O Livreiro de Cabul, de Åsne Seierstad

A norueguesa Åsne Seierstad é uma grande estrela da reportagem mundial. Com apenas 40 anos, já escreveu livros sobre os conflitos da Sérvia, do Iraque e do Afeganistão, todos best-sellers. Este O Livreiro de Cabul não é um relato de guerra. É uma narrativa bem amarrada sobre os costumes e a vida no Afeganistão, observados pela autora durante os três meses que viveu com uma família afegã após a queda do talibã, na primavera de 2002. Vendo aquele estranho mundo sob uma burca, a loiríssima Seierstad nos mostra o dia a dia dos Kahn, uma rara e privilegiada família que tinha algo para comer em Cabul naquela época.

O livro tem um sério problema. Como a jovem Seierstad pode julgar uma cultura milenar tendo passado apenas alguns dias com uma família afegã? A fim de não me irritar, tratei o livro como se fosse uma visão estrangeira que tem muito em comum comigo, mas uma visão estrangeira. E crítica.

Estruturando seu relato em capítulos que mais parecem contos e utilizando esplendidamente a condição de comerciante de Sultan Kahn, Seierstad chega a outras instâncias de uma sociedade que nos deixa estarrecidos a cada página, tal o medievalismo das atitudes e opiniões. É claro que esta característica nos faz engolir o livro rapidamente, mas os méritos de O Livreiro de Cabul ultrapassam o da mera “narrativa de ocorrências e costumes para nós absurdos”. O livro é muito bem escrito e alguns capítulos, como Ondulante, esvoaçante, serpenteante, que conta as peripécias de três velozes burcas comprando o enxoval de casamento de uma delas, O carpinteiro, que conta minuciosamente a história de um roubo e sua punição, e Minha mãe, Osama, que conta a viagem de um tradutor por uma região onde o fundamentalismo islãmico é natural e milenar, chegam a entusiasmar. Seierstad reconstrói vividamente cada um de seus personagens, os justifica e nunca nos entedia. E olhem que não tenho muita paciência com obras que não sejam de ficção!

Outro acerto é o de não haver grande intervenção da política no relato. Não precisa, seria apenas ruído em um livro cuja sedução está no interesse da autora pelas pessoas – principalmente por mulheres como Leila ou jovens como Mansur – e pela vida sufocante que a absoluta maioria leva. Mas volto a dizer, há as críticas à cultura afegã e entramos no pantanoso terreno antropológico.

É uma excelente indicação para quem quer um livro grudento e competente.

A tradução é de Grete Skevik. Bom trabalho, mas faltou revisão. Há duas trocas de nomes que tornam seus trechos puzzles e outros errinhos aqui e ali. Nada grave para o leitor atento, só que é chato.

Fernando Monteiro & Anna Akhmátova: Um Diálogo Possível da Poesia Ocidental

Por Luiz Carlos Monteiro (*)

Pode parecer estranho um poeta escrever todo um poema longo estimulado pela visada instantânea e avassaladora de um rosto feminino numa fotografia antiga. A imagem em preto-e-branco deflagra uma viagem ao fundo da herança poética e cultural planetária acumulada, que passa a envolver referências antigas, presentes e em constante progressão resguardadas no seu refluir greco-romano, medievo e iluminista, e somadas aos oráculos orientais nas vastas paisagens de montanha e deserto. Completando esse veio elastecido em verticalidade poética e desdobramento cultural que atravessa os séculos, do 19 em diante são trazidos a lume e em razoável proporção os rumos e descaminhos reinventados e deslindados pela poesia de amor e de guerra no Ocidente.

Antes deste Vi uma foto de Anna Akhmátova, Fernando Monteiro já carregava em seu fazer literário um êxito comprovado por várias obras de ficção e poesia que ultrapassaram as fronteiras locais. A escrita de livros alternando-se numa fatura estética que contemplava certa diferenciação peculiar entre cada um dos volumes lançados, mesmo pensando-se naqueles de prosa seriada. Na elaboração de poesia, cada texto mostrando-se formalmente desvinculado do anterior, o autor não se distanciando da inteireza de seu estilo, permitindo que traços diccionais e itens de linguagem se tornassem reconhecíveis em sua maneira adotada desde os começos.

Para citar sem consulta, lembre-se aqui esse percurso poético a partir de Memória do mar sublevado, sua estreia em 1973, apresentando um canto solene repleto de ancestralidade e dinastia faraônica. Um balanço enviesado de vida pessoal foi Leilão sem pena, publicado na voga pernambucana da Pirata, num tempo de resistência política, culto entusiasmado ao cinema e incursão pelas artes plásticas. Monteiro vai passar por uma experiência de especial inquirição metafísica em A interrogação dos dias. Sem perder de vista o impulso e o empenho empregados no ritmo ágil, mas que às vezes se arrasta, transparente e obscuro ao mesmo tempo, temperado fortemente pelas passagens de melancolia e depressão e pelas tiradas da sensibilidade irônica. E chegará, quem sabe se em simultaneidade, à exatidão centrada na consecução milimétrica de vocábulos, versos e estrofes em cadência matematicamente obsessiva com Ecométrica.

Em Vi uma foto de Anna Akhmátova uma solidariedade surda e rebelada vasculha o lastro histórico de guerras e revoluções repisadas de sangue dos inícios do século 20, trazendo a lume as numerosas e insanas perseguições que sofreram poetas e cidadãos pelos regimes ditatoriais que se locupletavam de sua própria indiscriminação ideológica. A poetisa Anna Akhmátova encontrava-se no rol de censura e cerceamento promovidos pelo Estado russo, que deixou marcas inapagáveis de violência. Os burocratas e dirigentes russos imaginavam que, para a manutenção do regime comunista, seria necessário alinhar ou expurgar os dissidentes, torturando e fuzilando intelectuais, artistas e poetas. Sendo um texto realizado a contrapelo de toda e qualquer tirania, descarta as viseiras da genuflexão política e revela uma faceta social permeada pela constatação corrente, porém sem a amplitude dos resultados práticos, de que qualquer atentado à liberdade do homem sufoca-o e termina por eliminá-lo. Uma opressão sustentada em atos abjetos e excessos de violência difíceis de suportar, faz com que se perca temporalmente a inclinação humana para os desvelos da convivência comum cotidiana e pacífica, na qual, em boa medida, podem ser buscados elos vitais do artístico e do criativo.

A cerveja da Boa Vista não desemboca no chope da Guararapes, e a presença de poetas pernambucanos se afirma indiretamente (Carlos Pena, Bandeira, João Cabral). A inclusão en passant de outros poetas reconhecidos como de alcance nacional reabre velhos problemas, tanto pela absorção questionadora de sentido e matéria abordados, quanto pela negação estética e conceitual que transita nas vias marginais do confronto temático e do modo de expressão de uma época (Drummond e Mário de Andrade). Aqui, na condição interna de leitor crítico, o poeta não resiste e associa sua própria experiência com o poético à experiência desses poetas que se encarregaram de transformar, ao longo de seu tempo, vida em poesia. Há uma transplantação de culturas poéticas em choque para instantes paródicos, miméticos e declinantes únicos, na tentativa de absorção do poema como um todo, afastada do unilateral e aproximada dos sentidos não vistos a olho desprevenido.

Este poema dedicado a Anna Akhmátova, estabelece um diálogo com a poetisa e esmiúça relações pessoais existentes talvez apenas no plano do imaginário da criação. A transferência empreendida flagra sexualidades latentes nas tramas veladas das funções solitárias e desejos indizíveis. Faz aflorar os meandros do prazer algo irracional que consome a sucessão de imagens profusas e apaga os rasgos detalhistas de corpos em solidão ou conjunção carnal, com sua atração irrefreável pelo impossível, o mórbido e o proibido. Morto o corpo, distanciada a alma, os atos se enfronham no presente da imaginação movida pela tremenda insatisfação, compulsão e efemeridade que impulsionam e dominam os jogos sensuais. E Anna vai assumir o papel de Mãe Maior da Poesia, irmã e filha, deusa e mulher, musa e amante.

Fernando Monteiro utiliza largamente esquemas e procedimentos expressivos como associações imagéticas em encadeamentos, enjambements e no palavra-puxa-palavra. Com o sabor diferencial de quem tem fôlego suficiente para manter um ritmo acelerado e eficaz na confecção de recortes, intrusões e incisões no corpo do poema, procura evitar o derramamento baboso e as celulites da fala. Por isso, sua dicção traz uma espécie de contenção cerebral inevitável por ser o autor quem é, por ser quem jamais escondeu sua erudição nem os propósitos de fazer alta literatura.

Neste poema, existem evidências que outros analistas podem facilmente identificar, como os ecos percussivos da “terra arrasada” de Eliot que remetem aos metafísicos ingleses e simbolistas franceses. A visão baudelaireana marginal das ruas que lembram Clarice Lispector e Anna Akhmátova, ambas ucranianas, uma tendo vivido no Recife e a outra fisgada no expressivo da fotografia interna a uma antologia de poesia russa comprada num sebo naquela tarde de setembro de 2001. A aquisição do livro suscita a questão de trocá-lo por cervejas em promoção nos botequins das imediações centrais da cidade, considerando-se a oportunidade de absorver o calor tropical em goles gelados e observando a surpresa indiferente da fauna humana que transita pelos becos, ruelas e praças.

Vi uma foto de Anna Akhmátova não foge da contemplação performática que reconcilia o poeta com o espírito pós-moderno e a alma cósmica. São desencavadas vivências cotidianas e situações particulares somente conhecidas, no andamento da construção do poema, pelo próprio poeta. Paisagens à aparência inalcançáveis e pouco acessíveis a quem está de fora, porém pressentidas em pequenos flashes, que ora se perdem no instante, ora são captadas pela sutilidade da poesia, mesmo que em regime de incompletude. E mesmo que seja assim, o poema continua a ofertar um conjunto de imagens em movimento alternado entre o veloz e o estático. E fornece também uma nova cinética e um novo dinamismo ao olhar que enxerga poesia na escuridão mais cerrada, cuja desfocação persiste sobretudo no encobrimento de estágios sensíveis da fruição humana optante pela não-destruição da vida no mundo.

