Descoberto exemplar do “Primeiro Folio” de Shakespeare

Descoberto exemplar do “Primeiro Folio” de Shakespeare

Um novo exemplar do “Primeiro Fólio”, a primeira edição de coletânea das 36 peças de William Shakespeare, foi descoberto na Escócia, anunciou a Universidade de Oxford.

Da esquerda.net

No final de abril, assinala-se o 4º centenário da morte de William Shakespeare.
No final de abril, assinala-se o 4º centenário da morte de William Shakespeare.

A professora de estudos shakespearianos daquela universidade britânica, Emma Smith, confirmou a autenticidade deste “Primeiro Fólio”, que foi descoberto nas coleções da biblioteca de Mount Stuart, uma mansão vitoriana situada na ilha escocesa de Bute.

Este fólio é incomum porque está em três volumes e apresenta muitas páginas em branco, previstas para ilustrações”, disse Emma Smith num comunicado divulgado por aquela instituição universitária.

A cópia de Mount Stuart pertenceu a Issac Reed, um conhecido editor literário de Londres do século XVIII, disse Emma Smith baseada não só numa carta de Reed que revela que o editor comprou este exemplar em 1796 como em outros registos que mostram que mudou de mãos para as iniciais JW.

Após esta venda não há mais registos do fólio, que não foi incluído no censos de Sidney Lee de 1906, relativo ao número de primeiros folios da obra shakespeariana, pelo que foi algures entre estas duas datas que o exemplar ficou na posse da biblioteca Mount Stuart, que é referido num catálogo datado de1896.

Exposição assinala quarto centenário da morte

O “Primeiro Fólio” de Shakespeare foi compilado após sua morte, em 23 de abril de 1616, uma data geralmente aceite, uma vez que apenas há registos do funeral do dramaturgo em 25 de abril, por John Heminge e Henry Condell dois atores amigos do dramaturgo.

O livro contém o texto completo de 36 das peças do dramaturgo. Os principais editores foram Edward Blount (1565-1632), um livreiro e editor de Londres, e Isaac Jaggard (que morreu em 1627), filho de William Jaggard, um editor e impressor com ligações a Shakespeare e que faleceu no ano em que o fólio foi produzido.

O número de cópias impressas do “Primeiro Folio” é desconhecido. A biblioteca Folger Shakespeare, em Washington, nos Estados Unidos, tem no seu acervo 82 cópias, que é a maior coleção do mundo.

Esta descoberta ocorre dias antes da comemoração do quarto centenário da morte de William Shakespeare, que será assinalado com uma série de eventos, entre os quais a “Complete Walk”, uma exposição em Londres que apresentará no fim de semana de 23 e 24 de abril 37 curtas metragens de 10 minutos sobre cada uma das obras de Shakespeare.

O número de cópias impressas do “Primeiro Fólio” é desconhecido. A biblioteca Folger Shakespeare, em Washington, nos Estados Unidos, tem no seu acervo 82 cópias, que é a maior coleção do mundo.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Já podeis da pátria filhos, de João Ubaldo Ribeiro

Já podeis da pátria filhos, de João Ubaldo Ribeiro
A edição da Alfaguara
A edição da Alfaguara

Dia desses, o Luís Augusto Farinatti deu uma bela lida em algumas contos que escrevi. E fez uma limpeza geral. Rejeitou, por exemplo, tudo aquilo que era cronístico. Eu concordei com ele. Agora, lendo os 17 contos deste livro de João Ubaldo Ribeiro, pensava na avaliação que o Farinatti faria da maioria deles. Este livro tem duas pequenas joias e muitos contos que estão mais para a crônica. Nada casualmente, Ubaldo colocou as duas joias assim: uma para a abrir o livro e outra para fechá-lo.

Livrinho descompromissado, Já podeis da pátria filhos conta histórias dos habitantes da ilha de Itaparica, mas de vez em quando os personagens apenas passam como sombras adjacentes à boa prosa do bom Ubaldo. São histórias de pescadores exagerados, festas de debutantes, turistas assanhadas, meninos brincando de médico, políticos corruptos e jogadores de futebol amador.

Ubaldo é bom escritor, subverte com brilhantismo a língua culta, mas não adianta ser bom cantor sem boa música. A história inicial, que conta as prerrogativas de um boi garanhão e a final, sobre o menino que acompanha o pai no sacrifício de uma porca e procura se manter firme, são excelentes, mas tão curtas que podemos lê-las em pé, enquanto “examinamos” o livro numa livraria.

João Ubaldo Ribeiro
João Ubaldo Ribeiro

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Jorro matinal

Jorro matinal

42 bilhões desviados
— 1% do PIB —
de uma só empresa

como se fossem adestrados
os políticos de Brasília
sentam na mesa apenas
desejosos de cheirar
os cus uns dos outros

o que pensa este?
do que necessita aquele?
como acomodar
meu interesse?

não pensam
no sistema de ensino
no genocídio dos indígenas
na juventude negra das periferias
na mulher morta
no aborto
nos LGBT
na reforma

pensam
em quem lhes financia
em consumir direitos
no agronegócio
em criminalizar movimentos
em consumir o pré-sal
em deus, ou melhor,
na igreja

querem adiar
o enfrentamento com o ambiente
querem evitar
a Polícia Federal
querem
que o resto se foda

os paleolíticos brasileiros
querem chupar o pré-sal
são eles os dinossauros
que vão nos aquecer e sufocar
mas bem poderiam receber o óleo
— negro e quente —
em seus rabos

eles estão reunidos
e sorriem balançando suas caudas
preparando
os próximos 42 bilhões

PUM - Partido Utopico Moderado

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Vocês sabem quais são os cinco livros mais cobrados no Enem e vestibulares?

Vocês sabem quais são os cinco livros mais cobrados no Enem e vestibulares?

Um cursinho pré-vestibular paulista — esqueci o nome — fez uma revisão em todo o país e chegou à conclusão de que as questões de literatura costumam cair mais sobre estes livros do que em outras plagas. Não tive surpresa, mas lamento a presença de O Cortiço, livro que achei apenas bom. Mas não sei como o substituiria por outro(s). Guimarães Rosa talvez seja complicado demais para gente tão jovem, mas talvez haja vários Ericos e Amados que poderiam entrar no lugar do Azevedo, para não falar em modernos como Raduan Nassar, que, poxa, poderiam comparecer. Os outros quatro da lista são obras indiscutíveis e nem dá para polemizar. Vontade de largar o trabalho e reler os quatro últimos AGORA.

O Cortiço, de Aluísio Azevedo
Dom Casmurro, de Machado de Assis
Vidas Secas, de Graciliano Ramos
Laços de Família, de Clarice Lispector
A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade

Clarice com um amigo.
Clarice com um amigo.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Uma longa carta de Guimarães Rosa em que todas as palavras começam com a letra “C”

Uma longa carta de Guimarães Rosa em que todas as palavras começam com a letra “C”

Carta endereçada a seu colega e cônsul Cabral, publicada no dia 25/11/1967, no Jornal da Tarde, poucos dias após a sua morte:

guimaraes rosa

Consul caro colega Cabral
Compareço, confirmando chegada cordial carta.

Contestando, concordo, contente, com cambiamento comunicações conjunto colegas, conforme citada consolidação confraria camaradagem consular.

Conte comigo: comprometo-me cumprir cabalmente, cabralmente condições compendiadas cláusulas contexto clássico código. (Contristado, cumpre-me consolidação coligar cordialmente conjunto colegas?… crês?… crédulo!… considera:… ”cobra come cobra!…” coletividade cônsules compatrícios contém, corroendo cerne, contubérnios cubiçosos, clãs, críticos, camarilhas colitigantes… contrastando, contam-se, claro, corretos contratipos, capazes, camaradas completos.) Concluindo: contentemo-nos com correspondermo-nos, caro Cabral, como coirmãos compreensivos, colaborando com colegas camaradas, combatendo corja contumaz!…

Contudo, com comedida cólera, coloco-me contra certos conceitos contidos carta caro colega, cujas conclusões, crassamente cominatórias, combato, classificando-as como corolários cavilosos, causados conturbação critério, comparável consequências copiosa congestão cerebral. Caso concordes cancelá-los , confraternizaremos completamente, com compreensão calorosa, cuja comemoração celebrarei consumindo cinco chopes (cerveja composta, contendo coisas capciosas: corantes complicados, copiando cevada, causando cólicas cruéis…).

