John Dunning parece fazer questão de rigor. Em seu romance policial Edições Perigosas, há uma morte na primeira frase e a conclusão só será inteiramente fechada na última. Para quem, como eu, desejava descansar de leituras mais árduas, Edições Perigosas foi perfeito. É muito bem escrito, tem história envolvente e os personagens são bem construídos, com cada (boa) trama disparando numa direção, de forma a nos enganar. O tema de fundo é a paixão pelos livros. Quem me emprestou este Dunning foi o livreiro Mauro Messina, da célebre Ladeira Livros. Dias depois, por ter falado muito bem do que estava lendo, tive que comprar o volume, pois minha mulher disse que também queria lê-lo. Mauro me cobrou tão pouco que parece não ter entendido muito bem o romance…
Os romances policiais costumam explorar detetives excêntricos que deslindam tramas complicadas. Cliff Janeway não chega a ser uma figura peculiar. Trata-se de um policial algo violento que é tarado por literatura e livros raros. Em Edições, ele investiga a morte de um alfarrabista. Alfarrabista é pessoa que garimpa livros para os sebos, seja comprando-os muito barato na origem, seja simplesmente recebendo de quem queira livrar-se deles. Eles os vendem um pouco mais caro para os livreiros que, por sua vez, exploram gente preguiçosa como nós. O livro nos dá uma ideia clara do que é o trabalho nos sebos e é óbvio que o Mauro foi seduzido pela questão da busca e compra de novos volumes, atividade da qual ele me confessou gostar especialmente.
John Dunning domina o gênero com sobras. Tem estilo fácil e viciante. Na área dos clichês, temos uma incerta mulher fatal e só. Os outros ficam de fora. Para nosso prazer, durante as discussões sobre livros e seus preços, esbarramos em Salinger, Bellow, Golding, Faulkner, Hemingway, Rex Stout, etc.
Sonia Branco e Svetlana Aleksiévitch: “Nosso livro”
Encontro entre autora e tradutora durante a Flip rendeu agradecimentos e dedicatória especial. Escolhida para verter obras da bielorrussa, Sonia Branco relata experiência de noites debruçadas sobre obras “densas e envolventes”.
A Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch, que esteve na recente edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), é uma escritora de muitas vozes. E, se uma delas fala português, isso se deve a Sonia Branco. No evento, além de terem a oportunidade de trocar algumas palavras, o encontro rendeu uma “parceria” inesperada: em sua dedicatória, a bielorrussa agradece pelo que chama de “agora nosso livro”.
“Foi uma emoção muito grande. Jamais imaginaria que isso fosse acontecer”, conta Sonia. A voz brasileira da Nobel de Literatura, aliás, também é uma mulher de muitas faces.
Com nome de heroína de Dostoiévski – aliás, uma paixão de ambas –, Sonia Branco não para por aí. É professora de Língua e Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutora e mestra em Teoria Literária, tradutora com vasta experiência, e um dos maiores nomes em estudos eslavos do Brasil.
O contato com Svetlana aconteceu por acaso. Após o anúncio de que a bielorrussa seria a Nobel de Literatura de 2015, iniciou-se uma corrida para lançar seus livros no Brasil. E isso passava pela escolha de tradutores para sua obra – densa, humana, mas contemporânea e de fácil acesso.
Logo, Sonia Branco foi contatada e, durante alguns meses, abriu mão de finais de semana, noites e feriados para dar corpo à versão brasileira de “Vozes de Tchernóbil”, um dos livros mais importantes de Svetlana Aleksiévitch. A obra sobre a catástrofe nuclear foi uma das três escolhidas para apresentar a bielorrussa ao Brasil, juntamente com “A Guerra não tem rosto de mulher” e “Tempo de segunda mão”.
“Passei meu Natal com a tradução. Chorei muitas vezes com o texto, me envolvi demais. É um livro denso e que precisa de um cuidado especial”, diz Sonia. O trabalho evoluiu e, enfim, a tradução pronta, e livro já está nas prateleiras. Mas a glória maior da brasileira ainda estaria por vir.
A participação de Svetlana na Flip era uma grande oportunidade para Sonia Branco conhecê-la. Mas, sem ingressos garantidos, restou comprar os bilhetes – como qualquer mortal – e aguardar uma brecha na agenda da bielorrussa. A chance aconteceu logo após a participação de Svetlana na Tenda dos Autores – evento principal da feira. Mesmo com a enorme fila para autógrafos, Sonia conseguiu trocar algumas palavras com a escritora.
E, ainda mais importante do que um “convite” para Minsk, foi a dedicatória singela e generosa feita por Svetlana Aleksiévitch, que escreveu no exemplar de Sonia “obrigado pelo, agora, NOSSO livro”. Assim, a brasileira se tornou “sócia” de um Nobel de Literatura. E, paralelamente, Svetlana Aleksiévitch ganhou uma nova voz feminina e bem brasileira.
A Prêmio Nobel da Literatura 2015 foi a estrela da Festa Literária Internacional de Paraty. É uma mulher cansada das guerras e das tragédias e que encontrou um novo tema para o próximo livro: o amor.
“Sobre a guerra não vou conseguir escrever mais. Disso tenho a certeza”, atirou Svetlana Aleksiévitch do palco da Tenda dos Autores da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Em resposta, ela ouviu o silêncio na plateia de 850 lugares que na noite de sábado abarrotava os assentos. Lá fora, uma multidão que não conseguiu bilhete juntou-se, sentada ou de pé, em frente ao telão gigante onde é transmitido gratuitamente o que se passa no palco principal: mais de 1800 pessoas, segundo números da organização. Ao mesmo tempo, decorria à porta da tenda uma manifestação contra a ausência de autores negros na FLIP e contra o presidente interino Michel Temer. Momentos antes, também um grupo de mulheres se passeara na sala, em silêncio, segurando lenços brancos onde se lia “Ana Cristina Cesar era gay”, em protesto contra a abordagem da FLIP à autora homenageada desta edição.
Em russo, com a sua voz pausada, o inconfundível cabelo ruivo, e enfiada num fato salmão, a Prêmio Nobel da Literatura de 2015 continuou a explicar, numa conversa conduzida pelo jornalista e editor da revista Serrote, do Instituto Moreira Salles, Paulo Roberto Pires, que “os homens não gostam muito de ter mulheres na guerra, principalmente mulheres que escrevem”.
A autora de A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (Companhia das Letras) recordou que estava na guerra do Afeganistão a fazer o seu trabalho de jornalista, acompanhada por um coronel bem cínico, quando lhe mostraram uma arma que lhe pareceu muito bonita: “É horrível dizer isto, mas era mesmo uma arma bonita, moderna, via-se que quem a construiu passou bastante tempo a pensar na melhor maneira de matar outro homem.” O coronel olhou para ela de cima para baixo e respondeu-lhe que sempre que a dita arma era disparada era preciso depois raspar do asfalto, com uma colher, o corpo abatido.
Algum tempo mais tarde, num dia em que faziam mais de 40 graus, o mesmo coronel levou-a a um local onde a arma tinha sido utilizada para matar os seus soldados, dos quais tentavam recuperar os corpos para enviar alguma coisa às famílias. “Eu tenho cultura russa, acredito que temos de ser verdadeiros até ao fim. Mas não sou uma super-mulher, sou um ser humano normal. Quando lá cheguei com aquele calor e vi aqueles pedacinhos de corpos espalhados pelo chão, desmaiei. Mas ao mesmo tempo tinha de voltar para casa e escrever aquilo tudo. E depois alguém vai perguntar: como é que sobreviveu no Afeganistão?”.
Pausa para respirar fundo antes de continuar: “É muito difícil responder. Não sei como sobrevivi a essas experiências, sofri muito, não consigo sequer visitar lares de crianças abandonadas. Antigamente eu ia para os hospitais onde havia homens sem braços, sem pernas, hoje em dia não consigo. Mas sei que o me salvava, o que me salvou: é que eu amo a vida. Temos a que nos apegar.”
O amor, “a única saída”
A Nobel bielorrussa, agora com 68 anos, sabe que nunca mais voltará a esses lugares. “Não fui à Tchechênia porque não podia ver mais um ser humano assassinado por outro ser humano que não gostou do que ele pensava, não conseguia sequer imaginar ver um corpo morto. Tudo o que quis dizer a respeito das guerras já o disse nos meus livros, e como autoproteção estou à procura de novas ideias.”
O novo livro que está a escrever, revelou, tem por tema o amor. “Mas também há uma certa guerra nisto, não posso dizer que esse assunto é muito fácil de tratar.”
Apesar de ter no seu currículo livros como Vozes de Tchernóbil, Svetlana diz que não coleciona tragédias. “Na verdade há muitas tragédias, mas ao mesmo tempo há crianças, flores, amor, pôr-do-sol… Na vida, há momentos em que se consegue ganhar força e continuar a enfrentar as dificuldades. Acho que tenho de passar, naquilo que faço, essa beleza. Os meus livros, mesmo convivendo com a tragédia, falam de amor, que é a única saída para nós.”
Além de Tchernóbil, Paulo Roberto Pires lembrou também a tragédia de Mariana, no Brasil, onde a ruptura de duas barragens operadas pela empresa mineira Samarco provocou um desastre ambiental. Réplica de Svetlana: “A humanidade ocupou o lugar errado dentro da natureza. É muita ingenuidade usar a força contra ela. Os índios no Brasil conhecem melhor a natureza do que nós, hoje em dia, com todas as tecnologias. O mundo precisa de uma nova filosofia de vida, se não esse progresso vai levar à nossa autodestruição.” E ainda: “Não acredito que o homem venha a ser salvo pelo homem racional, mas por um homem que venha a ter uma visão ampla e não veja só o progresso. Na nossa civilização só temos o homem-consumo. Daqui a alguns séculos, vão dizer o quanto éramos primitivos.”
A literatura de Svetlana Aleksiévitch é muito singular. Ao mesmo tempo que é documental, tem altíssima qualidade, fenômeno mais comum em ficcionistas. Aliás, a produção da escritora bielorrussa é única. Como boa jornalista que é, ela entrevista e abre aspas. Na verdade só faz isso, mas unifica os discursos sob um rigoroso filtro literário que dá forma e unidade a seus livros. Há anos divido com estudiosos a convicção de que a ficção é a única forma narrativa que roça a realidade. Aleksiévitch abala tal convicção. Talvez fosse melhor dizer que o texto literário — jornalístico ou não — é o único gênero de escritura que arranha os fatos. O resto são dados, contextualizações, circunstâncias, mas não é informação real. O habitat desta, desculpem, é o bom texto. E a diferença da escritora bielorrussa para seus pares é que seu texto não é apenas bom, é de um virtuosismo arrebatador.
Aleksiévitch não é uma escritora de eventos comuns nem de análise política, é uma historiadora de emoções. O que ela nos oferece é todo um mundo emocional. Vozes de Tchernóbil é uma obra coral. São centenas de depoimentos, um enorme painel de vozes reais, cada uma delas peça de um mosaico estarrecedor. É uma espécie de romance coletivo ou romance de evidências. As pessoas falam de si mesmas formando um contexto de pesadelo onde a radiação paira invisível, como um deus terrível, implacável. Vozes é uma montanha de pequenas histórias que recria a grande história, provando que a verdade está distribuída entre seus vários participantes e que a vida individual é mesmo algo ininteligível.
