurado, cujo narrador era um feto. Pois o narrador de O Vendedor de Passados é uma lagartixa. E esta conta a história de Félix Ventura, um negro albino que vende passados para quem não gosta do seu. Ou seja, ele prepara e vende árvores genealógicas, criando passados mais amenos e bonitos. Seus clientes são prósperos empresários, políticos e militares que têm assegurados belos futuros em Angola. Todavia, falta-lhes um passado digno. A lagartixa Eulálio vive nas paredes da casa de Félix acompanhando seu trabalho de comerciante. Conta-nos sobre a enorme biblioteca de Félix e dos recortes de jornais e revistas de várias épocas que guarda e consulta. Além disso, ele frequenta lojas de antiguidades e sebos, a fim de buscar inspiração. Afinal, o passado tem de ser plausível, se possível colorido e sedutor. E acaba negociando objetos comprobatórios, pois seu trabalho de “romancista” não vai para as páginas de livros, deve ser real, ou quase.

Vendedor de Passados Agualusa

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXIII — Ao Farol, de Virginia Woolf

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXIII — Ao Farol, de Virginia Woolf

ao_farol_virginia_woolfUm crítico escreveu algo assim: “Li Ao Farol da mesma forma como costumo comer chocolate, pretendendo fazê-lo aos poucos entre outros afazeres, só que logo me deu aquela vontade incontrolável de ler tudo sem parar”. Certamente isso não se deveu a uma trama envolvente, nem a casos românticos para os quais ele precisasse saber do desenlace. E realmente, os livros de Virginia Woolf quase deixam de lado a trama e se fixam nas minúcias humanas, mesmo que a seção central de Ao Farol fale de como uma casa se deteriora. O curioso é que sou um sujeito que pede alguma profundidade dos romances, mas a diluição de VW jamais me incomoda, pois há profundidade de observação — mesmo que seja de coisas secundárias –, assim como qualidade narrativa, clareza estrutural e estupenda criação de personagens.

O livro trata da família Ramsay, casal, oito filhos e agregados em férias. A personagem central é a Sra. Ramsay, uma bela mulher que usa seu charme e trato social para manter a harmonia entre todos. Mas ela parece ser sabotada pelo próprio marido, um homem “do contra” e amargo.

O livro é dividido em 3 capítulos. A janela funciona como uma apresentação dos personagens, temperada pela inteligente e sutil dinâmica de Virginia. Tudo se passa em um só dia na casa de veraneio da família, próxima a um farol que James Ramsay, o filho caçula, deseja muito visitar. Só que a previsão do tempo conspira contra os planos. James alimenta ódio pelo pai, por ele ser tão grosseiro em suas colocações sobre o passeio. O tempo passa, além de mostrar a degradação da casa, revela acontecimentos cruciais na família Ramsay. Já O farol é o momento em que realmente acontece o tão esperado passeio, porém de uma forma muito diferente.

Ao Farol poderia ser um livro denso escrito em insistentes “fluxos de consciência”, mas é leve ao acompanhar o vaivém dos pensamentos, dos medos e vacilações de seus personagens. Estes são mostrados em extrema proximidade no microscópio de Woolf e a compreensão das pessoas é o que vale neste extraordinário romance. Que personagem notável é Lily Briscoe! Que descrições maravilhosas temos do que lhe ocorre enquanto pinta! Não são pensamentos extraordinários ou filosóficos — na verdade, pelo contrário, ela e os outros personagens são intelectuais bastante convencionais, do tipo que se encontra em muitos livros. Pode ser dito que eles não oferecem nada novo, mas um mundo interior muito semelhante ao nosso, com pensamentos completos ou incompletos e livres-associações as mais absurdas.

Excelente tradução de Denise Bottmann para a L&PM.

Recomendo fortemente!