(*) Poeta, crítico literário e ensaísta, Luiz Carlos Monteiro não é parente de Fernando Monteiro… É formado em Pedagogia e mestre em Teoria da Literatura pela UFPE. Publicou os livros de poesia “Na solidão do neon” (Pirata, 1983), “Vigílias” (Fundarpe, 1990), “Poemas” (Ed. Universitária da UFPE, 1999), “O impossível dizer e outros poemas” (Bagaço, 2005) e de ensaios “Para ler Maximiano Campos” (Bagaço, 2008) e “Musa fragmentada – a poética de Carlos Pena Filho” (Ed. Universitária da UFPE, 2009). Organizou, em colaboração com Antônio Campos, o livro de contos do Prêmio Maximiano Campos nas versões 2, 3 e 4 (IMC/Bagaço, 2008). Também tem publicados em antologias diversas, além de artigos e resenhas espalhados em sites, jornais e revistas de Pernambuco e de outros estados.

Primeiro amor, de Ivan Turguêniev

Esta é minha segunda leitura desta novela de Turguêniev. Quando a li pela primeira vez, era um adolescente de uns, talvez, 15 anos, e o livro me causou forte impressão. A história é a mais simples possível: Vladimir Petróvitch, um jovem de dezesseis anos, apaixona-se pela filha do seu vizinho, a bela Zinaída, alguns anos mais velha e a quem não faltam pretendentes. O final é surpreendente não pela escolha de Zinaída, mas por seu realismo e violência.

Turguêniev faz parte do intocável G5 dos russos do século XIX: Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov e Gógol. É o mais europeu do grupo e sabe levar uma narrativa como poucos. Sua Zinaída é perfeita e serviu de modelo para muitas personagens semelhantes que a seguiram – trata-se da irresistível e bela mulher, atrás da qual há uma multidão de homens servis e alguns adolescentes que não conhecem o significado da palavra inatingível. Estes sentem medo, vergonha, adoração, devoção e coragem, tudo em paroxismo e às vezes ao mesmo tempo…

A novela, narrada na primeira pessoa por Vladimir, é uma obra-prima psicológica e talvez sua autodescrição deste seja o melhor do livro, apesar de que é impossível ao leitor não se apaixonar pela louquinha e coquete Zinaída. Mas o que é efetivamente interessante é a construção lenta e alegre de uma trama que repentinamente despenca sobre nossa cabeça. Turguêniev é um mestre e mereceu a sorte de ter sido traduzido por Tatiana Belinky neste pocket da L&PM. Uma joia.

Chá das Cinco com o Vampiro, de Miguel Sanches Neto

Para empreender um romance há que ter boa dose de motivação e um ingrediente que pode ser muito motivador é o da vingança pessoal. Na história da literatura há vários exemplos de romances e contos que se iniciaram como reações a reais ou supostas agressões e que superaram o mero objetivo de ofender. É o que ocorre com Chá das Cinco com o Vampiro: se parte de uma rixa, se a descreve, deixa-nos envolvidos num delicioso e amargo retrato das vaidades literárias e da cidade de Curitiba, descrita como um verdadeiro inferno.

Comecemos pelo cerne. O livro narra desde os primórdios a relação entre um pretendente a escritor e seu modelo, mais velho e consagrado. É um Bildungsroman (romance de formação) que parte da adolescência de Beto Nunes na pequena Peabiru até seu período curitibano. Organizado em capítulos não cronológicos, com os títulos indicando o ano em que se sucedem os fatos, é conduzido com segurança, ultrapassando em muito o simples propósito de vingança.

Os trechos dedicados à sexualidade e à adolescência de Beto Nunes em Peabiru – quase todos no início do livro – são os mais desinteressantes da narrativa. Beto Nunes, o narrador, faz uma análise psicológica bastante simplória daquilo que o circunda. O livro ganha grandiosidade quando da saída de Beto para Curitiba, quando começa a vida na grande cidade provinciana. A partir deste ponto, a narrativa engrena até o final: a procura pelo Grande Mentor, a “amizade” com ele, os estudos abandonados, os novos amores, o meio literário, tudo misturado em contraponto e primorosamente escrito.

Há belas descrições de escritores anônimos – fracassados, orgulhosos e sem obra – , assim como da vida difícil como colunista e das horas de pura paixão pela literatura. Tudo isso é contado de forma sincera e com indiscutível virtuosismo. Há enorme humanidade nos capítulos sobre a relação quase inexistente com os pais em Peabiru, em contraposição à devoção mútua entre Beto e uma tia, também ausente.

Um personagem importante do livro é a opressiva cidade de Curitiba, que nos é mostrada exatamente como este articulista a sentiu em várias visitas. É uma cidade que não adota ninguém, comandada por uma elite culturalmente pobre que busca nos sobrenomes – como os personagens de Balzac – as provas de uma boa ascendência. Ao mesmo tempo, não suporta quem se sobressai ou é diferente. Conservadora até a medula, a Curitiba de Sanches é Curitiba.

O nome do “Grande Escritor Que Ensinará Todos os Segredos” é Geraldo Trentini e seu apelido, vampiro. Vingança, vingança. Afinal, Dalton Trevisan tem seu apelido diretamente do título de um de seus livros: O Vampiro de Curitiba. Sanches não se preocupou muito em escondê-lo: Trevisan e Trentini iniciam por “Tr” e têm sete letras — o número de consoantes e vogais também coincidem. E Dalton e Geraldo têm sílabas tônicas com “al”…, ou seja, o autor não fez a menor questão de ocultar sua inspiração, modelo e… ressentimento. Tanto que o verdadeiro vampiro sentiu o golpe, contra-homenageando Miguel Sanches Neto com o grosseiro poema “Hiena Papuda”. Melhor sorte teve o recém falecido crítico Wilson Martins, que aparece como o ético e generoso Valter Marcondes; e menos sorte tiveram quase todos os outros, mas principalmente o jornalista Fábio Campana, um patético Orlando Capote, e o Valério Chaves (Valêncio Xavier) que tomou uma atrás da outra, como punhalada de louco.

Dalton deve ter ficado irritado ao aparecer como um vampiro que não sai à noite e que só come coisinhas em confeitarias… Mas deve ter ficado furioso ao aparecer como um escritor que não quer aparecer enquanto sugere que amigos escrevam isso e aquilo, aqui e ali. Aposto que é verdade.

Pré-leitura de Dom Quixote

2005 foi o ano em que se comemoraram os 400 anos da primeira edição do Dom Quixote. Na época, programei uma homenagem particular ao livro — relê-lo — , mas não o fiz. Faço agora.

Antes de reenfrentar o Quixote, quero fazer um comentário comparativo entre a impressão que tive ao lê-lo pela primeira e única vez, aos 16 anos, e certas interpretações atuais. Durante um Fórum Social Mundial falou-se muito no Quixote como uma utopia, mas não creio que isto tenha muito contato com a história contada por Cervantes. Utopia (palavra do latim moderno, com origem no grego oú, “não”, e no grego tópos, ‘lugar’), utopia, repito, segundo Thomas Morus, é um local e uma situação ideais; isto é, refere-se a um país e a um governo imaginário que proporciona excelentes condições de vida a um povo feliz. Ironicamente, utopia significa não-lugar ou lugar nenhum… Não sei o que esta definição tem a ver com a história do Engenhoso Fidalgo, um personagem que aplicava sua fantasia para transcender sua circunstância imediata e que é destituído de projetos para si e seu país ou, melhor dizendo, refaz seu projeto cada vez que pensa ou vê algo que o interesse.

Sua fantasia forma gloriosa e minuciosa antítese com o ultrarrealismo de Sancho Pança. É na oposição de Quixote ao senso comum de Sancho que está grande parte da riqueza do livro. A capacidade do Quixote de adaptar-se e de manter seu idealismo acima da vulgaridade, leva-nos a acreditar que haja outro bom senso, único e pessoal, a lutar contra o marasmo e o comum. Mas não pensem em Sancho como um personagem desagradável, politicamente correto (…)  ou como “o representante da vulgaridade”, nada disso. Ele é engraçado e inteligente, estando sempre disposto a piadas e a citar oportunos adágios populares (Populares ou era Cervantes quem os criava?).

Cervantes é o fundador do romance moderno; no Quixote há personagens representando idéias e as situações falam, representando ideias, sem a necessidade de maiores explicações do autor. Escrito como só um grande romancista e poeta poderia fazê-lo – pois, como vocês sabem, Cervantes era também poeta e dramaturgo –, Dom Quixote foi o único livro que me fez chorar durante sua leitura. Eu adoraria que ele repetisse o feito 34 anos depois. (Fiquei feliz quando li, nos Diários de Virginia Woolf, que ela sempre derramava algumas lágrimas, furtivas ou não, quando abria seu Quixote. Isto me une a ela de alguma forma, já que somos tão antípodas em termos de talento.)

P.S. – Vocês sabiam que Shakespeare e Cervantes morreram exatamente no mesmo dia, no dia 23 de abril de 1616?

2666, de Roberto Bolaño (3ª Parte – La parte de Fate)

Na terceira parte de 2666, abandonamos o professor Oscar Amalfitano em sua descida aos infernos da psicose para seguirmos o repórter novaiorquino Oscar Fate. Fate trabalha numa revista voltada para a população negra do Harlem. Sua mãe acaba de falecer e Oscar deve providenciar seu enterro em Detroit, depois ele vai entrevistar um ex-Pantera Negra e, quando pensa em retornar, recebe a missão de ir à Santa Teresa, uma cidade mexicana fictícia na fronteira com os Estados Unidos, a fim de fazer a cobertura de uma luta de boxe, esporte sobre o qual pouco sabe. Lá, fica curioso a respeito de outro assunto: as centenas de mulheres que ão assassinadas e que no mais das vezes aparecem mortas no deserto.

As cenas de Detroit são efetivamente esplêndidas, tanto com o ex-Pantera Negra como com um comunista americano que ainda mantém sua célula ativa. A parte mexicana do capítulo funciona mais como um portal para apresentação da cidade de Santa Teresa, seus crimes e misoginia. Enviado para cobrir uma luta de boxe, Bolaño nos enreda com a cultura local. Há drogas, submundo, alguma bizarria e há o machismo, o machismo, o machismo. Enfim, é o mundo do boxe. Nesta parte, a prosa começa a pender para o noir, com uma galeria de personagens que parecem ser culpadas de algo – mas como saberemos? – , à exceção de Rosa Amalfitano, filha do Oscar da segunda parte, e de Guadalupe Roncal, a amedrontada repórter que foi escalada para investigar e escrever sobre as mortes das mulheres.