Para mim, é muito difícil escrever uma resenha que não seja gonzo. Tenho que participar dela, pois minha mulher conhece pessoalmente alguns dos entrevistados. Ela me trouxe fotos de uma delas, uma professora da Escola de Arte e Cultura de Moguilióv. Ou seja, vi fotos de minha Elena, de sua mãe e de uma pessoa “de Tchernóbil” tiradas poucos anos antes da explosão do reator. Mais: nestas vozes do povo bielorrusso reconheço várias posturas e piadas — sem nenhuma relação com a tragédia — que noto na casa onde moro hoje e onde amo ficar.
(Aliás, paralelamente, neste blog, tenho enorme vontade de acrescentar uma voz ao relato de Aleksiévitch).
A literatura da bielorrussa dialoga em vários níveis com a música. Há polifonia nos “corais” e, como na música, o mesmo tema é retomado diversas vezes sob diferentes abordagens. Lendo Vozes, pensei várias vezes nas Variações Goldberg de Bach, onde o tema é criativamente explorado de todas as formas possíveis. Cada voz que entra tem uma visão diferente, de onde só podemos concluir que há 7 bilhões de diversas perspectivas (ou cegueiras) em nosso planeta. Mas a união de todas elas parece tornar inequívocos os fatos e suas consequências pessoais… Olha, só lendo.
Aleksiévitch escreveu sobre Tchernóbil, sobre a Guerra do Afeganistão, sobre as mulheres remanescentes da 2ª Guerra Mundial e sobre o fim do homem soviético. É claro que é muito combatida em seu país e na Rússia, pois seus temas são sempre as pessoas comuns sofrendo sob o Leviatã. Mas não é surpreendente que agora vá escrever sobre o amor, porque o afeto, além da radiação, é onipresente como pano de fundo de Vozes.
Recomendo fortemente e nem precisaria. Afinal, sei de nove amigos que estão lendo o livro nestes dias. Svetlana Aleksiévitch diz que sua pátria é a Bielorrússia, terra de seu pai e onde viveu toda sua vida, mas que também é ucraniana, onde ela e sua mãe nasceram. Só que sua verdadeira pátria é a grande cultura russa, da qual autenticamente faz parte .
Em 21 de novembro de 1811, Heinrich von Kleist, nascido em 1777, suicidou-se. Tinha 34 anos. Era pobre, estava endividado, sentia-se fracassado. Após sua morte, transformou-se em lenda, aclamado como gênio. Na novela Michael Kohlhaas, Kleist antecipou a seu modo o que seria Kafka. Um século depois, Kafka fazia leituras públicas de trechos da novela.
A história deste livrinho — Kohlhaas tem aproximadamente 105 páginas — tão difícil de encontrar no Brasil é simples. Michael Kohlhaas é um negociante de cavalos que necessita passar pela propriedade do junker von Tronka com alguns animais. Mas lhe pedem um salvo-conduto para que possa atravessá-la.
Kohlhaas, pessoa de indiscutível retidão e obediência às leis, desconfia de uma invencionice, mas deixa dois animais como garantia. Dias depois, ao retornar a fim de retirar seus cavalos, vê que estes estão magros e maltratados. Indignado, decide que só os aceitará de volta quando estiverem nas condições em que os deixou. A partir da negativa de von Tronka em alimentar os animais, Kohlhaas passa a perseguir obsessivamente um único objetivo: fazer com que seus animais sejam devolvidos no estado em que foram deixados. A grandiosidade do texto e de suas implicações religiosas, de direito e de poder, além da discussão filosófica e metafísica, é impossível de abarcar uma simples resenha. (Não esqueçam do link acima).
A solidão de Kohlhaas e sua necessidade interna de justiça são avassaladoras. Mesmo utilizando fundamentos jurídicos simples, justos e perfeitamente claros, Kohlhaas vê-se cada vez mais impossibilitado de chegar à lei em razão das negativas e das amizades de von Tronka, das oscilações do direito e das relações do poder. Então, procura fazer justiça por si mesmo. Arma uma espécie de grupo guerrilheiro versão século XVI; invade cidades em busca de von Tronka e da justiça; desafia governos; chega ao ponto de entrar nos aposentos de Martinho Lutero a fim de discutir o caso. O diálogo de ambos é brilhante. Kohlhaas afirma que desistirá do caso se Martinho Lutero assim o desejar. Lutero chama-o de louco mas desiste de pedir a Kohlhaas que pare após ouvir seus argumentos. Para Kohlhaas é fundamental viver numa terra onde seus direitos estejam assegurados.
Não pensem que a novela restringe-se ao social. Ela é sociológica e ontológica. A psicologia e as justificativas de Kohlhaas para punir com as armas quem se interponha entre ele e a lei são esmiuçadas por Kleist. Em certos momentos, desejamos auxiliar o criminoso a encontrar o desonesto von Tronka e minuciosamente matá-lo… A vingança é desproporcional? Kohlhaas poderia muito bem alimentar seus cavalos e esquecer o pleito? Pois é.
Pelo amor exacerbado à lei, torna-se ladrão e assassino. Este livro — que deveria constar nos Cursos de Direito — me fala muito de perto e talvez este sentimento possa ser compartilhado por vários de vocês. A narrativa de Kleist é vertiginosa e guarda pouca relação com o verboso romantismo. É romântica pelo idealismo, nunca pelo palavreado inútil. A narrativa tem a obsessão e o ritmo de Kohlhaas. Kleist conta a história em linha reta, sem tergiversões ou divagações. É um legítimo pré-Kafka. Agora, por que há tão poucas edições no Brasil? Ah, meu amigo…
Cada qual sabe amar a seu modo; o modo, pouco importa; o essencial é que saiba amar.
Machado de Assis, em Missa do Galo
Anteontem, me senti como o Nogueira da Missa do Galo, o que não entendeu D. Conceição.
Eu esperava a Elena chegar enquanto uma mulher roçava-se em seu amigo ou amante ou marido, olhando para mim. Sempre olhando para mim. Na hora, achei que fosse algo casual — vocês sabem, estou a anos-luz de ser um Paul Newman ou Alain Delon, além disso, estou perto dos sessenta, isto é, sou feio e sem atrativos –, mas quando voltava meus olhos para lá, ela me olhava.
Impossível dizer que seja envergonhado, mas também não sou cara-de-pau. Minha possível vergonha fica sob o Homo Faber que sou e aquilo que posso chamar de Homo Ludens, alguém sempre pronto a se divertir. Esta criança interior ri, avacalha e satiriza muito. De certa forma, ela me protege.
E comecei a ficar irônico. Eu dava um tempo, mas quando passava meus olhos pela cena, estava sendo observado. E aguardava… Era um local absolutamente público, aberto, na rua. Cada um se excita a seu modo, talvez dissesse Machado. Há parafilias para todos os gostos. O exibicionista tem a fantasia de que o observador ficará sexualmente excitado, o que só aumenta sua própria excitação. Então, eu era um reles apoio. Como não se divertir, ainda mais que estava esperando, sem fazer nada?
Elena chegou toda linda e feliz. Sempre fico surpreso com sua alegria ao me ver.
.oOo.
O conto Missa do Galo é uma das obra-primas de Machado. As histórias de Machado costumam ser assim: ele conta o que ocorreu trinta anos. A Missa também é um conto retrospectivo. Maduro, o narrador Nogueira relata um acontecimento do passado. Menino do interior, quando tinha 17 anos, Nogueira morava na casa do escrivão Meneses. Estava ali, no Rio de Janeiro, para estudar. Naquele ano, já de férias, prolongou sua estada na Corte a fim de assistir à Missa do Galo. O escrivão Meneses, mesmo casado com dona Conceição — uma santa, segundo o narrador — mantinha um caso extraconjugal. Todos sabiam disso, inclusive sua esposa. Uma vez por semana, dizia que iria a um teatro ou outro lugar e ia encontrar-se com a amante. A noite de Natal foi uma dessas ocasiões e Conceição devia estar especialmente ofendida.
E a santa provavelmente pensou que a saída do marido propiciaria condições para que ela própria tivesse uma aventura. Assim, ao que tudo indica — pois como sempre Machado não afirma nada — premedita um encontro com o jovem. Lendo na sala, o jovem Nogueira aguarda o horário da Missa e ela chega, procurando ser envolvente. E ele não capta as intenções de Conceição. Suas roupas, seus gestos, suas atitudes, seu andar, suas frases ambíguas são de sedução. Mas, vocês sabem, há o momento da sedução. Quando este passa, o reaquecimento é complicado. E tudo esfria, só reaquecendo inutilmente na memória de Nogueira, muito tempo depois.
Sim, não tem muito a ver com a situação que vivenciei, só o fato de eu ter ficado sem entender nada.
“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta.”
Pode-se entender, se nem mesmo o narrador entende?
Beleza e tristeza (1964) conta a história de Oki Toshio, um escritor japonês que busca uma amante do passado, Otoko Ueno, agora uma artista plástica. O romance tem um plot absolutamente comum e um desenvolvimento surpreendente. Logo nas primeiras páginas, ficamos sabendo que, no passado, Oki tinha 31 anos e sua amante era uma adolescente de 16 anos. Ela engravidou, porém a criança não sobreviveu ao parto prematuro e ao sórdido hospital escolhido por Oki para esconder o caso. Depois disso, ele se mantivera fiel à esposa e agora, aos 55 anos, desejava rever a ex-amante, sobre a qual escrevera um livro bastante culpado, franco, apaixonado e constrangedor para todos, seu maior sucesso. O interessante do livro é que a reconciliação parece ser impossível e, desta forma, os protagonistas permanecem inertes em suas vidas. Ambos parecem ter desejo na reconciliação, mas Oki vai ficando com a esposa e Otoko com a amante, a bela Keiko. Mais ativos são os coadjuvantes, que criam grande tensão dramática. A ameaçadora personagem de Keiko é uma grande criação de Kawabata (1899-1972), Nobel de 1968. Ela tem por vezes comportamentos amorais e seus planos de vingança contra Oki são perturbadores. Kawabata narra tudo com absoluta serenidade. Não é seu melhor livro, mas é um excelente romance.
Não é tão comum eu e a Elena conversarmos sobre literatura, mas às vezes o assunto surge. Creio que a coisa deverá se acentuar quando ela ler Machado de Assis… Porém, ontem, o assunto era de como a literatura russa caiu de qualidade no período pós-revolucionário. A explicação é bem simples e terrível, como vocês poderão conferir após a montagem fotográfica abaixo. Conheço apenas Babel. Fiquei muito curioso para conhecer a obras de Kharms, muito elogiado por Elena. Ainda bem que pouparam Bulgákov.
Meyerhold, Babel, Mandelstam, Mikhoels e Kharms
Em 1940, depois de torturar Vsevolod Emilevitch Meyerhold, quebraram-lhe todos os dedos e o afogaram na privada coletiva — do tipo daquelas antigas “casinhas”. Foi anunciada uma morte por fuzilamento em razão de atividades contra-revolucionárias. Na verdade, Meyerhold foi heróico. Ele se negara a assinar um documento que onde garantia a participação dele mesmo, mais Erenburg, Leonov, Pasternak, Katayev, Eisenstein e Shostakovich, numa conspiração trotskista. Nenhum dos citados foi preso. Meyerhold só assinou que ele mesmo tinha participado da tal conspiração, o que contrariou a NKDV (Comissariado do povo para assuntos internos, Ministério do Interior da URSS).