Virginia Woolf

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Tradutor brasileiro de Bolaño defende que narrativa do autor é anti-heroica

Tradutor brasileiro de Bolaño defende que narrativa do autor é anti-heroica

Publicado no site Livraria da Folha em 2010

“Não sei qual deles é melhor: “Os Detetives Selvagens” ou “2666” “, questiona-se Eduardo Brandão, 64, tradutor brasileiro do autor chileno Roberto Bolaño (1953-2003).

O primeiro livro foi o mais difícil para traduzir. Já o segundo, tomou mais tempo, ou melhor, mais de um ano para finalizar o volume.

Lançado um ano após a morte do autor, “2666” é composto por cinco romances, interligados por duas tramas — a busca por um autor recluso e uma série de assassinatos na fronteira México-EUA. Explicado por que a obra conviveu mais de um ano com Brandão.

Em entrevista à Livraria da Folha, ele descreveu como trabalha na tradução de uma obra, comentou sobre o processo narrativo de Bolaño, “que é mais anti-herói do que qualquer outra coisa”, entre outros aspectos. Com cerca de 140 obras traduzidas para a Companhia das Letras, o carioca começou a se dedicar à tradução de obras literárias e de ciências humanas, a partir da década de 1970.

Chegou a trabalhar como repórter do “Correio da Manhã” entre 1966 e 1968. Hoje, tem apreço especialmente pelas literaturas espanhola e hispano-americana contemporâneas.

Livraria da Folha: Bolaño faz com que o leitor sinta-se, em alguns momentos, agoniado com o desaparecimento dos personagens e surpreso com o retorno deles. No “2666”, vários personagens mal se cruzam nas histórias. Enquanto traduzia, você se sentiu perdido ou surpreso com o retorno de algum deles?

Eduardo Brandão: Não, porque eu já tinha traduzido outros romances dele como “Os Detetives Selvagens” (2006) e ele usa esse mesmo recurso. De certa maneira, ele [Bolaño] reproduz muitas vezes o que acontece na vida da gente. Você cruza com uma pessoa, conversa, conhece, de repente você nunca mais a vê, e talvez ela apareça lá na frente novamente em outras circunstâncias. Desse ponto de vista, o procedimento narrativo do personagem que vai, some e nunca mais volta a aparecer, é bem calcado na nossa realidade.

Livraria da Folha: O “2666” assemelha-se a uma matriuska –a cada “abrir” de histórias, outras aparentemente menores saltam à vista. Qual história do livro mais lhe impressionou?

Brandão: O que mais me chocou foram as histórias dos crimes no México, onde ele [Bolaño] faz uma espécie de “romance-reportagem”. Achava que era invenção, depois descobri que aquilo é pura verdade e continua existindo. Saiu outro dia no jornal.

Livraria da Folha: Você levou quanto tempo para traduzir o “2666”?

Brandão: Levei ao todo mais de um ano, mas houve algumas interrupções para fazer outras coisas não tão grandes. Não lembro exatamente quando comecei. Entreguei no começo do ano.

Livraria da Folha: A próxima tradução que você fará do Bolaño será a do “O Terceiro Reich”? Quando será lançado pela Companhia?

Brandão: Já traduzi. Vai ser lançado no ano que vem, mas não tenho certeza da programação.

Livraria da Folha: Como é seu ritmo de trabalho durante uma tradução? Você dedica quantas horas por dia? Tem uma disciplina, digamos assim?

Brandão: Sim, começo por volta das 10h e acabo lá pelas 23h30. De trabalho, deve dar umas 8h, contando as interrupções.

Livraria da Folha: Você também traduziu “Amuleto” (2008) , “Noturno do Chile” (2004), “A Pista de Gelo” (2007) e “Putas Assassinas” (2008), todos do Bolaño. Em qual deles, sentiu mais dificuldade em manter o estilo do chileno no português?

Brandão: O mais difícil de todos foi “Os Detetives Selvagens”.

Livraria da Folha: Por que?