É muito estranho como uma certa irrealidade tomou conta de mim durante a leitura. O que fará Fate? Qual é o motivo de seu sobrenome? O que ele faz lá? Por que ele não se decide a nada e deixa ser levado até que as circunstâncias o engulam ou não? Então, acontece que nós é que nos tornamos os detetives de verdade, tentando captar no mar de detalhes que nos é oferecido o atordoamento de Fate e seu, bem, destino. Bobagem sublinhar que nunca há uma resposta clara, pois no jogo de Bolaño, só não nos decepcionamos com o texto. O resto mais parece um quebra-cabeças de milhões de peças no qual uma peça não tem nada a ver com a outra.

Sigo a leitura ainda mais entusiasmado.

Haydn para blefadores

A série de livros de “Manual do Blefador” (Ediouro) dá dicas a pessoas que não querem passar vergonha entre entendidos. Há vários desses livrinhos: sobre música, vinhos, literatura, arte moderna, filosofia, teatro, etc. Eles são ótimos, engraçadíssimos, como demonstra este verbete sobre Haydn:

Haydn.

O pai da sinfonia. Ao contrário do normal, ninguém soube quem foi sua mãe. Haydn decidiu que as sinfonias deviam ter princípio, meio e fim, primeiros movimentos nas sonatas, nas missas e nos trios. Beethoven, em seu estilo grosseiro, desconsiderou e estragou esse belo modelo convencional.

O sentimento geral é de que Haydn podia ser tão bom quanto Mozart se não tivesse sido tão incuravelmente feliz durante a vida. Esse espírito de contentamento insinuou-se por toda sua música e diluiu-se. As últimas sinfonias foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo, e a sombra do contrato que pairava sobre ele acrescentou-lhe aquela pitadinha de desgraça que tanto lhe faltara antes. Talvez somente um homem verdadeiramente sem coração poderia ter composto algo tão assombrosamente feliz quanto o final da Sinfonia Nº 88.

Existem muitas e muitas sinfonias que praticamente não são tocadas e que você pode considerar suas favoritas, mas o excelente comentário sobre Haydn é afirmar que o melhor de suas músicas foram as missas — e não haverá necessidade de falar sobre isso.

Peter Gammond — Manual do Blefador: Música

Últimos livros lidos

O tradutor americano deu o nome de In Concert Performance para este Em Ritmo de Concerto de Nikolai Dejnióv. Lendo o livro, vê-se que o americano saiu-se muito melhor. O inventivo e amalucado livro deste escritor e físico russo é mesmo aparentado a uma enorme improvisação. Vagamente inspirado no realismo mágico, o romance conta a história de Lucário, um anjo que volta à terra ao apaixonar-se por Ana, o que o impedirá de seguir seu caminho em direção à purificação total. Claro, nada de terrivelmente original, mas o livro é delicioso, anticlerical e anti-stalinista. Ah, por falar em Stálin, ele quase foi assassinado por Lúkin – o Lucário em terra. Quase.

Eu queria gostar deste livro emprestado por uma querida amiga, mas não foi possível. O Duelo de Batman contra a MTV, além de um título apelativo, é uma série de poemas de Sérgio Capparelli baseados na relação entre um pai e um filho. A estrutura é interessante, são cinco seções: na primeira o pai fala ao filho, depois temos o filho sozinho, seguido pelo que diz o filho ao pai e pelo solo do pai, terminando com uma espécie de homenagem aos que os antecederam. Sem dúvida, uma boa idéia, não fosse o fato dos poemas mostrarem-se muitas vezes fora do foco do livro, como se tivessem sido primeiro escritos para depois entrarem à fórceps na estrutura inventada. O leitor tem que ter muito boa vontade para entender que aquela voz é a do pai ou a do filho, pois elas são muito parecidas. Há raros momentos em que são mostradas as diferenças e pontos em comum entre pai e filho assim como as dificuldades ou não de comunicação entre eles. Não há profundidade nem drama sincero. Um pasmo: a mãe, que se bem me lembro morreu durante o parto do filho, não parece ser uma falta muito importante para nenhum dos dois. O filho não é um mamífero.

Os Novos, romance de Luiz Vilela, foi comprado num balaio da Feira do Livro do ano passado. O exemplar que levei já tinha até tomado banho, suas folhas têm aquelas ondas que denunciam muita água. Deve ter custado uns R$ 2,00, mas pela diversão vale muito mais. Pode-se dizer que a história dos amigos candidatos a escritores é datada, pode-se garantir que é obra de um Vilela iniciante, pode-se reclamar que os caras não param de beber cerveja, mas, por favor, os diálogos são maravilhosos, vivos, humanos. E aqui há, de forma muito intensa, o conflito entre gerações que faltou no livrinho aí de cima. Outro pasmo: por que o livro não foi censurado se os caras cagam sobre os milicos? Ora, certamente porque nenhum censor deu importância a um livro editado pela obscuríssima e carioca “Edições Gernasa” em 1971… Agora, é um mistério como ele, depois de tanta água, foi chegar a mim num balaio da Feira do Livro de 2006.

Uma escola para a vida (The finishing school), de Muriel Spark

Eu sou um cara que costumo andar sempre com um livro na mão, no bolso, na bolsa ou na pasta. Qualquer oportunidade, saco do livro e leio onde estiver. Porém, achei tão ridícula a tradução do título deste romance de Muriel Spark que tinha certo constrangimento de lê-lo em público. E a capa é um horror. Parece um troço militar… Mas o livro é de uma das autoras com as quais mais me divirto. Memento Mori, A Primavera da Srta. Jean Brodie, O Banquete e Realidade e Sonhos não mudaram minha vida, mas me deixaram muito feliz de lê-los, principalmente a Srta. Brodie. Finishing School é um gênero de escola particular muito comum na Europa. É onde os alunos recém saídos do colegial fazem um hiato e tem aulas de idiomas, cultura geral, cultura artística, boas maneiras, leem os livros sem os quais não se pode viver…, etc. É neste ambiente que Muriel Spark desenvolve o tal Uma escola para a vida (2004). A Finishing School em questão chama-se Sunrise e é itinerante. A cada ano aluga um local paradisíaco diferente e lá dá suas aulas. Os donos são jovens — Nina Parker e seu marido Rowland Mahler têm menos de 30 anos. Ela cuida da parte burocrática da instituição e ele leciona redação criativa, uma das matérias mais concorridas do colégio. Nos intervalos, Rowland tenta escrever seu primeiro romance. Paralelamente, um de seus alunos — Chris Wiley, de apenas 17 anos — , também está escrevendo o seu. Só que enquanto o texto do rapaz avança, Rowland entra em crise de criatividade; sim, logo ele, o professor de “redação criativa”. Se Chris alimenta-se da crise e da inveja de Rowland; Rowland deseja todo o mal àquele desgraçado que parece não padecer de nenhuma dificuldade com seu livro.

Sim, é um belo plot e Muriel Spark (1918-2006), que escreveu a novela aos 86 anos, não perde a elegância nem a segurança. Não seu melhor texto, mas ainda assim fica muitíssimos furos acima da média. E, por favor, a octogenária escritora não merecia este título de auto-ajuda… Nada a ver! Eximo o tradutor, que fez excelente trabalho, mas o editor merece a nota zero sem perdão. Faltou-lhe uma finishing school, sem dúvida!

Sem Rumo, de Cyro Martins

Cyro Martins (1908-1995) é uma instituição gaúcha. Foi importante escritor e talvez médico ainda maior. Sem Rumo (1937) é o primeiro livro da chamada Trilogia do Gaúcho a Pé, que é completada por Porteira Fechada (1944) e Estrada Nova (1954). Li detidamente Porteira Fechada no ano passado. Na verdade, digitei o romance por inteiro a fim de fosse convertido para o Braille, pois é de leitura obrigatória para o vestibular da UFRGS. Fiquei entusiasmado e pensei em ler toda a trilogia, essa desconhecida.

O primeiro volume é decepcionante: achei Sem Rumo quase ilegível, tal o número de antigas expressões gauchescas utilizadas. E olha que, apesar de urbano, sou gaúcho e costumo entender com facilidade tudo o que me cai em mãos, mas as expressões fronteiriças de Cyro acabaram por me incomodar. OK, a história é boa, Cyro tem uma dimensão social inencontrável em Erico, por exemplo, mas penso que ele exagerou a mão em seu romance de 30. Suas primeiras páginas são quase impenetráveis e não são exageradas as 233 notas explicativas que o “tradutor” coloca ao longo das 140 páginas. Chiru é um projeto daquilo que seria o grande João Guedes no segundo romance da trilogia. Indicado apenas para estudiosos da região fronteiriça do início do século e para nascidos em Quaraí.

P.S. — Ah, a edição da CORAG, comemorativa dos cem anos de nascimento do escritor, é uma joia. Os livros — comprei toda a trilogia por quase nada — são belíssimos.

Estive em Lisboa e lembrei de você, de Luiz Ruffato

Excelente novelinha bipartite de Luiz Ruffato. Serginho (Sérgio de Souza Sampaio) vive em Catagueses uma vida simples de cerveja, trabalho mal remunerado e fofocas. Repentinamente, acaba sendo obrigado a casar com Noemi por causa de uma gravidez, tem problemas financeiros e pensa resolvê-los emigrando para Portugal. Lá, enriqueceria.

A primeira parte da novela trata das idas e vindas de Serginho até decidir-se pela viagem; a segunda é a experiência portuguesa. Ruffato é excelente escritor e conta a história “sobrando”. Não é um livro alegre. Ver o personagem passar de cidadão de segunda classe em Catagueses para a terceira classe portuguesa não é das coisas mais motivadoras que tenho lido, mas a graça e a fluidez do autor deixam tudo mais leve, escapando dos excessos de verossimilhança e das teses sociológicas. A ingenuidade do personagem e a estranheza com o falar português são muito bem mostrados. É um bom livrinho de 83 páginas. Vale a leitura.

A Mulher do Tenente Francês, de John Fowles (resenha e reconstrução, um show!)

Na Inglaterra, este romance de 1969 possui status de clássico. Quando foi passado para o cinema, recebeu roteiro do respeitadíssimo dramaturgo Harold Pinter (1930-2008), Nobel de Literatura de 2005, e que tem dentre suas maiores influências Samuel Beckett e Frank Kafka. Já John Fowles (1926-2005), o autor do romance, escreveu poucos livros mas tem obra consistente e é até popular.

A Mulher do Tenente Francês é excelente. A história é contada a partir de um curioso foco narrativo: o autor, longínquo, examina os atos de seus personagens vitorianos a partir do instrumental em uso nos anos 60, quando o livro foi escrito. Tal instrumental é basicamente freudiano, marxista e gramsciano. Não, não, nada de discursos políticos. Só observações aqui e ali. Ao estilo de Machado de Assis, o autor às vezes conversa conosco, realizando uma bem-humorada interface entre a ação e o leitor. Costuma também brincar com o fato de estar “perdendo o controle” sobre os personagens e, lá pela página 100, explica que está alterando o planejamento inicial do romance por causa dos personagens, que decidiram outra coisa. Para completar, dá ao leitor a chance de escolher entre três finais distintos. É delicioso investimento ler estas 484 páginas.