Isaac Babel não foi fuzilado por atividades contra-revolucionárias, como diz a história. Durante uma transferência de presos, feita durante o inverno e a pé de uma cidade para outra, ele caiu de fraqueza. Foi deixado para morrer na estrada. Parece que foi enterrado em vala comum por um amigo. O grande escritor morreu na neve, na floresta, também em 1940.
Osip Mandelstam morreu em 1938 no Gulag. Após escrever um poema anti-stalinista chamado Epigrama de Stálin, ele foi preso em 1934. Seu corpo passou boa parte do inverno empilhado com outros mortos e na primavera foi enterrado em um desses inomináveis túmulos coletivos.
Solomon Mikhoels foi morto em 1948 sob ordens pessoais de Stálin. A polícia foi até sua datcha e o matou. Seu corpo foi jogado na rua para dar forma à versão de que fora “atropelado por um carro”.
Daniil Kharms morreu de fome na ala psiquiátrica do hospital prisão em fevereiro de 1942. Não tinha nada de louco.
escritora Svetlana Alexievich, Prêmio Nobel de 2015
O Nobel de Literatura, concedido à bielorrussa Svetlana Alexievich, 67 anos, na última quinta-feira (7), foi a senha para que se iniciassem duas barulhentas discussões em três países: a Bielorrússia (ou Belarus), a Rússia e a Ucrânia.
A primeira delas envolve a nacionalidade da literatura e da própria Alexievich. Os russos dizem que ela escreve em russo e nasceu na União Soviética. Colocando inadvertidamente lenha na fogueira, a própria autora disse, logo que recebeu o prêmio: “É muito perturbador. O Nobel evoca imediatamente os grandes nomes de Búnin, Pasternak e Brodsky”. Todos russos.
Ivan Búnin (Nobel de Literatura de 1933) e Boris Pasternak (recebeu em 1960) nasceram na Rússia czarista, produziram na União Soviética e foram opositores ao regime. Búnin, inclusive, emigrou e morreu na França. Joseph Brodsky (Nobel de 1987) nasceu durante a Segunda Guerra e morreu em Nova Iorque, exilado. Todos escreviam em russo. E Svetlana Alexievich também. Então, como ela não escreve em bielorrusso… Para os russos, ela é russa.
E a Ucrânia entre no jogo pelo simples fato da escritora ter nascido em seu solo e de ter mãe ucraniana, mesmo que tenha ido para Minsk ainda quando criança. Então é ucraniana.
Porém, para os bielorussos, ela cresceu, estudou e se formou como jornalista no país. O pai era um militar bielorrusso que fora transferido temporariamente para a Ucrânia. Além disso — e eles estão corretos –, ela sofreu enorme influência de grandes escritores do país, como Alés Adamóvich, o fundador do gênero de romance-documentário que a escritora pratica. Então é bielorrussa.
Lukashenko vê sua inimiga premiada
A outra discussão
A outra discussão gira em torno dos temas dos livros de Svetlana Alexievich. A partir de entrevistas — ela é uma extraordinária entrevistadora — a autora se dedica a criar painéis de vozes reais. Seus livros são “romances coletivos”, também conhecidos como “romances corais”, ou “romances de evidências”. São pessoas que falam de si mesmas numa espécie de coral.
Tais corais são formados por vozes de sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, do acidente nuclear de Chernobyl, da campanha no Afeganistão, etc. Também há um livro sobre como o povo sentiu a passagem do comunismo para o capitalismo. São relatos pessoais, onde, apesar de a política permanecer subjacente, têm um tom de forte crítica a várias gerações de governantes da União Soviética, Bielorrússia e Rússia.
(A Bielorrússia tem o mesmo presidente desde a implosão da União Soviética. Aleksandr Lukashenko, conhecido como O Último Tirano da Europa, está no cargo desde 1994 em sucessivas e mui discutidas reeleições).
Deste modo, o Nobel teria sido concedido a uma pessoa que dedica-se a tecer críticas à sociedade russa e bielorrussa, isto é, a uma pessoa de posições claras, non grata para muitos.
Então, na quinta-feira à noite, enquanto os amigos de Svetlana Alexievich faziam uma enorme festa numa vinoteca de Minsk, parte dos jornais e redes sociais locais referiam-se a um Nobel dado a uma autora que “odeia nosso país”.
A escritora em Portugal, na ocasião do lançamento de seu único livro traduzido para nossa língua
Europeia
A escritora fala com grande tranquilidade sobre a primeira questão levantada, a de sua nacionalidade. “Eu sou europeia. Nasci na Ucrânia, de uma família que era metade do local e metade bielorrussa. Quase imediatamente após meu nascimento, fomos para a Bielorrússia. Durante mais de 12 anos eu vivi na Itália, Alemanha, França e Suécia. E há dois anos, voltei para Minsk”.
A Academia Sueca, anunciando sua vitória, elogiou os “escritos polifônicos” de Alexievich, descrevendo-os como “um monumento ao sofrimento e à coragem em nosso tempo”. Muito influenciada pelo escritor Alés Adamóvich, que considera como seu mestre, Alexievich tem a particularidade de deixar fluir diferentes vozes em torno de um tema. Ela esclarece diversos destinos individuais, descrevendo mosaicos que criam a certeza de tragédias reais. Alexievich trabalha decididamente na faixa do drama e da morte.
A edição portuguesa da Porto
Os livros
Em 1989, ela publicou Tsinkovye Málchiki (Meninos de Zinco), sobre a experiência da guerra do Afeganistão. Para escrevê-lo, percorreu o país entrevistando mães de soldados mortos no confronto. Em 1993, publicou Zacharov-annye Smertiu (Encantados pela morte), sobre os suicídios cometidos por aqueles que não haviam conseguido sobreviver ao fim do socialismo. Em 1997, foi a vez de Vozes de Chernobyl, um aterrador retrato da tragédia cuja devastação radioativa atingiu principalmente a Bielorrússia. O livro vendeu 2 milhões de exemplares em língua russa.
No ano passado, foi lançado O Tempo de Segunda Mão (ou O Fim do Homem Soviético, em Portugal). Nesse novo trabalho, Alexievich se propõe a “ouvir os participantes do drama socialista”. Para a escritora, o “homo sovieticus” ainda continua vivo, e não é apenas russo, mas também bielorrusso, turcomano, ucraniano, casaquistanês, etc. “Hoje vivemos em Estados distintos, falamos línguas distintas, mas somos inconfundíveis, rapidamente reconhecidos. Todos nós somos filhos do socialismo”, afirma, referindo-se a seus “vizinhos de memória”. “O mundo mudou completamente e não estávamos realmente preparados para isso”
Falando à emissora sueca SVT, Svetlana Alexijevich disse que o prêmio a deixou com um sentimento “complicado”. A academia telefonou para ela enquanto estava em casa “deixando passar o momento da divulgação do vencedor”, disse ela, acrescentando que os mais de 3 milhões de reais do prêmio “comprariam sua liberdade”. “Demoro muito para escrever meus livros, de cinco a 10 anos cada um. Eu tenho duas ideias para novos livros, por isso estou muito satisfeita: agora vou ter dinheiro e tranquilidade para trabalhar neles.”
Os romances corais
Alexievich nasceu no dia 31 de maio de 1948 na cidade ucraniana de Ivano-Frankovsk. Após a desmobilização do pai do exército, a família retornou à Bielorrússia e se estabeleceu em uma aldeia onde ambos os pais trabalhavam como professores. Ela deixou a escola para trabalhar como repórter no jornal local na cidade de Narovl.
Alexievich escreve contos, ensaios e reportagens, mas diz que só encontrou sua voz sob a influência de Alés Adamóvich. Na cerimônia de divulgação do prêmio, a crítica literária Sara Danius disse que “não se trata de uma escritora de eventos nem de análise política, é uma historiadora de emoções. O que ela nos oferece é realmente um mundo emocional. O desastre nuclear de Chernobyl e a guerra soviética no Afeganistão são pretextos para explorar a indivíduo soviético e pós-soviético”.
Chernobyl, o horror
Em Vozes de Chernobyl, Alexievich entrevista centenas de pessoas afetadas pelo desastre nuclear, indo desde uma mulher que, agarrada a seu marido morto, ouve os enfermeiros lhe dizerem que “isso não é mais uma pessoa, é um reator nuclear”, até os soldados enviados ao local. Fala de suas raivas por terem sido “arremessados lá, como areia no reator”. Em Meninos de Zinco, ela reúne vozes da guerra do Afeganistão: soldados, médicos, viúvas e mães.
“Eu não pergunto às pessoas sobre a política, eu pergunto sobre suas vidas: o amor, o ciúme, a infância, a velhice”, escreveu Alexievich na introdução ao O Tempo de Segunda Mão (O Fim do Homem Soviético). “Me interessam não apenas as tragédias vividas, mas a música, as danças, as roupas, os penteados, os alimentos. Os detalhes diversos de uma maneira desaparecida de viver. Esta é a única maneira de perseguir a catástrofe”.
“A história está interessada apenas em fatos; as emoções são excluídas do seu âmbito de interesse. É considerado impróprio admiti-los na história. Eu olho para o mundo como uma escritora, não como uma historiadora. Eu sou fascinada por pessoas “.
Seu primeiro livro, A guerra não tem rosto de mulher, tem como base entrevistas com mulheres que participaram da Segunda Guerra Mundial. “É uma exploração da Segunda Guerra Mundial a partir de uma perspectiva que era, antes do livro, quase completamente desconhecido “, disse Danius . “Ela conta a história de mulheres que estavam na frente de batalha na segunda guerra mundial. Quase um milhão de mulheres soviéticas participaram na guerra, e esta era uma história desconhecida. A obra foi um enorme sucesso na União Soviética, vendendo mais de 3 milhões de cópias. É um documento comovente e íntimo, trazendo para muito perto de nós cada indivíduo.”
Tradutores, editores e leitores
A edição alemã de “A guerra não tem rosto de mulher”
Embora Alexievich tenha sido traduzida para o alemão, francês e sueco, ganhando uma série de importantes prêmios por seu trabalho, as edições em inglês do seu trabalho são escassas. Em Portugal, O Fim do Homem Soviético saiu este ano pela Porto Editora.
Seu editor francês diz que este livro é uma pesquisa micro-histórica da Rússia da segunda metade do século XX, indo até os anos Putin. Aliás, Alexievich é uma das vozes de oposição, costumando criticar duramente Putin e Lukashenko em palestras para leitores.
Bela Shayevich, que atualmente está traduzindo Alexievich para o inglês disse que “esta vitória significa que mais leitores serão expostos às dimensões metafísicas de sobrevivência e desespero das tragédias da história soviética. Espero que mais pessoas entendam o sofrimento provocado por circunstâncias geopolíticas estranhas a elas”.
A opinião geral de seus admiradores é a de que seus livros são muito incomuns e difíceis de categorizar. São tecnicamente não-ficção, mas recebem um belíssimo tratamento literário e de trabalho de linguagem. Sua tradutora inglesa faz uma reclamação: “Os editores ingleses e americanos são relutantes em assumir riscos e não gostam de livros muito trágicos. Não investem em um livro só porque ele é bom. Agora, com Nobel, talvez a coisa mude”.
