O Leitor Sem Método

Publicado em 5 de maio de 2004

Os livros que compro ou ganho vão sendo devorados aos poucos, obedecendo a uma inexplicável lógica. Durante este ano, tive a sorte de ler em seqüência quatro excelentes livros brasileiros recém-lançados. São eles O Grau Graumann (2002), de Fernando Monteiro; Armada América (2003), idem; Budapeste (2003), de Chico Buarque e As Pernas de Úrsula e Outras Possibilidades (2001), de Claudia Tajes. São romances que não guardam nada em comum entre si, mesmo considerando que temos duas obras de um mesmo autor. Os autores também não, pois se Fernando Monteiro é vítima da injustiça de ser pouco conhecido, Chico Buarque vende milhares de livros e Claudia Tajes é uma jovem gaúcha que vem tendo seus méritos reconhecidos.

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O Grau Graumann, que talvez seja o melhor dos quatro livros, inicia-se com a notícia de que o escritor fictício brasileiro Lúcio Graumann ganhara o Prêmio Nobel de Literatura. Finalmente! Tudo faria crer que teríamos uma curiosa farsa pela frente, mas vamos sendo minuciosamente contrariados pelo pernambucano Monteiro. Graumann não é obra de um escritor que joga para a torcida, é obra de alguém muito sofisticado e inteligente, que possui grande talento e informação literária. Suas quebras e mudanças de foco fazem lembrar William Faulkner, conservando, porém, sua originalidade. Graumann nega-se a dar entrevistas e permanece recluso em uma praia do nordeste; contudo, manda um recado à Folha de São Paulo sugerindo que aceitaria falar com um amigo, o jornalista Mauro Portela. Mauro é um ressentido e aceita o trabalho de free lance mais pelo dinheiro que por interesse no amigo. Procura então inutilmente arrancar algo bombástico ou significativo de um homem dobrado pela doença. O contraste entre uma provável comemoração pelo recebimento do prêmio e a depressão de Graumann é aterrador. Reconheço minhas dificuldades com o que chamo de excesso de verossimilhança de algumas obras. Graumann não é tão terrível quanto Vernônia, de William Kennedy, que é complicado de ler, mesmo sem as imagens de Babenco, mas a soma de Graumann + sua amante + sua fuga + seu “perseguidor” Mauro + o cenário formam um todo desolador. Graumann terá uma “continuação” chamada As Confissões de Lúcio, romance propositalmente quase homônimo ao de Sá-Carneiro, que conterá material iconográfico, tais como fotos, manuscritos, etc. e há ainda a idéia de um terceiro romance, escrito pelo próprio Lúcio Graumann e com capa creditada a ele… Imaginem!

Certamente O Grau Graumann é melhor, todavia meu obtuso ser divertiu-se mais com Armada América. São 14 relatos “americanos”, nos quais Monteiro constrói um significativo mosaico daquele país. Não há aceitação passiva do american way of life, nem inflamados discursos antiamericanos. É um livro dedicado aos americanos comuns, incluídos ou outsiders, e o quadro formado nos mostra um amplo retrato de um país sem muito glamour. Monteiro dá inúmeras demonstrações de um despreocupado virtuosismo, move-se pelo livro utilizando a primeira pessoa do singular. Às vezes, não sabemos claramente quem está contando a história, se um personagem ou outro, ou o próprio autor; no relato Benny Siegel há um inesperado e impagável comentário dirigido ao leitor: trata-se de um elogio quase incrédulo a um parágrafo escrito por… Fernando Monteiro: “Bonito, não?”, diz o narrador, para depois retomar o tom habitual. Por puro vício, esperava que Armada contivesse uma história sobre jazz, mas ela não existe. Errei, mas queria ter acertado. Em e-mail trocado com o autor, submeti a ele algumas observações. Resumidamente, eis sua resposta:

Embora agora lamente que, de fato, falte um relato exclusivamente sobre “jazz” – apesar de que, no segundo, conforme eu ainda não havia notado, haja referências ao jazz etc. -, acho que deveria haver ali uma coisa diretamente relacionada, sim, você tem toda razão…

Do “Graumann”, essa opinião de que é um livro que vai ficando opressivo, eu já a ouvi de outros, e suponho que seja mesmo a direção para a qual o romance se encaminha, conscientemente (como metáfora, inclusive, do fracasso da literatura, entre outras coisas).

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Claudia Tajes é engraçadíssima. Seu livro As Pernas de Úrsula e Outras Possibilidades é pontuado por uma comicidade irresistível. Tajes é boa observadora e usa de ironia e mordacidade para contar a história de um divórcio. Lembram daqueles testes psicológicos das empresas para avaliar nossa capacidade para ocupar um cargo? Uma das perguntas mais freqüentes era: qual sua maior qualidade e seu maior defeito? Sobre Claudia Tajes eu responderia o mesmo para os dois questionamentos: o fato de ser engraçada. E, àqueles psicólogos, diria que nossas maiores qualidades podem tornar-se defeitos quando levadas à exacerbação. Não sei o motivo de tanta vontade de fazer rir (a Síndrome L.F. Verissimo?), mas ela faz questão de duas ou três piadas por parágrafo. Sempre. Então, ao mesmo tempo em que nos entusiasmamos com a criatividade e bom humor do texto, notamos que até em trechos dramáticos há galhofa. Há assuntos que não são tão engraçados e ficam distorcidos quando ridicularizados. Woody Allen escreveu que o fato de ser jocoso sempre pode atrapalhar a narrativa. Allen, para desespero de alguns, retirou de Manhattan algumas cenas que, em sua opinião, prejudicavam a atenção do espectador por sua extrema comicidade. Já Tajes erra quando quer manter um perpétuo “Allegro Molto” mesmo em cenas onde há abandono de amantes e crianças.

Não obstante a crítica, confesso ter dado boas risadas, pois antes ou depois de ser mácula, a veia cômica é virtude.

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Os Duelistas, de Joseph Conrad (e, secundariamente, de Ridley Scott)

Os Duelistas é uma novela escrita em 1908, mas parece ter sido criada para o cinema. É uma narrativa visual, toda ela imagem, ação e… , bem, honra. Ou será que a culpa desta notável novela me sugerir o cinema é de Ridley Scott? Pois, em 1977, Scott filmou a história com inigualáveis requintes visuais e grandes atuações de Keith Carradine e Harvey Keitel. Cada cena parece um quadro e as imagens vistas nos anos 70 me perseguiram durante toda a leitura.

O plot é o mais simples do mundo. Na França de Napoleão, no início do século XIX, os militares Féraud (Keitel) e D`Hubert (Carradine) envolvem-se numa disputa por uma ninharia que logo se transforma em animosidade. Eles duelam imediatamente — o que era proibido a oficiais franceses em tempos de guerra — , mas o primeiro duelo não acaba em morte e a honra não fica lavada. Então, duelam novamente e novamente, sempre de forma insatisfatória, até que… , bem, não devo contar o final. Conrad é um mestre. Assim como mal explica o motivo inicial da querela, ele, com sucesso, faz de tudo para que os leitores esqueçam o pouco que  disse sobre o início do ciclo de violência. Apesar da curiosidade de outros personagens, não retorna nunca ao tema e nem os duelistas o fazem. O motivo é simples: não interessa. O que importa é manter a honra. As cenas que Conrad cria para os duelos inconclusos são inteiramente críveis. A novelinha, também conhecida pelo título The Point of Honor, é uma joia.

D`Hubert é um estrategista que parece cada vez mais enfadado com os duelos sucessivos, apesar de se atirar a eles com todo o empenho — sempre a honra, a loucura. Seu adversário, Féraud, é um brutamontes cujo único interesse na vida parece ser o de reencontrar D`Hubert. A iniciativa é sempre dele. Eles pertencem a regimentos diferentes do mesmo exército e por vezes se cruzam nas batalhas. São cinco ou seis embates num período de quinze anos, tendo como pano de fundo as batalhas napoleônicas e sua derrocada final.

O absurdo, a irreflexão, a obsessão desmedida, o sentimento de “vazio” que a vida oferece sem uma boa confusão poucas vezes foram demonstrados com tamanha força. Indico ambos: o pocket da L&PM (só R$ 12,00 !!!) e o filme homônino, disponível em DVD.

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A chuva antes de cair, de Jonathan Coe

O mundo gira e gira e vai lentamente mudando, porém uma das coisas que não se altera é a importância da literatura inglesa. Se hoje temos Martin Amis e Ian McEwan na lista de maiores autores contemporâneos, é melhor acrescentar mais um nome: Jonathan Coe.  O autor — nascido em Birmingham no não tão longínquo ano de 1961, na gloriosa data de 19 de agosto — escreveu nove romances, além das biografias de James Stewart e de Humphrey Bogart. Coe também exerce o mais do que glorioso ofício de crítico de música erudita.

É surpreendente que o taciturno autor de A chuva antes de cair tenha desenvolvido seu doutorado sobre o impagável Tom Jones de Henry Fielding, que já tenha recebido prêmios como autor satírico, que tenha sido membro de uma banda e que a música seja um aspecto central em suas obras, pois nada disso ocorre neste romance.

A chuva antes de cair, quinto e excelente romance de Coe publicado no Brasil, tem alguma música e nenhum riso, mas é perfeito e realista como poucos. Estou chegando ao final da minha vida e por razões que, espero, ficarão claras para você, sinto ter uma obrigação contigo… O que eu quero que você tenha, Imogen, acima de tudo, é uma noção da tua própria história…, são as palavras de Rosamond ao iniciar a gravação de uma série de quatro fitas cassete destinadas à neta de uma prima: Imogen. A protagonista descreve, uma a uma, 20 fotos, que são a base para esclarecer os principais fatos da biografia da neta.