Céus! Convém cobrar compostura. Cesso contumélias, começando contar coisas cabíveis, crônica contemporânea:

Como comprovo, continuo coexistindo concerto conviventes coevos, contradizendo crença conterrâneos cariocas, certamente contando com completa combustão, cremação, calcinação corpos cônsules caipiras cisatlânticos…

Calma completa? Contrário! Cessado crepúsculo, céu continuamente crepitante. Convergem cimo curvos clarões catanúvens, cobrindo campinas celestes, crivadas constelações.

Convidados comparecem, como corujas corajosas, contra cidade camuflada. Coruscam célebres coriscos coloridos. Côncavo celeste converte-se cintilante caverna caótica, como casa comadre camarada. Cérebro, cavernoso, colérico, clama colossal canhonêio. Canhões cospem cometas com cauda carmesim. Caem coisas cilindro-cônicas, calibrosas, compactas, com carga centrífuga, conteúdo capaz converter casas cascalho, corpos compota, crâneos canjica. Cavam-se ciclópicas crateras (cultura couve-colosso…). Cacos cápsulas contraaéreas completam carnificina. Correndo, (canta, canta calcanhar!…) conjurando Churchil, conjeturando Coventry, campeio competente cobertura, convidativo cantinho, coso-me com chão, cautelosamente. Credo! (como conseguir colocar-me chão carioca Confeitaria Colombo, C.C., Copacabana, Catumbi???)

Cubiço, como creme capitoso, consulados Calcutá, Cobija!… Calma, calma; conseguiremos conservar carcaças.

Contestando, comunico cá conseguimos comboiar cobre captado (colheita consular comum), creditando-o cofres consignatário competente, calculo consegui-lo-ás, contanto caves corajosamente.

Conforme contas, consideras cós curtos como cômoda conjuntura, configuradora cinematográficoa contornos carnes cubicáveis. Curioso! Caso curtificação continue, conseguiremos conhecer coxas, calças?…Cáspite!

Continuarei contando. Com comoção consentânea com cogitações contemporâneas, costumo compor canções. Convém conhêças:

CANTADA

Caso contigo, Carmela
Caso cumpras condição
Cobrarei casa, comida,
Cama, cavalo, canção
Carinho, cobres, cachaça,
Carnaval camaradão
Cassino (com conta certa)
Cerveja, coleira e cão,
Chevrolet cinco cilindros
Canja e consideração,
Calista, cabelereiro
Cinema, calefação,
Chá, café, confeitaria,
Chocolate, chimarrão
Casemira – cinco cortes
Cada compra, comissão,
Conforto, comodidades,
Cachimbo, calma,… caixão,
Convem-te, cara Carmela?
Cherubim!…Consolação!…
(caso contrário, cabaças!
Casarei com Conceição.)
Caso contigo, Carmela,
Correndo com coração!…

Chega. Caceteei? Consola-te: concluí.

Com cordial, comovido: colega constante camarada,

a) J. Guimarães Rosa
Consul, capitão, clínico conceituado.

Confirme chegada carta, comunicando-me com cartão.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXI – Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXI – Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski
Capa de Os Irmãos Karamázov da Editora 34
Capa de Os Irmãos Karamázov da Editora 34

É complicado escrever uma simples resenha de todo um mundo. Pois o que Dostoiévski realiza em Os Irmãos Karamázov é exatamente o que Mahler pretendia fazer com suas sinfonias, colocar todo um mundo dentro delas. Acredito que ambos tenham conseguido.

Há vários planos de leitura do livro. Pode-se ler os Karamázov como um romance de suspense — quem matou o velho Fiódor? –, ou filosófico — o capítulo do Grande Inquisidor, Deus, os problemas morais –, ou psicológico — o parricídio, os vários conflitos, o duplo de Ivan e Smerdiakóv, as várias interpretações dos pensamentos dos personagens. E, céus, deve haver outro planos de leitura para este tremendo romance. Mas vou tentar um mínimo de organização.

A ideia de criar este drama ocorreu a Dostoiévski em 1874, mas o leitmotiv foi-lhe dado ao acaso, cerca de trinta anos antes. Quando preso na Sibéria, Dostoiévski tinha um colega chamado Ilinski, Dmitri Ilinski. Alegre, fanfarrão, sempre despreocupado, ele negava ter sido o autor do crime pelo qual estava na prisão: Ilinski teria assassinado o próprio pai, Nikolai. A história é a seguinte: numa pequena cidade russa, pai e filho se detestavam, brigavam publicamente, não sentavam na mesma mesa, etc. Para piorar, o filho bebia e estava sempre metido em discussões e lutas físicas, além de ser perdulário. Devia para meia cidade e era detestado. Para piorar, o amigo de Dostô tinha avisado a todos na cidade que mataria o pai na primeira chance que tivesse. O pai chamava-lhe de facínora, não lhe dava mais dinheiro e fazia de conta que ele não existia. Um dia apareceu morto, assassinado, mas Dmitri negava o crime, apesar de tudo o que dissera antes. Dostoiévski logo saiu da prisão em episódio bem conhecido. Acreditando na inocência de Dmitri, o escritor ficou com a história trabalhando em sua cabeça. Quinze anos depois, descobriu-se o verdadeiro assassino e Dmitri Ilinski foi libertado. Durante todo este tempo Dostoiévski mantivera-se informado. A inspiração é claríssima, tanto que nos primeiros manuscritos do romance, Karamázov é chamado várias vezes de Ilinski. O escritor pediu que o erro fosse corrigido.

O conflito pai x filho é explorado sob diversas formas no romance. Se o centro do romance é o amor e ódio entre o velho Fiódor e o filho mais velho, também há conflitos mais silenciosos entre o velho e Ivan (o segundo filho) e entre o velho e o suposto filho bastardo Smerdiakóv. Lendo-se os romances anteriores de Dostô, vê-se que as personalidades de todos vinham sendo formadas há tempo. É fácil ver paralelos na natureza dos personagens de diferentes obras do autor: o terceiro filho Aliocha Karamázov e Grúchenka com o príncipe Míchkin e Nastácia Filippovna (de O Idiota), Ivan Karamazov com Raskolnikov (de Crime e Castigo), o starietz Zossima com Tikhon (de Os Demônios).

Apesar da indiscutível qualidade de todos os grande romances de Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov tem uma grandiosidade inalcançável. É um enorme painel russo, psicológico e político, trabalho maior da vida de um escritor genial. Com vida própria — separadas do autor — ali estão suas memórias de infância ligadas às reflexões e experiências dos últimos anos. As imagens dos irmãos Dmitri, Ivan e Aliócha — assim como a do bastardo Smerdiákov, espécie de duplo de Ivan — talvez simbolizem diferentes estágios de desenvolvimento espiritual do autor. O romance tem uma estrutura complexa, multidimensional, de gênero difícil de definir. São eventos que ocorrem em apenas duas semanas, mas nesse curto espaço de tempo se encaixam tantas histórias, disputas, conflitos e confrontos ideológicos, que estas seriam suficientes para vários romances de suspense, obras filosóficas, crônicas familiares ou dramas domésticos.

Há duas longas e compreensíveis interrupções na narrativa. A primeira serve para que Dostoiévski (ou Ivan) escreva aquele que talvez seja o melhor capítulo da literatura de todos os tempos. Trata-se do momento em que Ivan, num bar, narra para Aliócha a Parábola do Grande Inquisidor. Jesus retorna à Terra, mas o Grande Inquisidor, na pessoa de um velho bispo de 90 anos, argumenta que sua vinda é inútil e que agora ele só atrapalharia a Igreja. E condena-o à fogueira. (Este resumo chega a ser uma gozação, tal a riqueza do texto). O segundo serve para que Aliócha conte a história de seu mentor Zossima.