Nas entrevistas após o prêmio, perguntaram a Alexievich sobre os refugiados na Europa. “A Europa agora passa por mais um teste sobre sua própria humanidade. Estive recentemente em Mântua, na Itália, e alguns amigos me convidaram para “marchar de pés descalços”. Este tipo de marcha foi organizada pela primeira vez em Veneza e agora está indo para todas as cidades. As pessoas tiram os sapatos e caminham descalças pelas cidades em solidariedade aos refugiados. Lá estavam refugiados, imigrantes e italianos solidários a eles. E isto na Itália, onde o nacionalismo é muito forte. Espero que, desta vez, a Europa seja aprovada no teste”.
Svetlana Alexievich é apenas a 14ª mulher a receber o Nobel de Literatura. Ao todo, 111 autores já foram premiados.
Estou apaixonado por essa autora. Estou lendo avidamente o Vozes de Tchernóbil (mania esse revisionismo de acentos nas palavras russas: antes era Chernobíl, Checóv, Karenina, Karamázov, agora são outras sonoridades completamente diferentes). Que livro, senhores! Não esperem história acadêmica ali, nem erudição filosófica cartorizada. A profundidade inigualável desse livro está no sentimento humano, na pureza do olhar, o olhar que extravasa a tragédia, a omissão, a política assassina. Neste livro se diz coisas tão espantosas que assustamos por enxergá-las inseridas na trivialidade, como essa: os radioisótopos espalhados pelo acidente permanecerão pelo planeta 200 mil anos, são imortais comparados a nós. Esse livro, para mim, é o alívio gratificante de encontrar uma resposta ao documentário da BBC sobre Tchernóbil que eu assisti há 2 anos, que mostra os generais soviéticos computando todas as vidas perdidas na indiferença acintosa dos monumentos aos heróis: Svetlana restitui a riqueza humana desses assassinados e desses suicidas, nega-lhes a frieza das estatísticas. Um livro que todo mundo deveria ler, imediatamente. O sarcófago, a estrutura de aço construída em torno do reator 4 de Tchernóbil, expiou seu prazo de validade nesse ano, 30 anos depois. Se as chamas tivessem alcançado os outros três reatores, teria sido, literalmente, o fim da humanidade, a nossa extinção. 4 dias depois do acidente, nuvens de Césio-137 e Urânio-235 expelidas em Tchernóbil já estavam na China, na África, e pelos céus de vários países europeus. As narrativas desse livro_ impressiona saber serem colhidas em entrevistas, devido suas altas qualidades literárias_, mostram o quanto devemos nossas vidas ao sofrimento e morte dessas pessoas. É simplesmente um livro sublime e vasto. A Companhia das Letras prometeu publicar toda a bibliografia da autora.
“Os dias deslizam como se fossem líquidos. Não tenho mais cadernos onde escrever. Também não tenho mais canetas. Escrevo nas paredes, com pedaços de carvão, versos sucintos. Poupo na comida, na água, no fogo e nos adjetivos.”
Tive minha atenção chamada para este livro de José Eduardo Agualusa em função da shortlist do prêmio literário britânico Man Booker International, que premia o melhor livro lançado no ano anterior em língua inglesa, incluindo as traduções. Ele ficou entre os seis melhores de 2015. Uma lista absolutamente entusiasmante, segundo o The Guardian. Este livro de Agualusa é de 2012, mas foi traduzido para o inglês apenas no ano passado.
Teoria Geral do Esquecimento conta a história de Ludovica, ou Ludo, uma portuguesa que vive em Angola em 1975. Quando ocorre a independência do país, ela se vê sozinha sem saber o que aconteceu à irmã e ao cunhado, com quem mora. Eles, como tantos outros, somem. E ela se isola de forma inusitada, evitando que seu enorme apartamento seja invadido. Para conseguir isso, ergue uma parede que a mantém fechada em casa durante 28 anos. De forma distorcida, porém estranhamente clara, o que acontece em Luanda, capital de Angola, ainda lhe chega. Bela parábola, Teoria Geral do Esquecimento é um romance sobre a sobrevivência, o medo do outro, o racismo e a xenofobia, tudo isso milagrosamente condensado. A violência da Guerra Civil — que durou de 1975 a 2002 — não está ausente do livro.
O curioso é que Agualusa concebeu este romance para ser filmado. O filme nunca saiu, mas o romance-filme pode ser pressentido, tanto em seu conteúdo como na forma que monta seus personagens em cenas sem nexo aparente num primeiro momento. Essas histórias aparentemente isoladas, no caos de uma guerra civil, vão se unindo. Cada capítulo amarra um ponto a outro, construindo relações e uma história de poesia dura e sensível. Tudo acaba num vaudeville que não pretendo contar… A impressão causada é espantosa. Apesar de tecido sobre as dores, a violência e o preconceito de uma guerra, é um romance leve, um livro que poderia ter sido escrito no Brasil, se tivéssemos Agualusas por aqui.
Recomendo.
“Não se atormente mais. Os erros nos corrigem. Talvez seja necessário esquecer. Devíamos praticar o esquecimento.”
No quarto centenário das mortes de Shakespeare e Cervantes, a tentação de os comparar é irresistível. O inglês é o claro favorito a maior escritor de todos os tempos, mas D. Quixote e Sancho Pança são dos poucos rivais à altura de um Hamlet ou de um Rei Lear.
Quadro D. Quixote no quarto de D. Pedro IV, Palácio Nacional de Queluz | Enric Vives-rubio
Aqueles que são provavelmente os dois escritores mais influentes da história da literatura, o inglês William Shakespeare (1564-1616) e o espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), morreram (quase) no mesmo dia, há 400 anos. E se Shakespeare é talvez o verdadeiro centro do cânone ocidental, como pretende o crítico americano Harold Bloom, já não é certo que alguma das suas personagens, nem mesmo Hamlet, o neurótico príncipe da Dinamarca, ultrapasse a popularidade de D. Quixote, o cavaleiro da triste figura criado por Cervantes.
Pese embora todo o prestígio acumulado pelo introspectivo e enigmático super-herói literário Batman-Hamlet, no campo de batalha da crítica não é menos considerável a claque dos que apreciam o jogo franco do galhardo e leal Superman-Quixote.
Um dos primeiros a intuir que colocá-los frente a frente no ringue daria um combate memorável foi o ficcionista russo Ivan Turguenev, que em 1860 dedicou toda uma extensa conferência (traduzida para inglês e publicada na Chicago Review em 1965) à comparação entre Hamlet e Quixote, concluindo que ambos representam expressões extremas de duas tendências humanas discordantes: o altruísmo, a fé inabalável, a capacidade de auto-sacrifício, a força de vontade, o entusiasmo, que o fidalgo da Mancha levaria aos limites da alucinação, isto é, da comédia, e o poder de análise, o escrutínio interior, o egotismo, a descrença, a incapacidade de amar, exacerbados em Hamlet ao ponto da tragédia.
Quixote, que vê gigantes onde outros veem moinhos, e arremete contra um rebanho de ovelhas convicto de que ataca uma hoste de cavaleiros, “pode às vezes parecer um perfeito maníaco”, concede o escritor russo. Mas “a solidez da sua estrutura moral imprime a tudo o que diz ou faz uma particular gravidade”, observa, e essa dimensão ética confere-lhe uma dignidade que resiste às “situações absurdas e às humilhações em que incessantemente tropeça”.
Já Hamlet, diz Turgenev, é alguém que se “espia a si próprio” e que, “duvidando de tudo, inclui impiedosamente o seu próprio eu nessas dúvidas”. Mas se este auto-conhecimento o torna dolorosamente consciente das suas próprias fraquezas, diz o romancista de Pais e Filhos, “ele é em si próprio uma força, da qual emana a ironia, que é precisamente a antítese do entusiasmo de D. Quixote”.
Turguenev nunca assume claramente a sua predileção por D. Quixote e respectivo autor, e até reconhece que o dramaturgo inglês, pela “opulenta e poderosa imaginação”, pelo “brilho do seu talento poético” e pelo “intelecto incomparável” é de facto “um gigante ao pé de Cervantes”. No entanto, argumenta, se o âmbito da arte do espanhol é mais exíguo do que o de Shakespeare, que se serve, para os seus desígnios, “de quanto exista na terra e no céu”, o confinado mundo cervantino basta ainda assim para “refletir tudo o que pertence à natureza humana”.
Mas o passo em que o russo mais denuncia a sua afinidade eletiva é talvez quando argumenta que, em toda a sua simplicidade, D. Quixote “é um autêntico fidalgo”, ao passo que Hamlet, “com toda a sua etiqueta cortesã, dá ares de parvenu”.
Turguenev abre a sua palestra – originalmente escrita para uma leitura pública em favor de uma associação de auxílio a escritores indigentes -, assinalando a coincidência de Hamlet ter sido originalmente publicado no mesmo ano em que saiu dos prelos a primeira parte do D. Quixote, uma coincidência fascinante, mas não inteiramente verdadeira.
Não contabilizando uma hipotética peça desaparecida que teria constituído um primeiro esboço de Hamlet, atribuída por alguns autores ao dramaturgo Thomas Kyd (1558-1594), a primeira impressão que se conhece é de 1603, mas resume-se a 2200 versos, pouco mais de metade dos 3800 que compõem a edição publicada logo no ano seguinte. Turgenev terá considerado com razão que a verdadeira edição original era esta de 1604, e dela se conhecem efetivamente alguns exemplares com data de 1605, o ano em que Cervantes deu à estampa a parte inicial da sua obra-prima.
Já depois da morte de Shakespeare, dois atores da sua companhia, John Heminges e Henry Condell, organizaram em 1623 uma compilação das peças do dramaturgo – Mr. William Shkespeare’s Comedies, Histories, and Tragedies, há muito conhecida por First Folio -, que inclui uma versão de Hamlet apenas ligeiramente mais curta do que a de 1604. Numa recente tradução portuguesa da peça, publicada pela Relógio D’Água, António M. Feijó opta por fundir ambas, mantendo todos os versos da edição de 1604 que não surgem na de 1623 e vice-versa.
Para abordar qualquer autor, é bom antes medir seu tamanho, só que Shakespeare é tão alto que jamais este pobre comentarista poderá subir sobre seus ombros a fim de admirar com clareza sua criação. E o que digo não é exagerado. William Shakespeare, nascido e morto na mesma Stratford-upon-Avon, no mesmo dia 23 de abril, o primeiro de 1564, o segundo de 1616, ocupa a mesma posição de Johann Sebastian Bach na música, a de pedra fundamental, a de base, referência e refúgio, a de religião secular de escritores, dramaturgos, atores e interessados na cultura. Por exemplo, o ensaísta Harold Bloom, em seu livro Shakespeare: a Invenção do Humano, pergunta: O que era o homem antes de Shakespeare? E responde, com certo exagero, que era um Personagem de dimensão quase inexistente.
É difícil de acreditar que Shakespeare tenha vivido apenas 52 anos. Sua obra é imensa em extensão e em qualidade mesmo que se considere o aspecto colaborativo existente entre os autores elisabetanos. Explico: os escritores do século XVI produziam e tinham perfis muito pouco romantizados. Talvez apenas os poetas escreviam para “expressarem-se”. Os ficcionistas e dramaturgos eram operários com prazos a cumprir. A necessidade ditava o ritmo e as companhias teatrais muitas vezes recorriam a diversos autores para chegar ao texto final de uma peça. E os autores não tinham pudor para pegar emprestados trabalhos alheios.