Quando do início da trama, Rosamond acaba de falecer e, como uma das herdeiras, a sobrinha Gill fica encarregada de encontrar Imogen a fim de repassar-lhe sua parte da herança; porém, ao visitar a casa de Rosamond para buscar qualquer coisa, ela encontra algo mais — quatro caixas de fitas cassetes numeradas junto a um montinho de fotos com um bilhete: “Gill, são para Imogen. Se não conseguir encontrá-la, ouça-as você mesma”.

O que se ouve nas fitas é descrição de cada uma das fotos acompanhadas das circunstâncias em que foram tiradas. Elas servem como atalhos para que o autor não necessite construir elos entre cada cena. O artifício é bom não apenas por este motivo, mas pelo fato de que a descrição de cada uma das fotos — com seus rostos, felicidade, esgares ou indiferença — pavimenta um caminho em linha direta com a vida interior de cada personagem. Este livro de som (audição da fitas) e imagem (fotos)  é escrito tranquilamente em tom melancólico e inexorável; é uma narrativa fluente que vai pouco a pouco preenchendo as lacunas da curiosidade do leitor, mas deixando o melhor para o final.

O tema principal do livro é a disputa, o ciúme, o ódio e a indiferença existentes nas relações entre as mães e filhas do romance. Parece haver uma tragédia transmissível de uma para outra. Na verdade, Coe brinca com a experiência do leitor, pois conseguimos prever o que irá ocorrer e o motivo, só não adivinhamos como. Prova de que há relações que carregam em si germes de conflitos prontos a estourar quando da ocorrência de problemas ou descontrole. Talvez este jogo com o leitor seja o maior mérito deste notável romance.

Coe chamou seu livro de “um bocado experimental”, expressão com a qual não concordo. O livro é consistente, excelente mesmo, mas não é nada experimental. Aliás, o experimentalismo parece ter sido varrido da boa ficção nos últimos anos. Não sei se diria que os escritores atuais escrevem para um público do passado ou ao menos passadista, posso apenas dizer que o trio de ingleses citados constroem romances clássicos a ponto de, aceitas as regras do “bem escrever”, não trabalharem novos recursos de linguagem. Mas como são bons!

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Minha arbitragem no CGL (Campeonato Gaúcho de Literatura)

Retirado daqui.

JUIZ
Milton Ribeiro
– Prefere apresentar-se apenas como um voraz literato, melômano e cinéfilo. Por insistência de sete leitores, mantém um blogue e outras coisas por aí. É sócio do Sport Clube Internacional e sósia de Mahmoud Ahmadinejad, além de ser daltônico, cambota e de ter os pés chatos. Tem curriculum vitae completo em seu blogue, o que torna desnecessário dar mais informações.

OS TIMES

TIME 1: Cris, a fera, de David Coimbra

UNIFORME: A camiseta de Cris, a fera é retrô, o distintivo é uma mulher parecida com Rita Hayworth descendo uma escadaria. Na mão, um cigarro. Destaque para a coxa, que fica de fora, aproveitando uma fenda do robe de chambre – para utilizar um termo antiquado como a capa do volume. Não chega a chamar atenção pela beleza ou originalidade, mas é adequado.

ESQUEMA DE JOGO: Sete histórias entre o conto e a novela. Há unidade temática sim, e como! O assunto é sexo do princípio ao fim. O estilo do autor é bem-humorado, mais para a pornografia leve, sem conseguir alçar-se ao erotismo.

GOL DE PLACA: Bandeira 2, a história de abertura, é a melhor do livro. Um conflito bem montado, com boa solução.

BOLA FORA: Cris, a fera, o conto, é previsível e de psicologia pouco profunda.

TIME 2: O girassol na ventania, de Marco De Curtis

UNIFORME: Decididamente, o uniforme não chama atenção. É mais um time listrado como tantos. É o velho e bom pôr-do-sol, neste caso sem sol, porém com o colorido das nuvens. Pode-se dizer que são histórias de Porto Alegre e que o céu de nossos entardeceres é o mais belo de todos, mas… Não, o uniforme é mesmo muito comum.

ESQUEMA DE JOGO: Por incrível que pareça, trata-se igualmente de sete histórias, sendo cinco contos e duas novelas. As histórias tratam de conflitos humanos e amores urbanos, classificação vaga que demonstra que não há estrita unidade temática.

GOL DE PLACA: Amor por um triz é uma bela e muito bem narrada história. Porém, o autor estraga o final através de uma solução simples que imita Brokeback Mountain. Explico: quando o casal – em nosso caso, heterossexual – parte para uma decisão, o roteirista mata um dos dois e finaliza a obra. Tsc, tsc, tsc.

BOLA FORA: Não há exatamente uma bola fora, mas acredito que o final de Beijos de Borboleta seja de difícil deglutição. Marco De Curtis usa de certa indulgência ao finalizar seus textos.

O JOGO

INICIADO O ESPETÁCULO, o time comandado por David Coimbra tomou logo a iniciativa e foi para cima dos intimidados atletas de Marco De Curtis. Logo, demonstrou algumas qualidades, tais como o bom humor e uma tremenda vontade de seduzir. A vontade era tanta que o treinador se esquecia das primícias. Os leitores – seres sensíveis, delicados e BALDOSOS – têm de ser tratados com jeito. Nem todos estão prontos para entrar em ação após cinco segundos e David pretendia deixá-los excitados sem emitir sinais prévios de suas reais intenções. Logo de cara, colocou em campo um vistoso plantel de mulheres. A plateia ficou interessada e vibrou com este GOL, mas, fato curioso, todas eram iguais. Notou-se que, ao longo das páginas, sua TOTALIDADE tinha 1,70 m, pernas intermináveis e fortes, abdomens malhados, seios rijos, postura sedutora e salto alto. Só variavam no cabelo. Apesar da boa e longilínea forma, as Feras não pareciam levar a sério o esporte bretão. Também se notou que por todos os lados havia referências ao emprego do autor ou a seus colegas, numa incrível sucessão de homenagens que passavam por diversos departamentos da RBS. Tomados de forte NÁUSEA CELETISTA, os leitores se retraíram e passaram a vaiar as Feras, que choraram em campo. Meu coração oprime-se ao narrar tais fatos, mas, como repórter, tenho de me comportar como se fosse o espelho do mundo, refletindo os fatos de forma a que você, querido leitor, confie e acredite. E podeis acreditar, asseguro-vos.

O técnico Marco De Curtis sentiu o gol tomado logo nos primeiros minutos da PELEJA. Foi um golpe que o deixou assustado e sem saber como finalizar o primeiro conto. Porém, o DEMIURGO ao lado do campo reorganizou sua equipe, fazendo-a adquirir o indisfarçável charme de Celso Roth, entocando-se na defesa. Como não tinha saída rápida para o ataque, perdendo-se em digressões e VERBOSIDADES dispensáveis, deixou as Feras fazendo graça pelo campo. Apesar da faceirice e da vontade de pressão do adversário, a postura de De Curtis impedia as penetrações de lado a lado. Porém, Celso Roth é Celso Roth e às vezes faz das suas, tornando-se Sexy Hot. Foi o que ocorreu com o time de De Curtis. Em três INSIDIOSAS estocadas, os Girassóis lograram marcar três gols no segundo tempo. Foram momentos de real grandiosidade e variação de jogadas proporcionadas pela equipe HELIOTROPISTA. Uma surpresa para as Feras! Afinal, o que há em comum entre cães mortos, contos surrupiados e descompassos afetivos? Foram três estranhos gols – o segundo bastante vingativo, demonstrando abissal ressentimento contra o salto alto das Feras – , feitos em sequência naquele futebol de passes curtos, mas que resolveram a partida com facilidade.

Parabéns aos Girassóis!

Entrevistados após a partida, os técnicos demonstraram visões diversas. David Coimbra, em entrevista à nossa reportagem, declarou que o placar foi injusto, pois o árbitro o prejudicou, demonstrando preconceito contra sua condição de conhecido jornalista e fauno do IAPI. Prometeu ir ao tapetão até se esgotarem todas as instâncias da Justiça Desportiva. Já Marco De Curtis irritou-se com os repórteres que insistiam em falar em futebol de resultados.

— Nossa vitória foi justa. Demos um chocolate, um banho tático, tanto que fizemos três belos gols. O que importa são os três pontos, o resto são filigranas, coisas que vocês inventam para vender jornal — garantiu.

PLACAR
Feras 1  x 3 Girassóis

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Dostoiévski, de novo

Um pedido do Pedro, através de comentário:

Caro Milton, Conhecedor de Dostoiévski como és, dê essa dica para nós, pequenos mortais, que ainda não o leram por inteiro: há algum tradutor melhor que o outro, alguma edição mais nobre, ou tudo dá no mesmo? Gracias!

Pedro, farei de tudo para manter, nas próximas linhas, este falso conhecimento que me atribuis. Na verdade, li todas as obras de Dostô quando era jovem. Nasci em 1957 e devo tê-las lido nos anos 70. Na época, não havia edições saindo e até era complicado encontrar os livros do autor russo. Tanto que, após ler Os Irmãos Karamazov numa edição da Abril Cultural (Imortais da Literatura, Vol. 1) bati muita perna pelos sebos a fim de encontrar os outros livros. Um dia, recebi um telefonena de um sebo, mais exatamente da Livraria Aurora, avisando que tinham recebido a coleção completa das obras de Dostoiévski da José Olympio. Hoje sei que não era NADA COMPLETA, porém era vendida como se fosse e eu acreditei. Supliquei à minha mãe por uma grana, fui lá e arrematei a coisa. Como busquei de ônibus, fiz duas doloridas viagens para buscá-los. Era bonitos, vermelhos, de capa dura, um show.