A ação principal do romance está na relação entre o velho Fiódor e Dmitri. O whodunit é “Quem matou o velho Fiódor?”. E todos são desvairados, desesperados e negligentes com a verdade e a moral. Todos os personagens parecem meio loucos. A família Karamázov é apaixonada e violenta. O pai Fiódor e Dmitri amam a mesma mulher. Dmitri acha que o pai lhe deve a herança da mãe. Ambos são lascivos, rivais e imprevisíveis. Dmitri é um paradoxo. Incapaz de se controlar, tem grande dignidade pessoal e é cheio de justificativas. Ao contrário de seu pai, um cínico, Mítia visa os mais altos ideais. É dotado daquela tal alma russa que o leva a picos e a abismos como um ioiô. Dmitri Karamázov briga e cita Schiller. Quando preso sob a acusação de assassinato, pensa no sofrimento dos outros e chora.

Ivan não é nada disso. Inteligente e profundo, é um filósofo centrado nos problemas mais irreconciliáveis ​​da existência humana: a natureza de Deus e a ideia de permissão. Intelectual ateu, parece ter dentro de si um conflito permanente entre liberdade e autoridade. O Grande Inquisidor não está relacionado com a trama principal da novela. No entanto, sai de Ivan esta que é a parte mais importante do ponto de vista das ideias contidas no livro.

Aliócha é supostamente o herói do romance. Vivia num mosteiro, mas foi mandado para o mundo. Profundamente religioso, tudo compreende e passa o livro correndo de um lado para outro, tentando conciliar todos. Sem ele, o livro não existiria. É um personagem meio picaresco — vai de um lugar a outro e é uma espécie de informante de todas as tramas paralelas do livro. Acaba conseguindo conciliar apenas um grupo de crianças no belo final do romance.

Uma questão central na abordagem do romance é notar que as ideias do autor estão muito bem escondidas. As célebres citações que o livro contém foram todas rejeitadas por Dostoiévski ainda em vida. Quando lhe atribuíram algumas citações, Dostô respondeu simplesmente que não as assumiria: “Não sou eu quem diz isso, é Ivan. A linguagem é dele, o estilo é dele, o pathos é dele e não meu. Além disso, ele é muito jovem”.

No mundo criado por Dostoiévski, a Rússia e o mundo aparecem como se fossem o reino dos Karamázov. A noção da complexidade e da desorganização das relações talvez nunca tenha ficado tão clara como neste romance. Ninguém é confiável. A maldade pode explodir a qualquer momento. Todos dizem meias verdades por meio de mentiras. Os atos de uns são conduzidos pelos pensamentos de outros. A espiritualidade cristã é invocada a cada momento, mas sucumbe às necessidades tirânicas de felicidade terrestre, à sensualidade e ao álcool.

Numa frase, não dá para não ler.

P.S. — A tradução de Paulo Bezerra é incontornável. Se hoje você ler outra edição em português, não estará tão próximo do original.

(Livro comprado na Ladeira Livros).

Dostoiévski em 1876
Dostoiévski em 1876

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Agatha Christie, a Rainha do Crime: 125 anos de cadáveres, venenos e mistérios

Agatha Christie, a Rainha do Crime: 125 anos de cadáveres, venenos e mistérios
Só perde para Shakespeare e para a Bíblia em número de livros vendidos

Agatha Mary Clarissa Miller ou Agatha Christie nasceu há 125 anos, em 15 de setembro de 1890, na cidade inglesa de Torquay, às margens do Canal da Mancha. Foi romancista, contista, dramaturga e poetisa mas destacou-se espetacularmente no gênero policial, tendo sido chamada, ainda em vida, de Rainha do Crime. Durante sua longa carreira — que durou dos anos 20 até sua morte, no ano de 1976 –, publicou mais de oitenta livros, alguns sobre o pseudônimo de Mary Westmacott.

Durante esta semana, fãs de Agatha Christie invadiram Torquay para celebrar os 125 anos de nascimento da “Rainha do Crime”. Apesar de, presumivelmente, faltarem os venenos e um cadáver, seus fãs tentaram recriar o ambiente de seus livros bebendo chás em jardins cheios de flores ou comendo em restaurantes com toalhas de mesa brancas. O único neto da escritora, Mathew Prichard, disse qua a simplicidade é a chave de sua popularidade. “Minha avó escreveu livros para entreter as pessoas. Gostava de pensar que as pessoas os liam quando estavam no hospital ou em uma longa viagem de trem”, completa.

Talvez Agatha sorrisse ao saber do novo nome de Ten Little Niggers no Brasil

Seus livros, alguns deles com quase cem anos, continuam vendendo milhões de exemplares. Segundo o Guiness, Christie é a romancista mais bem sucedida da história da literatura mundial em número total de livros vendidos. Somados, eles venderam cerca de quatro bilhões de exemplares. Tais números totais só perdem para as obras do dramaturgo e poeta William Shakespeare e para a Bíblia. A Unesco dá conta de que ela é a escritora mais traduzida do planeta. Ten Little Niggers — publicado no Brasil como O Caso dos Dez Negrinhos ou como E não sobrou nenhum em nova e reveladora tradução –, de 1939, é o romance policial mais vendido da história, além de figurar na lista dos livros mais vendidos de todos os tempos.

Ela e Georges Simenon são a rainha e rei de um gênero que jamais saiu de moda. No Brasil, em 2014, suas obras ganharam novo fôlego. No ano passado, Agatha recebeu oito novas edições pela Globo Livros e a Nova Fronteira. Simenon foi pelo mesmo caminho na Companhia das Letras. Os críticos sempre preferiram o belga, seu detetive Maigret e outros romances, mas o público tornou Agatha, Hercule Poirot e Miss Marple mais populares.

Agatha trafegava em mundo que não existe mais, quando assassinos usavam venenos hoje esquecidos e tinham como profissão atividades que não existem há décadas. O universo de Agatha Christie é a Inglaterra dos anos 20. Sua própria personalidade e história estão mescladas ali, na estrutura social rígida da era pós-vitoriana, na valorização da nobreza e do “bom” sobrenome, e até nos detalhes de decoração nos ambientes descritos. Com cenas suntuosas, jantares, óperas e viagens de trem, seus livros apresentam uma visão idílica do desaparecido mundo da alta sociedade inglesa, que continua seduzindo milhares de pessoas.

A criança Agatha Christie

Ao contrário de seus irmãos, Agatha nunca teve chance de frequentar a escola e foi educada pela mãe num ambiente recluso, onde interessou-se pela música clássica e o canto lírico. Agatha chegou até mesmo a estudar música em Paris. Também através da mãe, teve seus primeiros contatos com a literatura. Durante a Primeira Guerra Mundial, trabalhou como enfermeira e no setor de medicamentos. Ali, recebeu muita informação farmacêutica. Desta forma, conhecia muitos venenos e gostava de utilizá-los em suas histórias.

Na vida real, Agatha também gostava de brincar de suspense. Em 3 de dezembro de 1926, seu marido, o Coronel Archibald Christie, revelou que tinha se apaixonado por sua amante e pediu o divórcio. Ato contínuo, deixou Agatha para viajar com a nova mulher e alguns amigos. Agatha também foi embora com uma pequena mala. Na manhã do dia seguinte, seu carro foi encontrado em um barranco no lago de Silent Pool em Newlands Corner, com os faróis acesos. Nele, estavam um casaco de pele, sua mala e uma carteira de motorista vencida. O desaparecimento da autora se tornou notícia, pois ela já era sobejamente conhecida na Inglaterra. A polícia ofereceu £100 para quem desse qualquer informação sobre o paradeiro da escritora. Aviões, mergulhadores e escoteiros passaram a buscar Agatha. A busca contou com 15.000 voluntários e foi a primeira a utilizar aviões no país.

Aós 11 dias, Agatha Christie foi descoberta no Old Swan Hotel, em Harrogate. Ela chegou lá de táxi no dia 4 de dezembro. Estava hospedada sob o nome de Teresa Neele (o mesmo sobrenome da amante de seu marido), dizendo ser da Cidade do Cabo, e explicando que era uma mãe de luto pela morte do filho. No hotel, Agatha foi vista dançando, jogando bridge, fazendo palavras cruzadas e lendo jornais. A autora foi reconhecida pelo músico Bob Tappin, que reivindicou a recompensa de 100 libras. Tappin disse que se dirigiu à autora como “Mrs. Christie” e que essa respondeu-lhe que estava sofrendo de amnésia…

Amnésia?