Com isso, não desejo de modo algum diminuir Shakespeare — afinal, os manuscritos demonstram a autoria de suas peças –, mas ele mesmo dizia roubar trechos de outros e brincava que, às vezes, “boas filhas nascem em más famílias” e que cumpria corrigir a natureza… É claro que ocorria também o contrário, pois era comum uma filha bem estabelecida migrar para uma família disfuncional. Porém, se você é desses que odeia plágio, pense no que escreveu Jorge Luis Borges: Sou todos os autores que li, todas as pessoas que conheci, todas as aventuras que vivi.
Entre os plagiados por Shakespeare, há autores como Robert Greene, Marlowe e muitos outros. Mas, meus amigos, a obra é de Shakespeare. Carradas de versos de suas peças apareceram pela primeira vez… nas suas peças. Por falar em versos, como é complicado encontrar uma boa tradução de Shakespeare! Minha mulher conheceu Shakespeare em seu país, em traduções de Boris Pasternak e Samuil Marshak para o russo. Quando pegou uma edição brasileira de Sonhos de uma noite de verão, não entendeu nada. Sua primeira pergunta foi Cadê as rimas? Como não os encontrou na edição que ganhara de um (grande) amigo nosso, largou o volume. Sim, Shakespeare escreveu tudo aquilo em versos, mas o que se lê no Brasil é quase sempre prosa. As traduções em verso parecem coisa do passado. E não considero grande coisa as traduções disponíveis, apesar da liberdade autoconcedida. A escolha da estratégia poderia variar muito: traduzir em prosa ou em verso, com rima ou sem rima, em decassílabos ou dodecassílabos ou em verso livre, aproximar a linguagem do leitor contemporâneo ou procurar manter um certo distanciamento recorrendo a um vocabulário mais arcaico. Enfim.
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William Shakespeare foi poeta, dramaturgo e ator. Na verdade, como todos sabem, é tido como o maior escritor do idioma e o mais influente dramaturgo do mundo. É chamado frequentemente de poeta nacional da Inglaterra e de “O Bardo”. De suas obras, incluindo aquelas em colaboração, restaram até os dias de hoje 38 peças, 154 sonetos, dois longos poemas narrativos, e mais alguns versos esparsos. É bastante coisa. Suas peças foram traduzidas para todas as principais línguas modernas e são mais encenadas que as de qualquer outro dramaturgo. Muitos de seus textos e temas, especialmente os do teatro, permanecem vivos e são revisitados até hoje.
Shakespeare nasceu e foi criado em Stratford-upon-Avon. Aos 18 anos, casou-se com Anne Hathaway. Tiveram 3 filhos: Susanna e os gêmeos Hamnet e Judith. Entre 1585 e 1592, Shakespeare começou uma carreira bem-sucedida em Londres como ator, escritor e empresário teatral. Era um dos proprietários de uma companhia de teatro chamada Lord Chamberlain’s Men, mais tarde conhecida como King’s Men. Acredita-se que ele tenha retornado a Stratford em torno de 1613, morrendo três anos depois. Pouco se sabe da vida privada de Shakespeare, e há muitas especulações sobre sua aparência física, sexualidade, crenças religiosas, etc.
Royal Shakespeare Theatre em Stratford-upon-Avon
Shakespeare produziu a maior parte de sua obra entre 1590 e 1613. Suas primeiras peças eram principalmente comédias ou obras baseadas em eventos e personagens históricos, gêneros que levou ao ápice da sofisticação e do talento artístico. Depois, passou às tragédias, criando Hamlet, Rei Lear e Macbeth, consideradas algumas das obras mais importantes na língua inglesa. Na sua última fase, escreveu conjuntos de peças classificadas normalmente como tragicomédias, mas que mais parecem poesias, obras de alguém dotado de pleno e tranquilo domínio de sua arte.
Diversas edições de suas obras foram publicadas com variados graus de qualidade e precisão, durante sua vida. Em 1623, John Heminges and Henry Condell, dois atores e velhos amigos de Shakespeare, publicaram o chamado First Folio, uma coletânea de obras dramáticas que incluía todas as peças (com a exceção de duas) reconhecidas atualmente como sendo de sua autoria.
Shakespeare foi respeitado em sua própria época, porém mas sua reputação só viria a atingir níveis planetários duzentos anos depois, no século XIX. Foram os românticos vitorianos que aclamaram a genialidade de Shakespeare, idolatrando-o como herói. a tal “bardolatria” a que se referia George Bernard Shaw.
O pouco do que se sabe: os primeiros anos
William Shakespeare era filho de John Shakespeare, um bem-sucedido luveiro e sub-prefeito de Stratford, e Mary Arden, filha de um rico proprietário de terras. Embora sua data de nascimento seja desconhecida, admite-se o 23 de Abril de 1564 com base no registro de seu batizado. Shakespeare foi o terceiro filho de uma prole de oito e o mais velho a sobreviver.
Shakespeare foi educado em uma boa escola, no entanto, há indícios de que seu pai foi obrigado a retirá-lo da educação formal quando William tinha quinze ou dezesseis anos. O motivo foi financeiro. É que, na década de 1570, John foi rapidamente à falência. Tudo indica que Shakespeare precisou trabalhar cedo para ajudar a família, aprendendo, inclusive, a tarefa de esquartejar bois e abater carneiros.
Em 1582, aos 18 anos de idade, casou-se com Anne Hathaway, uma mulher de 26 anos que estava grávida dele. Anne era de uma família endinheirada e é quase certo que o casamento de Anne e Shakespeare teria sido forçado pelos Hathaway. Pouco se sabe dela. Anne apareceria escondida em vários escritos de seu famoso marido, como ao final do Soneto 145. Ele amava a mulher.
‘I hate’ from hate away she threw, And saved my life, saying ‘not you.’
Estes lábios que a mão do Amor criou,
Entreabriram-se para dizer, “Eu odeio”,
A mim que sofria de saudades dela:
Mas, ao ver meu estado desolado,
Seu coração se tomou de piedade,
Repreendendo a língua, que, sempre tão doce,
Foi gentilmente usada para me exterminar;
E ensinou-lhe, assim, a dizer, novamente:
“Eu odeio”, alterou-se, por fim, sua voz,
Que se seguiu como a noite
Segue o dia, que, como um demônio,
Do céu ao inferno é atirado.
“Eu odeio”, do ódio ela gritou,
E salvou-me a vida, dizendo – “Tu, não”.
Após o nascimento dos gêmeos, há pouquíssimos vestígios históricos a respeito de Shakespeare, até que ele é mencionado como parte da cena teatral de Londres em 1592. Os estudiosos referem-se aos anos de 1586 a 1592 como os “anos perdidos de Shakespeare”. As tentativas de explicar por onde andou William Shakespeare durante esses seis anos fizeram surgir dezenas de histórias, provavelmente mentirosas. Nicholagas Rowe, o primeiro biógrafo de Shakespeare, conta que ele fugiu de Stratford para Londres devido a uma acusação envolvendo o assassinato de um veado numa caça não permitida.
O período londrino e a morte
Não se sabe exatamente quando Shakespeare começou a escrever, mas registros de performances mostram que várias de suas peças foram representadas em Londres em 1592. A época, sob Elizabeth I, favorecia o desenvolvimento cultural e artístico. O teatro deste período, conhecido como elisabetano, foi de grande importância para os ingleses — da alta sociedade, claro. Na época, além de muito popular, o teatro também era também publicado, vendido e lido. Havia companhias que compravam os textos dos autores em voga e depois vendiam-nos para as tipografias. Estas tinham um grande público leitor, o qual fazia com que as obras se popularizassem rapidamente.
Certamente a carreira de Shakespeare começou em qualquer momento a partir de meados dos anos 1580. Ao chegar em Londres, há uma tradição que diz que Shakespeare não tinha amigos nem dinheiro. Não obstante a família de Anne, ele estaria arruinado. Segundo quase todos os biógrafos do século XVIII, ele foi arranjou um emprego numa companhia de teatro. Começou num serviço pequeno, e logo foi subindo de cargo, chegando a atuar. Ele dividiria suas atividades entre tomar conta dos cavalos dos espectadores do teatro, atuar no palco e auxiliar nos bastidores. Porém, segundo Rowe, Shakespeare entrou no teatro como ponto, encarregado de avisar os atores o momento de entrarem em cena.
Estátua de William Shakespeare em Leicester Gardens, Londres
Contudo, o grande Shakespeare era um mau ator e seu limitado talento o teria levado a experimentar escrever peças. Shakespeare teria voltado para Stratford algum tempo antes de sua morte; mas a aposentadoria ainda não tinha sido inventada e ele continuou a visitar Londres para ver sua filha que morava na cidade e apresentar novas peças suas a grupos teatrais.
William Shakespeare morreu em 23 de Abril de 1616, mesmo dia de seu aniversário. Há lendas a respeito. Dizem que ele, já doente, teria se embriagado com os dramaturgos e poetas Ben Jonson e Michael Drayton e seu estado se agravou.
Ele deixou a maior parte de sua herança para sua filha mais velha, Susanna. Isso intriga os biógrafos, porque Anne Hathaway sobreviveu dez anos ao dramaturgo. O escritor Anthony Burgess tem uma explicação ficcional sobre isso. Em Nada como o Sol, ele cita que Shakespeare viu seu irmão Richard com Anne. Nus e abraçados. Tudo invenção.
Os restos mortais de Shakespeare foram sepultados na igreja da Santíssima Trindade (Holy Trinity Church) em Stratford-upon-Avon. Parece que sem o crânio… Acredita-se que Shakespeare temia o costume de sua época de esvaziar as sepulturas mais antigas para abrir espaços a novas e, por isso, fez questão de colocar um claro epitáfio na sua lápide, que anunciava uma maldição para quem removesse seus ossos.
Bom amigo, por Jesus, abstém-te de profanar o corpo aqui enterrado. Bendito seja o homem que respeite estas pedras, e maldito o que remover meus ossos.
Rápidos comentários sobre as peças
Os estudiosos costumam dividir a dramaturgia de Shakespeare em quatro períodos. Até meados de 1590, ele escreveu principalmente comédias e dramas históricos, influenciado por modelos de peças romanas e italianas. O segundo período iniciou-se aproximadamente em 1595 e seria o “romântico”. De 1600 a 1608, seria o “período sombrio”, o de grandes como tragédias Hamlet, Rei Lear e Macbeth. E entre 1608 a 1613, os das tragicomédias.
Os primeiros trabalhos conhecidos de Shakespeare são os dramas históricos Ricardo III e Henry V, escritos em 1590. É complicado datar as primeiras peças de Shakespeare, mas estudiosos de seus textos sugerem que A Megera Domada, A Comédia dos Erros e Titus Andronicus pertencem também ao seu primeiro período. Suas primeiras histórias dramatizam os resultados destrutivos da corrupção do Estado. São textos influenciados por obras de outros dramaturgos elisabetanos, especialmente Thomas Kyd e Christopher Marlowe, assim como pelas tradições do teatro medieval.