Brandão: Porque são várias narrativas, há mais de cem narradores. Isso é mais complicado, porque ele consegue dar a cada um deles uma fala própria. Você tem que tentar reproduzir o jeito daquelas pessoas falarem. O mais complicado deles foi o Amadeu, um velho que queria bancar um jovem. Ele usa umas gírias jovens, mas bem defasadas. O jeito de falar dele, empolado, informal, criou um estilo.

Livraria da Folha: Você traduziu 140 obras para a Companhia das Letras. De literatura infantojuvenil à livros de história e filosofia. Qual tradução foi a mais complicada de ser realizada e por que?

Brandão: Os infantojuvenis me distraem mais. Foi “Os Detetives Selvagens” mesmo, inclusive pelo uso dos “mexicanismos”.

Livraria da Folha: Você recorreu a dicionários?

Brandão: Eu tive uma sorte danada com esse livro, porque acabei encontrando uma pessoa que me ajudou. Mandei um e-mail para essa moça. Ela conheceu o Bolaño lá no México e era da região onde passava boa parte das histórias do livro. Aquelas gírias “barra-pesada” que tinha ali [livro] só com ela mesmo.

Livraria da Folha: Cada parte do romance pode ser lida de forma independente. Você concorda com Bolaño ao defender que a obra fosse publicada em cinco volumes?

Brandão: Um volume foi a decisão mais sensata, inclusive foi a da viúva. Ele fez aquilo com uma preocupação não literária, vamos dizer assim, preocupado com os filhos e com a mulher. Apesar de ter histórias meio soltas, nenhuma é solta ali. Elas têm um ponto de contato.

Livraria da Folha: Na trama de “2666”, Archimboldi morreu em 2003. Em parte, ele mimetiza o que foi o século 20 e o que seria o 21. Na sua opinião, qual dos dois séculos ou nenhum deles o livro representa?

Brandão: Acho que ele está mais com o pé no 21, principalmente por toda essa questão do narcotráfico. Claro que isso já existia no século 20, de certa forma ele [Bolaño] anteviu.

Livraria da Folha: Bolaño gosta de adotar em seus romances heróis fracassados pela própria realidade na qual sobrevivem ou simplesmente anular a existência deles. Você acredita que a narrativa de Bolaño faz as vezes de herói de seus personagens e até do próprio escritor?

Brandão: Herói não, propriamente, é mais anti-herói do que qualquer outra coisa. A narrativa dele surge de uma maneira tão espontânea. Existe ali uma catarse.

Livraria da Folha: As histórias não se fecham, são deixadas no ar. Se pudesse escolher uma delas para finalizar, qual seria e por que?

Brandão: Eu não concluiria, adorei o livro assim.

Livraria da Folha: Você conhecia o Bolaño antes de traduzi-lo?

Brandão: Confesso que nunca tinha ouvido falar. O primeiro que traduzi foi “Noturno do Chile”, que achei meio estranho. Depois peguei “Os Detetives Selvagens”, adorei e virei bolañista. Quando traduzi “Os Detetives Selvagens”, não existia ainda a “bolañomania”. Agora está começando a sair um monte de coisa [refere-se às cartas e manuscritos que serão publicados], embora ele fosse reservado sobre sua vida.

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A Gorda, de Isabela Figueiredo

A Gorda, de Isabela Figueiredo

A Gorda Isabela FigueiredoA Gorda, da portuguesa Isabela Figueiredo, é uma bela sátira a respeito da auto-imagem e do preconceito. Maria Luísa, a protagonista deste romance tão engraçado quanto cruel, é uma moça inteligente, boa aluna, voluntariosa e dona de uma forte personalidade. Porém, é gorda. Essa característica física a incomoda de tal maneira que parece colocar todo o resto em xeque: sua relação com o mundo, sua vida sentimental, suas posturas. Adolescente, sofre e aguenta em resignado silêncio as piadas e insultos de companheiros de escola. Adulta, bem, não vamos contar o livro, mas garantimos que muito bom, divertido e aberto. Escancarado, na verdade. Difícil não gostar dele.