E eram o que havia de melhor. Imagine: os tradutores eram Rachel de Queiróz, Ledo Ivo, Brito Broca, etc. Todos os livros vnham com esplêndidos prefácios de gente como Otto Maria Carpeaux e Wilson Martins. Posso te dizer que comi e amei aqueles livros, comi-os como se fossem o melhor Dostô possível, mas não eram. O que tinha de bom eram os prefácios…

Lá pelos anos 80, começaram a aparacer novas traduções, totalmente diferentes. A explicação era incrível. As traduções antigas, aquelas da José Olympio, eram feitas a partir de outras traduções, francesas, feitas no início do século XX. Soube que os tradutores franceses da época não eram nada respeitosos e que açucaravam expressões e até criavam algumas frases facilitadoras. Ou seja, eles adaptavam Dostô para o gosto do leitor francês, aparavam as arestas, retiravam espinhos, deixavam-no … beletrista! Caraglio! Comecei a ler exclusivamente as traduções de Boris Schnaiderman para Tchékhov e Dostô (logo vi que eram muito superiores às segunda mão) e, nos anos 90, a abençoada Editora 34 resolveu montar um time de tradutores para retraduzir todo o Dostoiévski. Antes, aqui e ali, já aparecera o verdadeiro Dostô: nos anos 80, Moacir Werneck traduziu O Jogador e O Eterno Marido direto do russo. O resultado foi um autor muito mais direto e sem firulas. Muito melhor, limpo e impactante, certamente. Fiquei desconfiado… Mas acho que a revelação do verdadeiro Dostô veio com Paulo Bezerra na Editora 34. Digo com a maior tranquilidade que quem leu O Idiota e Crime e Castigo nas traduções antigas, leu outros livros. Dizem meus olhos e minha mente que estes romanções só foram verdadeiramente traduzidos há pouco. As novas versões são Dostô, por mais que Brito Broca tenha feito milagres com sua versão francesa.

Então, meu caro Pedro, a solução é comprar a Coleção da 34 ou outras traduções diretas. Acho que posso pôr minha mão no fogo por Moacir Werneck e Paulo Bezerra. Se não faço outras indicações de tradutores é por não ser o especialista que pensas que sou. Mais: creio que a Coleção Dostoiévski da Editora 34 foi realizada com tanto interesse,  respeito e amor por Dostô que eu a colocaria em primeiro lugar.

Completando este texto meio desorganizado, te afirmo que O Idiota só se tornou a obra-prima quase insuperável que é hoje para mim após a leitura da tradução de Bezerra. A tradução da José Olympio tem todos os méritos associados ao pioneirismo e às parcas possibilidades dos anos 50, mas vão me desculpar, os dois Idiotas não têm nada a ver um com outro. Toda a transcedência e o valor altamente filosófico da obra perdeu-se na passagem para o francês ou para o português. Tanto assim, que li O Idiota da 34 como se fosse totalmente inédito.

Dostoiévski não é nada romântico, nada. É um escritor bem mais duro do que fazem crer as antigas traduções. Porém — e agora falo a todos — , se não houver grana e você encontrar uma das antigas traduções que têm reaparecido ainda hoje a preços módicos, compre do mesmo jeito. Um mau Dostô é superior a quase tudo que haverá em torno.

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O Burgomestre de Furnes, de Georges Simenon

Georges Simenon vendeu aproximadamente 500 milhões de volumes de suas novelas e romances. Trata-se de um excepcional caso de sucesso popular e de crítica. Durante toda a sua vida, os leitores e editores pediram-lhe um grande romance através do qual o autor pudesse ser apresentado. A resposta era sempre a mesma:

– Minha grande obra é o mosaico formado por meus pequenos romances.

Grosso modo, podemos dividir sua obra em duas partes: os romances policiais com ou sem o célebre detetive Maigret e os duros romances psicológicos que lhe valeram o apelido “Balzac de Liége”, recebido de ninguém menos que André Gide. A popularidade destes livros não deixa de impressionar, pois são escritos em tom menor, são nada solares, sendo antes cheios de personagens deprimentes e deprimidos. Com suas ações quase sempre em cidades pequenas, Simenon envolve-nos numa triste realidade provinciana, onde o mal comanda.

O método de produção de Simenon é curioso. Ele escrevia seis ou sete romances ou novelas por ano, mas elas não lhe saiam continuamente e sim como espasmos. A história era inventada em 30 ou 40 dias em sua imaginação. Era o período de não escrever, de caça à história, quando ele passeava, ia a bares e convivia com as pessoas. Então, ele avisava aos familiares que trabalhar e todos sabiam o que aconteceria – ele sumiria em seu escritório por algo entre 10 e 20 dias. Nestes períodos, ninguém deveria falar com ele e a ordem era apenas alimentá-lo. Se um fato externo o interrompesse, abandonava o trabalho.

De certa forma, tal concentração está presente em seus trabalhos. As narrativas, a forma de envolver o leitor são via de regra impecáveis. A modernidade não está num trabalho de linguagem ou em tramas complexas ou contrapontísticas, está no fato de que o autor se exime dos princípios morais, apresentando tramas simples onde as atitudes são descritas de forma distante, muitas vezes cruel. Não há Deus nem julgamento, há sucessão de fatos que são jogados ao leitor no momento exato e que fazem excelente literatura.

Acabo de ler O Burgomestre de Furnes, um extraordinário estudo sobre o embrutecimento, o ódio e a avareza. Joris Terlink é o burgomestre que comanda a população, a economia e os conselheiros do povoado. Todos o temem e ele é consultado para tudo. Sua vida pessoal está associada a diversas tragédias, recentes e antigas: uma filha doente mental que é mantida presa em seu quarto sob o argumento de que não haveria um lugar melhor para ela, o câncer da mulher, os vários filhos fora do casamento – o quais são ignorados por Terlink – e a própria gestão de Furnes, cuja falta de solidariedade produz um suicídio no início da história. Há algo menos sedutor? Terlink é um monstro absoluto, circundado de idiotas que têm dificuldade de viver sem ele, mas a segurança com que Simenon leva sua narrativa não é menos monstruosa e sem compaixão.

Além do Burgomestre, os maiores romances desta face de Simenon provavelmente são Sangue na Neve , O homem que via o trem passar, O gato e Em caso de desgraça. Todos foram reeditados pela L&PM em sua coleção de pockets.

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Time dos Sonhos, de Luís Fernando Verissimo

O problema de Time dos Sonhos (Objetiva, 2010) não é o autor, mas sim a forma como o livro foi montado. Trata-se de crônicas futebolísticas — quase todas referindo-se a Copas do Mundo — publicadas em jornais entre o anos de 1997 e 2009. Ou seja, há unidade temática, porém esta é desfeita pelo fato dos textos não obedecerem à ordem cronológica. Para quem acompanha futebol, é desagradável ter de adivinhar o contexto de cada crônica ou olhar o final do livro em busca da data de publicação original. A todo momento, saltamos da Copa de 2006 para a de 1998, para depois cair em lembranças de 1990 e voar para a vitória de 2002. As quatro subdivisões do livro — Para que serve o futebol, O time dos sonhos, Ser Brasil e Jogo de cintura — , não me disseram muito. Não obstante este chateação, o texto de Verissimo permanece enxuto, engraçado e compreensivo para com a loucura dos tarados pelo esporte.

Há crônicas extraordinárias, principalmente aquelas sobre com referências a João Saldanha, às domingadas, à comida mexicana, à vida dos jornalistas durante uma Copa do Mundo e aos principais jogadores que encantaram o autor. Este, excelente observador e escritor, é exato, jocoso e nunca inferior aos fatos descritos, mesmo que os conheçamos em detalhes. Uma pena a desorganização do volume. O que poderia ser um livro de referência é confusão.

Indico o livro aos loucos por futebol e aconselho que sua leitura seja feita na base de uma crônica por dia. A leitura de todas em sequência prega sustos e nos faz cometer repetidos equívocos.

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É difícil encontrar um homem bom, de Flannery O`Connor

O escritor Fernando Monteiro presenteou-me com este livro para que eu lesse o conto de abertura. Ele sabia que eu leria o resto, é claro. Flannery O`Connor (1925-1964) foi uma extraordinária escritora. A leitura dos contos de É difícil encontrar um homem bom é, no mínimo, uma experiência diferente. Escritos com economia, são histórias povoadas por vítimas odiosas, mesquinhas ou ridículas, acompanhadas – o termo é exatamente “acompanhadas” – de algozes involuntários ou indiferentes. Em comum, poderia dizer que todos são estúpidos, têm vozes desafinadas, são crentes e estão irremediavelmente perdidos. Parecendo detestar os próprios personagens, a autora deixa-os ir em direção do grotesco e do gratuito e é duríssima para com o sul dos Estados Unidos, terra de Bush e de proto-Bushes. Não obstante, a contradição entre estupidez e tensão torna algumas histórias extremamente engraçadas. Afinal, um dos modos de se descaracterizar desgraças é recorrer à hipérbole, ou seja, levá-las a inconcebíveis exacerbações. É isto que Flannery faz com maestria e é compreensível que a autora desse gargalhadas enquanto lia seus contos para os amigos. Fortemente recomendado por este blogueiro, o livro está à venda numa edição da Arx.