Várias teorias foram criadas para explicar o desaparecimento. Alguns dizem que o escândalo foi um golpe publicitário para aumentar a venda de um dos seus livros — The Murder of Roger Ackroyd tinha sido lançado semanas antes do desaparecimento e estava na lista de mais vendidos –, outros que a intenção da autora era apenas vingar-se do marido, simulando uma morte da qual ele fosse acusado de assassinato. Já outros dizem que a autora realmente sofreu um acidente de carro e perdeu a memória.

Agatha só se separou de Archibald em 1928, dois anos após o incidente. No outono do mesmo ano, o arqueólogo britânico Leonard Woolley convidou Agatha para visitar o Oriente Médio, onde estava no comando de escavações em Ur. No ano seguinte, Agatha voltou ao local, onde conheceu o jovem assistente de Woolley, Max Mallowan (14 anos mais jovem que ela). Eles se casaram em 1930. A autora manteve seu nome como Agatha Christie porque era assim conhecida, mas em sua vida particular preferia ser chamada de Mrs. Mallowan.

Agatha Christie escreveu que é difícil para um jovem escritor iniciar sua carreira sem copiar, mesmo que minimamente, o estilo de seus ídolos. Ela considerava iniciar uma obra, como algo muito complicado e muitas vezes ficava horas encarando a máquina de escrever, esperando uma ideia. Para estar pronta no momento que a inspiração chegasse, possuía um caderno que levava sempre consigo para anotar suas ideias de enredos, venenos e crimes.

Foto de 1972: batalha entre leitor e escritor

Todo romance policial é uma batalha entre leitor e escritor. O sucesso está na arte de disponibilizar todos os elementos necessários para a solução do crime e, ainda assim, fazer com que o leitor chegue à página final sem a menor ideia do que realmente aconteceu. Ou com uma ideia errada, o que é ainda melhor. Agatha Christie criava suas tramas com esta maestria, mas seus crimes ficam mais fáceis de desvendar quando o leitor já leu uma quantidade suficiente deles.

Agatha tem um recorde difícil de ser batido. A Ratoeira (The Mousetrap), uma peça que reúne mistério e assassinato, é famosa por ser a peça há mais tempo encenada na história do teatro, com mais de 30 mil apresentações desde sua estréia, em Londres, em 1952. Ela também é notória por seu final inesperado, que os espectadores ao fim de cada sessão são convidados a não revelarem quando saem, pois um spoiler seria fatal para fruição da peça.

Suas principais obras, além da peça A Ratoeira, são O Assassinato de Roger Ackroyd, Assassinato no Expresso Oriente, O Caso dos Dez Negrinhos, Morte no Nilo, Convite para um Homocídio e Cai o Pano. Mas há vários outros de mesmo nível. Quando o assunto é Agatha Christie, deve-se esperar uma trama repleta de reviravoltas, diálogos tensos, diversos suspeitos e um final surpreendente. Ah, e esqueça o assassino-padrão. Apesar de conservadora, a escritora jogava a culpa sobre qualquer um — nobres, serviçais, mulheres, homens, ingleses, estrangeiros, qualquer um. os motivos também são vários. Podem ser passionais, movidos pela cobiça ou por “nobres” razões. Então, caro leitor, tente adivinhar o assassino e seus motivos, mas espere por qualquer coisa.

Fontes utilizadas:
Agatha Christie`s Life Events
Burburinho
Diário de Pernambuco
Site da L&PM Editores

Publicado em 13 de setembro de 2015 no Sul21

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

21 poemas de Drummond lidos por 21 artistas brasileiros

21 poemas de Drummond lidos por 21 artistas brasileiros

Quando da passagem dos 109 anos de nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade, em 2011, o IMS – Instituto Moreira Salles, produziu uma série de vídeos de artistas lendo poemas de Drummond. Eu descobri isso só hoje, quando vi alguns dos vídeos. Tem muitos além deste 21 que apresento abaixo.

1 – Os inocentes do Leblon, por Chico Buarque

2 – Necrológio dos desiludidos do amor, por Fernanda Torres

3 – Elegia 1938, por Caetano Veloso

4 – O amor bate na aorta, por Drica Moraes

5 – O Elefante, por Adriana Calcanhotto

6 – Amar, por Marília Pêra

7 – Destruição, por Marina Person

8 Elegia a um tucano morto, por Pedro Drummond

9 – Cantiga do Viúvo, por Elvira Bezerra

10 – Especulação em torno da palavra homem, por Sandra Corveloni

Read More

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Aqui, não há como discordar de Eco

Aqui, não há como discordar de Eco

eco imbecis

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Uma historinha curta de Umberto Eco, lembrada pelo Nelson Moraes

Uma historinha curta de Umberto Eco, lembrada pelo Nelson Moraes

Depois que o Jean-Jacques Annaud filmou O Nome da Rosa, foram perguntar ao Umberto Eco se ele tinha gostado da adaptação cinematográfica. “Você deve estar brincando”, ele respondeu. “Pegaram meu livro, cortaram dois terços dele, tiraram todas as discussões sobre Escolástica e centraram o enredo no crime do mosteiro e na iniciação sexual do noviço, além de colocarem um galã como o Sean Connery para interpretar William de Baskerville — que no livro era um monge baixinho e feioso — para assim chegar a milhões e espectadores no mundo todo, e você pergunta se eu gostei? Eu adorei!”

SPETT.UMBERTO ECO A NAPOLI(SUD FOTO SERGIO SIANO)

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Uma citação de Eco trazida pelo Carlos André Moreira: Borges e a música das ideias

Uma citação de Eco trazida pelo Carlos André Moreira: Borges e a música das ideias

“É muito difícil subtrair-se à angústia da influência, assim como foi muito difícil para Borges ser um precursor de Kafka. Dizer que não existe em Borges ideia que já não existisse antes equivale a dizer que não há uma só nota em Beethoven que já não tivesse sido produzida antes. O que permanece fundamental em Borges é a sua capacidade de usar os mais variados detritos da enciclopédia para fazer música de ideias. Certamente tentei imitar esta lição (embora a ideia de uma música de ideias me viesse de Joyce). O que posso dizer? Que diante das melodias de Borges, tão imediatamente cantáveis (mesmo quando atonais), memorizáveis, exemplares, sinto-me como se ele tivesse tocado divinamente o piano e eu tivesse soprado uma ocarina.

Mas espero que se venha a encontrar sempre, depois da minha morte, alguém mais inábil que eu, de quem eu possa ser reconhecido com precursor.”

UMBERTO ECO (1932 – 2016)
“Borges e a minha angústia da influência”. In: Sobre a Literatura. BestBolso, 2011. pp. 131- 132.

umberto_eco

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

A Fundação José Saramago escreveu, sobre Umberto Eco

A Fundação José Saramago escreveu, sobre Umberto Eco

Eco SaramagoUmberto Eco, um dos grandes nomes da literatura mundial, morreu esta sexta-feira aos 84 anos. À familia e aos amigos próximos, o nosso abraço.

Relembramos a sua vasta obra e, em particular, o texto que serviu de prefácio para a edição italiana de “O Caderno”, de José Saramago, publicado em 2009. É que a edição de Os Cadernos de José Saramago em Itália foram vetados pelo acionista da editora habitual do Nobel, Silvio Berlusconi. No entanto, o volume foi publicado naquele país e contou com o prefácio de Umberto Eco, que copiamos abaixo.

A Umberto, o nosso último obrigado.

Um blogueiro chamado Saramago, por Umberto Eco

Curiosa personagem, este Saramago. Tem oitenta e sete anos e (diz ele) alguns achaques, ganhou o Nobel, distinção que lhe permitiria nunca mais produzir nada porque seja como for já tem no Panteão o seu lugar garantido (o avaríssimo Harold Bloom definiu-o “o romancista mais dotado de talento ainda em vida… um dos últimos titãs de um género literário em vias de extinção”), eis que aparece a manter um blog onde se mete um pouco com toda a gente, atraindo sobre a sua pessoa polémicas e excomunhões vindas de muitos lados – mais frequentemente não por dizer coisas que não deve dizer mas porque não perde tempo a medir as palavras – e talvez o faça mesmo de propósito.