A Gorda conta, na primeira pessoa do singular, a história de Maria Luísa, uma mulher que engorda na adolescência e assim chega à maturidade. Quando não suporta mais — física e moralmente — seu peso, parte para a cirurgia de redução do estômago. Pelas fotos da autora, podemos dizer que é quase certo que a história tenha alto teor autobiográfico. “Todas as personagens e situações descritas nesta narrativa são mera ficção e pura realidade.” É claro que Maria sofre humilhações na escola, cansaço e desgostos de amor – o namorado que a adora começa a mostrar-se envergonhado quando é visto com ela em público… Porém, narradas em estilo cru e direto, inteligente e poético, as desventuras da Maria que não se dobra facilmente não são uma leitura especialmente pesada, deprimente ou mesmo triste. Ela é tão viva, mulher e sagaz quanto a suas motivações que não dá para ter muita pena da gorda.

“Quarenta quilos é muito peso. Foram os que perdi após a gastrectomia: era um segundo corpo que transportava comigo.” Quando Maria faz a operação, sua vida muda, mas não pensem que este é um romance apenas sobre uma pessoa que engorda, sofre, retira parte o estômago e fica feliz.

A vida de Maria Luísa é esmiuçada com a crueza que anunciamos acima e esta não é uma desgraça apesar da profissão de professora, mesmo sendo filha única, mesmo confinada a um corpo que a isola socialmente, mesmo sendo uma parábola da solidão. Suas descrições da fome — sexual e alimentar — são arrebatadoras.

A figura materna é muito importante, assim como o passado colonial (Moçambique) de seus pais. “Gosto dela. Não a suporto. Quando morrer, não me resta mais ninguém. Nunca mais morre. Não morras.” A mãe também atrapalha a sensualidade de Maria, trazendo a repressão e o passado colonial para dentro da casa portuguesa. Ou seja, não é um romance que se foque apenas na questão do peso, mas no contexto social de Maria.

Destaco igualmente a prosa de Isabela Figueiredo, que usa o palavrão de forma explícita sem jamais perder a qualidade de seu texto.

Recomendo fortemente.

Isabela Figueiredo
Isabela Figueiredo

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Textos para o Sarau Clara Corleone (IV): Rapidamente, sobre o Ulysses de Joyce

Textos para o Sarau Clara Corleone (IV): Rapidamente, sobre o Ulysses de Joyce

Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes – sempre tão gentis, como diria Chico Buarque — que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Em super resumo, estas são as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria.

James Joyce em Paris com sua editora Sylvia Beach.
James Joyce em Paris com sua editora Sylvia Beach.

Pois então abrimos o Ulysses de Joyce e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, não é nada fiel. Bloom é um Ulisses nada heróico, é antes um judeu irlandês de vida comum, que sabe das traições de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue.

Assassinato nunca, visto que dois erros não tornam um certo.

O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas.

Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):

Cada um que entra na cama imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só, enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só.

Boa parte do enredo de Ulysses gira em torno do casal Molly e Leopold e de sua inaptidão para sentir prazer físico e emocional um com o outro. Seja através da narração onisciente, seja por monólogos interiores, o texto documenta minuciosamente abordagens sexuais inteiramente diversas de tentativas românticas do casal. E estas ocorrem sempre SEPARADAMENTE. Durante o curso do dia, Molly comete adultério com Blazes Boylan, enquanto Bloom envolve-se com práticas sexuais voyeuristas e masturbatórias. Mesmo que Bloom participe ativamente destes encontros, é curioso como Joyce obtém mantê-lo longe do estereótipo do fauno sedento por sexo e prazer. Bloom é o anti-herói, o low profile, o personagem simpático, agradável, amistoso e apagado. Mesmo o erotismo evidente de certas participações de Bloom, acaba diluído em gentileza e bonomia. Ele é mais pai e marido, possuidor de qualidades maternas, pacifistas, até femininas.