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O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon

Por Charlles Campos

Flaubert morreu sem realizar seu desejo de escrever um livro que não dissesse absolutamente nada. Olhando de nossa situação no tempo_ do meio do ano 2010_, um escritor que produzia seus romances e contos como quem deita delicadas gotas de estricnina em milimétricos quadrados de vidro, não fica difícil perceber que o célebre francês sonhava com uma composição estética à frente de seu tempo, desvinculada de enredo e de personagens, algo próprio para o século que se desanuviaria e que estaria cheio de descobertas cujo modelo para armar seria a falta de coerência que determinaria tudo: a teoria do caos. Homens como nós, pós-modernos_ ou seja qual novo conceito resume esse não-sei-que cosmopolita_, estamos acostumados à falta de sentido, à independência à linha reta, à conturbação e às reticências que só dão a aparência de que a resposta está de molho pronta para ser lançada sobre nós assim que completa sua maturação. Palavras da cartola da ciência foram postas ao olho vivo da platéia, e o pasmo da descoberta de que todos os presentes fazem parte da ilusão de luz e sombras cujo truque final fará que tudo desapareça, como a bela moça de biquíni escondida no caixote, entraram para o linguajar cotidiano. Entropia, Indeterminação, Relatividade, Dimensões Paralelas, Teoria das Cordas. Se Flaubert viajasse na máquina do tempo de Wells e parasse sem estágios aqui nesse olho do furacão onde moramos em sossego, sentiria a vertigem aterrorizante do herói de casaca amarrado no carrinho da montanha russa em franca aceleração em direção ao abismo à frente, onde os trilhos estão partidos: o som inapreensível da queda com o qual nossos ouvidos acostumados transvertem em músic a de comercial das Casas Bahia que já não nos incomoda.

Coube ao americano Thomas Pynchon, um século depois, chegar o mais próximo do sonho de Flaubert, esbanjando vivacidade e fôlego em um romance de 800 páginas que dá ao leitor o sério problema de não saber definir do trata. “O Arco-Íris da Gravidade”, lançado nos Estados Unidos em 1973, em plena ressaca dos anos 60 e no estilhaço das guerras geográficas que transformou a possibilidade de uma nova guerra mundial em um premonitório fantasma convergido em um hipotético botão nuclear, parece não dizer nada, ser uma caixa caleidoscópica que simula um delírio de LSD, ou, mais apropriadamente, a concha marinha onde está registrado o último nó caótico de sons de uma humanidade que desapareceu para sempre. Uma mensagem final dirigida a ninguém, de seres sem rastro que foram incapazes de emitir qua lquer significado conjunto para configurarem o mínimo propósito à sua existência. Na verdade, “O Arco-Íris da Gravidade” é um grande epitáfio a esse projeto mal fadado que é o homem, fazendo-o numa língua impossível cujo tom é dado pelas suas primeiras frases apoteóticas: “Um grito atravessa o céu. Já aconteceu antes, mas nada que se compara com esta vez.” E como todo epitáfio_ ou todo réquiem_ traz uma profunda ternura por trás de sua acusação da brutalidade da finitude; no paradoxo de desnudar o caos, quando tudo é sugado por sua força implacável, emite uma frágil bolha que flutua tranquila na borda do buraco negro para, no momento que cessa sua efemeridade, libertar uma última reação de importância_ como se houvesse algo de sagrado e duradouro na saudade.

Sobre isso que trata o romance, entenderam?

Não?

Bem, há um personagem principal, um misto de espião americano, experimento vivo ambulante e prodígio sexual, cujo nome é William Tyrone Slotrop. Ele ocupa uma parte avantajada dessas 800 páginas, em que erra peripateticamente por uma Europa pós-segunda guerra devastada, sendo alvo das mais absurdas aventuras, algumas das mais memoráveis delas a luta corporal com um polvo, a fuga cinematográfica de uma plataforma subterrânea de lançamento de foguetes nazista (em cima de uma ogiva e com uma série de alemães enfurecidos atrás), um mergulho para dentro de uma fétida privada de um banheiro masculino, enquanto um negão de exageradas proporções corporais tenta lhe mostrar da pior maneira possível por que erram os que julgam que sua superdotação é puramente cerebral. Es ses e outros infortúnios são narrados numa velocidade estonteante, que desarma o leitor de seu assombro crescente assim que tem a revelação de que o verdadeiro personagem do romance_ como diz o autor das orelhas do livro, e do qual me impossibilita dizer algo diferente_ é a linguagem de Pynchon: seu inglês caudaloso, debochado, anárquico, irreverente, paranóico. Um anarquismo lingüístico que não perdoa nada, que muitas vezes arranca o leitor de sua impressão de atingir compreensão para atirá-lo em uma abrupta análise de um pormenor destoante. Um romance que ultrapassa a média em envolvimento e absorção, principalmente por ser composto por materiais nem um pouco convencionais.

Se a micro-história ou a História das Mentalidades retirou o foco dos estudos dos reis e dos heróis nacionais para se concentrar no homem comum, a prosa de Pynchon continuou uma revolução semelhante na seara do romance, utilizando o lixo, os caçoetes e toda a tralha multicolorida da sub-cultura norte-americana, compondo uma obra soberba que, como haveria de ser, gerou repúdio e muita polêmica. A comissão do prêmio Pulitzer lhe conferira o prêmio de melhor romance do ano de seu lançamento, mas na última hora a direção da comenda o rejeitou sob a acusação de ser um romance pornográfico. Talvez pela irreverência das descrições sexuais de um Slotrop que, sempre que transava com uma mulher, determinava por uma ligação misteriosa com o foguete (e o material com q ue ele era feito, o estranho Imipolex) que o local onde estava fosse destruído, logo depois, por uma explosão. E Pynchon se molda, intencionalmente ou não, ao escritor-mito, por sua completa negação a aparecer na mídia, a dar entrevista ou ser fotografado. Chegaram a sugerir que ele e Salinger fossem a mesma pessoa, ambos afeitos a uma reclusão monástica. Seu tradutor brasileiro_ o excepcional Paulo Henriques Britto_ que nos deu uma das melhores conversões já feita desse romance, retém sob severo juramento cartas do próprio Pynchon, escritas em espanhol, com longos esclarecimentos sobre as partes mais complexas da obra. Cartas que com certeza seriam disputadíssimas entre os milhares de fãs ardorosos que formaram um culto organizado em torno de Pynchon.

E “O Arco-Íris da Gravidade” é inusitadamente engraçado, e não pensem que se trata do risinho renhido do sarcasmo saramaguiano, ou os risos sincronizados do único romance com claque da história da literatura, o Ardil-22_ o livro se mantém numa constante e irresistível eletricidade histriônica, um humor abrangente e sem reservas que é um dos seus poderes inigualáveis: o riso se torna um sério posicionamento filosófico, um costume contaminante que muda nosso confrontamento com o mundo, uma herança erudita transformada de Rabelais, Groucho Marx, Monty Python, Os Três Patetas e Buster Keaton.

E, quando chegamos ao final dessa extensa saga, Pynchon nos soluciona o enigma derradeiro: só assim, usando os despojos de nossa cultura, a falta de vergonha de nosso orgulho desarroado, os nossos preconceitos e nossos ódios infinitos, a nossa miséria e capacidade de nos enganarmos e nos iludirmos eternamente, nossa tecla defeituosa que nunca proporcionou aprendizado com o passado, nosso frenesi e arrogância científica que finge esclarecer, poderemos ter a presciência terrível de que toda piada traz o lamento enrustido de só conseguirmos rir até as lágrimas do outro que cai e arrebenta a cara no muro, e nunca compreendermos que afinal rimos de nós mesmos atirados no chão, todos atolados no caos e vítimas das gritantes trivialidades criadas, na única comunhão possí vel de esperar alegremente o aniq uilamento, como nas palavras que finalizam o livro:

“E é bem neste ponto, este quadro escuro e mudo, que a ponta do Foguete, caindo a um quilômetro e meio por segundo, absoluta e eternamente sem som, alcança seu último imensurável intervalo acima do telhado deste velho cinema, o último delta-t.

Há tempo, se este conforto lhe parece necessário, de tocar a pessoa a seu lado, ou de pôr a mão entre suas próprias pernas frias…ou, se é preciso cantar, eis uma canção que Eles jamais ensinaram a ninguém, um hino de William Slothrop, há séculos esquecido e jamais reeditado, para ser cantado com a melodia simples e agradável de uma ária da época. Acompanhe a bolinha:

É a Mão que faz o tempo andar,

Ainda que em tua Ampulheta se esvaia a areia,

‘Té que a luz que abateu as Torres altas

Chegue à Alma Preterida derradeira…

‘Té que os Viandantes durmam à beira

De toda via desta Zona estropiada

Com um rosto em cada encosta de monte,

E uma Alma em cada pedra da estrada…

Agora todo mundo__”

Este seria Thomas Pynchon há muitos anos

Este, retirado de um site francês, vem até com credencial…

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Detalhes de um pôr-do-sol, de Vladimir Nabokov

Dia desses — e nem comentei aqui –, li o elogiado livro de contos de Vladimir Nabokov (1899-1977) Detalhes de um Pôr-do-sol. Foi um trabalho penoso e lento para este dedicado leitor, pois poucas vezes algo me foi tão chato, comum e sem surpresas. Levei dez dias para chegar à página final, aquela que tem o número 173 no rodapé. Os contos de Detalhes são de década de 20 e 30. Sempre admirei a literatura de Nabokov e acho notável que ele tenha escrito a obra-prima A Verdadeira Vida de Sebastian Knight nos mesmos anos 30. Mas quem me fez chegar a este livro? Ora, as maravilhosas páginas culturais brasileiras, os maravilhosos articulistas de nossos principais jornais e revistas.

Concordo com quem diz que, hoje, a crítica literária no Brasil quase inexiste e quando um livro recebe críticas favoráveis na revista Bravo, no Caderno 2 do Estadão, na Folha de SP, na Veja e na Isto É, é porque tem uma boa editora na retaguarda… Hoje, procurei na Internet todos estes artigos e eles são favorabilíssimos. O que houve então? Não sei.