O quê, ele? Ele que cuida da pontuação ao ponto de a fazer desaparecer, que na sua crítica moral e social nunca leva o problema a peito, mas poeticamente o contorna nos modos do fantástico e do alegórico, de modo que o seu leitor (embora suspeitando que de te fabula narratur) terá de pôr muito de si para compreender até onde vai parar o apólogo – como no seu Ensaio sobre a Cegueira -, faz viajar o leitor numa névoa leitosa em que nem sequer os nomes próprios, de que é bastante parco, dão um sinal claramente reconhecível, ele que no Ensaio sobre a Lucidez faz uma opção política decidida com base em enigmáticos votos em branco? E este escritor fantasioso e metafórico vem dizer-nos despreocupadamente que Bush é de “uma ignorância abissal, e uma expressão verbal confusa perenemente atraída pela irresistível tentação do puro despropósito”, cowboy que confundiu o mundo com uma manada de vacas, que não sabemos sequer se pensa (no sentido nobre da palavra), robot mal programado que constantemente mistura mensagens que tem registadas lá dentro, mentiroso compulsivo, corifeu de todos os outros mentirosos que o aplaudiram e serviram nos últimos anos? E este delicado tecelão de parábolas usa palavras que não deixam margem para dúvidas quando define o dono da editora que o publica? E este ateu manifesto, para quem Deus é “o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a este silêncio”, repõe Deus em cena para se interrogar sobre o que pensa Ratzinger? E, militante comunista (ainda tenazmente), põe-se a gritar que “a esquerda não tem uma puta ideia do mundo em que vive”, e ainda por cima se queixa de não ter tido resposta (sei lá, uma expulsão, uma excomunhão ao menos)? E arrisca-se à acusação de anti-semitismo por ter criticado a política do Governo de Israel simplesmente esquecendo-se, na sua irada participação nas desventuras palestinas, de se lembrar – como uma equilibrada análise pretenderia – que há quem negue o direito à existência de Israel? Mas ninguém leva em conta que quando fala de Israel Saramago pensa em Jahvé, “Deus feroz e rancoroso”, e neste sentido não é mais anti-semita do que é antiariano e certamente anticristão, dado que para todas as religiões procura ajustar contas com Deus – que evidentemente, chame-se como se chamar nas várias línguas, não cessa de o importunar. E ser importunado por Deus é certamente motivo de ira furibunda contra todos os que dele fazem armadura.

Se tivesse sempre em conta os prós e os contras, Saramago também saberia que há inventivas e inventivas. Cito (de cor) Borges, que citava (talvez de cor) o doutor Johnson, que citava o facto daquele tal que insultava assim o seu adversário: “Senhor, a vossa mulher, com a desculpa de ter um bordel, vende tecidos de contrabando.” E afinal Saramago não faz cerimónias, ou seja, não o manda dizer por outro e, na sua actividade de comentador diário da realidade que o rodeia, tira a desforra sobre toda a imprecisão sinistra das suas fábulas.

Tem-se falado muito do ateísmo militante de Saramago. Com efeito, a sua polémica não é contra Deus: uma vez admitindo que “a sua eternidade é só a de um eterno não-ser”, Saramago poderia estar sossegado. A sua aversão é contra as religiões (e é por isso que o atacam de vários lados, negar Deus é concedido a todos, enquanto polemizar com as religiões põe em causa as estruturas sociais).

Uma vez, precisamente estimulado por uma das intervenções anti-religiosas de Saramago, reflecti sobre a célebre definição de Marx, para quem a religião é o ópio dos povos. Mas é verdade que as religiões têm sempre todas esta virtude soporífera? Saramago várias vezes tem atacado as religiões como fontes de conflito: “As religiões, todas elas, sem excepção, nunca servirão para aproximar e reconciliar os homens; pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos indescritíveis, de chacinas, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da mísera história humana” (La Repubblica, 20 de Setembro de 2001).

Saramago concluía algures que “se fôssemos todos ateus viveríamos numa sociedade mais pacífica”. Não tenho a certeza de que tivesse razão, e parece que indirectamente lhe teria respondido o papa Ratzinger na sua encíclica Spe salvi, em que dizia que é o ateísmo dos séculos XIX e XX, se bem que se tenha apresentado como protesto contra as injustiças do mundo e da história universal, que fez que “de tal premissa tenham resultado as maiores crueldades e violações da justiça”.

Talvez Ratzinger pensasse naqueles sandeus de Lenine e Estaline, mas esquecia-se que nas bandeiras nazis estava escrito “Gott mit uns” (que significa “Deus está connosco”), que falanges de capelães militares benzeram os arruaceiros fascistas, que inspirado em princípios religiosíssimos e apoiado por Guerrilheiros do Cristo-Rei era o massacrador Francisco Franco (independentemente dos crimes dos adversários, foi sempre ele que começou), que religiosíssimos eram os Vandeanos contra os Republicanos, que até tinham inventado uma Deusa Razão, que católicos e protestantes se massacraram alegremente durante anos e anos, que tanto os Cruzados como os seus inimigos eram impelidos por motivações religiosas, que para defender a religião romana se puseram os leões a comer os cristãos, que por razões religiosas se acenderam inúmeras fogueiras, que religiosíssimos são os fundamentalistas muçulmanos, os autores do atentado das Twin Towers, Osama e os talibãs que bombardearam os Budas, que por razões religiosas se opõem a Índia e o Paquistão, e por fim que foi a invocar God Bless America que Bush invadiu o Iraque.

Por isso me punha a reflectir que talvez (se por vezes a religião é ou foi o ópio dos povos) com maior frequência tem sido a sua cocaína. Creio que esta é também a opinião de Saramago e ofereço-lhe a definição – e a sua responsabilidade. Saramago blogger é um zangado. Mas haverá realmente um hiato entre esta prática de indignação diária sobre o transeunte e a actividade de escrita de “opúsculos morais” válidos tanto para os tempos passados como para os futuros? Escrevo este prefácio porque sinto ter alguma experiência em comum com o amigo Saramago, que é a de escrever livros (por um lado) e por outro a de nos ocuparmos de crítica de costumes num semanário. Sendo o segundo tipo de escrita mais claro e divulgador que o outro, muita gente me tem perguntado se eu não despejaria nas pequenas peças periódicas reflexões mais amplas feitas nos livros maiores. Não, respondo eu, ensina-me a experiência (mas creio que o ensina a todos os que se encontrarem em situação análoga) que é o impulso de irritação, a dica satírica, a chicotada crítica escrita à pressa, que fornecerá a seguir o material para uma reflexão ensaística ou narrativa mais desenvolvida. É a escrita diária que inspira as obras de maior empenho, e não o contrário.

E pronto, eu diria que nestes breves escritos Saramago continua a fazer a experiência do mundo tal como desgraçadamente ele é, para depois o rever a uma distância mais serena, sob a forma de moralidade poética (e às vezes pior do que é – embora pareça impossível ir mais longe).

Mas depois, estará realmente sempre assim tão zangado este mestre da filípica e da catilinária? Parece-me que além da gente que ele odeia também existe a gente que ele ama, e eis as peças afectuosas dedicadas a Pessoa (não se é português em vão) ou a Jorge Amado, a Carlos Fuentes, a Federico Mayor, a Chico Buarque de Hollanda, que nos mostram que este escritor é pouco invejoso dos colegas e sabe tecer-lhes delicadas e ternas miniaturas.

Para não falar (e eis o retorno aos grandes temas da sua narrativa) de quando da análise do quotidiano salta para os grandes problemas metafísicos, para a realidade e a aparência, para a natureza da esperança, para como são as coisas quando não estamos a olhar para elas..

Então volta à cena o Saramago filósofo-narrador, já não zangado mas meditativo e incerto. Contudo não nos desagrada mesmo quando se enfurece. É simpático.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Quem roubou nosso tempo de leitura?