Ulysses é um texto que procura minar as noções de gênero. O romance não promove a superioridade masculina, mas sim eleva as mulheres e a feminilidade. Não só Joyce inverte a hierarquia social predominantemente masculina, como confunde a noção de gênero com a criação de um casal formado por um homem delicado e feminino e uma mulher decidida. Nesta combinação, o casal Molly e Leopold, está fora dos estereótipos da virada do século XIX para o XX, que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada.

Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “É muito comum que o que é pornográfico para uma geração, seja clássico para a seguinte”. A frase parece perfeita para Ulysses: enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos, sendo que um deles era “o homem comum”.

Bloom comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com a mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho morto, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha menstruada”. Também, como talvez uma mulher o fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela veja seu melhor ângulo. Depois, Gerty faz o mesmo.

Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação.

Em seu ensaio prévio à última edição do Ulysses, Declan Kiberd afirma que, na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. Antes do famoso monólogo de Molly, Bloom recapitula o primeiro encontro sexual com a mulher, em consonância com que já sabíamos: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca).

Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o famoso monólogo de Molly, o leitor entra nos pensamentos dela na cama ao lado de Bloom, que dorme ao final do dia. O monólogo revela a promiscuidade de Molly, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de família. Quando lembra da amamentação da filha, ela recorda que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para ele chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser a provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil.

Porém, em qualquer hipótese, o texto de Joyce afunda e afunda a masculinidade.

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A sociedade dos empregos de merda

A sociedade dos empregos de merda

POR DAVID GRAEBER
Do Outras Palavras
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Como o capitalismo contemporâneo cria sem cessar ocupações inúteis, enquanto remunera muito mal as mais necessárias. Quais as alternativas? Garantia de trabalho? Ou Renda Cidadã Universal?

David Graeber, entrevistado por Eric Allen Been, na Vice| Tradução: Antonio Martins

Em 1930, o economista britânico John Maynard Keynes previu que, no final do século 20, países como os Estados Unidos teriam – ou deveriam ter – jornadas de trabalho de 15 horas semanais. Por que? Em grande medida, a tecnologia tiraria de nossas mãos tarefas sem sentido. Claro, isso nunca ocorreu. Ao contrário, muitíssimas pessoas, em todo o mundo, estão submetidas a longas jornadas como advogados corporativos, consultores, operadores de telemarketing e outras ocupações.

Mas enquanto muitos de nós julgamos nossos trabalhos muito aborrecidos, algumas ocupações não fazem sentido algum, segundo o escritor anarquista David Graeber. Em seu novo livro, “Bullshit Jobs: A Theory” [“Trabalhos de Merda: Uma Teoria”], o autor argumenta que os seres humanos consomem suas vidas, muito frequentemente, em atividades assalariadas inúteis. Graeber, que nasceu nos EUA e que já havia escrito, entre outras obras, Dívida: Os Primeiros 5000 anos e The Utopia of Rules [ainda sem edição em português] é professor de Antropologia na London School of Economics e uma das vozes mais conhecidas do movimento Occupy Wall Street (atribui-se a ele a frase “Somos os 99%”).

A “Vice” encontrou-se há pouco com Graeber para conversar sobre o que ele define como “emprego de merda”; por que os trabalhos socialmente úteis são tão mal pagos, e como uma renda básica assegurada a todos poderia resolver esta enorme injustiça.

Em primeiro lugar, o que são empregos de merda e por que existem?

David Graeber: Basicamente, um emprego de merda é aquele cujo executor pensa secretamente que sua atividade ou é completamente sem sentido, ou não produz nada. E também considera que se aquele emprego desaparecesse, o mundo poderia inclusive converter-se num lugar melhor. Mas o trabalhador não pode admitir isso – daí o elemento de merda. Trata-se, portanto, em essência, de fingir que se está fazendo algo útil, só que não.