Considerando-se a estrutura narrativa, não é de estranhar que Harold Pinter tenha sido convidado para escrever o roteiro cinematográfico. Para alegria da Caminhante (just a private joke), o filme de Karel Reisz, com Meryl Streep e Jeremy Irons, é um fiasco quando comparado com o livro. Ela, a Caminhante, acaba de marcar 2 x 0.

Mas tergiverso. No último domingo, procurando algo inteligente na Internet — ainda que zonzo pelo calor insuportável – , encontrei uma divertida série de Digested Classics no Guardian. Então armei uma espécie de jogo. Tenho certa vergonha de contar, mas vamos lá: copiei o texto no Open Office e escrevi minha versão por cima. Não fiz alterações substanciais, mas mexi num monte de detalhes. O tom destes “clássicos recontados” é mais do que jocoso, é decididamente uma profanação e, como meus sete leitores sabem, profanação das especialidades que mais aprecio.

Arriscaria dizer que ri muito do resultado. E, OK, vou dar a fonte por uma questão de honestidade. Por favor, não cliquem nela!

Observando a baía de Lyme, em 1867, podemos notar um casal muito bem vestido caminhando pela praia, se é que podemos chamar de praia aquela bela paisagem cheia de penhascos que acabavam no mar da Cornualha. Estavam tão à vontade longe de casa que não podemos chegar a outra conclusão que não seja a de que estavam noivos ou eram casados. E então ambos viram uma mulher toda de preto olhando o mar.

– Eu espero que você não tenha falado sobre as ideias tolas do Sr. Darwin novamente — criticou Ernestina. – Você sabe que papai não suporta a ideia de ser descendente de um macaco.

Monotemático, certamente Charles falara em novamente em Darwin, assim como hoje falamos sobre o aquecimento global ou as próximas eleições quando temos pouco assunto com nossos sogros. No entanto, a realidade é que Charles não tem nenhum direito a escolher seus temas de conversação, pois ele é uma construção da minha, apenas existe em minha mente, por isso, agora, quero que ele se fixe na mulher de preto que corre perigo na posição em que está.

– Quem é aquela? – , pergunta ele.

– Chamam-na de A Mulher do Tenente Francês – responde Ernestina. – Ela se apaixonou por um capitão náufrago que a abandonou. Ela caiu em desgraça e agora é empregada da Sra. Poulteney.

– Eu não desejaria saber nada dela nem desta história horrível, mas não creio que ela esteja segura naquela ponta. Pode cair e há pedras lá embaixo.

Charles dirigiu-se à mulher de preto e pediu-lhe que saísse daquele local perigoso, mas o olhar triste, frio e profundo que recebeu de volta avisava-lhe para se afastar.

Mas como este é o meu livro, vamos deixar esta cena introdutória e fazer algumas observações sarcásticas sobre ambos os personagens e seus valores vitorianos. Charles Smithson, podemos concluir, é um homem comum, ainda que nobre. Com uma renda que o libera da necessidade de trabalhar, ele é uma alma perdida de 32 anos, com ideias tão avançadas quanto pode ter um homem que deixa-se torturar pelas lembranças de suas ligações com prostitutas.

Sua noiva, Dona Ernestina Freeman, é o que agora nos anos 1960 chamamos de pequeno-burguesa. Seu pai ganha dinheiro no comércio. Ora, o comércio! Ele é o dono de algumas lojas de departamentos em Londres. Coisa estranha, enriqueceu trabalhando. Sua filha, apesar da baixa extração, pode, portanto, casar com Charles, de maior categoria, mas com menos grana. Está tudo perfeito. São dignos um do outro. O único inconveniente é que Ernestina é, como dizemos agora em 2010, uma cabeça oca ou uma loira burra.

Já Sarah Woodruff, ou A Vagabunda do Tenente Francês, como alguns de Lyme Regis a descreveriam… Bem, falemos dela depois. Há também a Sra. Poulteney, uma viúva que tomou Miss Woodruff para si, a fim de protegê-la das maledicências e assim aumentar suas chances de entrar no reino dos céus.

E depois há Sam e Mary. Como o amor dos empregados era mais alegre! E era mesmo. Livres das contorções românticas de seus chefes, Sam e Mary são personagens encantadores. A chefe de Mary é Ernestina e Sam é mordono de Charles. É um contraste bem útil para o romancista, que pode assim, criar uma superfetação de metáforas.

Mudemos o cenário. Muitas páginas depois, estamos em Undercliff, um mundo pré-histórico onde o desocupado Charles procura um fóssil – coisa de vitorianos confusos, apaixonados por Darwin, imaginem! E lá encontra Sarah Woodruff.

– Miss Woodruff –, diz ele.

– Senhor Smithson – , responde ela.

– Eu me preocupo com sua saúde.

– Minha saúde não significa nada.

Nossa! Após alguns minutos de conversa, ela diz que sua situação com o Tenente Francês desaparecido é o que a define como ser humano. Ela é aquilo. Se tivesse nascido 100 anos depois, Charles poderia ter reconhecido isto como uma expressão da angústia existencial sartreana. Porém, vejam como são as coisas, o que ele sentiu foi um desconcertante inchaço nas calças. Então, beijou-a na pálpebra.

Miss Woodruff olhou para toddos os lados.

Se formos vistos juntos, serei expulsa da casa da Sra. Poulteney.

Mais um discurso sobre a ciência vitoriana e hipocrisia religiosa? Mais encontros entre Charles e Sarah até que alguém os veja e cumpra-se a necessidade freudiana de ser expulsa da casa da Sra. Poulteney?

No entanto, damos mais um salto e vamos agora para Exeter, onde Sarah está hospedada no hotel Endicott. Charles vai até ela e aqui tenho um dilema, pois preciso manter o artifício que os meus personagens têm vidas próprias e que não sei como a história termina. Ousadamente, então, abandono-os.

Agora Charles nega a si mesmo a noite com Sarah e retorna a Ernestina, com quem viverá feliz para sempre pelos próximos 173 anos. Mas eu não quero fazer isso. Portanto, faremos com que ele retorne ao hotel, onde dou de cara com Charles desabado sobre o corpo nu de Sarah após 17 segundos de cópula intensa.

– Meu Deus, mas você virgem. Então, o tenente francês não…

– Na verdade não, mas eu precisava do mundo para imaginar que eu tinha para mim, para explorar minha vergonha e solidão.

Se Charles tivesse lido algum livro de psicologia moderna, ele teria concluído que Sarah estava precisando de uma terapia urgente. Mas como isso era 1867, ele simplesmente falou: “Eu te amo”.

Tudo se complica quando o mundo descobre a traição. Sam não entrega uma carta de Charles a Sarah e o mal-começado romance é subitamente extinto. Ela, Sarah, some. Charles é instado a terminar seu noivado, cai em ostracismo light e dorme com prostitutas enquanto cria mais mil metáforas em sua busca por Sarah.

Se eu soubesse que me obrigaria a escrever mais de 100 páginas, poderia ter ficado com o primeiro final. Mas não. Vou deixá-los com mais dois. Afinal, quero dormir com Meryl Streep novamente.

Ele a reencontra dois anos depois, vivendo como modelo de Dante Gabriel Rossetti. Aqui, um choque, pois Dante Gabriel Rossetti é um dos pintores preferidos de minha ex e, portanto, é um idiota. Criador de um grupelho que seus fãs gostam de chamar de pré-rafaelitas, mas que se chama Pre-Raphaelite Brotherhood ou Irmandade pré-rafaelita, é autor de pinturas, poemas e de conceitos que alardeavam a arte pela arte. Seu poema mais importante diz uma imbecilidade digna das maiores carolices “.pps”:

O pior momento para o ateu é quando ele realmente está agradecido e não tem ninguém para agradecer.

Você não precisa se preocupar com isso, Dante, eu organizaria uma festa. Mas voltemos. Ele a reencontra dois anos depois, vivendo como modelo de Dante Gabriel Rossetti.

– Eu não posso me casar com você. Ainda quero estar sozinha. Mas nós temos uma filha — diz Sarah.

Ou.

– Eu vou casar com você, mas será apenas platônico.

Você provavelmente vai escolher o segundo final. Eu fico com o primeiro, em que há sexo casual e variado. De qualquer maneira, Charles e Sarah acabaram pós-modernos.

Foi apenas um sonho, de Richard Yates

Foi a Carol Bensimon quem indicou este livro em seu twitter. Ela escreveu, naquele espacinho de 140 caracteres, algo como: “Richard Yates é o sujeito que mais conhece a natureza humana”. Obviamente. ela articularia melhor sua opinião num espaço menos informal do que a algaravia das tuitadas. Depois ela escreveu um post dizendo que tinha visto o filme e pressentira que havia uma grande obra literária por trás. Duvidei, pois vi o filme e não pensara em nada disso, mas ela é a Carol e achei melhor conferir. Quase larguei o livro de volta na estante da livraria ao ver a capa com o cartaz do filme de Sam Mendes e a exata tradução de Revolutionary Road para o português… A primeira edição brasileira recebera o nome de Rua da Revolução, porém o filme rebatizou o livro.

A história do livro já foi contada por Sam Mendes, porém a leitura do livro vale demais a pena. Richard Yates (1926-1992) trabalha na mesma faixa de realismo do bom cinema americado dos anos 50 e dos dramaturgos Tennessee Williams e Arthur Miller. Seu grande diferencial está no tratamento, na extrema dedicação que tem com os personagens. A vida interior de cada um deles, suas motivações, absurdos, brilhantismos e loucuras são analisadas minuciosamente. Se Yates não chega ao grau de detalhamento, às vezes demasiado, de um Juan José Saer, não fica muito longe do argentino em expor pacientemente seus pensamentos opiniões.

O resultado é extraordinário. O romance efetivamente merece o status de clássico que alguns críticos americanos lhe atribuem e é uma delícia para quem gosta dos artifícios literários. Yates faz maravilhas ao interromper personagens falastrões com sua narrativa e revela interessantes possibilidades de diálogos imaginários. Estes podem acontecer não apenas na imaginação dos personagens, mas também em pleno diálogo, quando o autor releva o que o personagem diria se agisse de acordo com os conselhos da mulher e o que ele realmente disse.