Quem roubou nosso tempo de leitura?
Cena de Inglourious Basterds, de Quentin Tarantino, 2009
Cena de Inglourious Basterds, de Quentin Tarantino, 2009

O tempo para leitura parece cada vez mais comprimido e isto não é uma perda apenas para a literatura.

Um súbito interesse renovado por Tolstói, causado pelo filme sobre seus últimos dias, A Última Estação, fez-me lembrar que há um ano atrás eu tinha prometido a mim mesmo reler Guerra e Paz. Fazia algum tempo que eu não enfrentava um romance de grandes proporções ou, para ser mais exato, qualquer coisa publicada antes do século XX. A releitura de Guerra e Paz iria me tranquilizar: minha resistência física e disponibilidade estavam intactas. Fui até a estante e descobri a página em que deixei o marcador —  ele estava na página 55 e eu sequer podia utilizar a desculpa de ter crianças pequenas.

O fato em si não teria me assustado — afinal, é Guerra e Paz — se não fosse a existência de outros marcadores abandonados em outros livros. Eu não estava terminando nenhum deles? Como é que eu, que adorava ficção o suficiente para estudá-la, ensiná-la e escrever a repeito, me tornara tão distraído?

Cena de Persona, de Ingmar Bergman, 1966
Cena de Persona, de Ingmar Bergman, 1966

O mundo dos meus tempos de estudante era fundamentalmente diferente do atual. Foi apenas no final da minha graduação que um amigo me mostrou uma maravilha chamada internet (Ele: “Há sites sobre qualquer assunto, tudo pode ser encontrado!”. Eu: “O que é um site?”). Nos anos 90, havia somente quatro canais de televisão. Cada família tinha um telefone, cujo uso era consecutivo. Poucos tinham jogos eletrônicos. Então, era muito mais fácil retirar-se completamente do mundo para a grande arquitetura do romance. Agora, o leitor está sob o ataque de centenas de canais de televisão, cinema 3D, há um negócio de jogos de computador tão florescente que faz com que Hollywood os imite em seus filmes, há os iPhones, o Wifi, o YouTube, há notícias 24h, uma cultura tola da celebridade — verdadeiras ou falsas (vide BBB) — , acesso instantâneo a toda e qualquer música já registrada, temos o esporte onipresente, há caixas de DVDs com tudo o que gostamos. Os momentos de lazer que já eram preciosos foram engolidos pela lista anterior e também e-mails, torpedos, WhatsApp e Facebook. Quase todos as pessoas com quem eu falo dizem amar os livros, mas que simplesmente não encontram mais tempo para lê-los. Bem, eles CERTAMENTE têm tempo, só que não conseguem gastá-lo de forma diferente.

Isto tem consequências desastrosas para nossa inteligência coletiva. Estamos sitiados pela indústria de entretenimento, a qual nos estimula apenas em determinadas direções. O sedução é sonora, visual e tátil. A concentração na palavra impressa, na profundidade de um argumento ou de uma narrativa ficcional, exige uma postura que os dependentes dos meios visuais não têm condições de atender. Seus cérebros não se fixam na leitura ou, se leem, fazem-no rapidamente para voltar logo ao plin-plin. Ora, isso é um roubo de um espaço de pensamento que deveria ser recuperado.

Alphaville, de Godard, 1965
Alphaville, de Godard, 1965

Obviamente, os meios de comunicação como a Internet nos oferecem enormes benefícios (você não estaria lendo isto de outra forma), mas nos empurram facilmente para coisas bem superficiais que roubam nosso tempo. Você viu Avatar? Você viu o que eles podem fazer agora? Podem me chamar de melodramático, mas estou começando a me sentir como protagonista de alguma distopia (ou antiutopia) do gênero de 1984 ou Fahrenheit 451, tendo meus pensamentos apagados e, pior, gostando disso.

A Cultura mudou rapidamente nesta década. A leitura está sob ameaça como nunca antes. “Escrever e ler é uma forma de liberdade pessoal”, disse Don DeLillo em uma carta a Jonathan Franzen, que o questionara muito tempo antes da chegada da Internet. “A literatura nos liberta dos pensamentos comuns, de possuir a mesma identidade das pessoas que vemos em torno de nós. Nós, escritores, fundamentalmente, não escrevemos para sermos heróis de alguma subcultura, mas principalmente para nos salvar, para sobrevivermos como indivíduos.” Exatamente a mesma afirmação, penso eu, descreve a condição dos leitores sérios.

Deem-me o meu Tolstói. Agora é guerra.

Traduzido mui veloz e livremente por mim. O original de Alan Bissett está aqui.

Imagens retiradas — à exceção da última — do maravilhoso blog O Silêncio dos Livros

de-o-silencio-dos-livros-peter-turnley-monsieur-bernard-laine-1999

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Ascoli Piceno, em 1529, já conhecia bem nosso mundo…

Ascoli Piceno, em 1529, já conhecia bem nosso mundo…

PicenoQuem pode, não quer
Quem quer, não pode
Quem sabe, não faz
Quem faz, não sabe
E assim o mundo
Vai mal

Ascoli Piceno 1529

(Ascoli Piceno é uma cidade medieval que fica na região Marche, próximo ao Adriático).

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Machado de Assis e a “cagada” da livraria-editora Garnier

Machado de Assis e a “cagada” da livraria-editora Garnier

Qualquer bibliófilo sabe que a primeira edição de uma obra é sempre mais valiosa que as outras, apesar de muitas vezes ter sido impressa em papel de pior qualidade ou da má qualidade de sua impressão. O seu valor acaba por ser alto justamente porque são raros e poucos a possuem.

Mas, há casos em que uma primeira edição se torna mais valorizada devido a um erro tipográfico que escapou à revisão do editor ou do autor e foi parar nas livrarias. Corrigido o erro nas edições subsequentes, estes exemplares conquistam então o status de raridade bibliográfica. Este é o caso da primeira edição das Poesias Completas de Machado de Assis, publicado em 1901 pela Livraria Garnier.

Machado de Assis – Poesias completas. 1ª edição. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1901. VI, 376 p., 24 p. Frontispício de Machado de Assis. Possui notas, índice e catálogo da Garnier.
Machado de Assis – Poesias completas. 1ª edição. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1901. VI, 376 p., 24 p. Frontispício de Machado de Assis. Possui notas, índice e catálogo da Garnier.

Ao organizar este volume das suas poesias, Machado de Assis reuniu os livros Crisálidas (1864), Falenas (1870) e Americanas (1875), expurgando-os de algumas poesias e acrescentando um novo conjunto, intitulado Ocidentais.

No começo do século XX quase todos os livros desta editora eram impressos na França, mas, apesar da revisão, às vezes escapavam alguns erros. E foi justamente nesta obra, do mais importante autor brasileiro, que escapou um erro gravíssimo: Machado escrevera à página 20, no prefácio, “… cegára o juízo …”, e o tipógrafo francês trocou o “e” por um “a”!

Machado de Assis – Poesias Completas (com erro tipográfico)
Machado de Assis – Poesias Completas
(com erro tipográfico)

O erro só foi percebido depois que a edição já estava na livraria e alguns exemplares tinham sido vendidos. Para corrigir o erro, um empregado da livraria (Everardo Lemos) sugeriu raspar com cuidado a letra a e escrever a letra e com tinta nanquim.

Machado de Assis – Poesias Completas (com erro corrigido à mão)
Machado de Assis – Poesias Completas
(com erro corrigido à mão)

Depois o editor Garnier providenciou a reimpressão da folha com o erro, para substituí-la em todos os exemplares que ainda não tinham sido vendidos…

Machado de Assis – Poesias Completas (com erro corrigido tipograficamente)
Machado de Assis – Poesias Completas
(com erro corrigido tipograficamente)

Por causa disso existem três tipos de exemplares da primeira edição das Poesias Completas de Machado de Assis: o primeiro sem a correção (raríssimo) com a palavra cagara, o segundo com a correção feita a mão e o terceiro com a folha impressa sem o erro.

O felizardo que possuir na sua biblioteca um exemplar sem a correção tem em mãos uma obra cobiçada por qualquer bibliófilo digno deste nome. O Mercado Livre já vendeu a obra com a correção feita à mão por R$ 850,00, uma barbada.