Uma série de fatores contribuiu para criar esta situação estranha. Um deles é a filosofia geral de que o trabalho – não importa qual – é sempre bom. Se há algo em que a esquerda e a direita clássicas frequentemente estão de acordo é no fato de ambas concordarem que mais empregos são uma solução para qualquer problema. Não se fala em “bons” trabalhos, que de fato signifiquem algo. Um conservador, para o qual precisamos reduzir impostos para estimular os “criadores de emprego”, não falará sobre que tipo de ocupações quer criar. Mas há também partidários da esquerda insistindo em como precisamos de mais ocupações para apoiar as famílias que trabalham duro. Mas e as famílias que desejam trabalhar moderadamente? Quem as apoiará?

Até mesmo os empregos de merda garantem a renda necessária para que as pessoas sobrevivam. No fim das contas, por que isso é ruim?

Mas a questão é: se a sociedade tem os meios para sustentar todo mundo – o que é verdade – por que insistimos em que os trabalhadores passem sua vida cavando e em seguida tapando buracos? Não faz muito sentido, certo? Em termos sociais, parece sadismo.

Em termos individuais, isso pode ser visto como uma boa troca. Mas, na verdade, as pessoas obrigadas a tais trabalhos estão em situação miserável. Podem considerar: “estou ganhando algo por nada”. Bem, as pessoas que recebem salários bons, muitas vezes de nível executivo, certamente de classe média, quase sempre passam o dia em jogos de computador ou atualizando seus perfis de Facebook. Quem sabe, atendendo o telefone duas vezes por dia. Deveriam estar felizes por ser malandros, certo? Mas não são.

As pessoas contratadas para tais trabalhos relatam, regularmente, que estão deprimidas. E se lamentarão, e praticarão bullying umas contra as outras, e se apavorarão com prazos finais porque são de fato muito raras. Porém, se pudessem buscar uma razão social no trabalho, uma boa parte de suas atividades desapareceria. As doenças psicossomáticas de que as pessoas padecem simplesmente somem, no momento em que elas precisam realizar uma tarefa real, ou em que se demitem e partem para um trabalho de verdade.

Segundo seu livro, a sociedade pressiona os jovens estudantes para buscar alguma experiência de emprego, com o único objetivo de ensiná-los a fingir que trabalham.

É interessante. Chamo de trabalho real aquele em que o trabalhador realiza alguma coisa. Se você é estudante, trata-se de escrever. Preparar projetos. Se você é um estudante de Ciências, faz atividades de laboratório. Presta exames. É condicionado pelos resultados e precisa organizar sua atividade da maneira mais efetiva possível para chegar a eles.

Porém, os empregos oferecidos aos estudantes frequentemente implicam não fazer nada. Muitas vezes, são funções administrativas onde eles simplesmente rearranjam papéis o dia inteiro. Na verdade, estão sendo ensinados a não se queixar e a compreender que, assim que terminarem os estudos, não serão mais julgados pelos resultados – mas, essencialmente, pela habilidade em cumprir ordens.

E os empregos tecnológicos ou na mídia. Seriam, também, de merda?

Certamente. Por meio do Twitter, pedi às pessoas que me relatassem seus empregos mais sem sentido. Obtive centenas de respostas. Havia um rapaz, por exemplo, que desenhava bâners publicitários para páginas web. Disse que havia dados demonstrando que ninguém nunca clica nestes anúncios. Mas era preciso manipular os dados para “demonstrar” aos clientes que havia visualizações – para que as pessoas julgassem o trabalho importante.

Na mídia, ha um exemplo interessante: revistas e jornais internos, para grandes corporações. Há bastante gente envolvida na produção deste material, que existe principalmente para que os executivos sintam-se bem a respeito de si próprios. Ninguém mais lê estas publicações.

A automação é vista, muitas vezes, como algo negativo. Você discorda deste ponto de vista, não?