Esqueça o filme médio de Sam Mendes. O livro é estupendo, muito melhor do que a versão cinematográfica.  É uma história tristíssima, mas não adianta, sad songs make me happy.

Comércio crítico na Veja

Há algumas semanas — 2 ou 3, porque vi a tal revista na casa da minha irmã, na praia, durante a a virada do ano — , li uma crítica de Alcir Pécora a um livro de Mário Sabino. Normal, não? Nada normal. Analisemos mais a fundo: Alcir Pécora é um desses intelectuais acadêmicos paulistas supermetidos que devem frequentar diariamente a Mercearia São Pedro, saindo de lá sempre com ou três livros a mais em sua bibliografia. É um cara respeitado, ouvido. Nada lido, é certo, mas respeitado, como rotineiramente os acadêmicos são. Ou seja, obter uma crítica elogiosa de Pécora é receber um importante aval em alguns círculos. E o criticado, recebedor dos encômios desta verdadeira grife literária é Mário Sabino, o qual, nas horas vagas, trabalha como editor-chefe de Veja. E a crítica, pasmem, saiu na revista Veja.

Devo ser muito antiquado e tolo. E ético. Nunca, mas nunca mesmo eu colocaria uma crítica a um livro meu numa revista pela qual sou o responsável. Ainda mais que a revista paga a seus articulistas. Em outras palavras, Sabino pagou uma resenha favorável a Pécora. Ou alguém acha que Sabino e Veja publicariam uma opinião não laudatória? Não li o livro de Sabino — aliás, nem lembro o título — mas me chamou a atenção o fato de que resta à Pécora um pingo de honestidade… Notem como ele dá a grife e recebe a grana, mas é pudico, contido.

Seu principal ato falho é o de dizer que, dentro da obra literária do editor-chefe de Veja, há títulos interessantes. Ora, qualificar livros de interessantes é o mesmo que chamar a namorada feia do amigo de simpática, é o mesmo que dizer a um fã apaixonado que o filme não é ruim, é interessante. Mas há outros: Pécora fala na “inteligência da abordagem” e que Sabino “entregou destemidamente à narrativa as rédeas de seu andamento”. Se Pécora é uma autoridade e gostou do livro, saberia destacar coisas mais interessantes do que este punhado de lugares-comuns. Será que Sabino deu-se conta de que o trabalhinho ficou mal feito? Ou a vaidade só entende o que deseja entender?

Desonra, de J. M. Coetzee

Nunca tinha lido nada de J. M. Coetzee, autor sul-africano vencedor do Nobel de 2003. Desonra é de 1999. Ficou pronto, portanto, nove anos após o fim do apartheit e cinco depois das primeiras eleições livres da África do Sul. Tal cronologia é importante, pois Desonra é um relato seco e brutal onde o racismo, a “necessidade” do cumprimento do politicamente correto e a luta pela terra estão presentes.

David Lurie é um professor universitário que leciona poesia numa Universidade da Cidade do Cabo. Tem uma vida desinteressante (até para o próprio) e bem organizada, a qual inclui uma prostituta às quintas-feiras. Depois de um encontro casual num supermercado com esta mulher — outro encontro casual num supermercado ocorrerá nas páginas finais do romance com outro gênero de prostituta –, Lurie começará a ver seu mundo desmoronar. Primeiro, tem um caso com uma aluna. O julgamento da Universidade é absolutamente inacreditável, mas digamos que Lurie não a auxilia em nada. Como um Michael Kohlhaas moderno, o professor resolve entrar no mundo da desgraça de forma reta e vencedora… Depois da exoneração, Lurie vai passar um tempo com sua filha Lucy numa fazenda do interior. Lá, mais eventos ocorrem: pai e filha são atacados por uma gangue de três negros e Lucy é sexualmente agredida num estupro múltiplo que resulta em gravidez. Por um lado, a filha do professor parece aceitar a ocorrência. Seria uma espécie de revanche dos negros, ultrapassaria as meras dimensões individuais. Durante o ataque, Coetzee, que se limita a narrar os fatos concisamente, “larga” — o verbo melhor talvez seja mesmo este — uma frase-tese inteiramente estranha à linguagem utilizada pelo romance: Ele fala italiano, fala francês, mas italiano e francês de nada valem na África negra. Está desamparado, um alvo fácil… Obviamente, Coetzee não é trouxa. A frase não está ali por acaso. Com ela, ele pretende demonstrar ela a inadaptação da velha moral e da velha cultura aos novos tempos violentos.

A prosa seca de Coetzee não é das mais agradáveis, mas é eficiente para contar uma história onde o engenho está em significar muito: há a inutilidade cultural daquilo que Lurie faz e diz — o que dizer da ópera que nunca será ouvida e que parece ter sido composta para um cão que será sacrificado? –, há as desonras — a da aluna, a do professor acusado por assédio, a da filha, a do pai, a dos agressores, a dos que tomam a terra, a dos que aceitam como verdade o politicamente correto… enfim, a desonra completa da sociedade — e há o principal: a falta de vontade de comunicação. Quando terminei de ler o romance, a impressão que tive foi a de ter lido uma série de diálogos e pensamentos de personagens que não encontram ouvintes ou repercussões em outros. Não há nenhum empenho de compreensão, nem residual.

Talvez nós, brasileiros, estejamos acostumados a isto e não nos choquemos tanto com este tipo de histórias e mesmo em histórias de cunho menos social, a incompreensão já foi diversas vezes palmilhada: a incomunicabilidade de Antonioni, a de Pamuk, McEwan ou Rushdie, para dar exemplos próximo de mim, mas nunca a tinha visto toldada de tal desilusão e impotência. O livro é bom? Sim, é ótimo. Tem de ser lido? Sem dúvida! Mas lhe falta alguma coisa.

A sucessão de tragédias é tão rápida e espetacular, os acontecimentos se precipitam de forma tão contundente, o romance é tão curto, que a estrutura da história fica por demais aparente. A partir da metade do livro, ficamos aguardando o que mais de ruim Coetzee nos trará. Eu não peço uma redenção final, nem maior suavidade, apenas acho que a máquina de geração de desgraças de Coetzee funcionou com tamanha rapidez que deu ao romance um excesso de situações limite em curto espaço de tempo. Ora, isto não apenas lhe retira verossimilhança como lhe dá um aspecto esquemático. Como disse acima, sigo gostando e indicando Desonra, mas acho que Coetzee criou material e situações para algo ainda melhor.

Como o soldado conserta o gramofone, de Saša Stanišić

O livro de um bósnio que fala da Guerra dos Balcãs com a poesia possível. E muita poesia é possível naquele país de loucos, festas e guerras. Um livro cheio de ideias intrigantes e metáforas amalucadas que só, talvez, um bósnio pudesse criar. Cômico, pitoresco, comovente e trágico como um filme de Emir Kusturica, o romance é dividido em três partes para contar a história da infância e juventude de Aleksandar. A primeira parte narra a história de sua família em Višegrad, com especial afeto para com a figura do vovô Slavko, um nacionalista sérvio seguidor de Tito, que inspira o neto a contar histórias. Vovô Slavko morre enquanto a Iugoslávia sucumbe (1991), obrigando a família a emigrar para a Alemanha, fugindo da guerra. Filho de mãe muçulmana e pai sérvio (como o autor), não é adequado permanecer. A segunda parte é catalisada por um pacote de lembranças do avô, enviado a Aleksandar pela vovó Katarina, que permaneceu em Višegrad. Quando tudo era bom — um livro dentro do livro — é dedicado ao avô e é uma nostálgica reconstrução da vida anterior à guerra. A terceira parte conta como Aleksandar, adulto, retorna para sua Višegrad, tentando juntar os cacos do que já não existe mais e conhece o tio Miki, por demais informado sobre os crimes de guerra. Aqui, há o episódio inesquecível de um jogo de futebol entre sérvios e bósnios durante uma trégua. Contado de forma mirabolante e cômica, é o ponto alto do romance, assim como fora a história da amizade de Aleksandar com o italiano Francesco na segunda parte.

O ambiente é alegre, principalmente porque visto sob os olhos de uma criança e da nostalgia, mas o país, a cidade e Aleksandar sofrem com uma guerra onde mistura-se o ódio étnico (entre bósnios, sérvios e croatas) e o religioso (entre cristãos, muçulmanos e ortodoxos).

A ponte do Drina, rio-personagem que banha Višegrad. Dela, foram jogados
milhares de corpos. O rio da vida do vovô Slavko torna-se cemitério.

Bem, porém este é um blog cujos temas emergem conforme a vontade e o humor de seu autor. Hoje não quero falar sobre limpezas étnicas, OK? Bem, o ambiente de festa dos filmes de Kusturica deve ser mesmo o bosnian way of life

No exterior, as pessoas pensam que nós estamos sempre festejando por aqui. (…) Isso não corresponde muito bem à verdade, pois em algum momento temos que arrumar o que ficou desarrumado com os festejos.

O trecho acima vem logo antes de uma festa para a inauguração de uma privada nova, a primeira privada interna da casa.

Conheci Saša Stanišić em Porto Alegre. Tem apenas 31 anos e escreveu seu livro aos 28. Ele me foi apresentado pelo tradutor Marcelo Backes. Sim, o livro é em grande parte autobiográfico e possui algumas poucas falhas que coloco na conta da pouca idade, mas… que escritor ele poderá tornar-se, que imaginação! É original foi escrito em alemão, pois Saša (diz-se Sacha) vive na Alemanha, mas as metáforas e o ambiente regado a…

Autumn has arrived, along with the need for comfort,
delicious rich foods and of course hot plum brandy “sljivovica”.
Before 5PM it is medicine, after 5PM it’s alcohol
. )

… não pode ser mais bósnio. Vale a pena ler!

Música Mundana, de John Neschling

As pessoas que não gostam de futebol costumam criticar os altos salários dos técnicos e jogadores. É curioso, pois a maioria destas pessoas costumam dobrar-se às regras do mercado em outras áreas e talvez, se a situação fosse outra, achassem absurdo e injusto que aqueles que movimentam tanto dinheiro, com tamanha visibilidade, vendas de ingressos, artigos esportivos, TV a cabo, etc. ganhassem pouco. Começo assim a resenha porque me parece que o grande problema enfrentado por John Neschling, durante sua gestão na Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), era o salário de R$ 100.000,00.