Adaptado do blog Tertúlia Bibliófila.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Os Ratos, de Dyonélio Machado, completa 80 anos

Os Ratos, de Dyonélio Machado, completa 80 anos

Vim do inferno, o que criou nova forma de conviver com a vida; e, pela mesma razão, uma nova forma de romance.
Dyonelio Machado

— Mas por que seus livros estão sendo tão procurados e estudados agora? — perguntou a Dyonelio um leitor no final dos anos 70.

O escritor, que procurava um livro num sebo da Riachuelo, respondeu:

— Foi porque eu morri. Alguns escritores são reconhecidos só depois de mortos. Há vários tipos de mortes. Uma delas me pegou, fazer o quê?

— Uma boa morte, pelo visto.

— Meu filho, não existe morte boa.

Os Ratos, de Dyonelio Machado, completa 80 anos em 2015. O pequeno romance é um dos mais importantes da literatura brasileira. A história se passa durante um dia, são 24 horas de completa angústia para o personagem Naziazeno Barbosa em sua preocupação sobre como arranjar dinheiro para quitar uma dívida com o leiteiro.

O título Os Ratos é uma referência ao pesadelo do protagonista da história que, depois de ter conseguido o dinheiro para saldar a dívida, sonha que ratos estão roendo o dinheiro que ele deixara à disposição do leiteiro sobre a mesa da cozinha.

Até os anos 60, o leite era entregue na porta das casas das pessoas. Uma das opções era deixar a garrafa de vidro vazia na porta para que o entregador a trocasse por outra cheia. Funcionava um caderninho: num dia combinado antecipadamente, o leiteiro batia e cobrava os atrasados, “passando a régua”. Ou deixava-se a porta aberta para que o leiteiro deixasse o produto na cozinha. O desenrolar do drama do funcionário público endividado e com vergonha de olhar os credores atravessa os capítulos e enche de angústia o leitor. O dinheiro do leite, a doença do menino, a fome de Naziazeno… E enfim, o empréstimo salvador. Porém, ter conseguido o dinheiro para quitar a conta do leite é apenas o início de uma nova dívida, a expectativa de mais um dia caminhando atrás de uma solução.

Dyonelio Machado

O romance inicia com o ultimato do leiteiro. Ele suspenderá o fornecimento de leite caso não receba o pagamento até o dia seguinte. Ao final do dia, mesmo o descanso de Naziazeno não é verdadeiro. O triste e diminuto papel do protagonista no mundo é contado sem sentimentalismos pelo texto Dyonelio, altamente coloquial. O escritor nos envolve no drama do protagonista através dos pensamentos do personagem principal. A reviravolta na narrativa ocorre quando, ao anoitecer, pensamos que o caso está encerrado, mas tudo retorna nas angustiadas lembranças dos movimentos do dia, agora observado sob novos ângulos.

Dyonélio Machado escreveu Os Ratos em vinte noites, logo após chegar do trabalho como médico. Dormiu muito pouco naqueles dias e, cedo, deixava o que escrevera à noite para sua mulher fazer a primeira revisão. “Todo o livro estava muito claro para mim, porque eu havia passado nove anos pensando nele, nove anos pensando nesse livrinho. Então eu saía para atender os doentes, no hospício onde eu era médico e nos dois hospitais onde também trabalhava, e, após tudo isso, ia para casa e começava a escrever. Depois de minha mulher revisar eu levava as folhas para uma mocinha que era empregada da Livraria do Globo, a principal de Porto Alegre, e que tinha sido indicada pelo Érico Veríssimo. Ela datilografava o trabalho. Num dia, eu levava umas folhas manuscritas e pegava outras datilografadas, e assim o trabalho ia avançando. Numa dessas vezes ela perguntou: ‘Escute, doutor, o Naziazeno vai ser feliz?’ Eu lhe respondi: ‘Leia tudo, que você vai ver’. Foi assim que eu descobri que tinha um romance”.

Os Ratos enquadra-se no chamado Romance de 30: denominação dada ao conjunto de obras de ficção produzidas no Brasil a partir de 1928, ano de publicação de A Bagaceira, de José Américo de Almeida. É um romance social por excelência. O drama urbano da classe média baixa encontra protótipo perfeito na figura de Naziazeno Barbosa, um homem fragilizado pela incapacidade de cumprir um papel necessário no caos social em que vive.

Os Ratos costuma ser colocado lado a lado de Angústia, de Graciliano Ramos. Há coincidências que ligam os romances. São duas narrativas de estéticas inovadoras, mas que têm muito em comum. Ambas são muito sérias e densas, ambas trabalham com o psicológico dos personagens, ambas têm parentesco com Crime e castigo de Dostoiévski e, para terminar, ambos os autores foram comunistas e ambos foram presos em meados dos anos 30.

Em 1935, Dyonélio recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras por Os Ratos. Soube da premiação quando estava preso, incomunicável, no porão de um navio estacionado no porto de Santos. Apesar disso, um amigo conseguiu lhe avisar do fato.

.oOo.

Dyonelio Machado nasceu em Quarai, RS, em 1895. Político, psiquiatra, jornalista e poeta, aos 12 anos já trabalhava no semanário O Quaraí. Em 1911, fundou o jornal O Martelo, onde deixa clara sua adesão ao comunismo. Em 1929, formou-se médico e estudou psicanálise, constituindo-se num dos responsáveis pela divulgação da nova disciplina no Rio Grande do Sul. Em 1934, traduziu a obra Elementos da psicanálise, de Eduardo Weiss, livro fundamental na área.

Dyonélio Machado no Pátio da Prisão de Bananeiras em 1935

Dyonelio Machado dividia-se entre a política, a psiquiatria e a literatura. O interesse pela última foi demonstrado por seu primeiro livro de contos – Um pobre homem – publicado em 1927.  Depois viria sua mais importante obra, Os ratos, de 1935, e O louco do Catí (1942), outro romance clássico do autor. Sua obra foi reconhecida tardiamente, tendo recebido destaque nos meios acadêmicos apenas a partir da década de 80. Foi ainda um dos fundadores da Associação Rio-grandense de Imprensa (ARI) e, mais tarde, colaborador dos jornais Correio do Povo e Diário de Notícias, de Porto Alegre. Em 1946, com Décio Freitas, fundou o jornal Tribuna Gaúcha, porta-voz do Partido Comunista Brasileiro.

Membro do PCB, em 1935 foi acusado de atentar contra a ordem política e social ao trabalhar para a realização de uma greve de gráficos. Solto mediante sursis, voltou a ser preso no mesmo ano, em razão da Intentona Comunista. Suas posições ideológicas custaram-lhe dois anos passados na prisão. Mas seguiu fazendo política, tanto que foi deputado constituinte pela Partidão e, em 1947, com o PCB na legalidade, elegeu-se deputado estadual, tornando-se líder da sua bancada na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.

Em 1956, numa entrevista para o jornal A Hora, disse: “Se algum conselho eu tivesse o direito de dar aos jovens, seria de que a vida deve ser vivida com indiferença”. E, pouco antes de morrer, Dyonelio concedeu uma longa entrevista para Julieta de Godoy Ladeira onde fez uma declaração que sempre surpreende os que tem contato com seus bem cuidados textos: “Não releio o que faço. Meu narcisismo nasce e morre à primeira e única revisão”.

Dyonélio Machado faleceu em 1985, aos 90 anos.