Certamente. Não o compreendo. Por que não deveríamos eliminar os trabalhos desagradáveis? Em 1900 ou 1950, quando se imaginava o futuro, pensava-se: “As pessoas estarão trabalhando 15 horas por semana. É ótimo, porque os robôs farão o trabalho por nós”. Hoje, este futuro chegou e dizemos: ”Oh, não. Os robôs estão chegando para roubar nossos trabalhos”. Em parte, é porque não podemos mais imaginar o que faríamos conosco mesmo se tivéssemos um tempo razoável de lazer.

Como antropólogo, sei perfeitamente que tempo abundante de lazer não irá levar a maioria das pessoas à depressão. As pessoas encontram o que fazer. Apenas não sabemos que tipo de atividade seria, porque não temos tempo de lazer suficiente para imaginar.

Pergunto: por que as pessoas agem como se a perspectiva de eliminar o trabalho desnecessário fosse um problema? Deveríamos pensar que um sistema eficiente é aquele em que se pode dizer: “Bem, temos menos necessidade de trabalho. Vamos redistribuir o trabalho necessário de maneira equitativa”. Por que isso é difícil? Se as pessoas simplesmente assumem que é algo completamente impossível, parece-me claro que não estamos em um sistema eficiente.

Um dos pontos mais interessantes do livro são suas observações sobre como os empregos socialmente valiosos são quase sempre menos bem pagos que os empregos de merda.

Foi uma das coisas que, pessoalmente, mais me chocou na fase da pesquisa. Comecei a tentar descobrir se algum economista havia observado o fenômeno e tentado explicá-lo. Houve antecedentes, na verdade. Alguns eram economistas de esquerda; outros, não. Alguns eram totalmente mainstream.

Mas todos chegaram à mesma conclusão. Segundo eles, há uma tendência: quanto mais benefícios sociais um emprego produz, menor tende a ser a remuneração – e também a dignidade, o respeito e os benefícios. É curioso. Há poucas exceções e não são tão excepcionais como se poderia pensar. Os médicos, é claro, são um caso notório: é evidente que são pagos com justiça e oferecem benefícios sociais.

Porém, há um argumento recorrente: “Não seria bom que pessoas interessadas apenas em dinheiro ensinassem as crianças. Não se deve pagar demais aos professores. Se o fizéssemos, teríamos gente gananciosa na profissão, em vez de professores que se sacrificam”. Há também a ideia de que se um trabalhador sabe que sua atividade produz benefícios, isso pode ser o bastante. “Como, você quer dinheiro, além de tudo?” As pessoas tendem a discriminar qualquer um que tenha escolhido um emprego altruísta, sacrificante ou apenas útil.

Aparentemente, você é pouco favorável à ideia de garantia de trabalho, defendida entre outros por Bernie Sanders [candidato de esquerda à presidência dos EUA], por preferir a garantia de renda cidadã.

Sim. Sou alguém que não quer criar mais burocracia e mais empregos de merda. Há um debate sobre garantia de trabalho – que Sanders, de fato, propõe, nos EUA. Significa que os governos deveriam assegurar que todos tenham acesso ao menos a algum tipo de trabalho. Mas a ideia por trás da renda universal da cidadania é outra: simplesmente assegurar às pessoas meios suficientes para viver com dignidade. Além desse patamar, cada um pode definir quanto mais deseja.

Acredito que a garantia de trabalho certamente criaria mais empregos de merda. Historicamente, é o que sempre acontece. E por que deveríamos querer que os governos decidissem o que podemos fazer? Liberdade implica em nossa capacidade de decidir por nós mesmos o que queremos e como queremos contribuir para a sociedade. Mas vivemos como se tivéssemos nos condicionado a pensar que, embora vejamos na liberdade o valor mais alto, na verdade não a desejamos. A renda básica da cidadania ajudaria a garantir exatamente isso. Não seria ótimo dizer: “Você não tem mais que se preocupar com a sobrevivência. Vá e decida o que quer fazer consigo mesmo”?

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