Pesquisando as críticas que são feitas a John Neschling, noto que há uma fixação em seus ganhos mensais e nos concursos para músicos que eram promovidos pela Osesp. Há fóruns remanescentes que documentam a indignação sobre os concursos. Num deles, mães de candidatos discutem, defendendo seus filhos e atacando os vencedores. Patético. Não o desqualificam por suas interpretações, não o criticam por ter exigido a construção da Sala São Paulo dentro das mais rígidas normas, não falam na profissionalíssima formação da melhor orquestra da América Latina, falam apenas de aspectos periféricos.

Este talvez seja o maior elogio que lhe é feito. Ninguém consegue chamá-lo de incompetente e as dissonâncias que cercam seu nome são uma algaravia menor. Tudo torna-se mais estranho ainda quando pensamos que, se o desejo do Estado de São Paulo era o de ter uma orquestra de primeira linha em âmbito mundial, teria de pagar valores compatíveis com os… das melhores orquestras. Não me parece muito complicado de entender que, para se ter um time de primeira linha, há que pagá-lo.

Música mundana passa ao largo destes aspectos conhecidos dos jornais. Neschling não cita seu salário, nem o justifica ou reclama de quem gostava de divulgá-lo. Também fala pouco sobre a súbita e surpreendente demissão. O cerne do livro é a luta para a formação da orquestra e a construção da Sala São Paulo. É uma bela, gloriosa história, contada com detalhes, precisão e tranquilidade. Os capítulos do livro não obedecem à ordem cronológica; Neschling, inteligentemente, alternou os fatos recentes com outros do passado, que servem de apoio e justificativa para aqueles. Talvez nem precisasse, pois seu amor pela música e pela orquestra que criou está claro em cada palavra e entrelinha. São muito bonitas as narrativas do Rio de Janeiro do final dos anos 50 até a metade dos 60, dos primeiros anos de Europa, dos amigos e do carinho com que são referidos seus professores e o Maestro Eleazar de Carvalho. Além disto, o livro é um pequeno manual de como se fazer uma orquestra. E estas informações são preciosas pelo fato de mostrar como é complicado contar com o arredio serviço público quando o projeto envolve as palavras “inovação”, “primeira vez” e “comprometimento” acrescido de outra: “seriedade”.

John Neschling, apesar de emocionado, culto e elegante, não é um escritor. Há pecados literários em Música mundana. Há repetições e a utilização de lugares comuns aqui e ali. Mas penso que tais falhas fiquem submersas dentro da exemplar e coerente história contada por ele. E a história é a uma variação muito particular de nosso contumaz viralatismo, incapaz de lidar com o sucesso de alguém que, mesmo com o nome de John Neschling, é brasileiro. A reação ao êxito do maestro em primeiro conseguir aval para a construção da melhor sala de concertos da América Latina, depois na criação de uma grande orquestra nacional, e para completar, no imenso sucesso artístico da empreitada, com gravações para a Bis sueca e excursões internacionais, além dos – insuportáveis, insuportáveis – bons resultados iniciais em fazer a orquestra autogerir-se (a Osesp já pagava 20% de suas caras contas através de vendas de ingressos, assinaturas e CDs), veio primeiramente de um grupo de músicos que preferia uma sinecura ao trabalho, mas principalmente do governador José Serra e do presidente do Conselho da Osesp, Fernando Henrique Cardoso.

E tudo por uma entrevista do autor, na qual ele dizia que, não obstante seu amor pela orquestra, admitia ser substituído, apenas discordando dos métodos de escolha. Acabo de reler a entrevista. Nada demais.
As orquestras sinfônicas são um organismo complexo. São mais de cem músicos de diferentes nacionalidades e opiniões, há os instrumentos, uma estrutura cara, divulgação, um conservatório – pois muitos destes são professores e autoridades em seus instrumentos – , ou seja, são egos e mais egos para administrar. E há o mais importante: a qualidade artística. Não é possível administrar tudo isso sem conflitos e não é por acaso que existe farta bibliografia relatando atitudes autoritárias, histéricas, loucas e fascistas por parte de regentes. É que, obviamente, existe uma ligação entre o controle e o desempenho de toda essa gente. John Neschling, é claro, contribuía para aquela bibliografia. Era uma estrela. Para alguns, estrela demais.

Música mundana narra em detalhes toda a experiência daquele que criou uma orquestra de primeira linha no terceiro mundo. Há algo de Fitzcarraldo na grandeza do sonho. Às vezes, parece que o sonhador é perfeitamente razoável, outras vezes parece alucinado. Mas o que podemos fazer se por fim ele conseguiu que o barco singrasse por morros e matas, só morrendo com uma assinatura idiota, tão idiota que não quis nem reconhecer o claríssimo vínculo empregatício de Neschling, fato já reconhecido pela Justiça?

Estrela Distante, de Roberto Bolãno

Por Charlles Campos

O que poderia haver de errado, nesse começo de século pouco promissor para a literatura — no qual Norman Mailer lamentou que tudo pelo qual sua geração de intelectuais lutara tenha fracassado, e onde as mesmas formas eternamente combatidas de dominação tenham obtido uma vitória incontestável sobre qualquer resistência contrária — , com o fato de Roberto Bolaño ter sido escolhido como objeto de acirrada adoração pela mídia cultural mundial? Nessa época desencantada dos ilimitados milagres da eletrônica, onde Philip Roth vaticinou que a próxima geração a surgir trará incutida no gene o fim do interesse pela leitura, não é espantoso que o romance de mil páginas “2666” já tenha vendido mais de 23.000 exemplares em Portugal? E que “Detetives Selvagens” tenha movimentado o competidíssimo mercado editorial norte-americano; e que os outros livros de Bolaño já sejam por lá tidos como potenciais clássicos de um escritor genial? E o que poderia ser mais esperançoso do que vermos Bolaño ocupando o centro de vários debates culturais pelo mundo, seus livros aparecendo mesmo em locais exórdinos como na mala de viagem do apresentador da Globo Zéca Camargo ( que levou “A Pista de Gelo” para o acompanhar nas filmagens pela Tailândia, demonstrando os critérios práticos da simplificação de sua escolha)?

Mas essa iconização, por outro lado, é o reflexo de outros aspectos não tão festivos do atual momento cultural por que passa a América Latina. À exceção de Bolaño, de qual outro escritor latinoamericano se ouve falar com a mesma persistência? O cenário mostra-se desconcertantemente desértico, ainda mais em comparação à profusão de nomes de valor que existiam há cinquenta ou quarenta anos. A acreditarmos na tendência — o emprego de tal palavra talvez seja o mais maneirista dos eufemismos — do definhamento da escrita, essa espera pelo desaparecimento dos últimos grandes escritores sem que se veja o natural surgimento de uma geração que os substitua, é uma realidade não só das Américas, mas universal. Não que os escritores apareçam obedecendo a u ma determinada sistemática providencial, ou são produzidos em série para, no momento devido, virem com a resolução para os conflitos da pobre humanidade desgovernada. Mas o que ocorre é que o prognóstico lançado por Mailer, Roth, Vargas Llosa e uma dezena de outros escritores, sobre o futuro inglório que eles não verão , parece se encaixar com perfeição nos estágios velozes da técnica que já nos pegam pela frente, onde a escrita se torna irrelevante e descartada, e, com isso, o pensamento crítico, as nuances lingüísticas, a contestação às doutrinas dominantes, o reconhecimento de uma dimensão mental independente, a lentidão necessária para inteirar-se da constituição espiritual morta por fora pela extenuante falta de tempo da escravidão dedicada às empresas, ao Estado e ao modus operandi de consumidores infinitos.

Se a efervescência intelectual é expressão produzida pela intolerância alcançada aos conflitos históricos, como vemos os poderosos escritores surgidos na Rússia czarista, nos memorialistas do extermínio da Segunda Guerra mundial, nos inconformados contrários ao bezerro de ouro do capitalismo norte-americano, nos refugiados hispano-americanos que acusam as ditaduras assassinas em seus países, não há momento mais legítimo para a imposição da voz do que o que vivemos hoje. Se a desgraça crônica explode no desenvolvimento de pessoas comuns em contestadores que escrevem grandes livros, o estágio atual de desgraças seria mais que justificável para a descavernização desses anônimos, a fim de instigarem aos demais míopes silenciados as possibilid ades de um mundo lá fora.

E é aqui que a carga relegada a Bolaño demonstra-se demasiado pesada. Bolaño, em decorrência da degradação de sua saúde e da conseqüente falta de tempo para amadurecer sua escrita, aceitou resignadamente o trabalho que tinha e, como o albatroz com as asas quebradas, desmoronou-se em desistência para o interior de sua imensa depressão. E ficou com toda a soberba constituição de pássaro majestoso, mas incapaz de disfarçar para si mesmo o pouco tempo que lhe restava, e o quanto isto lhe destruiu a capacidade de ver com abrangência. Não venham me dizer que a proximidade da morte cause essas coisas; quase pela mesma época, Edward Said compunha sua biografia e um volume de ensaios onde se negava a afastar uma revificação solar de todas as idéias humanistas de seus outros livros, ele que também via o fim irrevogável se aproximando.

Bolaño não estava apto a continuar a resistência contra os antigos poderes de dominação vigentes e mais poderosos do que nunca na América Latina: a política patriarcal, a mídia a serviço desses poderosos, a grande alienação e o expansivo silêncio. (Não se mostrou apto a incorporar o intelectual que fala a verdade ao poder, na definição ativista de Said.) Resistência que se fazia com uma militância romântica (hoje tão anacrônica em suas singelas tentativas, que de imediato é taxada de ingênua e demagoga) pelos escritores do assim chamado boom da literatura hispano-americana: Miguel Àngel Astúrias, Juan Rulfo, Mário Vargas Llosa, Rômulo Galegos, Júlio Cortázar, Manuel Scorza, o jovem García Márquez.

Com seu nome valorizado nos mais altos índices de graduação pela crítica estrangeira como representante da atual intelectualidade latino americana, o seu quietismo raivoso, a sua falta de fé, o seu queixume derrotado, alinha-se ao pesado silêncio que mais uma vez assola nosso continente. E Bolaño é tanto mais decepcionante por sua desistência por não se poder dizer que os escritores atuantes em outras regiões do planeta perfaçam a mesma entrega de pontos e pacificação resignada; é só ver Ismail Kadaré, Amós Óz, Ohran Pamuk, Mia Couto, entre outros. J. M. Coetzee, por exemplo, continua insurgindo com uma revisão desafiadora contra o instituído ponto comum e politicamente correto em que coube calar a questão da guetização do negro e da miséria ainda reinante sob a edulcorada versão oficial de uma África redimida e liberta pós Nelson Mandela (como no magnífico romance-palestra “Margareth Costello”).