São contos de um convencionalismo muito antiquado. Normalmente iniciam-se por longas descrições de ruas ou de apartamentos de emigrados russos em Berlim. Elas precedem à ação e ali não há lugar para sugestões do que está por vir nem para os personagens. É apenas enfadonho e, quando chegamos à história, já perdemos o entusiasmo. Num dos contos, Nabokov chega a ironizar aquelas pessoas que não lêem atentamente as descrições e introduções. Está bem, vá lá, vamos concordar com o autor, digamos que elas sejam necessárias como eram para Balzac. Só que as descrições de Balzac eram coloridas e tinham o objetivo de situar-nos socialmente e de preparar-nos para o grau de galhofa ou seriedade que viria logo a seguir. As de Nabokov são geográficas…. e o que vem depois nunca é muito original, ficando sempre numa linha de melancolia nostálgica.

Na Veja, Marilia Pacheco Fiorillo escreveu que “nessa coletânea não há o menor truque, artifício, uso de “vozes”, ou o que quer que atormente escritores modernos e pós-modernos. Pela simples razão de que Nabokov não precisa de nada disso. Seu estilo dá ao leitor a estranha sensação de não estar diante de um livro, mas da própria vida. Só que mais bem contada.” Acho que, para Marília, Nabokov não precisa de nada para ser sempre bom. Seu texto parece ter sido escrito sob encomenda. No Estadão, o vacilante Daniel Piza escreve que “mesmo em construções sintáticas simples já vemos todos os elementos que marcam sua literatura: o humor entre cômico e melancólico, a preocupação com as ilusões amorosas, a melodia verbal com toques de ironia, a noção do patético mesclado ao dramático. É do grande escritor ser assim tão sutilmente pessoal”. Haja criatividade! Ambos também elogiam a simplicidade transcendente dos contos. A simplicidade, sim… Tenho certeza de que se ambos não conhecessem o Nabokov pós-Lolita, nunca teriam escrito tais coisas. Não sou um débil mental nem um mau leitor, também não sou insensível às possíveis transcendências, símbolos e significados subliminares; portanto digo que, em minha opinião, os contos de Detalhes são obras singelas de um escritor em formação. Seu mérito principal é o de não serem pretensiosos. Se vocês quiserem o bom Nabokov, procurem Lolita, Fala, Memória, Fogo Pálido, Transparências, etc., sem esquecer do melhor de todos Sebastian Knight.

Ou quem sabe os europeus não dão mesmo importância ao gênero “Conto” e ali deitam apenas sobras? Boa pergunta…

P.S.: O nome de um dos livros é Fala, Memória. Não são dois livros.

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101 Dias em Bagdá, de Åsne Seierstad

Esta longa reportagem é um equívoco da autora do bom O Livreiro de Cabul. Se a idéia da reportagem é interessante — retratar a Bagdá pré-ataque americano — esta mostra-se inviável ao esbarrar no silêncio dos iraquianos e na duríssima censura vigente. A autora, sempre acompanhada de tradutores que não apenas tentavam determinar onde ela iria como também traduziam somente o que era permitido, permaneceu encalacrada numa Bagdá onde não circulava muita informação. Poucos ousavam falar e, para completar, nem a jornalista tinha grande idéia do que estava acontecendo fora do país, pois seus contatos eram vigiados de perto. Como se tudo isto não bastasse, a renovação do visto dos jornalistas era semanal e dependia de bom comportamento. Ou seja, era muito difícil, para uma estrangeira que não se comunicava em árabe, obter informações relevantes naquela Bagdá.

O livro torna-se mais interessante quando os americanos chegam… isso após quase trezentas páginas! Aguardadíssimos pelos xiítas, que sofreram horrores durante a ditadura de Saddam e que gostariam de saudar o invasor, os americanos chegaram atirando em tudo o que se mexia. Seu lema parecia ser “atire se quiser”. Não havia punição por matar civis e eles se divertiam atirando em janelas abertas, em vacas, galinhas e, desconfiados, em civis que vinham saudá-los — afinal, podiam ser homens-bomba. Também desenvolveram o curioso hábito de dar tiros de canhão em fotografias de Saddam e destruíram todos os prédios públicos, a maioria sem motivo aparente ou resistência; porém, curiosamente, tiveram cuidado com o do Ministério que tratava do petróleo. Ingênuo, boa parcela do povo iraquiano achou estranho que os americanos os tratassem aos safanões e tiros e que não tivessem vindo com intenções de conquistar seus corações…

O livro torna-se interessante quando um tanque resolve fazer mira no hotel dos jornalistas, antes sempre respeitado. Jornalistas e técnicos morrem. Tende a ficar interessantíssimo quando mostra a reversão de expectativa daqueles que antes odiavam Saddam e que passavam pouco a pouco a odiar os americanos, unindo-se aos partidários do ex-ditador. Em poucos dias, todos estavam decepcionados e humilhados. Só que, neste trecho, após quase cem dias no Iraque, a jornalista Åsne mostra-se de saco cheio de tantos dias de isolamento, do constante perigo e decide — seguindo o conselho de familiares e colegas — que é melhor sair do inferno. Com efeito, ninguém parece ter paciência com os iraquianos.

Salvam-se, na reportagem, as descrições das livrarias de Bagdá e os poucos diálogos intelectuais opositores ao regime de Saddam. Mas é muito pouco.

P.S.: Alberto Kopittke, em oportuno comentário escrito neste blog na última segunda-feira, observa o vezo que alguns intelectuais de esquerda têm de criticar best-sellers ou livros de entretenimento. É uma pauta à qual este escriba admirador de Georges Simenon e outros pretende retornar. “A lógica equivocada de que tudo o que faz sucesso é ruim” demonstra preconceito dos mais idiotas.

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‘2666’, romance póstumo de Bolaño, traz temas de livros anteriores

Rafael Gutierréz (*), Jornal do Brasil

RIO – Comecei a ler Roberto Bolaño em uma tarde de março de 2001 em Bogotá, quando minha amiga D. me pôs nas mãos um livro grosso de cor cinza. A imagem da capa era a de três homens jovens, usando chapéus e uma roupa elegante, que caminham por uma praia vermelha, enquanto no fundo se vê o mar de um azul intenso e uma montanha. Quando me entregou o livro, D. disse: “Lê isto. É a melhor coisa que leio há muito tempo”. Confiava no critério de minha amiga, que antes já havia recomendado outras leituras reveladoras.

Sua recomendação não me decepcionou e nos dias seguintes, ou melhor, nas noites e madrugadas seguintes (pois era o único tempo disponível para ler que na ocasião me deixava um trabalho burocrático tedioso e extenuante em um escuro ministério colombiano) li em êxtase Os detetives selvagens. A partir desse momento, continuei procurando e lendo com ansiedade os demais livros escritos por Bolaño. Nenhum deles me pareceu tão bom quanto Os detetives, até ler sua ambiciosa obra póstuma e inconclusa 2666, publicada em 2004.

Em uma entrevista para a edição mexicana da revista Playboy, realizada poucos meses antes de sua morte – em 15 de julho de 2003, aos 50 anos – Bolaño diz que, se não fosse escritor, seria detetive de homicídios para voltar sozinho, à noite, à cena do crime, e não se assustar com os fantasmas. Pois bem, acredito que, em 2666, ele volta ao lugar do crime e finalmente enfrenta os fantasmas. Dois tipos de fantasmas: aqueles que rodeiam a vida do escritor e a solidão do ato da escrita; e aqueles que estão do lado do mal e da violência (e que talvez possam ser os mesmos, como fica sugerido em várias de suas obras).

O primeiro tipo de fantasma aparece em 2666 na história do escritor alemão Benno von Archimboldi que ocupa, basicamente, a primeira – “A parte dos críticos” – e a última parte do romance. Na história de abertura, quatro críticos literários europeus tornam-se amigos ao estudar a obra do misterioso escritor que, apesar do reconhecimento da crítica e de ter sido indicado várias vezes ao Prêmio Nobel, nunca aparece em público; ninguém conhece detalhes de sua biografia. Bolaño descreve as tensões que constituem o campo literário, não a partir da perspectiva dos escritores e poetas marginais, como fez em Os detetives selvagens, e sim do ponto de vista dos estudiosos da literatura, com suas brigas e conspirações intelectuais, embora destacando a amizade e o amor que surge entre eles. De certo modo, esta primeira parte pode ser lida também como uma história de amor (não um triângulo, mas um quadrado amoroso com final inesperado).

“A parte de Archimboldi”, última do texto, está construída como um romance de formação e narra a história de vida do escritor alemão Hans Reiter (que usa o pseudônimo de Benno von Archimboldi), nascido em 1920. Como em outros de seus romances e contos, Bolaño constrói a figura do escritor como um ser marginal, errante e melancólico, afastado dos centros de poder do campo literário e político. Na visão de Bolaño, o verdadeiro escritor estaria próximo de algo que foge ao literário. Talvez por isso, na história de Reiter, a experiência (sobretudo a participação na Segunda Guerra) é definitiva para seu futuro como escritor. Esta parte do romance está atravessada por questões literárias: de onde vem o impulso da escrita? Vale mais a leitura ou a experiência para escrever uma obra-prima? Qual deve ser o lugar do escritor e suas relações com editores e leitores?

A história do escritor alemão e a história dos críticos têm seu ponto de encontro na cidade imaginária de Santa Teresa (nome fictício de Cidade Juarez, localizada na fronteira entre o México e os Estados Unidos, marcada tragicamente pelos milhares de assassinatos de mulheres que vêm acorrendo desde 1993). Os críticos viajam a Santa Teresa ao serem informados de que, possivelmente, ali se encontra Archimboldi. O escritor alemão deseja encontrar seu sobrinho, acusado de ser o autor ou pelo menos de participar daqueles crimes.