Elizabeth Taylor e Richard Burton em A Megera Domada
Em meados da década de 1590, o amor e a comédia tomou conta de sua obra. Sonho de uma Noite de Verão é uma deliciosa mistura de romance espirituoso e fantasia. Muito Barulho por Nada, O Mercador de Veneza, Tudo está bem quando acaba bem, As Alegres Comadres de Windsor, Trabalhos de Amores Perdidos, Do jeito que você gosta (As you like it) e Noite de Reis fazem parte de uma sequência de ótimas comédias.
Al Pacino em O Mercador de Veneza
Depois, seus personagens tornam-se cada vez mais complexos e alternam entre o cômico e o dramático, expandindo suas identidades. O chamado período “trágico” começou com Romeu e Julieta e durou de 1600 a 1608, embora durante esse período ele tenha escrito também a cômica Medida por medida. O auge de sua obra seria Hamlet. Provavelmente, é o personagem shakespeariano mais discutido dentre todos. Hamlet pensa antes de agir, é inteligente, perceptivo e observador. Porém, ao contrário do reflexivo Hamlet, os heróis das tragédias que se seguiram, em especial Otelo e Rei Lear, são precipitados e mais agem do que pensam. Tais atitudes acabam por destruí-los assim como a quem amam. Em Otelo, o ciumento personagem-título acaba assassinando sua mulher, por quem estava apaixonado. Ela era inocente. Em Rei Lear, o velho rei comete o erro de abdicar de seus poderes. Outra obra-prima. Segundo o crítico Frank Kermode, “a peça não oferece nenhum personagem divino ou bom, e não supre da audiência qualquer tipo de alívio de sua crueldade”. Macbeth, a mais curta e compacta tragédia shakespeariana, narra a incontrolável ambição de Macbeth e sua esposa, Lady Macbeth, que matam o rei da Escócia para acabarem num mar de corrupção, culpa e sangue.
Cena da espetacular versão de Akira Kurosawa para Macbeth: Trono Manchado de Sangue
No seu último período, Shakespeare centrou-se na tragicomédia, escrevendo três importantes peças: Cimbelino, Conto de Inverno e A Tempestade. Menos sombrias do que as tragédias, estas revelam um tom mais grave de comédia, com suas personagens reconciliando-se ao final e perdoando todos os erros uns dos outros. É uma mudança de estilo para a serenidade. Na minha opinião, A Tempestade, com personagens como Próspero, Miranda e Caliban, é a maior de suas peças. Ou a que mais gosto de ler.
“Nós somos feitos da mesma matéria dos sonhos;
com nossa curta vida cercada por dois sonos”.
Uma montagem moderna para A Tempestade
Sonetos
Publicado em 1609, Sonetos não tinham fins dramáticos, era apenas poesia. Não há certeza sobre quando cada um dos 154 sonetos da obra foram compostos, mas evidências sugerem que Shakespeare as escreveu durante toda sua carreira para leitores particulares. Também é incerto se foram escritos para pessoas reais. São profundas meditações sobre a natureza do amor, a paixão, a morte e o tempo.
Poemas
Em 1593 e 94, os teatros foram fechados por causa da peste. Sem trabalho, Shakespeare publicou dois poemas eróticos, hoje conhecidos como Vênus e Adônis e O Estupro de Lucrécia. Ele os dedica a Henry Wriothesley, o que fez com que houvesse várias especulações a respeito. Em Vênus e Adônis, um inocente Adônis rejeita os avanços sexuais de Vênus (mitologia); enquanto que o segundo poema descreve a virtuosa esposa Lucrécia que é violada sexualmente. Ambos os poemas, influenciados pelas Metamorfoses de Ovídio, demonstram a culpa e a confusão moral versus volúpia descontrolada. Ambos tornaram-se populares e foram diversas vezes republicados durante a vida de Shakespeare. Uma terceira narrativa poética acompanhava os Sonetos: em A Lover’s Complaint, uma jovem lamenta ter sido seduzida.
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O Globe, palco de Shakespeare em Londres
Vista aérea do atual Shakespeare`s Globe de Londres. Prédio vazado (clique para ampliar)
O Globe Theatre de Londres é associado ao maior dramaturgo de todos os tempos: William Shakespeare. A casa foi construída em 1599 por sua companhia de teatro. Shakespeare detinha 12,5 % das ações da mesma. Dois dos seis acionistas – Richard Burbage e seu irmão Cuthbert Burbage – possuíam 25% cada e um quarteto de 12,5% cada era formado por John Heminges, Agostinho Phillips, Thomas Pope e o famoso dramaturgo. Foi o primeiro teatro construído por atores para atores. Porém, após estrear várias peças do grande autor, o Globe foi destruído por um incêndio no dia 29 de junho de 1613, exatamente há 400 anos. O Globe foi inaugurado no outono de 1599, com Júlio César e a maioria das grandes peças de Shakespeare pós-1599 foram escritas para o teatro.
Uma gravura de época que mostra o famoso teatro de Shakespeare
No século XVII, qualquer incêndio podia transformar-se numa grande tragédia, tanto que em 1666, um terço da cidade foi destruída pelo fogo. As ruas eram estreitas, herança da transformação urbana acelerada a partir do século XIII, quando Londres virou capital do reino. A técnica contra incêndios era muito prosaica: eram usados baldes d`água e, quando não funcionavam, era providenciada a derrubada das construções contíguas para impedir o espraiamento do fogo. Só que a decisão de derrubar casas dependia de uma autorização do prefeito da cidade, que analisava empiricamente os ventos e a umidade do ar e das casas. Risco completo.
A pintura acima é de autor desconhecido. As chamas que consumiram Londres em 1666 podiam ser vistas a 60 km de distância.
A indecisão para se fazerem as derrubadas era compreensível diante de seus custos, tanto de demolição quanto de reconstrução. No grande incêndio de 1666, houve demasiada hesitação e, quando as demolições foram autorizadas, grande parte da cidade já estava em chamas. Então os imóveis passaram a ser simplesmente explodidos, o que criou outros focos de fogo. Também não se sabia o número de vítimas dos sinistros pelo simples fato de que os não nobres não eram registrados. Do ponto de vista do estado, sumia gente que não existia. No grande Incêndio foram destruídas, pelo fogo e pela ação humana, 13.200 casas e uma área de 1,7 km²
Antes do incêndio, nos quase 15 anos em que esteve ativo, o Globe foi um estrondoso sucesso. No século XVI, as companhias de teatro apresentavam-se em locais improvisados, geralmente em bares ou na rua. Em 1576, James Burbage construiu o The Theater, primeira casa do gênero do país. Em 1581, Shakespeare juntou-se a Burbage escrevendo peças e trabalhando como ator. Apesar da casa sempre lotada, sobrevieram problemas financeiros e a casa acabou fechada. A curiosidade é que o Globe foi construído com a madeira do desmonte do The Theater. Do mesmo modo que o Theater, o Globe vivia com a casa cheia e as peças apresentadas eram normalmente de seu famoso sócio.
O atual Globe
Então, no dia 29 de junho de 1613, o Globe incendiou durante uma performance de Henrique VIII. Um canhão de luz pegou fogo, inflamando as vigas de madeira. De acordo com os poucos documentos existentes, ninguém ficou ferido, exceto um homem que perdeu as calças, tendo sido apagadas com cerveja por seus amigos. Era o que estava à mão. As peças teatrais, naquela época, recebiam um povo ruidoso e festivo, que vibrava com as cenas, vaiava os vilões e assobiava, desejando ou não as seduções . Não havia estatuto que impedisse o uso do álcool.
O Globe foi reconstruído no ano seguinte, porém, como todos os outros teatros de Londres, foi fechado e destruído pelos puritanos em 1642, dando lugar a outro tipo de construção. Atualmente, Londres ostenta o Globe na margem do Tâmisa, na região de Southwark. Não é o ponto exato do ex-teatro de Shakespeare. Ele se localizava há uns 230m de onde está hoje. Não ficava exatamente na margem. A reconstrução é fiel e foi feita com base nos edifícios de 1599 e 1614. O atual Globe apresenta exclusivamente peças de Shakespeare. O Grupo Galpão, de Belo Horizonte, é a única companhia brasileira que se apresentou lá. Houve uma temporada de Romeu & Julieta que está documentada em DVD.
O teatro durante uma peça
Há em Shakespeare paixão, ambição, amor, inveja, traição, tudo isso temperado por poesia e lirismo absolutamente originais. O Globe era e é um edifício de forma octogonal, com abertura no centro. De dentro do teatro, vê-se o céu. Não existia cortina e, por causa disso, os personagens mortos – muita gente morre nas sanguinárias peças de Shakespeare – tinham que ser retirados por auxiliares. Todos os papéis eram representados pelos homens – mulheres eram proibidas de entrar em cena – , sendo os mais jovens os encarregados de fazerem papéis femininos. No período Globe, é certo que o autor estreou Hamlet, Otelo, Rei Lear e Macbeth, talvez Romeu e Julieta e Júlio César. Foi o chamado “Período Trágico”.
Falar de Shakespeare é como falar de um ser mitológico, de um produtor de tragédias, comédias, dramas históricos e sonetos geniais. Sua obra, assim como a de pouquíssimos outros artistas, é quase indiscutível. Em Shakespeare, a Invenção do Humano, do crítico literário Harold Bloom, nota-se a dificuldade de falar de um autor tão completo. Para Bloom, Shakespeare não apenas era dono de um cérebro muito privilegiado, como também criou personagens igualmente inteligentíssimos, que seriam capazes de refletirem sobre si próprios, sobre a interação com os outros para, a partir daí, crescerem dentro das histórias, modificando suas maneiras de pensar e agir. Mas a agudeza mental dos personagens são muito bem temperadas, não existem personagens meramente frios ou chatos. Os personagens têm humor, sarcasmo, poder de sedução e são muito diferentes entre si.
O teatro vazio
Bloom destaca Hamlet e Rosalinda (de As You like it), mas talvez seja Falstaff o maior de todos. Falstaff é o soldado que não quer saber da guerra. Foi o personagem mais popular na época em que Shakespeare estava vivo. Ele aparece no drama histórico Henrique IV e na comédia As Alegres Comadres de Windsor. “Não quero glória. Deem-me vida”. Hamlet é alguém que não acredita em nada, principalmente em si mesmo, não obstante estar entregue a uma permanente reflexão. Ele tem sete monólogos absolutamente céticos na enorme peça. E Rosalinda é uma mulher apaixonada que corteja homens e é irônica em relação àquilo que mais deseja: o amor.
Mas é impossível estabelecer a grandeza de Shakespeare em uma pequena crônica, que na verdade, era sobre aquela curiosa construção que restou queimada há 400 anos.
William Shakespeare (1564-1616): O Retrato de Chandos; pintura atribuída a John Taylor e com autenticidade desconhecida. National Portrait Gallery, London.
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Bar do bardo, por Nelson Moraes
Pensando aqui em montar o Bar do Bardo, todo erguido em arquitetura elisabetana, e com o cardápio e a carta de drinks, obviamente, também temáticos: teremos, de entrada, a Júlio César’s Salad e, nas guarnições, o filé Ricardo III (que você tem que pedir gritando “Meu cavalo por um bife!”) e o Hamlete (carne de hambúrguer com omelete); pra beber, a Bloody Mary à Lady MacBeth (onde a bartender, depois de acrescentar o suco de tomate, lava as mãos dizendo teatralmente “Sangue, sangue!”) e uma cerveja majestática, a Rei Beer. Além disso teremos a sobremesa mais óbvia de todos os tempos, o Mikshakespeare, e um maître especialista em responder contextualmente a eventuais reclamações de clientes:
– Você chama ISSO de porção?