A crítica que cabe a Bolaño é a mesma que em outra época e sob óticas diferentes, D. H. Lawrence fez a Joseph Conrad, não perdoando por este ser um escritor tão inexoravelmente triste. Com todo esse potencial para o fantástico, e cedendo na primeira investida às formas aterrorizantes da falta de perspectivas do mundo real, era o que estava dizendo Lawrence, lamentando que a música bombástica da prosa exuberante de Conrad o engolisse antes que o arrebatasse para fora da cadeira. O que pode alimentar a interpretação de que os trópicos seja um cinturão global cujos atributos coincidentes são o desespero, a apequenização e o silêncio.

Bolaño, com seu estilo que parece ser independente de qualquer influência, sua profusão de histórias, seu talento em revirar a trama inúmeras vezes, seu humor surpreendente, suas frases que aparecem aqui e ali no relevo do coloquialismo como sentenças borgeanas, o que vemos é seu receio em mitificar, em ir além. Suas narrativas são todas sobre exilados que, mesmo professando a mais difícil e anti-moderna das artes — a poesia — , ainda assim são imediatamente descartados como poetas medíocres, mais uns versejadores outsiders que vão se silenciando e rendendo ao suicídio, à doença ou aos aspectos comezinhos da vida cotidiana. Em determinado momento de “Estrela Distante”, o narrador declara que o Chile ainda não está pronto para a poesia.

Os intelectuais que erram pelas páginas de seus livros não estão motivados a transformarem céu e terra, a bradarem seu canto selvagem sobre os telhados do mundo — mesmo que sempre quebrando a cara no final — , como os personagens de Saul Bellow; também não visam o sublime, como os desesperados que se apartam da mesquinharia mundana para seus territórios artísticos pessoais, como o dos livros de Thomas Bernhard. Seus personagens não tem o firme estoicismo intelectual dos de Philip Roth; ou o prosaísmo quixotesco dos de García Márquez; ou o provincianismo que conlui o submundo bairrista da infância com a experiência do militarismo regimentar dos livros de Vargas Llosa. Os seres de Bolaño não se encaixam nem ao mais niilista dos existencialismos; vivem apenas uma pobre e levianamente documentada aventura de passantes. Não existem dois personagens mais anêmicos e inexpressivos que Arturo Belano e Ulisses Lima.

Eu não perdoo que Bolaño seja tão triste. Quem lê “Putas Assassinas”, sai com a certeza de uns três ou quatro contos realmente muito bons, mas com uma sombra na alma que leva dias para desaparecer. Poderão me dizer que mexer com um material tão emocionalmente radioativo como a literatura é tarefa para quem tenha estoicismo suficiente para suportar doses cavalares de desencanto. Mas eu saio revitalizado depois de ler Bernhard, Beckett e Céline (para citar três escritores do desencanto). Ler “Extinção”, “Origem” e “Viagem ao Fim da Noite”, é percorrer uma indignação festiva, uma repugnância que recorda sempre a força de contestação juvenil, a desconstrução de toda certeza e gratidão imposta pela farsa da sociedade equânime; é literatura adrenérgica e viril, que, dependendo da época, deve ser naturalmente reprimida pelo sistema que estiver vigorando.

Já o Chile, Pinochet, as andanças sem rumo pelo México e pela Europa — até as cenas espetaculares numa guerrilha africana que aparece em “Detetives Selvagens” — , são incapazes de romper o isolamento de Bolaño; essa violência mundana não consegue suscitar nele nada mais que o aproveitamento, sob a devida distância, de matéria para sua prosa documental. Um conto de três páginas de Cortazar, “Grafite”, faz mais pela indignação, a denúncia e reação, do que “Amuleto” e aquelas últimas páginas de “Detetives Selvagens”. “Estrela Distante” vai mostrar mais uma vez isso, com um número inédito de aberrações e corpos mutilados, de que Bolaño renunciara à política, à filosofia e à poesia, e o resultado é um livro competentemente limpo de qualquer transcendência em qualquer sentido. O único símbolo sutil perceptivo é deixado à deriva, como se Bolaño, com seu cigarrinho entre os dedos, mandasse às favas o trabalho que daria dar escopo ao inteligente esquema do personagem central ser uma serial killer. Como em Detetives, em que ele não consegue mitificar a procura por 600 páginas pela Cesária Tinajero, ele também não passa ao leitor aquela indagação após fechar o livro de “o que diabos ele quis dizer com aquilo?” O poeta fascista assassino Carlos Wieder representa o que? Bolaño não constrói vínculos inteligíveis em que se possa dizer: “Ah! É a desumanização que a rendição à ditadura causa!”, ou “Ah! Cesária Tinajero é o símbolo da liberdade perdida!” A prosa de Bolaño é indevidamente rarefeita numa época em que a literatura precisa de mais para prosseguir.

Mas vale lê-lo? Vale! Cada centavo empregado! Não sei se Bolaño é um grande escritor. Estou propenso a pensar o contrário, o que seria uma contribuição à mesma mitificação que favorece ao setor das compras antes do deleite da leitura. Um dos melhores livros que li foi escrito por um autor menor, “Pergunte ao Pó”, do John Fante, e pouca coisa há de mais singela que Arturo Bandini (que coincidência!) atirando seu livro publicado em direção às areias do deserto da Califórnia. Não estou dizendo que Bolaño seja medíocre. Mas contra a comercialização desarroada de sua imagem (que só imponho reação quanto às possibilidades críticas, e não contra o quanto se consiga vender de seus livros — é um aspecto de raríssimo otimismo ver Bolaño ocupar algumas listas de mais vendidos), eu creio que o Bolaño verdadeiro é aquele da foto e m que aparece sentado atrás de uma mesa atulhada de papéis, com o olhar perdido para dentro de si mesmo, frágil, solitário, equilibrado com seu cigarrinho eterno na fina linha de sua vida, com a cabeça cheia da música mais angustiante.

Grafite de Roberto Bolaño numa rua de Buenos Aires

Istambul, de Orhan Pamuk, e maisquememória, de Marcelo Backes

Lidos casualmente um após o outro, os livros de Pamuk (Istambul, Cia. das Letras, 399 págs.) e de Backes (maisquememória, Record, 399 págs.) podem parecer obras pertencentes a um gênero muito específico, o do memorialismo precoce e turístico, mas tal redução é injusta e, mesmo sendo tão diferentes, elas têm outras semelhanças além do número de páginas.

Conheci Pamuk numa Flip. Na verdade, fiquei (ficamos) abolhados com a metralhadora que é o homem. O tema de sua palestra era muito sedutor: “A influência de Borges sobre As Mil e uma Noites“. Sim, porque a admiração dos eruditos ocidentais, capitaneados argentino quando ainda não enxergava muito bem, causou tal furor nas pesquisas sobre o que havia de autêntico e o que tinha sido abusivamente alterado na obra, que, hoje, As Mil e uma Noites têm pouco a ver com a do começo do século XX. O tema era interessantíssimo, mas era o último da programação daquela dia na Flip e minha mulher desistiu no meio da fala daquele homem maluco que fazia tantas perguntas quanto respondia ao entrevistador. Mais: avisava que tinha pouco tempo e MUITO a contar. Falava com uma rapidez que deixava o tradutor audivelmente nervoso… OK, ela desistiu, mas eu fiquei ali ouvindo aquele homem estava em Parati mas que falava — palavras dele — desde a ponte de Istambul que liga a Europa à Ásia, voltando-se ora para um lado, ora para outro. Ao final daquele mesmo ano, aquele desconhecido turco maluco e inteligente receberia o Nobel.

Conheci Marcelo Backes num churrasco e não me arrependo até hoje. Ele devia ter uns 25 ou 26 anos, mas parecia ter lido 100 anos. Logo vi que era bom tê-lo por perto, pois Marcelo não apenas sabia muito como não se incomodava em ensinar. Desde lá, passaram-se mais de dez anos. Marcelo foi para a Alemanha finalizar mestrado e doutorado, publicou vários livros e traduziu mais de uma dezena, tendo percorrido desde Marx até Stanišić, passando por Kafka, Arthur Schnitzler e outros. De sua autoria, li A Arte do Combate, obra sobre a literatura alemã e seu caráter combativo em comparação com o habitual compadrio brasileiro; o sarcástico e aforístico Estilhaços (onde sou citado…) e agora este maisquememória. Hoje, Marcelo Backes mora no Rio. Falamos pouco, infelizmente.

Mas vamos antes às coincidências:

1. São ambos livros em grande parte de memórias, embora Backes chame, com razão, maisquememória de “romance”.
2. São ambos livros que falam muito eruditamente sobre história e artes em geral.
3. São ambos livros apaixonados, onde as cidades e a geografia participam na condição de personagens. Istambul parece levar a vida de Pamuk como a música de Bach leva adiante o texto de suas árias e Backes corre de cidade em cidade como se fosse um Lazarillo de Tormes moderno, mas a intenção não é só a de fazer graça e sim a de entabular diálogos — visuais, verbais e físicos — com a cultura local.
4. Istambul caracteriza-se pela melancolia (hüzun) e sabemos que Pamuk, de forma inacreditável e certamente sofrida, acabou separando-se da cidade que tanto ama e conhece, por fazer denúncias sobre o extermínio de armênios, enquanto maisquememória nos dá um itinerário muito sutil de como são emitidos e/ou ignorados os sinais que levam um casal à separação. Nos dois casos, ambos — e o “ambos” aqui é reforço de expressão — sabiam das conseqüências. Mas foram tragicamente em sua direção, como se outra coisa não fosse possível.
5. A pintura de Pamuk — pois o escritor é um ex-futuro pintor — é o fio condutor de grande parte do livro. Ela carrega todas as motivações, inclusive as sexuais, do autor. E Backes faz das obras de Oskar Kokoschka e de seu amor por Alma Mahler — desfeito por esta — um abrasador comentário paralelo, nem um pouco isento de sexo, sobre ocaso do casamento de seu personagem, matéria em pequena parte real e em grande parte ficcional.

Istambul é um livro para ser lido e admirado. Ganhar o livro de minha filha Bárbara como presente duplo de Dias dos Pais e aniversário, foi muito bom: ela não apenas escolheu o livro sozinha como comprou-o como sua própria mesada. Acertou em cheio. Fiquei folheando o livro (notem o ato falho: eu tinha escrito “filhando o livro”!) como forma de domar a comoção e a coisa só piorava, pois as fotos de Ara Güler que acompanham a obra e que pontuam minuciosamente a narrativa são lindíssimas, dignas de que você entre na livraria só para dar uma olhada, como numa pinacoteca. Mas faça isso no Brasil, pois o trabalho da Cia. das Letras é infinitamente melhor do que os da edição espanhola, argentina e mexicana.