No ar estranho da cidade e do deserto que a rodeia, confluem os fantasmas da violência retratada por Bolaño com técnica hiper-detalhista que simula os informes forenses para descrever, em cadeia, os corpos das mulheres assassinadas. “A parte dos crimes” é a mais extensa e a mais arrepiante do romance pela acumulação de mortes e pela aparente ausência de explicação e de sentido para tanta violência. Machismo, narcotráfico, pornografia snuff são algumas das possíveis causas dos crimes, mas nenhuma delas consegue explicá-los por completo.

O que flutua como uma sombra em toda a narrativa é precisamente a pergunta sobre a origem e a causalidade ou casualidade do mal (tema caro a Bolaño e que aparece em seus primeiros textos). Esta parte pode ser lida como um romance policial, inclusive com a participação de um detetive americano com aparência de Sherlock Holmes. Mas, em 2666, os crimes são impossíveis de resolver, deixando no fim uma sensação de impotência e desolação.

Duas histórias, centradas em Santa Teresa, completam as cinco partes do romance: a do professor de filosofia chileno Amalfitano (que compartilha com Bolaño alguns rasgos biográficos); e a história do jornalista americano Oscar Fate.

O professor chileno é um personagem perdido, exilado e próximo à loucura. Em sua cabeça confluem, delirantemente, a filosofia e a história política do século 20. Escuta vozes permanentemente e, em suas noites de insônia, realiza estranhas performances no pátio de sua casa inspirado em instalações de Marcel Duchamp. Apesar do humor e da ironia presentes na história de Amalfitano, o que predomina é um clima de tristeza, melancolia e medo, pois ele teme, o tempo todo, pela vida de sua filha em Santa Teresa.

Cada parte do romance parece nos levar por questões centrais da história do século 20, formando um grande painel histórico-ficcional. No caso do jornalista Oscar Fate, entramos na história do partido dos Panteras Negras através da voz de Barry Seaman, um de seus fundadores. No meio da reportagem sobre Seaman, Fate é obrigado por sua revista a cobrir uma luta de boxe em Santa Teresa e, quase por azar, fica envolvido com a investigação dos crimes.

Embora existam pontos de contato entre todas as histórias, cada parte do romance pode ser lida de forma independente (e Bolaño queria que fosse assim, publicadas com intervalos de um ano para assegurar o futuro econômico de seus filhos). Porém, em conjunto, constituem uma das empresas mais impressionantes da narrativa contemporânea, uma imersão profunda pelos labirintos da criação literária e uma aproximação nada modesta ao mal absoluto.

Em 2666 convivem todas as obsessões bolanianas: a relação entre literatura e vida, a pergunta pela origem do mal e da violência, a proximidade entre literatura e perversão. Escrito com uma prosa direta e objetiva, através da acumulação de histórias e digressões, e apesar de sua longuíssima extensão, Bolaño consegue prender o leitor como só os grandes mestres da narrativa conseguem.

(*) Escritor e crítico literário. Doutor em literatura pela PUC-Rio.

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O Livreiro de Cabul, de Åsne Seierstad

A norueguesa Åsne Seierstad é uma grande estrela da reportagem mundial. Com apenas 40 anos, já escreveu livros sobre os conflitos da Sérvia, do Iraque e do Afeganistão, todos best-sellers. Este O Livreiro de Cabul não é um relato de guerra. É uma narrativa bem amarrada sobre os costumes e a vida no Afeganistão, observados pela autora durante os três meses que viveu com uma família afegã após a queda do talibã, na primavera de 2002. Vendo aquele estranho mundo sob uma burca, a loiríssima Seierstad nos mostra o dia a dia dos Kahn, uma rara e privilegiada família que tinha algo para comer em Cabul naquela época.

O livro tem um sério problema. Como a jovem Seierstad pode julgar uma cultura milenar tendo passado apenas alguns dias com uma família afegã? A fim de não me irritar, tratei o livro como se fosse uma visão estrangeira que tem muito em comum comigo, mas uma visão estrangeira. E crítica.

Estruturando seu relato em capítulos que mais parecem contos e utilizando esplendidamente a condição de comerciante de Sultan Kahn, Seierstad chega a outras instâncias de uma sociedade que nos deixa estarrecidos a cada página, tal o medievalismo das atitudes e opiniões. É claro que esta característica nos faz engolir o livro rapidamente, mas os méritos de O Livreiro de Cabul ultrapassam o da mera “narrativa de ocorrências e costumes para nós absurdos”. O livro é muito bem escrito e alguns capítulos, como Ondulante, esvoaçante, serpenteante, que conta as peripécias de três velozes burcas comprando o enxoval de casamento de uma delas, O carpinteiro, que conta minuciosamente a história de um roubo e sua punição, e Minha mãe, Osama, que conta a viagem de um tradutor por uma região onde o fundamentalismo islãmico é natural e milenar, chegam a entusiasmar. Seierstad reconstrói vividamente cada um de seus personagens, os justifica e nunca nos entedia. E olhem que não tenho muita paciência com obras que não sejam de ficção!

Outro acerto é o de não haver grande intervenção da política no relato. Não precisa, seria apenas ruído em um livro cuja sedução está no interesse da autora pelas pessoas – principalmente por mulheres como Leila ou jovens como Mansur – e pela vida sufocante que a absoluta maioria leva. Mas volto a dizer, há as críticas à cultura afegã e entramos no pantanoso terreno antropológico.

É uma excelente indicação para quem quer um livro grudento e competente.

A tradução é de Grete Skevik. Bom trabalho, mas faltou revisão. Há duas trocas de nomes que tornam seus trechos puzzles e outros errinhos aqui e ali. Nada grave para o leitor atento, só que é chato.

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Fernando Monteiro & Anna Akhmátova: Um Diálogo Possível da Poesia Ocidental

Por Luiz Carlos Monteiro (*)

Pode parecer estranho um poeta escrever todo um poema longo estimulado pela visada instantânea e avassaladora de um rosto feminino numa fotografia antiga. A imagem em preto-e-branco deflagra uma viagem ao fundo da herança poética e cultural planetária acumulada, que passa a envolver referências antigas, presentes e em constante progressão resguardadas no seu refluir greco-romano, medievo e iluminista, e somadas aos oráculos orientais nas vastas paisagens de montanha e deserto. Completando esse veio elastecido em verticalidade poética e desdobramento cultural que atravessa os séculos, do 19 em diante são trazidos a lume e em razoável proporção os rumos e descaminhos reinventados e deslindados pela poesia de amor e de guerra no Ocidente.

Antes deste Vi uma foto de Anna Akhmátova, Fernando Monteiro já carregava em seu fazer literário um êxito comprovado por várias obras de ficção e poesia que ultrapassaram as fronteiras locais. A escrita de livros alternando-se numa fatura estética que contemplava certa diferenciação peculiar entre cada um dos volumes lançados, mesmo pensando-se naqueles de prosa seriada. Na elaboração de poesia, cada texto mostrando-se formalmente desvinculado do anterior, o autor não se distanciando da inteireza de seu estilo, permitindo que traços diccionais e itens de linguagem se tornassem reconhecíveis em sua maneira adotada desde os começos.

Para citar sem consulta, lembre-se aqui esse percurso poético a partir de Memória do mar sublevado, sua estreia em 1973, apresentando um canto solene repleto de ancestralidade e dinastia faraônica. Um balanço enviesado de vida pessoal foi Leilão sem pena, publicado na voga pernambucana da Pirata, num tempo de resistência política, culto entusiasmado ao cinema e incursão pelas artes plásticas. Monteiro vai passar por uma experiência de especial inquirição metafísica em A interrogação dos dias. Sem perder de vista o impulso e o empenho empregados no ritmo ágil, mas que às vezes se arrasta, transparente e obscuro ao mesmo tempo, temperado fortemente pelas passagens de melancolia e depressão e pelas tiradas da sensibilidade irônica. E chegará, quem sabe se em simultaneidade, à exatidão centrada na consecução milimétrica de vocábulos, versos e estrofes em cadência matematicamente obsessiva com Ecométrica.

Em Vi uma foto de Anna Akhmátova uma solidariedade surda e rebelada vasculha o lastro histórico de guerras e revoluções repisadas de sangue dos inícios do século 20, trazendo a lume as numerosas e insanas perseguições que sofreram poetas e cidadãos pelos regimes ditatoriais que se locupletavam de sua própria indiscriminação ideológica. A poetisa Anna Akhmátova encontrava-se no rol de censura e cerceamento promovidos pelo Estado russo, que deixou marcas inapagáveis de violência. Os burocratas e dirigentes russos imaginavam que, para a manutenção do regime comunista, seria necessário alinhar ou expurgar os dissidentes, torturando e fuzilando intelectuais, artistas e poetas. Sendo um texto realizado a contrapelo de toda e qualquer tirania, descarta as viseiras da genuflexão política e revela uma faceta social permeada pela constatação corrente, porém sem a amplitude dos resultados práticos, de que qualquer atentado à liberdade do homem sufoca-o e termina por eliminá-lo. Uma opressão sustentada em atos abjetos e excessos de violência difíceis de suportar, faz com que se perca temporalmente a inclinação humana para os desvelos da convivência comum cotidiana e pacífica, na qual, em boa medida, podem ser buscados elos vitais do artístico e do criativo.