– Assim é, se lhe parece…
Teremos também som ao vivo aos sábados, só com heavy metal, onde não cobraremos couvert artístico: é o circuito “Muito Barulho por Nada”, que…
Este livro me foi indicado após a leitura de Mr. Gwyn, romance do mesmo autor e do qual tinha gostado muito. Mas gostei menos deste Seda, apesar da história ampla, interessante, contada num estilo de minicontos com trechos que se repetem como numa fábula. A história narra a trajetória de Hervé Joncour, morador de Lavilledieu, uma cidade francesa cuja economia floresce, na metade do século XIX, com a produção de seda.
Joncour compra e vende ovos de bichos-da-seda. Ele mora com a amada esposa Hélène em Lavilledieu numa casa confortável. Só que uma praga dizima os bichos-da-seda do Mediterrâneo e cria-se a necessidade de comprar o produto num local onde a praga não chegou: o Japão. Baldabiou — o mais rico de todos os fabricantes de seda — pede-lhe que vá ao país do sol nascente buscar os ovos.
O paradoxo do livro está no homem de vida rotineira transformado em aventureiro. Ele vai ao Japão quatro vezes. Leva meses em cada uma das viagens. Vai de trem, cavalo e em navios de contrabandistas. Nas viagens que faz ao Japão para comprar o produto, abre-se um mundo novo para aquele crasso europeu. Lá, ele vê uma bela mulher de rosto ocidental e passa a ter um segundo motivo para viajar. Quer revê-la e sentir seu toque de seda. Mas volta pelos negócios e, fundamentalmente, porque não consegue esquecer a linda voz de sua mulher na França.
Foi com esse livro que Baricco ficou famoso, mas, sabe?, faltou poesia. Como em Mr. Gwyn, mais uma vez Baricco procura “um modo exato de estar no mundo” para um personagem seu. Esta é a poesia maior do livro. E talvez de todos nós.
Depois de ter sido incluído na longlist de 13 finalistas, com Teoria Geral do Esquecimento, passa à fase final, num conjunto que os jurados consideram “entusiasmante”.
José Eduardo Agualusa
O escritor angolano José Eduardo Agualusa vai competir com Elena Ferrante e Orhan Pamuk para o Man Booker Internacional, prêmio literário britânico que consagra o que de melhor se faz na ficção a nível mundial. Acaba de passar para a shortlist.
Depois de ter sido incluído na longlist de 13 finalistas, em março, um ano depois de o mesmo ter acontecido a Mia Couto, Agualusa passa agora ao grupo de seis finalistas deste prêmio no valor de 60 mil euros (a dividir com o tradutor da obra escolhida): Teoria Geral do Esquecimento (D. Quixote, 2012, que já lhe valeu em Portugal o Prêmio Fernando Namora), História da Menina Perdida, de Elena Ferrante (pseudónimo), A Strangeness in My Mind, do turco, e prêmio Nobel, Orhan Pamuk, The Vegetarian de Han Kang, The Four Books de Yan Lianke, e A Whole Life de Robert Seethaler. Ou seja, histórias passadas durante a guerra civil em Angola, uma amizade feminina numa Nápoles controlada pela Camorra, a emancipação de uma dona de casa coreana, uma inventariação de personagens, acontecimentos, comida, objetos que sintetizam Istambul, as atrocidades maoístas, a grande fome na China em particular, e toda a vida de um homem nos Alpes austríacos.
É uma volta ao mundo e às fronteiras da ficção, segundo os jurados deste prêmio – júri, encabeçado por Boyd Tonkin, um dos redatores seniores do The Independent, e composto pela antropóloga e escritora Tahmina Anam, pela poeta Ruth Padel e pelos acadêmicos David Bellos e Daniel Medin. É uma lista variada e “entusiasmante”. O comunicado de imprensa reproduz uma declaração de Boyd Tonkin: “A nossa seleção mostra que os melhores livros traduzidos ultrapassam as fronteiras não só do nosso mundo mas da própria arte da ficção. Esperamos que os leitores de todas as partes do mundo partilhem o nosso prazer e excitação com esta shortlist.”
Os livros na corrida
No extenso comunicado de imprensa em que divulga a shortlist, a organização do Man Booker resume, assim, o livro de José Eduardo Agualusa, o autor de 55 anos nascido no Huambo que hoje vive entre Portugal, Angola e o Brasil: um “mosaico selvagem” que forma um romance que conta a história de Angola através de Ludo, uma mulher que decide barricar-se no seu apartamento nas vésperas da independência do país. Durante os 30 anos seguintes, Ludo não sai à rua, sobrevive alimentando-se de vegetais e pombos, e acompanha o que se passa no mundo exterior através da rádio e das conversas dos vizinhos. A rotina desta mulher é interrompida quando conhece Sabalu, um rapaz que decide trepar até ao seu terraço. “Com a imagem de marca do autor – sentido lúdico, humor e até afeto – Teoria Geral do Esquecimento é um romance deslumbrante, uma história humana sobre as emoções, a esperança e os perigos de uma mudança radical”, lê-se na nota de imprensa.
Daniel Hahn, que tem no seu currículo mais de 30 livros, de autores tão díspares como o Nobel português José Saramago e a estrela brasileira de futebol Pelé, é o tradutor da obra de Agualusa a concurso.
Na corrida está também Ferrante com o último volume dos seus romances de Nápoles, História da Menina Perdida (traduzido no Reino Unido por Ann Goldstein e publicado em Portugal pela Relógio d’Água), centrado na amizade entre duas mulheres muito diferentes – Elena e Lila – que crescem tentando escapar ao bairro onde vivem, “uma prisão de conformismo, violência e tabus invioláveis”. Passados uns anos em Florença, cidade em que formou família e publicou vários livros que foram bem recebidos, Elena regressa a Nápoles para ficar com o homem que sempre amou. Lila nunca se libertou da cidade, tornando-se uma peça chave do sistema que inicialmente rejeitara. “Cada parágrafo brilha com inteligência”, garante o júri deste prêmio internacional, “cada capítulo traz uma surpresa: um verdadeiro banquete”.
The Vegetarian (tradução de Deborath Smith), da sul-coreana Han Kang, parte do dia-a-dia monótono de um casal de classe média sem ambições que parece viver num estado “vegetativo” até que a mulher, Yeong-hye, decide cometer um acto doméstico de rebelião – torna-se vegetariana. A pouco e pouco, as suas atitudes revelam-se bizarras e Yeong-hye fantasia transformar-se numa árvore. “Perturbadora” e “bela”, garante a organização do Booker International, The Vegetarian é uma obra sobre a Coreia do Sul contemporânea, mas é também um romance sobre a “estranheza”, “a vergonha, o desejo, e as nossas tentativas frágeis para compreender os outros, de um corpo aprisionado para outro”.
Uma das belas gravuras de Gustave Doré para o Quixote
As mortes de Cervantes e Shakespeare ocorreram no mesmo dia e no mesmo ano, em 23 de abril de 1616. A questão é complicada e está explicada aqui, no segundo parágrafo. A fim de homenagear estes dois imensos nomes da literatura de todos os tempos, em 1995, a XXVIII Conferência Geral da UNESCO escolheu o dia 23 de abril como o Dia Internacional do Livro e dos Direitos Autorais. Na data, fica também homenageado outro escritor falecido naquela popularíssima data de 1616: o historiador peruano Inca Garcilaso de la Vega, dito o “príncipe dos escritores do novo mundo”. O 23 de abril é tão bem frequentado que William Wordsworth, grande poeta romântico inglês, também a escolheu para morrer, só que de 1850.
Cervantes é um fundador. Talvez seja isto que nos emocione tanto quando folheamos as páginas do Quixote ou das Novelas Exemplares. Virginia Woolf escreveu em seu diário que sempre derramava algumas lágrimas quando pegava seu exemplar do Quixote. Eu a entendo. Não sou fácil para chorar, mas as páginas finais do grande romance foram lidas com extrema dificuldade. As letras movimentavam-se levemente e às vezes sumiam enquanto eu fungava. Para quem ama a literatura, parece “forte demais” tomar contato com o primeiro romance efetivamente moderno, por mais arrevesado que ele nos pareça hoje. Talvez ele tenha sido um dos primeiros livros escritos contra outros, trata-se de uma obra escrita com raiva e graça, muita graça. As últimas edições brasileiras do Dom Quixote e das Novelas, publicadas pela recém falecida Cosac Naify, receberam tratamento digno da comicidade e profundidade cervantinas através do tradutor Ernani Ssó. Ninguém mais precisa ler as principais obras de Cervantes naqueles antigos e terríveis textos como os que eu li quando adolescente.
Miguel de Cervantes. Litogravura Não Assinada.
Uma biografia sensacional, ou no mínimo, muito particular
Sabe-se bastante da vida pós-Quixote de Miguel de Cervantes Saavedra. Antes disso, sua biografia apresenta largos períodos sem notícias. A começar por seu próprio nascimento. Há indícios de que nasceu no seu onomástico, em 29 de setembro. O que é certo é que foi batizado em 9 de outubro de 1547. Também existem dúvidas sobre onde teria estudado e se. Sabe-se que era alguém muito indisciplinado, agitado e boêmio, sempre envolvido em querelas pessoais e atrás de guerras onde pudesse lutar a fim de ganhar algum.
Na verdade, sua vida foi espetacular. Após um duelo onde feriu seu oponente, fugiu em 1569 para onde hoje é a Itália, a fim de servir como soldado. Na Batalha de Lepanto, em 1571, lutando ao lado da Santa Liga (República de Veneza, Reino de Espanha, Cavaleiros de Malta e Estados Pontifícios), perdeu os movimentos da mão esquerda — ou a toda a mão, segundo alguns autores. Em 1575, participou da expedição contra Túnis. Preso por um corsário árabe, passou cinco anos numa prisão em Argel, junto com um de seus irmãos. Fugiu 4 vezes: na primeira foi apanhado e posto em um confinamento mais severo. Então, sua família reuniu algum dinheiro para a fiança, mas o dinheiro apenas foi suficiente para resgatar um dos irmãos e Cervantes preferiu dar a liberdade a Rodrigo. Então, libertado, este contratou uma embarcação para libertar Miguel, mas acabou novamente preso. Na terceira tentativa, Cervantes foi encontrado dias depois e permaneceu fechado por 5 meses no banheiro da cela… Na quarta vez, tentou subornar um mouro para facilitar-lhe a fuga, mas foi delatado. Como pena, o Sultão de Argel o mandou para uma prisão em Constantinopla. Mas, antes da viagem, dois frades espanhóis organizaram uma expedição à África e conseguiram, com auxilio da família Cervantes, pagar seu resgate.
Voltou às guerras entre 1581 e 1583, na expedição que Filipe mandou aos Açores, contra o prior do Crato, que pretendia o trono de Portugal. Lá, dirigiu galanteios a uma dama portuguesa 22 anos mais jovem. Tiveram uma filha, D. Isabel de Saavedra. Só após o nascimento, em 1584, é que Cervantes desposou legitimamente D. Catarina de Palácios Salazar y Vosnediano, dama de linhagem fidalga.