À parte o turismo, maisquememória trata de uma separação que vai sendo lentamente anunciada durante a leitura. Aliás, há dois fatos que vão se aprofundando durante a leitura. (1) A dissociação entre o personagem principal e seu “cavalo” acentua-se até que o cavalo acaba por revoltar-se contra o primeiro eu de Marcelo Backes (ou de seu personagem Marcelo Backes) com seu enorme ego e (2) os melancólicos intermezzi — que chegam ao leitor em belo ostinato — não servem apenas para mostrar como Kokoschka é interessante, mas vão adquirindo significado antes do anúncio da separação. São extratos do profundo e inaceitado abandono que obcecou Kokoschka por anos. Então, o “eu narrador”, enquanto fala do mundo lá fora, caminha – repito – tragicamente na direção daquilo que é o que efetiva e talvez inconscientemente deseja e do qual só desconhece o amargor, ou seja, o cerne. É estranho que alguns leitores revoltaram-se contra o memorialista, ignorando a palavra “Romance” que há na capa. Tudo o que é contado em primeira pessoa são verdades… ficcionais…

Istambul, a ex-capital do ex-Império Bizantino, ex-capital do ex-Império Turco-Otomano tornou-se, no século XX, uma cidade que oscilava entre o riqueza e a pobreza, entre a ocidentalização chique e o orientalismo démodé. Filho de uma família rica, cujos pais estavam sempre às turras pelas constantes traições dele – fato notável, pois a mãe de Pamuk era belíssima, uma das mulheres mais belas da alta sociedade de Istambul, como podemos comprovar nas fotos do livro, prova de a vida é mesmo estranha … -, Pamuk constrói uma tranqüila e bela narrativa sobre o mundo infantil dentro da cidade que tenta ocidentalizar-se até mesmo através de incêndios. As descrições do Bósforo, acompanhadas pelas imagens de Güler, tornam a obra a mais bela homenagem que conheço a uma cidade. Falei com vários amigos que conhecem Istambul e eles não reconhecem a tal melancolia de seus habitantes, tão explorada por Pamuk, prova de que não somente a vida é estranha, mas o turismo também, pois o texto de Istambul combina tão bem com as fotos apresentadas que Pamuk nos convence de forma inequívoca.

maisquememória é um livro que cresce muito em sentido durante sua leitura. Se de início ficamos de nariz torcido para o narrador arrogante que nos enche – e como! – de informações muito interessantes e úteis acerca de suas viagens, se o autor adentra de forma oblíqua os mais variados assuntos e come as mais variadas mulheres das mais variadas etnias e línguas, ele nos causa estranheza pela intervenção de um cavalo de bom senso (o cavalo é um outro eu de Marcelo, bem mais razoável) e pelo coral grego representado pela narrativa, jogada aqui e ali, da separação de Oskar Kokoschka e Alma Mahler. Ao longo do livro, curiosamente, o contraditório que está na cabeça do leitor passa ao livro, que combate as assertivas do primeiro Marcelo através das vozes do segundo Marcelo e da que descreve o amor de Kokoschka. Ao final, as três vozes discutem abertamente, sendo caracterizadas por fontes (refiro-me ao tipo de letra) diferentes. Ou seja, o contraditório, a objeção presente do leitor migra para dentro do livro. Sem dúvida, é original.

O que mais gostei nos livros. Istambul: a esplêndida descrição do primeiro amor e as caminhadas do casal pela cidade, que são arrepiantes; os apontamentos sobre o pitoresco casual da cidade; a história dos escritores que escreveram antes sobre ela, turcos ou ocidentais; sua relação com a mãe e irmão e a prosa de Pamuk com sua perfeita noção de estilo. Ele efetivamente consegue mudar de capítulo para capítulo. Há os líricos, os descritivos, os jocosos; enfim, trata-se de um escritor que aprecia “mostrar” sua habilidade. Ah, e as fotos de Güler, as fotos, as fotos!

maisquememória é estupidamente informativo e tem todo o gênero de comentários divertidos sobre cultura em geral, mas estas opiniões e descrições vão se intrometendo nas “memórias” de forma curiosa, principalmente quando Kokoschka manda fazer uma boneca — fato real — de sua (já não sua) Alma Mahler. Tal procedimento acaba por criar o clima perfeito para a grandiosidade humana que o romance adquire em suas seções finais.

FHC teria recebido milhões de dólares da CIA

Resenha do jornal Correio do Brasil sobre um livro recém lançado Brasil abre algumas caixas pretas das ligações entre o alto tucanato e a CIA.

LIVRO ACUSA FHC DE RECEBER MILHÕES DE DÓLARES DA CIA

Mal chegou às livrarias e Quem pagou a conta? A CIA na guerra fria da cultura — Frances Stonor Saunders (*), Record, tradução de Vera Ribeiro — já se transformou na gazua que os adversários dos tucanos e neoliberais de todos os matizes mais desejavam. Em mensagens distribuídas neste domingo pela internet, já é possível perceber o ambiente de enfrentamento que precede as eleições deste ano. A obra da pesquisadora inglesa, ao mesmo tempo em que pergunta, responde: Quem “pagava a conta” era a CIA, a mesma fonte que financiou os US$ 145 mil iniciais para a tentativa de dominação cultural e ideológica do Brasil, assim como os milhões de dólares que os procederam, todos entregues pela Fundação Ford a Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do país no período de 1994 a 2002. O comentário sobre o livro consta na coluna do jornalista Sebastião Nery, na edição deste sábado do diário carioca Tribuna da Imprensa: “Não dá para resumir em uma coluna de jornal um livro que é um terremoto. São 550 páginas documentadas, minuciosa e magistralmente escritas”. “Consistente e fascinante” (The Washington Post). “Um livro que é uma martelada, e que estabelece em definitivo a verdade sobre as atividades da CIA” (Spectator). “Uma história crucial sobre as energias comprometedoras e sobre a manipulação de toda uma era muito recente” (The Times).

DINHEIRO DA CIA PARA FHC

“Numa noite de inverno do ano de 1969, nos escritórios da Fundação Ford, no Rio, Fernando Henrique teve uma conversa com Peter Bell, o representante da Fundação Ford no Brasil. Peter Bell se entusiasma e lhe oferece uma ajuda financeira de 145 mil dólares. Nasce o Cebrap”. Esta história, assim aparentemente inocente, era a ponta de um iceberg. Está contada na página 154 do livro “Fernando Henrique Cardoso, o Brasil do possível”, da jornalista francesa Brigitte Hersant Leoni (Editora Nova Fronteira, Rio, 1997, tradução de Dora Rocha). O “inverno do ano de 1969” era fevereiro de 69.

FUNDAÇÃO FORD

Há menos de 60 dias, em 13 de dezembro, a ditadura havia lançado o AI-5 e jogado o País no ponto alto do terrorismo de estado pós-golpe de 64, desde o início financiado, comandado e sustentado pelos Estados Unidos. Centenas de novas cassações e suspensões de direitos políticos estavam sendo assinadas. As prisões, lotadas. Até Juscelino e Lacerda tinham sido presos. E Fernando Henrique recebia da poderosa e notória Fundação Ford, uma primeira parcela de 145 mil dólares para fundar o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). O total do financiamento nunca foi revelado. Na Universidade de São Paulo, sabia-se e se dizia que o compromisso final dos americanos era de 800 mil a um milhão de dólares.

A SERVIÇO DA CIA

Os americanos não estavam jogando dinheiro pela janela. Fernando Henrique já tinha serviços prestados. Eles sabiam em quem estavam aplicando sua grana. Com o economista chileno Faletto, Fernando Henrique havia acabado de lançar o livro “Dependência e desenvolvimento na América Latina”, em que os dois defendiam a tese de que países em desenvolvimento ou mais atrasados poderiam desenvolver-se mantendo-se dependentes de outros países mais ricos. Como os Estados Unidos. Montado na cobertura e no dinheiro dos gringos, Fernando Henrique logo se tornou uma “personalidade internacional” e passou a dar aulas e fazer conferências em universidades norte-americanas e européias. Era “um homem da Fundação Ford”. E o que era a Fundação Ford? Um dos braços da CIA, o serviço secreto dos EUA.

MILHÕES DE DÓLARES

1 – “A Fundação Farfield era uma fundação da CIA… As fundações autênticas, como a Ford, a Rockfeller, a Carnegie, eram consideradas o tipo melhor e mais plausível de disfarce para os financiamentos… permitiu que a CIA financiasse um leque aparentemente ilimitado de programas secretos de ação que afetavam grupos de jovens, sindicatos de trabalhadores, universidades, editoras e outras instituições privadas” (pág. 153).

2 – “O uso de fundações filantrópicas era uma maneira conveniente de transferir grandes somas para projetos da CIA, sem alertar para sua origem. Em meados da década de 50, a intromissão no campo das fundações foi maciça…” (pág. 152). “A CIA e a Fundação Ford, entre outras agências, haviam montado e financiado um aparelho de intelectuais escolhidos por sua postura correta na guerra fria” (pág. 443).

3 – “A liberdade cultural não foi barata. A CIA bombeou dezenas de milhões de dólares… Ela funcionava, na verdade, como o ministério da Cultura dos Estados Unidos… com a organização sistemática de uma rede de grupos ou amigos, que trabalhavam de mãos dadas com a CIA, para proporcionar o financiamento de seus programas secretos” (pág. 147).

4 – “Não conseguíamos gastar tudo. Lembro-me de ter encontrado o tesoureiro. Santo Deus, disse eu, como podemos gastar isso? Não havia limites, ninguém tinha que prestar contas. Era impressionante” (pág. 123).

5 – “Surgiu uma profusão de sucursais, não apenas na Europa (havia escritorios na Alemanha Ocidental, na Grã-Bretanha, na Suécia, na Dinamarca e na Islândia), mas também noutras regiões: no Japão, na Índia, na Argentina, no Chile, na Austrália, no Líbano, no México, no Peru, no Uruguai, na Colômbia, no Paquistão e no Brasil” (pág. 119).

6 – “A ajuda financeira teria de ser complementada por um programa concentrado de guerra cultural, numa das mais ambiciosas operações secretas da guerra fria: conquistar a intelectualidade ocidental para a proposta norte-americana” (pág. 45).

(*) O nome correto da autora é Frances Stonor Saunders e não como está na capa do livro.