A cerveja da Boa Vista não desemboca no chope da Guararapes, e a presença de poetas pernambucanos se afirma indiretamente (Carlos Pena, Bandeira, João Cabral). A inclusão en passant de outros poetas reconhecidos como de alcance nacional reabre velhos problemas, tanto pela absorção questionadora de sentido e matéria abordados, quanto pela negação estética e conceitual que transita nas vias marginais do confronto temático e do modo de expressão de uma época (Drummond e Mário de Andrade). Aqui, na condição interna de leitor crítico, o poeta não resiste e associa sua própria experiência com o poético à experiência desses poetas que se encarregaram de transformar, ao longo de seu tempo, vida em poesia. Há uma transplantação de culturas poéticas em choque para instantes paródicos, miméticos e declinantes únicos, na tentativa de absorção do poema como um todo, afastada do unilateral e aproximada dos sentidos não vistos a olho desprevenido.

Este poema dedicado a Anna Akhmátova, estabelece um diálogo com a poetisa e esmiúça relações pessoais existentes talvez apenas no plano do imaginário da criação. A transferência empreendida flagra sexualidades latentes nas tramas veladas das funções solitárias e desejos indizíveis. Faz aflorar os meandros do prazer algo irracional que consome a sucessão de imagens profusas e apaga os rasgos detalhistas de corpos em solidão ou conjunção carnal, com sua atração irrefreável pelo impossível, o mórbido e o proibido. Morto o corpo, distanciada a alma, os atos se enfronham no presente da imaginação movida pela tremenda insatisfação, compulsão e efemeridade que impulsionam e dominam os jogos sensuais. E Anna vai assumir o papel de Mãe Maior da Poesia, irmã e filha, deusa e mulher, musa e amante.

Fernando Monteiro utiliza largamente esquemas e procedimentos expressivos como associações imagéticas em encadeamentos, enjambements e no palavra-puxa-palavra. Com o sabor diferencial de quem tem fôlego suficiente para manter um ritmo acelerado e eficaz na confecção de recortes, intrusões e incisões no corpo do poema, procura evitar o derramamento baboso e as celulites da fala. Por isso, sua dicção traz uma espécie de contenção cerebral inevitável por ser o autor quem é, por ser quem jamais escondeu sua erudição nem os propósitos de fazer alta literatura.

Neste poema, existem evidências que outros analistas podem facilmente identificar, como os ecos percussivos da “terra arrasada” de Eliot que remetem aos metafísicos ingleses e simbolistas franceses. A visão baudelaireana marginal das ruas que lembram Clarice Lispector e Anna Akhmátova, ambas ucranianas, uma tendo vivido no Recife e a outra fisgada no expressivo da fotografia interna a uma antologia de poesia russa comprada num sebo naquela tarde de setembro de 2001. A aquisição do livro suscita a questão de trocá-lo por cervejas em promoção nos botequins das imediações centrais da cidade, considerando-se a oportunidade de absorver o calor tropical em goles gelados e observando a surpresa indiferente da fauna humana que transita pelos becos, ruelas e praças.

Vi uma foto de Anna Akhmátova não foge da contemplação performática que reconcilia o poeta com o espírito pós-moderno e a alma cósmica. São desencavadas vivências cotidianas e situações particulares somente conhecidas, no andamento da construção do poema, pelo próprio poeta. Paisagens à aparência inalcançáveis e pouco acessíveis a quem está de fora, porém pressentidas em pequenos flashes, que ora se perdem no instante, ora são captadas pela sutilidade da poesia, mesmo que em regime de incompletude. E mesmo que seja assim, o poema continua a ofertar um conjunto de imagens em movimento alternado entre o veloz e o estático. E fornece também uma nova cinética e um novo dinamismo ao olhar que enxerga poesia na escuridão mais cerrada, cuja desfocação persiste sobretudo no encobrimento de estágios sensíveis da fruição humana optante pela não-destruição da vida no mundo.

(*) Poeta, crítico literário e ensaísta, Luiz Carlos Monteiro não é parente de Fernando Monteiro… É formado em Pedagogia e mestre em Teoria da Literatura pela UFPE. Publicou os livros de poesia “Na solidão do neon” (Pirata, 1983), “Vigílias” (Fundarpe, 1990), “Poemas” (Ed. Universitária da UFPE, 1999), “O impossível dizer e outros poemas” (Bagaço, 2005) e de ensaios “Para ler Maximiano Campos” (Bagaço, 2008) e “Musa fragmentada – a poética de Carlos Pena Filho” (Ed. Universitária da UFPE, 2009). Organizou, em colaboração com Antônio Campos, o livro de contos do Prêmio Maximiano Campos nas versões 2, 3 e 4 (IMC/Bagaço, 2008). Também tem publicados em antologias diversas, além de artigos e resenhas espalhados em sites, jornais e revistas de Pernambuco e de outros estados.

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Primeiro amor, de Ivan Turguêniev

Esta é minha segunda leitura desta novela de Turguêniev. Quando a li pela primeira vez, era um adolescente de uns, talvez, 15 anos, e o livro me causou forte impressão. A história é a mais simples possível: Vladimir Petróvitch, um jovem de dezesseis anos, apaixona-se pela filha do seu vizinho, a bela Zinaída, alguns anos mais velha e a quem não faltam pretendentes. O final é surpreendente não pela escolha de Zinaída, mas por seu realismo e violência.

Turguêniev faz parte do intocável G5 dos russos do século XIX: Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov e Gógol. É o mais europeu do grupo e sabe levar uma narrativa como poucos. Sua Zinaída é perfeita e serviu de modelo para muitas personagens semelhantes que a seguiram – trata-se da irresistível e bela mulher, atrás da qual há uma multidão de homens servis e alguns adolescentes que não conhecem o significado da palavra inatingível. Estes sentem medo, vergonha, adoração, devoção e coragem, tudo em paroxismo e às vezes ao mesmo tempo…

A novela, narrada na primeira pessoa por Vladimir, é uma obra-prima psicológica e talvez sua autodescrição deste seja o melhor do livro, apesar de que é impossível ao leitor não se apaixonar pela louquinha e coquete Zinaída. Mas o que é efetivamente interessante é a construção lenta e alegre de uma trama que repentinamente despenca sobre nossa cabeça. Turguêniev é um mestre e mereceu a sorte de ter sido traduzido por Tatiana Belinky neste pocket da L&PM. Uma joia.

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Chá das Cinco com o Vampiro, de Miguel Sanches Neto

Para empreender um romance há que ter boa dose de motivação e um ingrediente que pode ser muito motivador é o da vingança pessoal. Na história da literatura há vários exemplos de romances e contos que se iniciaram como reações a reais ou supostas agressões e que superaram o mero objetivo de ofender. É o que ocorre com Chá das Cinco com o Vampiro: se parte de uma rixa, se a descreve, deixa-nos envolvidos num delicioso e amargo retrato das vaidades literárias e da cidade de Curitiba, descrita como um verdadeiro inferno.

Comecemos pelo cerne. O livro narra desde os primórdios a relação entre um pretendente a escritor e seu modelo, mais velho e consagrado. É um Bildungsroman (romance de formação) que parte da adolescência de Beto Nunes na pequena Peabiru até seu período curitibano. Organizado em capítulos não cronológicos, com os títulos indicando o ano em que se sucedem os fatos, é conduzido com segurança, ultrapassando em muito o simples propósito de vingança.

Os trechos dedicados à sexualidade e à adolescência de Beto Nunes em Peabiru – quase todos no início do livro – são os mais desinteressantes da narrativa. Beto Nunes, o narrador, faz uma análise psicológica bastante simplória daquilo que o circunda. O livro ganha grandiosidade quando da saída de Beto para Curitiba, quando começa a vida na grande cidade provinciana. A partir deste ponto, a narrativa engrena até o final: a procura pelo Grande Mentor, a “amizade” com ele, os estudos abandonados, os novos amores, o meio literário, tudo misturado em contraponto e primorosamente escrito.

Há belas descrições de escritores anônimos – fracassados, orgulhosos e sem obra – , assim como da vida difícil como colunista e das horas de pura paixão pela literatura. Tudo isso é contado de forma sincera e com indiscutível virtuosismo. Há enorme humanidade nos capítulos sobre a relação quase inexistente com os pais em Peabiru, em contraposição à devoção mútua entre Beto e uma tia, também ausente.

Um personagem importante do livro é a opressiva cidade de Curitiba, que nos é mostrada exatamente como este articulista a sentiu em várias visitas. É uma cidade que não adota ninguém, comandada por uma elite culturalmente pobre que busca nos sobrenomes – como os personagens de Balzac – as provas de uma boa ascendência. Ao mesmo tempo, não suporta quem se sobressai ou é diferente. Conservadora até a medula, a Curitiba de Sanches é Curitiba.

O nome do “Grande Escritor Que Ensinará Todos os Segredos” é Geraldo Trentini e seu apelido, vampiro. Vingança, vingança. Afinal, Dalton Trevisan tem seu apelido diretamente do título de um de seus livros: O Vampiro de Curitiba. Sanches não se preocupou muito em escondê-lo: Trevisan e Trentini iniciam por “Tr” e têm sete letras — o número de consoantes e vogais também coincidem. E Dalton e Geraldo têm sílabas tônicas com “al”…, ou seja, o autor não fez a menor questão de ocultar sua inspiração, modelo e… ressentimento. Tanto que o verdadeiro vampiro sentiu o golpe, contra-homenageando Miguel Sanches Neto com o grosseiro poema “Hiena Papuda”. Melhor sorte teve o recém falecido crítico Wilson Martins, que aparece como o ético e generoso Valter Marcondes; e menos sorte tiveram quase todos os outros, mas principalmente o jornalista Fábio Campana, um patético Orlando Capote, e o Valério Chaves (Valêncio Xavier) que tomou uma atrás da outra, como punhalada de louco.