De volta à Espanha, escreveu cerca de 30 peças de teatro e seu primeiro livro, A Galateia (1585). Sem êxito e cometendo todos os excessos retóricos que depois condenaria em Dom Quixote, passou a trabalhar como coletor de impostos. Em 1597, foi preso de novo, desta vez por dívidas. Tudo indica que foi na prisão que começou escrever a primeira parte do Quixote.
Gravura de Cândido Portinari do Quixote.
O Quixote
El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha é muito diferente de tudo o que se tinha publicado até então. O romance fala mal dos romances de cavalaria, a moda da época, com suas histórias totalmente fantasiosas de grandes feitos. Os cavaleiros, super-heróis da Idade Média, saíam pelo mundo corrigindo toda injustiça. Enfrentavam sozinhos — e venciam — exércitos tão grandes que fariam corar de vergonha a Beatrix Kiddo de Kill Bill, assim como Batman e Rambo. Para atacar tais livros – pois uma ideia genial pode nascer de um desejo de vingança – , Cervantes criou um grande leitor dos romances de cavalaria: um fantasioso, louco e esquálido herói, cheio de boas e nobres intenções, um personagem que fará rir a todos, desde os literatos até a lírica donzela da Andaluzia que só sonhava com barões e nobres.
Acompanha-o Sancho Pança, uma figura baixa, gorda e realista, que passa o tempo todo tecendo críticas ao sublime e ridículo Cavaleiro da Triste Figura. Com seu cavalo Rocinante e a a musa Dulcineia, estava criado o grupo central do mais engraçado e melancólico dos romances.
(…) dom Quixote perguntou a Sancho o que o tinha levado a chamá-lo “Cavaleiro da Triste Figura”, justamente agora.
— Foi porque — respondeu Sancho — estive olhando-o um instante, à luz do círio daquele pobre coitado, e realmente vossa mercê tem a pior figura que vi nos últimos tempos. Deve ser por causa do cansaço deste combate, ou pela falta dos molares. (Trad. de Ernani Ssó)
Outra gravura de Doré para os fantasmas que habitavam a mente do Quixote.
A fantasia do Quixote forma gloriosa e minuciosa antítese com o ultrarrealismo de Sancho Pança. É na oposição de Quixote ao senso comum de Sancho que está boa parte da riqueza do livro. A incrível capacidade do Quixote de adaptar-se às péssimas circunstâncias e de manter seu idealismo acima da vulgaridade, leva-nos a acreditar que haja outro senso a lutar contra o marasmo e o comum. Mas não pensem em Sancho como um personagem desagradável, politicamente correto ou como “um representante da vulgaridade”, nada disso. Ele é engraçado e inteligente, estando sempre disposto a piadas e a citar oportunos adágios populares ou outros, criados por Cervantes. É um realista.
O livro, publicado em 1605, fez estrondoso sucesso. Tanto que recebeu uma continuação apócrifa, assinada por um inexistente Alonso Fernández de Avellaneda, o qual demonstrou boas doses de incompreensão dos personagens cervantinos e que não podia ser comparado ao original em qualidade. Então, em 1615, Cervantes publicou o segundo tomo, onde o falso livro de Quixote é citado no prólogo.
Valha-me Deus, com quanta gana deves estar esperando agora este prólogo, leitor ilustre ou mesmo plebeu, pensando encontrar nele vinganças, reprimendas e vitupérios contra o autor do segundo Dom Quixote, digo, contra aquele que dizem que foi concebido em Tordesilhas e nasceu em Tarragona! Na verdade não vou te dar esta alegria, pois, ainda que os agravos despertem a cólera nos corações mais humildes, no meu esta regra há de padecer exceção. Tu gostarias que eu o chamasse de burro, de mentecapto e de insolente, mas isso não me passa pelo pensamento: que o pecado dele seja seu castigo, que coma o pão que amassou e faça bom proveito. (Trad. de Ernani Ssó)
Se o primeiro volume já era extraordinário, a continuação é ainda melhor e, ao final deste livro, o autor mata Dom Quixote para que sejam evitados novos abusos e continuações.
Cervantes é o fundador do romance moderno. No Quixote há personagens que representam ideias e as situações falam por si, sem a necessidade de maiores explicações do autor. Atualmente, talvez o livro soe verboso e com longos trechos desnecessários, mas ainda não foi inventado símbolo melhor do espírito idealista e aventureiro do ser humano.
O Dom Quixote de Picasso.
Lembro que durante o Fórum Social Mundial de 2005 falou-se muito no Quixote como representante de uma utopia. Isto é um grande erro que foi apontado por José Saramago, presente ao evento. Utopia (palavra do latim moderno, com origem no grego oú, “não”, e no grego tópos, ‘lugar’), segundo Thomas Morus, é um local e uma situação ideais; isto é, refere-se a um país e a um governo imaginário que proporciona excelentes condições de vida a um povo feliz. Ironicamente, também significa não-lugar ou lugar nenhum… Esta definição não possui nada em comum com a história do Engenhoso Fidalgo, um personagem que aplicava a fantasia para transcender a circunstâncias imediatas e que era destituído de projetos para si ou, melhor dizendo, que refazia seu projeto cada vez que pensava ou via algo que o interessasse. Também desiludia-se e “reiludia-se” com extrema velocidade…
Entre as duas partes de Dom Quixote, aparecem o genial Novelas exemplares (1613), conjunto de doze narrativas breves de caráter didático e moral que podem servir de introdução ao mundo cervantino. Cervantes se ufanava, no prólogo, de ter sido o primeiro a escrever, em castelhano, novelas ao estilo italiano:
A isso se aplicou meu engenho, a isso me leva minha vocação, e penso, o que é verdade, que sou o primeiro que escreveu novelas em língua castelhana, porque as muitas que andam impressas nela são todas traduzidas de línguas estrangeiras, e estas são de minha autoria, não imitadas nem furtadas; meu talento as criou e minha pena as pariu, e vão crescendo nos braços da imprensa. (Trad. de Ernani Ssó)
Elas são habitualmente agrupadas em duas séries: as de caráter idealista e as de caráter realista. Também escreveu Viagem de Parnaso (1614) e peças teatrais como Oito comédias e oito entremezes novos nunca antes representados (1615). Porém, seu drama mais popular hoje, A Numancia, além de O trato de Argel, ficaram inéditos até ao final do século XVIII. Um ano depois de sua morte aparece a novela Os trabalhos de Persiles e Sigismunda.
Mas o que interessa em sua obra é o Quixote e as Novelas Exemplares. Como dissemos, o êxito de Dom Quixote foi colossal. A glória e a fama que Cervantes obteve em vida foi imensa para a época. No primeiro ano esgotaram-se quatro edições. O pequeno mundo literário espanhol estava em êxtase. Todos queriam conhecer Cervantes, todos o felicitavam: o conde de Lemos proclamava-se, orgulhoso, seu amigo e mecenas. Muitos estrangeiros — como os franceses que vieram na comitiva do embaixador da França à corte de Espanha para tratar de assuntos de estado — solicitavam, como graça excepcional, o favor de serem apresentados a ele. Era a glória, aquela que ele antes procurara nos acampamentos e nos teatros.
Cervantes reformou o gosto de um público que, após sua obra-prima, nunca mais foi o mesmo. Ele fez ruir um mundo numa risada colossal. E um novo caos surgiu.
Um novo exemplar do “Primeiro Fólio”, a primeira edição de coletânea das 36 peças de William Shakespeare, foi descoberto na Escócia, anunciou a Universidade de Oxford.
No final de abril, assinala-se o 4º centenário da morte de William Shakespeare.
A professora de estudos shakespearianos daquela universidade britânica, Emma Smith, confirmou a autenticidade deste “Primeiro Fólio”, que foi descoberto nas coleções da biblioteca de Mount Stuart, uma mansão vitoriana situada na ilha escocesa de Bute.
Este fólio é incomum porque está em três volumes e apresenta muitas páginas em branco, previstas para ilustrações”, disse Emma Smith num comunicado divulgado por aquela instituição universitária.
A cópia de Mount Stuart pertenceu a Issac Reed, um conhecido editor literário de Londres do século XVIII, disse Emma Smith baseada não só numa carta de Reed que revela que o editor comprou este exemplar em 1796 como em outros registos que mostram que mudou de mãos para as iniciais JW.
Após esta venda não há mais registos do fólio, que não foi incluído no censos de Sidney Lee de 1906, relativo ao número de primeiros folios da obra shakespeariana, pelo que foi algures entre estas duas datas que o exemplar ficou na posse da biblioteca Mount Stuart, que é referido num catálogo datado de1896.
Exposição assinala quarto centenário da morte
O “Primeiro Fólio” de Shakespeare foi compilado após sua morte, em 23 de abril de 1616, uma data geralmente aceite, uma vez que apenas há registos do funeral do dramaturgo em 25 de abril, por John Heminge e Henry Condell dois atores amigos do dramaturgo.
O livro contém o texto completo de 36 das peças do dramaturgo. Os principais editores foram Edward Blount (1565-1632), um livreiro e editor de Londres, e Isaac Jaggard (que morreu em 1627), filho de William Jaggard, um editor e impressor com ligações a Shakespeare e que faleceu no ano em que o fólio foi produzido.
O número de cópias impressas do “Primeiro Folio” é desconhecido. A biblioteca Folger Shakespeare, em Washington, nos Estados Unidos, tem no seu acervo 82 cópias, que é a maior coleção do mundo.
Esta descoberta ocorre dias antes da comemoração do quarto centenário da morte de William Shakespeare, que será assinalado com uma série de eventos, entre os quais a “Complete Walk”, uma exposição em Londres que apresentará no fim de semana de 23 e 24 de abril 37 curtas metragens de 10 minutos sobre cada uma das obras de Shakespeare.
O número de cópias impressas do “Primeiro Fólio” é desconhecido. A biblioteca Folger Shakespeare, em Washington, nos Estados Unidos, tem no seu acervo 82 cópias, que é a maior coleção do mundo.
Dia desses, o Luís Augusto Farinatti deu uma bela lida em algumas contos que escrevi. E fez uma limpeza geral. Rejeitou, por exemplo, tudo aquilo que era cronístico. Eu concordei com ele. Agora, lendo os 17 contos deste livro de João Ubaldo Ribeiro, pensava na avaliação que o Farinatti faria da maioria deles. Este livro tem duas pequenas joias e muitos contos que estão mais para a crônica. Nada casualmente, Ubaldo colocou as duas joias assim: uma para a abrir o livro e outra para fechá-lo.
Livrinho descompromissado, Já podeis da pátria filhos conta histórias dos habitantes da ilha de Itaparica, mas de vez em quando os personagens apenas passam como sombras adjacentes à boa prosa do bom Ubaldo. São histórias de pescadores exagerados, festas de debutantes, turistas assanhadas, meninos brincando de médico, políticos corruptos e jogadores de futebol amador.
Ubaldo é bom escritor, subverte com brilhantismo a língua culta, mas não adianta ser bom cantor sem boa música. A história inicial, que conta as prerrogativas de um boi garanhão e a final, sobre o menino que acompanha o pai no sacrifício de uma porca e procura se manter firme, são excelentes, mas tão curtas que podemos lê-las em pé, enquanto “examinamos” o livro numa livraria.