Fontes:
— História da Literatura do Rio Grande do Sul, de Guilhermino Cesar
O Pensamento Político de Dyonélio Machado, publicação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul
Tiro de Letra
Passeiweb

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Montaigne por Virginia Woolf

Montaigne por Virginia Woolf

Lindo texto de Virginia Woolf que roubo desavergonhadamente do perfil do Facebook de Gustavo Melo Czekster. Confesso que fiquei meio confuso com as aspas, mas é óbvio que isto se deve à minha incurável estupidez:

Ontem reli este ensaio magnífico: o momento em que Virginia Woolf fala da sua admiração irrestrita por Montaigne, e consegue ser quase superior ao filósofo francês. Para mim, o centro do texto ainda está em uma frase: “enquanto houver tinta e papel, “sem cessar e sem fadiga” (III, 9), Montaigne escreverá.” Mas o resto é igualmente bonito:

virginia woolf

“Há pessoas que, quando viajam, se fecham em si mesmas, “protegendo-se do contágio de um ambiente desconhecido” (III, 9), em silêncio e desconfiança. Quando comem precisam ter o mesmo tipo de comida que têm em casa. Qualquer visão e costume é ruim a não ser que se assemelhe aos de seu próprio vilarejo. Viajam apenas para voltar. É a maneira mais errada de abordagem. Devemos começar sem nenhuma ideia fixa sobre onde vamos passar a noite, ou quando pretendemos voltar; o caminho é tudo. Mais necessário que tudo, mas sorte das mais raras, devemos tentar encontrar, antes de partir, algum homem de nossa própria classe que vá conosco e a quem podemos dizer a primeira coisa que nos vem à cabeça. Pois o prazer não tem nenhuma graça a menos que o partilhemos. Quanto aos riscos – que possamos apanhar um resfriado ou ter uma dor de cabeça – sempre vale a pena arriscar uma doença passageira em nome do prazer. “O prazer é uma das principais espécies de proveito” (III, 13). Além disso, se fizermos o que gostamos, sempre faremos o que é bom para nós. Médicos e sábios podem ter as suas objeções, mas deixemos os médicos e os sábios com sua própria e triste filosofia. Quanto a nós, que somos homens e mulheres comuns, vamos dar graças à Natureza por sua generosidade, usando cada um dos sentidos que ela nos deu; variar o nosso estado tanto quanto possível; voltar ora este lado, ora aquele, para o calor, e saborear ao máximo, antes que o sol se ponha, os beijos da juventude e os ecos de uma bela voz cantando Catulo. Todas as estações são desfrutáveis, e dias úmidos e dias lindos, vinho tinto e vinho branco, companhia e estar só. Mesmo o sono, essa deplorável redução do prazer da vida, pode ser pleno de sonhos; e as ações mais comuns – uma caminhada, uma conversa, ficar só no seu próprio pomar – podem ser intensificadas e iluminadas pela associação da mente. A beleza está por toda parte, e a beleza está a apenas dois dedos de distância da bondade. Assim, em nome da saúde e da sanidade, não descansemos no fim da jornada. Que a morte nos surpreenda plantando nossas couves, ou no lombo de um cavalo, ou nos permita escapulir para alguma casinha no interior onde estranhos possam fechar os nossos olhos, pois um criado soluçando ou o toque de uma mão nos deixariam arrasados. Melhor ainda, que a morte nos encontre em nossas ocupações normais, entre moças e bons camaradas que não façam nenhuma declaração ou lamento; que ela nos encontre “entre os jogos, os festins, as brincadeiras comuns e populares, e a música, e versos de amor” (III, 9). Mas chega de morte; é a vida que importa.”

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Malditos tradutores do passado!

Malditos tradutores do passado!
Finalmente! Acima, a capa da bela tradução de Paulo Bezerra
Finalmente! Acima, a capa da bela tradução de Paulo Bezerra

Há dias, publiquei no Facebook o seguinte desabafo:

Malditos tradutores do passado! Relendo “Os Irmãos Karamázov”, na notável tradução de Paulo Bezerra, estou me dando conta de que não existe lá a frase “Se Deus não existe, tudo é permitido”. O que há é um grande parágrafo de onde se pode concluir que “destruindo-se nos homens a fé na imortalidade, (…), então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia”. Talvez o assunto retorne em capítulos posteriores, mas parece-me que a famosa frase é uma invenção extra-Dostô.

Sabiam que Guerra e Paz chama-se, no original de Tolstói, Guerra e Mundo?

Recebi vários comentários. Não desejo perder dois deles, preciosos:

1. Felipe de Amorim: Pois sua conclusão foi corretíssima, caro Milton. “Se Deus não existe, tudo é permitido” é uma famosa falsa citação. A origem da frase está num trecho já quase do final do livro, no Livro XI, Capítulo IV… É quando Aliosha está discutindo com Mítia sobre o colega de seminário, Rakitin. Mítia está criticando o cinismo do último e conta que o questionou dizendo: “Sem Deus e sem vida futura? Quer dizer então que hoje em dia tudo é permitido, pode-se fazer tudo?” (trad. Paulo Bezerra).

É uma frase bem maior, nota-se, e é um questionamento e não um aforismo. Mas a popularização da versão errônea não foi culpa dos tradutores brasileiros, embora a história das traduções de Dostoiévski no Brasil seja prenhe de mutilações, equívocos e crimes contra a literatura (além de uns crimes propriamente ditos, também). A versão “resumida” da citação é de uso corrente em inglês e francês também.

(Agora o que é realmente interessante é que, como já mencionei, Dostoievski escreveu essa passagem justamente criticando esse tipo de postura, que ele apresenta como um espantalho, uma proposição ridícula usada para justificar o comportamento de um tipo desprezível como Rakitin. Além de citarem a frase errado, atribuem a Dostô uma visão de mundo a qual ele justamente se opunha.)

2. Rogério Godinho: Eu considero essa questão da tradução com os Karamázov um fato histórico. A Denise Bottman aposta que começa aí a longa sucessão de fraudes na tradução brasileira, pelo menos até onde as pesquisas dela alcançam. E eu achei o tradutor do manuscrito mutilado: Leoncio Basbaum. Ele costumava usar o pseudônimo de Helio de Andrade, mas tudo indica que nesse caso ele pode ter usado “Raul Rizinsky”. Então, se tiverem aí um exemplar com esse tradutor, guardem: é uma peça histórica da desonestidade editorial.

Aqui, o próprio tradutor relata:

“Para conseguir trabalho, por sugestão do antigo colega e companheiro de infância (Elias Davidovitch), fui procurar a Editora Guanabara [aqui parece que ele se confundiu, devia ser a Editora Americana], onde me ofereci para fazer traduções, indústria recém-começando no Brasil. Recebeu-me bem e me disse que tinha precisamente um livro a traduzir: Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, livro que eu conhecia e amava. Combinamos o preço, deu-me um pequeno adiantamento e em seguida me entregou o original: uma tradução francesa. Antes, porém, abriu-o pelo meio, arrancou cerca de 40 ou 50 páginas de um golpe e me disse com um ar sério: o livro é muito grosso.

Como eu me mostrasse surpreso, e um tanto escandalizado, ele explicou: o livro é muito grosso e fica muito caro. Além disso, ele fará parte de uma série de livros que são muito finos. Finalmente, o trecho certamente não tinha muita importância, e o leitor nem notaria.

— Mas, disse eu, aqui você cortou uma frase no meio e também uma palavra ficou pela metade…

— Não tem importância, você completa a palavra e faz algumas linhas ligando um trecho com o outro…

E assim foi que me tornei colaborador e parceiro de Dostoiévski.” (Basbaum, apud Silva-Reis, 2012)

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Inverossímil, de Rodrigo Rosp

Inverossímil, de Rodrigo Rosp

inverossimilLi Inverossímil, de Rodrigo Rosp, em duas ou três sentadas (ou deitadas) nas folgas da releitura de Os Irmãos Karamázov. Gostei. Caio é um professor de literatura e escritor. Pessoa perfeitamente normal, pensa em sexo durante quase todo tempo. O livro tem três contos-capítulos onde ele conversa primeiro com uma aluna, depois com sua esposa e, finalmente, com uma editora. O único spoiler a que me permito é de dizer que ele tenta comer as três. Os contos são entremeados por conversas picantes (ui!) no WhatsApp com várias amigas. Há sexo, mas este não é o único ingrediente do livro. Há muito humor nas 120 páginas do livrinho da Não Editora, além de um jogo de real-irreal e discussões sobre verossimilhança. Dei risadas em vários momentos e também da forma como o pequeno romance faz sua autocrítica. (É claro que fiquei pensando em como uma feminista misândrica leria certos trechos no qual a “vítima” não se percebe como tal pelo simples fato de não ser vítima. Sim, vivemos num tempo de linchamentos e censura e é importante sentir-se, ainda assim, livre).

Divertido e divertido, como diria uma amiga.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!