Dalton deve ter ficado irritado ao aparecer como um vampiro que não sai à noite e que só come coisinhas em confeitarias… Mas deve ter ficado furioso ao aparecer como um escritor que não quer aparecer enquanto sugere que amigos escrevam isso e aquilo, aqui e ali. Aposto que é verdade.

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Pré-leitura de Dom Quixote

2005 foi o ano em que se comemoraram os 400 anos da primeira edição do Dom Quixote. Na época, programei uma homenagem particular ao livro — relê-lo — , mas não o fiz. Faço agora.

Antes de reenfrentar o Quixote, quero fazer um comentário comparativo entre a impressão que tive ao lê-lo pela primeira e única vez, aos 16 anos, e certas interpretações atuais. Durante um Fórum Social Mundial falou-se muito no Quixote como uma utopia, mas não creio que isto tenha muito contato com a história contada por Cervantes. Utopia (palavra do latim moderno, com origem no grego oú, “não”, e no grego tópos, ‘lugar’), utopia, repito, segundo Thomas Morus, é um local e uma situação ideais; isto é, refere-se a um país e a um governo imaginário que proporciona excelentes condições de vida a um povo feliz. Ironicamente, utopia significa não-lugar ou lugar nenhum… Não sei o que esta definição tem a ver com a história do Engenhoso Fidalgo, um personagem que aplicava sua fantasia para transcender sua circunstância imediata e que é destituído de projetos para si e seu país ou, melhor dizendo, refaz seu projeto cada vez que pensa ou vê algo que o interesse.

Sua fantasia forma gloriosa e minuciosa antítese com o ultrarrealismo de Sancho Pança. É na oposição de Quixote ao senso comum de Sancho que está grande parte da riqueza do livro. A capacidade do Quixote de adaptar-se e de manter seu idealismo acima da vulgaridade, leva-nos a acreditar que haja outro bom senso, único e pessoal, a lutar contra o marasmo e o comum. Mas não pensem em Sancho como um personagem desagradável, politicamente correto (…)  ou como “o representante da vulgaridade”, nada disso. Ele é engraçado e inteligente, estando sempre disposto a piadas e a citar oportunos adágios populares (Populares ou era Cervantes quem os criava?).

Cervantes é o fundador do romance moderno; no Quixote há personagens representando idéias e as situações falam, representando ideias, sem a necessidade de maiores explicações do autor. Escrito como só um grande romancista e poeta poderia fazê-lo – pois, como vocês sabem, Cervantes era também poeta e dramaturgo –, Dom Quixote foi o único livro que me fez chorar durante sua leitura. Eu adoraria que ele repetisse o feito 34 anos depois. (Fiquei feliz quando li, nos Diários de Virginia Woolf, que ela sempre derramava algumas lágrimas, furtivas ou não, quando abria seu Quixote. Isto me une a ela de alguma forma, já que somos tão antípodas em termos de talento.)

P.S. – Vocês sabiam que Shakespeare e Cervantes morreram exatamente no mesmo dia, no dia 23 de abril de 1616?

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2666, de Roberto Bolaño (3ª Parte – La parte de Fate)

Na terceira parte de 2666, abandonamos o professor Oscar Amalfitano em sua descida aos infernos da psicose para seguirmos o repórter novaiorquino Oscar Fate. Fate trabalha numa revista voltada para a população negra do Harlem. Sua mãe acaba de falecer e Oscar deve providenciar seu enterro em Detroit, depois ele vai entrevistar um ex-Pantera Negra e, quando pensa em retornar, recebe a missão de ir à Santa Teresa, uma cidade mexicana fictícia na fronteira com os Estados Unidos, a fim de fazer a cobertura de uma luta de boxe, esporte sobre o qual pouco sabe. Lá, fica curioso a respeito de outro assunto: as centenas de mulheres que ão assassinadas e que no mais das vezes aparecem mortas no deserto.

As cenas de Detroit são efetivamente esplêndidas, tanto com o ex-Pantera Negra como com um comunista americano que ainda mantém sua célula ativa. A parte mexicana do capítulo funciona mais como um portal para apresentação da cidade de Santa Teresa, seus crimes e misoginia. Enviado para cobrir uma luta de boxe, Bolaño nos enreda com a cultura local. Há drogas, submundo, alguma bizarria e há o machismo, o machismo, o machismo. Enfim, é o mundo do boxe. Nesta parte, a prosa começa a pender para o noir, com uma galeria de personagens que parecem ser culpadas de algo – mas como saberemos? – , à exceção de Rosa Amalfitano, filha do Oscar da segunda parte, e de Guadalupe Roncal, a amedrontada repórter que foi escalada para investigar e escrever sobre as mortes das mulheres.

É muito estranho como uma certa irrealidade tomou conta de mim durante a leitura. O que fará Fate? Qual é o motivo de seu sobrenome? O que ele faz lá? Por que ele não se decide a nada e deixa ser levado até que as circunstâncias o engulam ou não? Então, acontece que nós é que nos tornamos os detetives de verdade, tentando captar no mar de detalhes que nos é oferecido o atordoamento de Fate e seu, bem, destino. Bobagem sublinhar que nunca há uma resposta clara, pois no jogo de Bolaño, só não nos decepcionamos com o texto. O resto mais parece um quebra-cabeças de milhões de peças no qual uma peça não tem nada a ver com a outra.

Sigo a leitura ainda mais entusiasmado.

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Haydn para blefadores

A série de livros de “Manual do Blefador” (Ediouro) dá dicas a pessoas que não querem passar vergonha entre entendidos. Há vários desses livrinhos: sobre música, vinhos, literatura, arte moderna, filosofia, teatro, etc. Eles são ótimos, engraçadíssimos, como demonstra este verbete sobre Haydn:

Haydn.

O pai da sinfonia. Ao contrário do normal, ninguém soube quem foi sua mãe. Haydn decidiu que as sinfonias deviam ter princípio, meio e fim, primeiros movimentos nas sonatas, nas missas e nos trios. Beethoven, em seu estilo grosseiro, desconsiderou e estragou esse belo modelo convencional.

O sentimento geral é de que Haydn podia ser tão bom quanto Mozart se não tivesse sido tão incuravelmente feliz durante a vida. Esse espírito de contentamento insinuou-se por toda sua música e diluiu-se. As últimas sinfonias foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo, e a sombra do contrato que pairava sobre ele acrescentou-lhe aquela pitadinha de desgraça que tanto lhe faltara antes. Talvez somente um homem verdadeiramente sem coração poderia ter composto algo tão assombrosamente feliz quanto o final da Sinfonia Nº 88.

Existem muitas e muitas sinfonias que praticamente não são tocadas e que você pode considerar suas favoritas, mas o excelente comentário sobre Haydn é afirmar que o melhor de suas músicas foram as missas — e não haverá necessidade de falar sobre isso.

Peter Gammond — Manual do Blefador: Música

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Últimos livros lidos

O tradutor americano deu o nome de In Concert Performance para este Em Ritmo de Concerto de Nikolai Dejnióv. Lendo o livro, vê-se que o americano saiu-se muito melhor. O inventivo e amalucado livro deste escritor e físico russo é mesmo aparentado a uma enorme improvisação. Vagamente inspirado no realismo mágico, o romance conta a história de Lucário, um anjo que volta à terra ao apaixonar-se por Ana, o que o impedirá de seguir seu caminho em direção à purificação total. Claro, nada de terrivelmente original, mas o livro é delicioso, anticlerical e anti-stalinista. Ah, por falar em Stálin, ele quase foi assassinado por Lúkin – o Lucário em terra. Quase.

Eu queria gostar deste livro emprestado por uma querida amiga, mas não foi possível. O Duelo de Batman contra a MTV, além de um título apelativo, é uma série de poemas de Sérgio Capparelli baseados na relação entre um pai e um filho. A estrutura é interessante, são cinco seções: na primeira o pai fala ao filho, depois temos o filho sozinho, seguido pelo que diz o filho ao pai e pelo solo do pai, terminando com uma espécie de homenagem aos que os antecederam. Sem dúvida, uma boa idéia, não fosse o fato dos poemas mostrarem-se muitas vezes fora do foco do livro, como se tivessem sido primeiro escritos para depois entrarem à fórceps na estrutura inventada. O leitor tem que ter muito boa vontade para entender que aquela voz é a do pai ou a do filho, pois elas são muito parecidas. Há raros momentos em que são mostradas as diferenças e pontos em comum entre pai e filho assim como as dificuldades ou não de comunicação entre eles. Não há profundidade nem drama sincero. Um pasmo: a mãe, que se bem me lembro morreu durante o parto do filho, não parece ser uma falta muito importante para nenhum dos dois. O filho não é um mamífero.

Os Novos, romance de Luiz Vilela, foi comprado num balaio da Feira do Livro do ano passado. O exemplar que levei já tinha até tomado banho, suas folhas têm aquelas ondas que denunciam muita água. Deve ter custado uns R$ 2,00, mas pela diversão vale muito mais. Pode-se dizer que a história dos amigos candidatos a escritores é datada, pode-se garantir que é obra de um Vilela iniciante, pode-se reclamar que os caras não param de beber cerveja, mas, por favor, os diálogos são maravilhosos, vivos, humanos. E aqui há, de forma muito intensa, o conflito entre gerações que faltou no livrinho aí de cima. Outro pasmo: por que o livro não foi censurado se os caras cagam sobre os milicos? Ora, certamente porque nenhum censor deu importância a um livro editado pela obscuríssima e carioca “Edições Gernasa” em 1971… Agora, é um mistério como ele, depois de tanta água, foi chegar a mim num balaio da Feira do Livro de 2006.

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